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                                ARTIGO TEOLÓGICO
    1
        Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio

                                               por

                                Carlos Augusto Vailatti

RESUMO

        Este artigo tem por objetivo analisar a perícope bíblica de Qöheºlet 3.1-15
(Eclesiastes 3.1-15) a partir da relação dialética existente entre os conceitos filosóficos e
teológicos do determinismo e do livre-arbítrio. E, para podermos alcançar esse objetivo,
daremos três passos básicos. Primeiro, daremos a nossa própria tradução do texto original
hebraico, a qual será acompanhada por algumas breves observações lexicais e semânticas.
Em segundo lugar, forneceremos quatro pontos de vista sobre a relação existente entre o
determinismo e o livre-arbítrio. E, em terceiro lugar, faremos a leitura da perícope estudada
através da ótica do determinismo e do livre-arbítrio. Neste terceiro item, nos valeremos
principalmente das opiniões e comentários emitidos por fontes judaicas.
Palavras-Chave: Qöheºlet, Eclesiastes, Determinismo, Livre-Arbítrio, Interpretação.

RESUMEN

        En este artículo se pretende analizar el pasaje bíblica de Qöheºlet 3,1-15 (Eclesiastés
3,1-15) a partir de la relación dialéctica entre los conceptos teológicos y filosóficos del
determinismo y del libre albedrío. Y con el fin de lograr este objetivo, vamos a dar tres
pasos básicos. En primer lugar, vamos a dar nuestra propia traducción del texto hebreo
original, que será acompañada por unas breves observaciones léxicas y semánticas. En
segundo lugar, vamos a dar cuatro puntos de vista sobre la relación entre el determinismo y
el libre albedrío. Y en tercer lugar, leemos el pasaje estudiada a través del lente del
determinismo y del libre albedrío. En este tercer punto, sobre todo vamos a utilizar las
opiniones y los comentarios de las fuentes judías.
Palabras Clave: Qöheºlet, Eclesiastés, Determinismo, Libre Albedrío, Interpretación.

ABSTRACT

        This article aims to analyze the biblical passage of Qöheºlet 3.1-15 (Ecclesiastes 3.1-
15) from the dialectical relationship between the theological and philosophical concepts of
determinism and free will. And in order to achieve this goal, we will give three basic steps.
First, we shall give our own translation of the original Hebrew text, which will be
accompanied by some brief lexical and semantics observations. Secondly, we will provide
four views on the relationship between determinism and free will. And thirdly, we will read
the passage studied through the lens of determinism and free will. In this third item, we will
use especially the views and comments made by Jewish sources.
Keywords: Qöheºlet, Ecclesiastes, Determinism, Free Will, Interpretation.

1
 Este artigo foi apresentado originalmente como trabalho em 06/2011 para a Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (Departamento de Letras Orientais) da Universidade de São Paulo (USP).
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INTRODUÇÃO

        O livro de Qöheºlet (em hebraico,               tl,h,äqo),   também conhecido como

Ekklēsiastēs (em grego, VEkklhsiasth,j), termo este derivado da Septuaginta, já
foi chamado, e com muita justiça, de “o mais filosófico dos livros bíblicos”.2




                                                                                                        © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
Esse livro sapiencial, que foi escrito provavelmente entre os séculos IV e III
a.C.,3 é, no mínimo, “um livro estranho”, para usar as palavras de Haroldo de
Campos.4 E essa “estranheza” se deve, segundo Robert Balgarnie Young Scott, a
três fatores principais: 1) à divergência radical entre o conteúdo de Qöheºlet e
aquele encontrado no resto da Bíblia Hebraica, 2) à língua na qual o livro foi
escrito e 3) ao nome do livro. De acordo com Scott:

        No caso de Eclesiastes, não há (...) possibilidade (...) de harmonizá-lo com o tom
        e o ensino do resto da Bíblia. Ele diverge muito radicalmente. Na verdade, ele
        nega algumas das coisas sobre as quais os outros escritores colocam a maior
        importância – especialmente que Deus tem revelado a si próprio e a sua vontade
        para o homem, através do seu povo escolhido, Israel. Em Eclesiastes, Deus não é
        apenas desconhecido para o homem através da revelação; ele é incognoscível
        através da razão, o único meio pelo qual o autor acredita que o conhecimento é
        alcançável. Tal Deus não é Yahweh, o Deus da aliança de Israel. Ele é bastante
        misterioso, um Ser inescrutável cuja existência deve ser pressuposta como
        aquela que determina a vida e o destino do homem, em um mundo que o homem
        não pode mudar e onde todo o seu esforço e valores são esvaziados de sentido.
        (...) Um segundo elemento de estranheza é a língua na qual o livro foi escrito,
        um tipo de hebraico diferente de qualquer outro no Antigo Testamento. Ele
        possui características que se assemelham ao hebraico da Mishná (200 A.D.) e a
        algo do rolo de cobre anterior de Qumrã; aparentemente, este foi um dialeto
        desenvolvido em certos círculos sob a influência do aramaico, pouco antes do

2
  FRIEDMAN, Richard Elliott. O Desaparecimento de Deus: um mistério divino. Rio de Janeiro, Imago,
1997, p.284.
3
  CERESKO, Anthony R. Introdução ao Antigo Testamento numa Perspectiva Libertadora. São Paulo,
Paulus, 1996, p.299. Para maiores informações sobre a data em que Qöheºlet foi escrito, veja: ARCHER,
Gleason L. The Linguistic Evidence For the Date of “Ecclesiastes”. [Journal of the Evangelical
Theological Society].Vol.12, nº3, Louisville, Evangelical Theological Society Press,1969, pp.167-181.
4
  CAMPOS, Haroldo de. Qohélet = O-que-sabe: Eclesiastes: poema sapiencial. São Paulo, Editora
Perspectiva, 1991, p.17.

                                                                                          W
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        início da era cristã. (...) Em terceiro lugar, o nome ou designação do autor,
        Qöheºlet (...) é um antigo enigma. Ele tem a forma de um particípio feminino
        ativo do verbo q-h-l (não encontrado no tronco simples no Antigo Testamento),
        do qual é derivado o substantivo q`h`l, “uma reunião, assembleia,
        congregação”. “Qöheºlet” parece significar, portanto, “aquele que reúne uma
        corporação ou congregação”. No contexto do movimento de Sabedoria, o termo




                                                                                                      © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
        ou título poderia designar um mestre ou acadêmico que reúne em torno de si
        alunos ou discípulos, como, aliás (nos é dito em xii 9), Qohelet fez.5


        Todavia, apesar de ser “estranho”, Qöheºlet é, ao mesmo tempo, um livro
fascinante e bastante atual.6 O livro é fascinante pela profunda sabedoria
atemporal de        vida     que ele exibe em suas                 páginas e        também é,
concomitantemente, atual, pois, segundo alguns estudiosos, o Qöheºlet advoga
filosofias tais como: o pessimismo, o ceticismo, o agnosticismo, o racionalismo,
o secularismo, o antropocentrismo, o conformismo, o epicurismo, o hedonismo, o
materialismo, o fatalismo e o determinismo, dentre outros, elementos estes que
também podem ser percebidos em larga escala em nossa sociedade
contemporânea pós-moderna.
        No que se refere ao propósito que motivou a escrita de Qöheºlet, Stephan
de Jong acredita que o livro tenha sido escrito com o propósito de reagir contra o
espírito tecnocrático helenista, uma vez que a cultura helênica era a cultura
dominante daquela época. Tal espírito, que era caracterizado por um grande
otimismo e por um sentimento de superioridade helênicos, estava influenciando,
sobretudo, a aristocracia judaica, e, por isso, Qöheºlet se dirige contra essa fé nas
possibilidades ilimitadas do homem.7 Haroldo Reimer, que segue uma linha de
pensamento semelhante à de Jong, afirma que o propósito do livro de Qöheºlet é


5
  SCOTT, R. B. Y. [Ed.]. Proverbs, Ecclesiastes. Vol. 18. [The Anchor Bible]. New York, Doubleday,
1965, pp.191,192.
6
   Ceresko, comentando sobre o conteúdo de Qöheºlet, afirma: “a obra quase soa moderna em suas
inquisitivas reflexões”. (Cf. CERESKO, Anthony R. A Sabedoria no Antigo Testamento: espiritualidade
libertadora. São Paulo, Paulus, 2004, p.100).
7
  JONG, Stephan de. “Quítate de Mi Sol!”: Eclesiastés y La Tecnocracia Helenística. Quito, Ribla
[Revista de Interpretacion Bíblica Latino-Americana], Nº 11, 1992, p.1.

                                                                                        W
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duplo. Primeiramente, o Qöheºlet visa refletir criticamente sobre qual é o proveito
real que se pode tirar do trabalho, uma vez que se vive debaixo de um sistema de
dominação, isto é, o sistema helenístico. Em segundo lugar, Reimer ainda
acredita que o Qöheºlet foi escrito para incentivar o judeu, que está dominado por
um sistema estrangeiro, a praticar o seu carpe diem. Tal postura seria uma forma
de contestar o sistema de trabalho helênico escravizante em Judá, o qual vigorava




                                                                                                           © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
na metade do III século a.C.8
        Seja como for, em nosso trabalho, buscaremos tratar basicamente da
relação dialética existente entre o determinismo e o livre-arbítrio a partir da
análise da perícope bíblica de Qöheºlet 3.1-15. E, a fim de podermos atingir o
nosso objetivo, daremos três passos básicos. Primeiro, daremos a nossa própria
tradução do texto original hebraico, a qual será acompanhada por algumas breves
observações lexicais e semânticas. Em segundo lugar, forneceremos quatro
pontos de vista sobre a relação existente entre o determinismo e o livre-arbítrio.
Em terceiro lugar, faremos o comentário do texto ora estudado, a partir da ótica
da relação dialética existente entre o determinismo e o livre-arbítrio, visando
compreender melhor o seu significado. Neste terceiro item, nos valeremos
principalmente das opiniões e comentários emitidos por fontes judaicas. Depois
disso tudo, mencionaremos finalmente algumas conclusões às quais chegamos ao
término do nosso trabalho.
        Feitos estes esclarecimentos, avancemos, então, em nosso estudo.




8
 REIMER, Haroldo. “Y ver la parte buena de todo su trabajo” (Eclesiastés 3,12) – Anotaciones Sobre
Economia y Bienestar en la vida del Eclesiastés. Quito, Ribla [Revista de Interpretacion Bíblica Latino-
Americana], Nº51, 2005, p.1.

                                                                                            W
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I – O TEXTO DE QOHÉLET 3.1-15 E A SUA TRADUÇÃO

         Antes de começarmos a fazer a nossa análise sobre a perícope de Qöheºlet
3.1-15, é necessário dizer que o nosso estudo se baseará principalmente no texto
massorético (TM) encontrado na BHS.9 Esse texto é visto atualmente como o




                                                                                                   © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
mais confiável da Bíblia Hebraica tanto por eruditos judeus, quanto por eruditos
cristãos em todo o mundo. A nossa tradução desse texto buscará ser a mais literal
possível, a fim de valorizar as nuances e características do texto hebraico clássico
(bíblico). Eis o texto hebraico de Qöheºlet 3.1-15 e a sua respectiva tradução:


         Qöheºlet 3.1-15 Traduzido
           öheº                                       Qöheºlet 3.1-15 em Hebraico
                                                       öheº
1
    Para tudo (há) um tempo determinado                           !m+z lKoßl; 1
      E um tempo para todo propósito                  `~yIm)V'h; tx;T;î #p,xeÞ-lk'l. t[eîw
             debaixo dos céus.
              2
                  Tempo para nascer
                                                                  tdl,Þl' t[eî 2
             E tempo para morrer                                     tWm+l' t[eäw
              Tempo para plantar                                     t[;j;êl' t[eä
              E tempo para colher                           `[:Wj)n rAqï[]l; t[eÞw
              3
                  Tempo para matar
                                                                   ‘gArh]l; t[eÛ 3
              E tempo para curar                                   aAPêrli t[eäw
              Tempo para destruir                                   #Arßp.li t[eî
            E tempo para construir                                 `tAn*b.li t[eîw
              4
                  Tempo para chorar                               ‘tAKb.li t[eÛ 4
                  E tempo para rir                                 qAxêf.li t[eäw
             Tempo de se lamentar                                    dApßs. t[eî
              E tempo de dançar
                                                                    `dAq)r t[eîw
        5
            Tempo para lançar pedras                       ~ynIëb'a] %yliäv.h;l. t[e… 5
       E tempo de amontoar pedras                            ~ynI+b'a] sAnæK. t[eÞw
              Tempo para abraçar                                    qAbêx]l; t[eä
     E tempo para afastar-se de abraçar                     `qBe(x;me qxoïrli t[eÞw
9
 Cf. ELLIGER, K.  RUDOLPH, W. (Eds.). Bíblia Hebraica Stuttgartensia. [Editio Quinta Emendata].
Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft,1997.

                                                                                          W
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            6
                Tempo para buscar                         ‘vQeb;l. t[eÛ 6
            E tempo para perder                            dBeêa;l. t[eäw
            Tempo para guardar                             rAmàv.li t[eî
            E tempo para lançar
                                                       `%yli(v.h;l. t[eîw




                                                                                     © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
            7
                Tempo para rasgar                        ‘[:Ar’q.li t[eÛ 7
          E tempo para costurar                           rAPêt.li t[eäw
                Tempo para calar                           tAvßx]l; t[eî
                E tempo para falar
                                                          `rBE)d:l. t[eîw
            8
                 Tempo para amar                          ‘bhoa/l,( t[eÛ 8
            E tempo para odiar                              anOëf.li t[eäw
                Tempo de guerra
                                                          hm'Þx'l.mi t[eî
                 E tempo de paz
                                                           `~Al)v' t[eîw
            9
                Que proveito (tem)                         ‘!Art.YI-hm; 9
                  O trabalhador                               hf,êA[h'(.
            No que ele trabalha?
                                                   `lme([' aWhï rvßa]B;
       10
            Eu tenho visto a tarefa               !y©n[ih'(-ta, ytiyaiär 10
                  Que deu Deus                     ~yhi²l{a/ !t:ôn rv,’a]
           Aos filhos do homem                           ~dÞa'h' ynEïb.li
  Para estarem ocupados nela.
                                                            `AB* tAnð[]l;
 11
      Tudo fez belo em seu tempo;
Também o mundo deu no coração
                                            AT=[ib. hp,äy hf'Þ[' lKoïh;-ta, 11
           deles,                            ~B'êliB. !t:ån ‘~l'[oh'-ta, ~G:Ü
De tal modo que não descubra o             ~dªa'h' ac'äm.yI-al{ rvôa] yliúB.mi
           homem
            A obra que fez Deus
                                          ~yhiÞl{a/h' hf'î['-rv,a] hf,²[]M;h;(-ta,
  Desde o princípio e até o fim                     `@As)-d[;w varoïme
      12
            Eu sei que não há nada                  !yaeî yKi² yTi[.d:§y 12
                Melhor para eles                          ~B'_ bAjß
                Que se alegrarem                     x:Amêf.li-~ai yKiä
 E fazerem (o) bem em sua vida
                                                 `wyY)x;B. bAjß tAfï[]l;w

                                                                                 W
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            13                                                   ‘~da'h'-lK' ~g:Üw 13
                 E também todo homem
                  Que coma e beba                                  ht'êv'w lk;äaYOv,
                    E veja (o) bem                                  bAjß ha'îrw
                 Em todo seu trabalho                               Al+m'[]-lk'B.




                                                                                                         © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
            Isso (é) um dom de Deus                             `ayhi( ~yhiÞl{a/ tT;îm;
     14
          Eu sei que tudo (o) que fez Deus          ‘~yhil{a/h' hf,Û[]y: rv,’a]-lK' yKiû yTi[.d:ªy 14
           Ele (Isso) será para sempre
                                                                ~l'êA[l. hyåh.yI aWh…
          Sobre ele (isso) nada (há) para
                   acrescentar                                  @ysiêAhl. !yaeä ‘wyl'['
     E dele (disso) nada (há) para tirar                         [:ro+gli !yaeä WNM,ÞmiW
                    E Deus (o) fez                                 hf'ê[' ~yhiäl{a/h'w
          (para) que temam em face dele                            `wyn)p'L.mi Waßr.YI)v,
                     15
                          O que foi                                  ‘hyh'V,(-hm; 15
                      Ele já (é)                                       aWhê rbåK.
                    E (o) que será                                   tAyàh.li rvïa]w:
                          Já foi
                                                                       hy+h' rbåK.
          E Deus buscará o perseguido
                                                          `@D)rnI-ta, vQEïb;y ~yhiÞl{a/h'w

            Há algumas observações que devem ser feitas aqui sobre alguns vocábulos
em hebraico que aparecem em Qöheºlet 3.1-15 e os significados correspondentes
que escolhemos lhes atribuir.
            Em Qöheºlet 3.1, três palavras merecem a nossa atenção. Tratam-se dos
termos: !m+z (zümän), t[eî (`ët) e     #p,xeÞ   (Hëºpec).

            Em primeiro lugar, o substantivo masculino !m+z (zümän) ocorre uma única

vez em toda a perícope e significa, segundo Holladay, “tempo específico”,
“hora”.10 Gesenius, um dos maiores eruditos do hebraico bíblico, concorda com
esta opinião e declara que o vocábulo significa “tempo”, fazendo referência a



10
  HOLLADAY, William L. (Ed.). A Concise Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament. Grand
Rapids, William B. Eerdmans Publishing Company / Leiden, E. J. Brill, 1988, p.89.

                                                                                           W
d              Y                       d                                        


“um tempo estabelecido”.11 Segundo o Etymological Dictionary of Biblical
Hebrew (Dicionário Etimológico de Hebraico Bíblico), a raiz                          !mz     (zmn) que
aparece aqui significa “designado para um propósito”. Tal raiz, ainda segundo
esse mesmo dicionário, possui como significado cognato o conceito de
“estabelecer um objetivo”.12 O termo aparece em outras passagens na Bíblia




                                                                                                             © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
Hebraica para se referir, por exemplo, ao tempo determinado ou designado para
as festas judaicas (Est 9.27,31) e também para se referir ao período de tempo que
Neemias definiu para a sua ausência de Susã (Ne 2.6).13 Em nosso trabalho,
resolvemos traduzir zümän por “tempo determinado”, o que fazem também as
traduções em português: ARA14 e ARC.15
        Em segundo lugar, o substantivo feminino                         t[eî   (`ët) que significa

basicamente um “ponto no tempo”, possui outros significados a ele atrelados: 1)
“tempo de um evento” e 2) “tempo para um evento”. O último possui algumas
subcategorias: a) “tempo normal”, b) “o tempo adequado, conveniente ou
apropriado”, c) “o tempo designado” e d) “tempo indeterminado”.16 Contudo,
apesar da grafia distinta dos termos, as duas palavras semitas, zümän e `ët
significam basicamente a mesma coisa.17
        A Septuaginta (III–I século a.C.), por outro lado, traduz zümän por cro,noj
(chrónos) e `ët por kairo.j (kairós).18 Segundo o An Intermediate Greek-English
Lexicon (Léxico Intermediário Grego-Inglês) de Liddell e Scott, a palavra
chrónos significa basicamente “tempo”, podendo se referir a “um tempo

11
   GESENIUS, H.W.F. Geseniu’s Hebrew-Chaldee Lexicon to the Old Testament. Grand Rapids, Baker
Book House, 1992, p.247.
12
   CLARK, Matityahu. Etymological Dictionary of Biblical Hebrew. Jerusalem / New York, Feldheim
Publishers, 1999, pp.67,68.
13
   Cf. NET Bible. Ecclesiastes 3:1, note 2. Disponível em: http://bible.org/netbible/index.htm. Acesso em:
23/04/2011.
14
   ALMEIDA, João Ferreira de. (Trad.). Bíblia Sagrada. (Edição Revista e Atualizada). São Paulo,
Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
15
   ALMEIDA, João Ferreira de. (Trad.). Bíblia Sagrada. (Edição Revista e Corrigida). Rio de Janeiro,
Imprensa Bíblica Brasileira, 1991.
16
   Cf. NET Bible. Ecclesiastes 3:1, note 3. Disponível em: http://bible.org/netbible/index.htm. Acesso em:
23/04/2011.
17
   LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet. [Coleção: Grande Comentário Bíblico]. São Paulo,
Paulus, 1999, p.215.
18
    Cf. RAHLFS, Alfred. (Ed.). Septuaginta. [Duo volumina in uno]. Stuttgart, Deutsche
Bibelgesellschaft, 2004.

                                                                                              W
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definitivo, um espaço de tempo, período ou estação”.19 Esse mesmo léxico define
kairo.j como “o ponto certo do tempo, o tempo apropriado ou período de ação, o
tempo exato ou crítico”.20 Como Líndez já observou antes de nós, a versão grega
não nos ajuda muito a distinguir os significados dos termos neste caso.21
        Por fim, a Vulgata de Jerônimo (IV–V século d.C.) traduziu zümän por




                                                                                                         © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
tempus (“tempo”) e `ët por spatiis (“estação”).22 Assim como o hebraico e o
grego, o latim também não nos ajuda a identificar uma distinção nítida entre um
vocábulo e o outro.
        Em terceiro lugar, o substantivo masculino               #p,xeÞ    (Hëºpec) pode significar

“deleite, prazer, desejo, a boa vontade, vontade, propósito, negócio (em época
tardia), questão (em época muito tardia)”.23 A Septuaginta traz no lugar de Hëºpec
o substantivo neutro pra,gmati (prágmati), o qual, por sua vez, é derivado do
termo pra/gma (prâgma), cujos significados básicos, dentre outros, são: “o que
tem sido feito, uma ação, ato, uma coisa, questão, negócio”.24 É da mesma raiz
dessa palavra que vem a nossa palavra moderna “pragmatismo”. Em nossa
tradução, preferimos adotar o termo “propósito” como tradução para Hëºpec.
        Em Qöheºlet 3.2, os vocábulos            tdl,Þl'   (läleºdet) e   [:Wj)n rAqï[]l;   (la`áqôr

nä†ûª` ) também merecem atenção. A primeira expressão, läleºdet, é um infinitivo
construto na construção verbal Qal, o qual significa literalmente “dar à luz”.
Porém, o contexto favorece a tradução da expressão no sentido passivo, porque o
que está sendo enfatizado é o nascimento do filho e não o ato de a mãe dar à
luz.25 Por isso, preferimos traduzir läleºdet como “para nascer”. A LXX conserva
o mesmo significado literal do texto hebraico, ao passo que a Vulgata traz aqui
“tempus nascendi”, isto é, “tempo para nascer”.
19
   Cf. o verbete cro,noj, in: LIDDELL, H. G.  SCOTT, R. An Intermediate Greek-English Lexicon.
(Founded upon the Seventh Edition of Liddell and Scott’s Greek-English Lexicon). Oxford, Oxford
University Press, 1889, p.896.
20
   Cf. o verbete kairo.j, in: Idem, Ibidem, p.392.
21
   LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet, p.215.
22
   JÁNOS II, Pal. Nova Vulgata Bibliorum Sacrorum Editio. Vaticano, Libreria Editrice Vaticana, 1979.
23
   BROWN, Francis, DRIVER, S. R.  BRIGGS, Charles A. Hebrew and English Lexicon of the Old
Testament. Oxford, Clarendon Press, 1951, p.343.
24
   Cf. pra/gma, in: LIDDELL, H. G.  SCOTT, R. Op.Cit., p.665,666.
25
   LÍNDEZ, José Vílchez. Op.Cit., p.215.

                                                                                              W
d             Y                    d                                    


       No que diz respeito à expressão la`áqôr nä†ûª` , o seu significado literal é
“arrancar o que foi plantado”. Temos aqui a expressão la`áqôr, que se encontra
no infinitivo construto do Qal e significa “arrancar” e a construção verbal passiva
que aparece no Nif‘al e que pode ser traduzida como “o que foi plantado”.
Apesar disso, optamos por traduzir a expressão la`áqôr nä†ûª` por “colher”, uma




                                                                                                   © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
vez que concordamos com o argumento de Líndez, segundo quem “colher” é a
tradução mais preferível por dois motivos: 1) a raiz `qr, de la`áqôr, “arrancar”,
parece ser derivada da raiz fenícia `qrT, significando “armazém”, “depósito” e 2)
a tradução “colher” se encaixa perfeitamente no contexto.26
       Em Qöheºlet 3.11, o substantivo masculino             ‘~l'[o   (`öläm) tem sido alvo

dos mais intensos debates no que diz respeito ao seu significado no citado verso.
Vejamos o que Schökel tem a nos dizer sobre o significado de `öläm:



       Significa um tempo ou duração indefinida ou incalculável, no passado ou futuro,
       ou o definitivo de uma ação ou estado. A duração ilimitada pode referir-se a uma
       medida: no passado, o cósmico, a história; no futuro, a vida de um indivíduo, um
       povo, a história, o cósmico.27



       O mesmo autor ainda irá dizer mais adiante que `öläm também pode ser
traduzido como “mundo”, em uma concepção mais tardia. Aliás, esta é a
tradução que Schökel propõe para `öläm em Qöheºlet 3.11.28 A LXX, por sua
vez, verte `öläm por aivw/na (aiōna), substantivo no acusativo que é derivado de
aivw,n (aiōn), cujos significados básicos são: “tempo, duração da vida, vida,
eternidade, idade, geração, século”.29 Por fim, a Vulgata traduz öläm por
mundum, “mundo”. Curiosamente, a Bíblia Hebraica (BH) publicada pela Sêfer



26
   LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet, p.215.
27
   SCHÖKEL, Luis Alonso. Dicionário Bíblico Hebraico-Português. São Paulo, Paulus, 1997, p.483.
28
   Idem, Ibidem, p.484.
29
    PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. Porto, Livraria Apostolado da
Imprensa, 1976, p.19.

                                                                                    W
d              Y                      d                                       


traduz öläm por “ânsia de compreender”.30 Seguindo os seus passos, a Bíblia na
Tradução da Linguagem de Hoje (TLH) traz “desejo de entender as coisas que já
aconteceram e as que ainda vão acontecer”.31 Na verdade, estas duas versões
bíblicas refletem mais uma interpretação de öläm à luz do seu contexto imediato,
do que uma tradução propriamente dita. Por outro lado, a Bíblia de Jerusalém




                                                                                                           © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
(BJ) traz no lugar de öläm a expressão “conjunto do tempo”,32 sendo
acompanhada de perto pela Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB), que traz
“sentido do tempo”.33 Além dessas versões, a versão espanhola da Bíblia, Reina-
Valera, traz “eternidad”.34 A versão em português de João Ferreira de Almeida,
Revista e Atualizada (ARA) também traz “eternidade”.35 Finalmente, a versão
em português de João Ferreira de Almeida, Revista e Corrigida (ARC) verte
öläm por “mundo”.36 Particularmente, preferi traduzir öläm por “mundo” por
entender que o conceito de “mundo” possui maior materialidade e concretude de
significado, sendo, a meu ver, mais condizente com o contexto de Qöheºlet 3.1-
15, que aborda aspectos “concretos” da vida humana, tais como: “nascer, morrer;
plantar, colher; matar, curar; destruir, construir; chorar, rir; lamentar, dançar;
lançar e amontoar pedras; abraçar e deixar de abraçar; buscar, perder; guardar,
lançar; rasgar, costurar; calar, falar; amar, odiar; guerra e paz” (Qöheºlet 3:1-8).
Obviamente, esta observação não significa que o autor de Qöheºlet fosse incapaz
de abstrair. Aliás, a sua obra como um todo demonstra exatamente o contrário.
        Por fim, o sentido da última frase da nossa perícope, isto é, de Qöheºlet
3.15, também tem sido alvo de muita discussão. A frase inteira em hebraico diz:
@D)rnI-ta, vQEïb;y ~yhiÞl{a/h'w        (wühä´élöhîm          yübaqqëš        ´et-nirDäp)      que,

30
   Cf. GORODOVITS, David  FRIDLIN, Jairo. Bíblia Hebraica. São Paulo, Editora e Livraria Sêfer
Ltda., 2006.
31
   Cf. A Bíblia Sagrada. (Tradução na Linguagem de Hoje). São Paulo, Sociedade Bíblica do Brasil,
1988.
32
   Cf. GIRAUDO, Tiago  BORTOLINI, José. (Eds.). Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Sociedade Bíblica
Católica Internacional e Paulus, 1985.
33
   Cf. Bíblia –Tradução Ecumênica (TEB). São Paulo, Edições Loyola, 1994.
34
   Cf. Santa Biblia (Versión Española Reina-Valera). Miami, United Bible Societies, 1995.
35
   Cf. ALMEIDA, João Ferreira de. (Trad.). Bíblia Sagrada. (Edição Revista e Atualizada). São Paulo,
Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
36
   Cf. ALMEIDA, João Ferreira de. (Trad.). Bíblia Sagrada. (Edição Revista e Corrigida). Rio de Janeiro,
Imprensa Bíblica Brasileira, 1991.

                                                                                           W
d              Y                      d                                      


literalmente, significa: “E Deus buscará o perseguido”.37 Apesar disso, esta frase
parece ser desconexa ou parece estar deslocada dentro do contexto no qual ela
está inserida. Como a LXX acompanha o TM aqui, então, seguindo novamente a
sugestão de Líndez, sou propenso a aceitar a tradução-interpretação da Vulgata
como sendo a mais coerente dentro do pensamento do contexto.38 A versão latina




                                                                                                        © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
traz: et Deus instaurat quod abiit, ou seja, “e Deus renova o que passou”. Entre
as versões da Bíblia em português, as que mais se aproximam deste sentido são
as já citadas, Almeida, Revista e Atualizada (ARA): “Deus fará renovar-se o que
se passou” e a Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB): “e Deus vai em busca do
que passou”. Além dessas versões, a também já mencionada Almeida, Revista e
Corrigida (ARC) declara: “e Deus pede conta do que passou”. E, finalmente, a
Nova Versão Internacional (NVI) traz: “Deus investigará o passado”.39 Apesar de
todas essas várias traduções dadas para a frase wühä´élöhîm yübaqqëš ´et-nirDäp
(Qöheºlet 3.15), eu preferi conservar o significado do texto original em minha
tradução, a saber, “e Deus buscará o perseguido”. Contudo, reitero que a versão
latina da Vulgata (“E Deus renova o que passou”) a meu ver, parece ser uma
tradução-interpretação mais coerente com o contexto da passagem, em vez do
complicado texto hebraico: “E Deus buscará o perseguido”. O já mencionado
Líndez, ao explicar a sua preferência pela Vulgata como a tradução-interpretação
mais apropriada para a compreensão da última frase de Qöheºlet 3.15, disse:


        O homem, ser passageiro, não pode ser ponto de referência do tempo que foge e
        se escapa; Deus, porém, [que] não está sujeito ao processo do tempo, supera-o e
        alcança-o em toda sua extensão mesmo de passado e de futuro, por isso não é
        estranho que se possa dizer que Deus vai em busca do passado. Segundo a
        mentalidade de Qohélet, Deus o encontra e o alcança, o homem não.40




37
   O Midrash Qohélet Rabá também traduz a construção verbal nirDäp, que aparece no Nif‘al, como
“perseguido”. (Cf. GIRAUDO, Tiago  BORTOLINI, José. (Eds.). Bíblia de Jerusalém, p.1170, nota z).
38
   LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet, p.236.
39
   Bíblia Sagrada (Nova Versão Internacional). Colorado Springs, International Bible Society, 2000.
40
   LÍNDEZ, José Vílchez. Op.Cit., p.236. O acréscimo entre colchetes é meu. Os itálicos são do autor.

                                                                                         W
d           Y                 d                               


      Ora, depois de fornecer e justificar a nossa tradução de Qöheºlet 3.1-15,
destacando, sobretudo, o significado que atribuímos a algumas de suas principais
palavras, frases e expressões, podemos partir agora, portanto, para a análise dos
quatro pontos de vista principais sobre a relação existente entre o determinismo e
o livre-arbítrio. A análise e definição preliminar de cada um desses pontos de




                                                                                     © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
vista irão nos auxiliar no comentário e na compreensão do próprio texto em si
que faremos no terceiro e último capítulo do nosso estudo.




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II – QUATRO PONTOS DE VISTA SOBRE A RELAÇÃO EXISTENTE
ENTRE O DETERMINISMO E O LIVRE-ARBÍTRIO


        Há, pelo menos, quatro maneiras fundamentais de entender a relação
existente entre o determinismo e o livre-arbítrio.41 Entretanto, antes de




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examinarmos a cada uma delas, vejamos primeiramente o que queremos dizer
com os termos determinismo e livre-arbítrio.

        Em primeiro lugar, determinismo é “a crença de que o pensamento, ação e
sentimentos humanos são, em um maior ou menor grau, controlados por uma
grande força e que os seres humanos têm pouco ou nenhum livre-arbítrio de si
mesmos. Esta força pode ser chamada Deus ou Destino, ou os dois podem ser
vistos como idênticos”.42 Já livre-arbítrio (ou liberdade humana) é o nome dado
ao “conceito de que os seres humanos determinam livremente seu próprio
comportamento e que nenhum fator causal externo pode ser adequadamente
responsabilizado por suas ações”.43

        A partir destas definições, vejamos então como se configuram os quatro
pontos de vista sobre a relação existente entre estes dois conceitos que acabamos
de apresentar.



41
    Para obter maiores informações sobre o determinismo e o livre-arbítrio sobre o ponto de vista
filosófico-teológico cristão, veja: GEISLER, Norman  FEINBERG, Paul D. Introdução à Filosofia:
uma perspectiva cristã. São Paulo, Edições Vida Nova, 1996, pp.153-162; FEINBERG, John et al.
Predestinação e Livre-Arbítrio: quatro perspectivas sobre a soberania de Deus e a liberdade humana.
São Paulo, Mundo Cristão, 1996; HUNNEX, Milton. Filósofos e Correntes Filosóficas em Gráficos e
Diagramas. São Paulo, Editora Vida, 2003, pp.50-52; CHAMPLIN, R. N. Enciclopédia de Bíblia,
Teologia e Filosofia. [Vol.2 | D – G]. São Paulo, Editora Hagnos, 2001, pp.91-96. Já para obter maiores
informações sobre este mesmo assunto, mas a partir da perspectiva judaica, confira: MAIMONIDES,
Rabi Moshe ben. Guia de Descarriados. Madrid, Editorial Barath, 1988, pp.226-232; REHFELD, Walter
I. Nas Sendas do Judaísmo. São Paulo, Perspectiva; Associação Universitária de Cultura Judaica;
Tecnisa, 2003, p.63-65.
42
   RUDMAN, Dominic. Determinism and Anti-Determinism in the Book of Koheleth. [The Jewish Bible
Quarterly]. Vol.XXX, Nº 2. Jerusalem, Jewish Bible Association Press, 2002, p.1. Shimon Bakon faz
questão de distinguir o conceito de Providência Divina do conceito de Predestinação. Segundo ele: “Há
uma considerável diferença entre estes dois conceitos, o primeiro significando participação divina, ou
mesmo interferência, em assuntos humanos, o outro sugerindo uma força cósmica, predeterminando os
destinos dos homens e até mesmo dos deuses. Em ambos, resta pouco espaço para a liberdade humana”.
(Cf. BAKON, Shimon. Koheleth. [The Jewish Bible Quarterly]. Vol.XXVI, nº3. Jerusalem, The Jewish
Bible Association Press, 1998, p.172).
43
   Cf. o verbete: Liberdade Humana, in: ERICKSON, Millard J. Conciso Dicionário de Teologia Cristã.
Rio de Janeiro, Juerp, 1995, p.99.

                                                                                          W
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        2.1.     Determinismo Radical


        Segundo o determinismo radical, a predeterminação divina de todos os
acontecimentos ocorre a despeito da presciência divina das ações humanas livres.
Este ponto de vista argumenta que Deus age com uma soberania tão inacessível




                                                                                                         © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
que Suas escolhas são feitas com total desconsideração das escolhas humanas.44
O determinismo radical também pode ser chamado de fatalismo ou, na teologia
cristã reformada, de calvinismo extremado ou hiper-calvinismo.
        Os problemas que o determinismo radical traz consigo são basicamente
dois: 1) Ele nega o livre-arbítrio humano, o qual encontra apoio em outras partes
da Bíblia Hebraica e também na experiência humana e 2) Ele nega a
benevolência divina, pois se Deus age desconsiderando as ações humanas, isto
quer dizer que Deus é, em última análise, a origem de todas as coisas, inclusive
do mal.


        2.2.     Determinismo Moderado


        De acordo com o determinismo moderado (ou calvinismo moderado,
como é conhecido na teologia cristã), Deus simultaneamente tanto predetermina
quanto preconhece desde toda a eternidade todos os acontecimentos, incluindo
todos os atos livres dos seres humanos. Este ponto de vista afirma, em outras
palavras, que Deus determinou que os seres humanos façam as coisas livremente
e não que sejam forçados a fazer atos livres.45
        Este posicionamento filosófico busca encontrar um equilíbrio entre a
soberania divina e a responsabilidade humana, uma vez que ele assegura as
prerrogativas divina e humana sem que qualquer delas seja prejudicada na sua
autonomia. Sendo assim, nossos atos são realmente livres do ponto de vista das




44
   GEISLER, Norman. Eleitos, Mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-
arbítrio. São Paulo, Editora Vida, 2001, p.53.
45
   Idem, Ibidem, p.62.

                                                                                          W
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escolhas que fazemos deles, mas são, ao mesmo tempo, determinados, a partir da
perspectiva da presciência que Deus tem deles como Ser atemporal.46

        2.3.     Livre-Arbítrio Radical

        Já o livre-arbítrio radical (o qual é conhecido por vários outros nomes na




                                                                                                           © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
teologia cristã, tais como, arminianismo radical, arminianismo extremado,
teísmo do livre-arbítrio, teísmo aberto,47 neoteísmo ou Openess of God, isto é,
“Abertura de Deus”), ao contrário do determinismo radical, exalta o livre-
arbítrio humano à custa do sacrifício da soberania divina. O autor, Clark
Pinnock, no livro intitulado The Openess of God, menciona cinco características
do livre-arbítrio radical ou teísmo aberto, as quais transcrevemos abaixo:

        1) Deus não somente criou esse mundo, ex nihilo, mas pode (e às vezes
             faz) intervir unilateralmente nos acontecimentos na terra;
        2) Deus escolheu criar-nos com liberdade incompatibilista (libertária) –
             uma liberdade sobre a qual ele não pode exercer controle total;
        3) Deus valoriza tanto a liberdade – a integridade moral das criaturas
             livres e de um mundo no qual tal integridade é possível – que não
             atropela essa liberdade, mesmo que a veja produzindo resultados
             indesejáveis;

        4) Deus sempre deseja o nosso mais alto bem, tanto individual como
             corporativamente, e assim é afetado pelo que acontece em nossas
             vidas;
        5) Deus não possui um conhecimento exaustivo de como exatamente
             utilizaremos a liberdade, embora possa muito bem, às vezes, ser capaz
             de predizer com grande exatidão as escolhas que livremente faremos.48

46
   GEISLER, Norman. Eleitos, Mas Livres, p.51.
47
   Ware assim define o Teísmo Aberto: “Esse movimento é assim denominado pelo fato de seus adeptos
verem grande parte do futuro como algo que está ‘em aberto’, e não fechado, mesmo para Deus. Boa
parte do futuro está ainda indefinida e, conseqüentemente, Deus o desconhece. Deus conhece tudo o que
pode ser conhecido, asseguram-nos os teístas abertos. Mas livres escolhas e ações futuras, por não terem
ocorrido ainda, não existem e, desse modo, Deus (até mesmo Deus) não pode conhecê-las”. (Cf. WARE,
Bruce A. Teísmo Aberto: a teologia de um Deus limitado. São Paulo, Vida Nova, 2010, p.14).
48
   PINNOCK, Clark. The Openess of God, p. 156. Apud: GEISLER, Norman. Eleitos, Mas Livres, p.117.

                                                                                           W
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        Como já é evidente por si só, o conceito de livre-arbítrio radical traz
consigo uma série de problemas, pois nega os atributos essenciais de Deus, tais
como, a transcendência, a imanência, a onisciência, a onipresença, a onipotência,
a imutabilidade e a soberania divinas. A meu ver, a filosofia teológica ou a
teologia filosófica do livre-arbítrio radical rebaixou Deus à condição de um ser




                                                                                                       © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
impotente, pobre e frágil e, ao mesmo tempo, promoveu o homem, deificando-o,
divinizando-o e entronizando-o em seu livre-arbítrio absoluto ilusório.

        Neste tipo de concepção das coisas, os papéis de Deus e do homem são
praticamente invertidos. Deus adquire traços humanos, enquanto que o homem
acaba adquirindo traços divinos. Penso que não pode haver maior equívoco do
que este.



        2.4.    Livre-Arbítrio Moderado



        Segundo o livre-arbítrio moderado, o ser humano possui a capacidade
parcial de agir sem ser condicionado por alguma causa. Essa capacidade de ação
é apenas “parcial” porque, muitas vezes (ou sempre), causas biológicas, culturais
e até mesmo espirituais (como a vontade de Deus, por exemplo), dentre outras, o
levam a fazer o que ele faz.49

        Este ponto de vista, assim como o determinismo moderado, busca
encontrar uma relação de equilíbrio entre as ações humanas e a soberania divina.
O conceito de livre-arbítrio moderado reconhece que o homem é livre, mas não
plenamente livre, pois ele está irremediavelmente fadado a viver, em sua
condição de ser humano, dentro de um mundo condicionado por certas leis
naturais, biológicas, genéticas, sociais, espirituais etc.



49
  CHAMPLIN, R. N. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. Vol.3. [H-L]. São Paulo, Editora
Hagnos, 2001, pp.866,867. Aliás, a esse respeito, Rudman declara que “o homem não é de todo o mestre
de sua própria vida”. (Cf. RUDMAN, Dominic. Determinism in the Book of Ecclesiastes. Sheffield,
Sheffield Academic Press, 2001, p.33). Seow chama essa liberdade parcial do homem de “determinismo
de circunstâncias”. (Cf. SEOW, C.L. Ecclesiastes. New York, Doubleday, 1997, pp.171-172)

                                                                                        W
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       2.5.    Um Apelo ao Equilíbrio


       Depois de descrever esses quatro pontos de vista sobre a relação existente
entre o determinismo e o livre-arbítrio, eu pude chegar a duas conclusões
fundamentais.




                                                                                               © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
       A primeira delas é que tanto o determinismo radical quanto o livre-
arbítrio radical devem ser rejeitados, porque ambos são extremistas em suas
posições, pois negam, de um lado, o livre-arbítrio humano e, do outro, os
atributos essenciais divinos. Portanto, tais posicionamentos filosófico-teológicos
não nos fornecem uma resposta adequada para o nosso assunto em questão.
       A segunda conclusão a que cheguei é a seguinte: uma vez que tanto a
soberania divina quanto a responsabilidade humana são duas verdades
repetidamente afirmadas na Bíblia Hebraica, logo, se faz necessário defender um
ponto de vista que leve em consideração esses dois pólos juntos.
       Tendo esse intuito em mente, menciono a seguir alguns comentários que
defendem uma postura de equilíbrio sobre a relação entre o determinismo e o
livre-arbítrio, os quais foram feitos por representantes das três maiores religiões
monoteístas do mundo, a saber, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. No que
diz respeito ao judaísmo, o rabi Dan Cohn-Sherbok, apoiando-se na Bíblia
Hebraica e no Talmude, faz a seguinte afirmação:


       De acordo com a Escritura, cada pessoa é capaz de escolher entre o bem e o mal.
       O conceito de punição e recompensa está baseado neste pressuposto. O Talmude
       especifica que Deus é onisciente: não obstante, os seres humanos têm
       capacidade para escolher seu próprio estilo de vida.50



       Além de Cohn-Sherbok, outro judeu, Jacob B. Agus (1911-1986), em seu
livro La Evolucion del Pensamiento Judio, também fala de forma equilibrada
sobre a relação entre o determinismo e o livre-arbítrio. Eis as suas palavras:

50
  COHN-SHERBOK, Dan. A Concise Encyclopedia of Judaism. Oxford, Oneworld Publications, 1998,
p.77.

                                                                                 W
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        (...) o monoteísmo afirma que Deus transcende a natureza e que não é idêntico a
        ela nem a nenhuma parte dela (...). No monoteísmo, Deus está sujeito às
        variações da vida mortal.51



        Já o teólogo cristão Arthur W. Pink (1886-1952), ao discorrer sobre a




                                                                                                      © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
soberania divina e a responsabilidade humana, comenta:


        Duas coisas são indisputáveis: a soberania de Deus e a responsabilidade do
        homem. (...) Reconhecemos que existe, sem dúvida, o perigo de salientar demais
        uma delas e negligenciar a outra. (...) Ressaltar a soberania de Deus, sem
        afirmar, ao mesmo tempo, a responsabilidade do homem, tende ao fatalismo;
        [Por outro lado] preocupar-se tanto em manter a responsabilidade do homem, ao
        ponto de perder de vista a soberania de Deus, é exaltar a criatura e desonrar o
        Criador.52


        Além de Pink, a Confissão de Fé de Westminster (escrita em 1646), que
apresenta uma das melhores e mais concisas declarações da fé cristã, em seu
Capítulo III, intitulado Do Decreto Eterno de Deus, faz os seguintes comentários
sobre o determinismo divino e a responsabilidade humana:


        Seção I. – Desde toda a eternidade, e pelo sapientíssimo e santíssimo conselho
        de sua própria vontade, Deus ordenou livre e imutavelmente tudo quanto
        acontece; porém, de modo tal que nem é Deus o autor do pecado, nem se faz
        violência à vontade das criaturas, nem é tirada a liberdade ou contingência das
        causas secundárias, antes são estabelecidas. Seção II. – Embora Deus saiba tudo
        quanto pode ou há de suceder em todas as circunstâncias imagináveis, contudo
        não decretou coisa alguma por havê-la previsto como futura, nem como algo que
        haveria de acontecer em tais circunstâncias.53

51
   AGUS, Jacob B. La Evolucion del Pensamiento Judio: desde la época bíblica hasta los comienzos de
la era moderna. Buenos Aires, Editorial Paidós, 1969, pp.16,17.
52
   PINK, A. W. Deus é Soberano. São José dos Campos, Editora Fiel, 1997, p.5. Os acréscimos entre
colchetes são meus.
53
   Confissão de Fé de Westminster. (Comentada por A. A. Hodge). São Paulo, Editora Os Puritanos,
1999, p.95.

                                                                                       W
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        Por fim, além desses comentários, o pensador muçulmano, aiatolá54 Nasir
Makarim Shirazi, também defende um ponto de vista equilibrado entre o
determinismo e a liberdade humana. Segundo Shirazi:


        (...) nós sabemos que os seres humanos têm liberdade de escolha e livre-arbítrio,




                                                                                                              © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
        ao mesmo tempo em que sabemos que Deus é o Governante sobre todas as
        pessoas e ações.55


        Sendo assim, por mais paradoxal que possa parecer, proponho uma
posição de meio-termo, que leve em consideração tanto o determinismo
moderado quanto o livre-arbítrio moderado, isto é, uma posição que leve em
conta tanto o determinismo divino quanto a liberdade humana como os dois
lados de uma mesma moeda. Aliás, sendo mais explícito ainda, defendo que
embora a relação entre o determinismo divino e a liberdade humana seja um
mistério, tal relação não implica necessariamente contradição. A finitude da
nossa existência humana e a limitação da nossa razão não podem servir como
argumentos infalíveis para comprovar a suposta contradição existente entre essas
duas verdades. Nas palavras de Norman Geisler, “ninguém jamais demonstrou
uma contradição entre predestinação e livre-escolha. Não há conflito insolúvel
entre um acontecimento predeterminado por um Deus onisciente e um evento que
é livremente escolhido por nós”.56
        Ora, uma vez que nós definimos e justificamos a posição que, a nosso ver,
corresponde melhor às verdades do determinismo divino e da liberdade humana,
partamos então para o exame de Qöheºlet 3.1-15.




54
   Aiatolá é o título pelo qual são conhecidos os principais líderes islâmicos xiitas. O aiatolá é inferior
apenas ao Imã. (Cf. LOVISOLO, Elena et al. Dicionário da Língua Portuguesa. (Larousse Cultural). São
Paulo, Editora Nova Cultural Ltda., 1992, p.33).
55
   SHIRAZI, Nasir Makarim. Principios Basicos del Pensamiento Islamico. (Vol. IV: Justicia Divina).
Tehran, Bonyad Be‘zat, 1987, p.43.
56
   GEISLER, Norman. Eleitos, Mas Livres, pp.47,48.

                                                                                              W
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III – O QOHÉLET 3.1-15 E A TENSÃO ENTRE O DETERMINISMO E O
LIVRE-ARBÍTRIO

        Segundo Dominic Rudman, autor do artigo Determinism and Anti-
Determinism in the Book of Koheleth (Determinismo e Anti-Determinismo no




                                                                                                         © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
Livro de Qohélet), “dentro da erudição moderna, o catálogo dos tempos e
estações em 3.1-8 e o comentário que Qohélet fornece sobre esta passagem em
3.9ss., é visto como um texto chave para a compreensão do livro como um
todo”.57 Tal observação revela a importância de Qöheºlet 3.1-15 e de seu estudo
para a compreensão do tema que ora estamos abordando neste trabalho.
Entretanto, antes de entrarmos no comentário da perícope em si, devemos
mencionar preliminarmente as palavras de Baruch Spinoza (1632-1677) sobre a
liberdade que as pessoas têm de interpretar os textos religiosos em geral e, em
particular, a Bíblia. Dentro de seu Tratado Teológico-Político, no capítulo VIII,
intitulado Da Interpretação da Escritura, Spinoza diz o seguinte:


        (...) como todos têm o pleno direito de pensar com liberdade, inclusive em
        matérias de religião, e não é concebível que se renuncie a este direito, cada um
        dispõe de uma autoridade suma de sumo direito para decidir em questões
        religiosas e, portanto, para lhes dar uma explicação e interpretação. Assim como
        o direito de interpretar as leis e a decisão soberana dos negócios públicos
        correspondem ao magistrado, por serem assuntos de direito político, da mesma
        forma cada um tem sua autoridade absoluta para julgar e explicar a religião,
        porque esta pertence ao direito de cada um.58


        Estas palavras libertadoras de Spinoza, as quais fornecem uma
salvaguarda ao leitor e ao intérprete da Bíblia no que diz respeito ao seu direito
de interpretar o texto sagrado livremente, servirão como ponto de partida para o
nosso estudo de Qöheºlet. Bem, analisemos então o texto de Qöheºlet 3.1-15 a
partir da tensão existente entre o determinismo e o livre-arbítrio.
57
   RUDMAN, Dominic. Determinism and Anti-Determinism in the Book of Koheleth. [The Jewish Bible
Quarterly]. Vol.XXX, Nº 2. Jerusalem, Jewish Bible Association Press, 2002, p.3.
58
   SPINOZA, Baruch. Tratado Teológico-Político e Tratado Político. [Traducción y estúdio preliminar de
Enrique Tierno Galván]. Madrid, Editorial Tecnos S.A., 1985, p.45.

                                                                                          W
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        O trecho de Qöheºlet 3.1-15, assim como todo o livro de Qöheºlet de uma
forma geral, emprega o paralelismo poético, até mesmo quando escreve em prosa
rítmica no lugar do verso.59 Além disso, esse trecho de Qöheºlet apresenta uma
unidade coesa, mas que, estruturalmente falando, pode ser dividido em duas
subperícopes: 3.1-8 e 3.9-15. Em minha opinião, enquanto que a primeira




                                                                                                             © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
subperícope (3.1-8) possui um caráter descritivo,60 pois ela descreve
simbolicamente, de forma não exaustiva, todas as situações da vida humana, a
segunda subperícope (3.9-15), por sua vez, tem um caráter explicativo, porque
visa explicar o porquê das coisas acontecerem assim em Qöheºlet 3.1-8.61

        3.1. Qöheºlet 3.1-8
              öheº

        1
            Para tudo (há) um tempo determinado, e um tempo para todo propósito
                           2
debaixo dos céus.              Tempo para nascer, e tempo para morrer; tempo para
plantar, e tempo para colher; 3 tempo para matar, e tempo para curar; tempo
para destruir, e tempo para construir; 4 tempo para chorar, e tempo para rir;
tempo de se lamentar, e tempo de dançar; 5 tempo para lançar pedras, e tempo
de amontoar pedras; tempo para abraçar, e tempo para afastar-se de abraçar; 6
tempo para buscar, e tempo para perder; tempo para guardar, e tempo para
lançar; 7 tempo para rasgar, e tempo para costurar; tempo para calar, e tempo
para falar; 8 tempo para amar, e tempo para odiar; tempo de guerra, e tempo de
paz.




59
   ALTER, Robert  KERMODE, Frank. (Orgs.). Guia Literário da Bíblia. São Paulo, Unesp,1997,
p.299. Auzou diz que o autor de Qöheºlet “escreve em prosa ritmada entrecortada de sentenças e versos”.
(Cf. AUZOU, Georges. A Tradição Bíblica. São Paulo, Livraria Duas Cidades Ltda., 1971, p.213).
60
   Assim pensa também Loader, segundo quem, “a reflexão sobre as séries de eventos mutuamente
exclusivos não é prescritiva, mas descritiva”. (Cf. LOADER, J. A. Polar Structures in the Book of
Qohelet. Berlin / New York, De Gruyter, 1979, p.29).
61
   Todavia, Lilia Veras possui opinião diferente da minha. Para a autora, 3.1-8 é uma reflexão sobre a
incapacidade do homem de interferir na obra de Deus e 3.9-15 é uma revisão de alguns temas que o
Qohélet tratou nos capítulos anteriores. (Cf. VERAS, Lilia Ladeira. Un Primer Contacto Con El Libro del
Eclesiastés o Libro de Qohélet. Quito, Ribla [Revista de Interpretacion Bíblica Latino-Americana], nº 52,
2005, pp.8,9). Já Zenger afirma que o trecho de Qöheºlet 3.1-15 está dentro da estrutura maior de Qöheºlet
1.3-3.22, a qual trata do desdobramento e resposta à pergunta pelo conteúdo e pelas condições da
felicidade humana. (Cf. ZENGER, Erich et al. Introdução ao Antigo Testamento. [Coleção Bíblica
Loyola | Nº 36]. São Paulo, Edições Loyola, 2003, p.334).

                                                                                             W
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        Este primeiro versículo funciona como uma introdução para todo o trecho
de Qöheºlet 3.1-8. Ele nos faz pensar, por exemplo, em um provérbio atribuído ao
lendário autor grego, Esopo (VI Séc. a.C.), que teria dito que “é uma grande
coisa fazer a coisa certa na época certa”.62
        Contudo, dentro do contexto judaico, muitas opiniões têm surgido a fim de




                                                                                                            © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
poder responder à seguinte questão: “até que ponto a vida humana é
determinada?”.63 No Talmude da Babilônia,64 por exemplo, Rava65 (nascido
aproximadamente em 270 d.C.) afirma que até mesmo as questões mais
elementares da vida humana estão sob a influência do zodíaco. Segundo ele: “A
vida, as crianças e o sustento dependem não do mérito, mas das estrelas [mzl]”
(B. Mo’ed Katan, 28a).66 Tal influência zodiacal também é notada nos menores
detalhes da natureza, conforme pode ser percebido em Gênesis Rabá 10.6: “R.
Simão disse ‘Não há uma espécie vegetal única, mas ela tem uma estrela [mzl] no
céu que a atinge e diz, Cresça!’”.67 De forma bastante curiosa e, às vezes,
também contraditória, o Talmude diz em um momento que Israel é uma nação
predeterminada e em outro momento afirma que Israel é dotado de vontade livre.
Isto pode ser visto nos seguintes trechos talmúdicos: “R. Hanina b. Hama disse:
‘As estrelas [mzl] fazem alguém sábio, as estrelas fazem alguém rico, e há
estrelas para Israel’ (...) R. Yohanan disse: ‘Não há estrela para Israel’” (B.
Shabat 156a-b, cf. Yevamot 21b).68 Além disso, há que se notar também que o
Targum de Qöheºlet não está imune a esse tipo de pensamento determinista


62
   SCOTT, R. B. Y. [Ed.]. Proverbs, Ecclesiastes, p.221.
63
    V. D’Alario faz o seguinte comentário sobre o conceito de determinismo encontrado no livro de
Qöheºlet: “O emprego da palavra hrq.mi [“acontecimento, evento, destino”] no livro de Qohélet [p.ex., em
3.19] é uma confirmação posterior da singularidade do nosso texto em comparação com outros livros do
Antigo Testamento; hrq.mi na verdade poderia evocar uma força misteriosa que determina os eventos,
considerando que na Bíblia o princípio da soberania absoluta de Deus está colocado de forma
incontestável”. (Cf. D’ALARIO, V. Liberté de Dieu ou Destin? Un autre dilemme dans l’interprétation
du Qohélet. In: SCHOORS, A. (Ed.). Qohelet in the Context of Wisdom. Leuven, Leuven University
Press, 1998, p.457). Os acréscimos entre colchetes são meus.
64
   Segundo Christianson, o uso que o Talmude faz de Eclesiastes geralmente se concentra na aplicação
prática, muitas vezes, em apoio à observação mais banal. (Cf. CHRISTIANSON, Eric S. Ecclesiastes
Through the Centuries. Oxford, Blackwell Publishing Ltd., 2007, p29).
65
   Seu nome é Rabi Abba Ben Joseph Bar Hama.
66
   RUDMAN, Dominic. Determinism and Anti-Determinism in the Book of Koheleth, p.4.
67
   Idem, Ibidem, p.4.
68
   Idem, Ibidem, p.4.

                                                                                            W
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astrológico, o que é evidenciado pelo fato de que esse Targum lê todo o livro de
Qöheºlet a partir da perspectiva determinista. A esse respeito, o filósofo francês
judeu Emmanuel Levinas (1906-1995) escreveu o seguinte:

       Em quinze ocasiões, o Targum utiliza o termo MAZAL que eu, com sérias




                                                                                                 © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
       reservas, tenho traduzido como ‘Providência’... No Targum, Deus determina
       mazal (Cf. V,18; VI,2; X,6) e o bom mazal é uma recompensa dada às pessoas
       merecedoras (V, 17). Por outro lado, mazal é usado para descrever o destino
       inevitável: uma pessoa não pode fazer nada para mudar o seu mazal (IX, 11).
       Devido às suas características mecanicistas e deterministas, o Targum o usa para
       explicar desigualdades tais como o sofrimento dos justos e o bem-estar do
       perverso (VIII, 15). Os elementos mazal no Targum testemunham que a tradição
       Farisaico-Rabínica não erradicou o controle da astrologia sobre a opinião
       popular, mesmo nos casos onde mazal triunfou sobre zekut, isto é, mérito
       acumulado. “Tudo é determinado por mazal!” (IX, 2). No entanto, aqui também
       de vez em quando o Targum tempera este fatalismo explicando que Deus
       determina até mesmo o que o mazal irá trazer (IX, 12). Finalmente, o Targum
       inclui uma severa advertência contra o estudo e a prática da astrologia (XI,4),
       embora seja, ele próprio, contaminado por ela.69


       A opinião do rabino espanhol Ibn Ezra (1093-1167)70 sobre Qöheºlet 3.1
também merece a nossa atenção. Segundo Ibn Ezra, o destino dos seres humanos
estava sujeito à influência astrológica. Tal tipo de pensamento não deve nos
causar espanto, pois este sábio judeu era um estudioso das ciências em geral e,
mais particularmente, da astronomia. Em seu comentário sobre Qöheºlet 3.1, Ibn
Ezra observa que o texto se refere aos “tempos que são vigorosos sobre a
humanidade, pois o ser humano é obrigado a fazer tudo em seu tempo
determinado, e o início dos tempos determinados e seu fim o restringem”.71
       Já Ginsberg (1903-1990) enxerga o Qöheºlet como alguém que se vê
insatisfeito na vida por causa de seu fatalismo e de seu determinismo rígido.
69
   LEVINE, E. The Aramaic Version of Qohelet. New York, Hermon, 1978, pp. 75-76. Apud: RUDMAN,
Dominic. Determinism and Anti-Determinism in the Book of Koheleth, pp.4,5.
70
   Seu nome é Abraham ben Meir Ibn Ezra.
71
   RUDMAN, Dominic. Op.Cit., p.5.

                                                                                   W
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Segundo ele, o “Qöheºlet considera Deus como um senhor absoluto e arbitrário
do destino”.72
        Entretanto, como Rudman declara: “levada à sua conclusão lógica, uma
filosofia determinista implicaria que o próprio Deus, em última análise, é
responsável pela execução não apenas das boas ações dos seres humanos, mas




                                                                                                       © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
também das más”.73 Sendo assim, segundo penso, essa leitura determinista
radical de Qöheºlet não é adequada para a compreensão do nosso texto. Contudo,
além destas leituras deterministas, há aqueles que buscaram interpretar a
existência humana através de uma perspectiva mais equilibrada.
        Maimônides74 (1135-1204), por exemplo, buscou interpretar esta questão
aliando o conceito de presciência divina ao conceito de liberdade humana. Este
sábio observa que é muita ingenuidade acreditar que o mazal (sorte ou destino
influenciados pelas estrelas e planetas) possa afetar a nossa vida. “Se isso fosse
verdade”, declara o sábio, “a Torá não teria nenhum sentido para nós. Não
existiria o conceito de recompensa e punição”.75 Maimônides ainda afirma:


        Nós chegamos à conclusão de que é possível acreditar nos sinais astrológicos
        que guiam o destino do homem assim como na Torá. Não são os sinais que
        dirigem a vida de uma pessoa, mas eles foram dispostos por D’us de acordo com
        a maneira como a vida de uma pessoa seria vivida [presciência divina]. Pois se
        os signos fossem capazes de ditar a vida de uma pessoa, isso significaria que ela
        não tem escolha [liberdade humana]. Todos os capítulos da Torá de reprovação
        não teriam nenhum sentido, se as pessoas fossem guiadas pelos signos.76


        Além de Maimônides, outro sábio judeu, Moshe Alshich (1508-1593),
também defende opinião semelhante, combinando o determinismo divino com a
liberdade humana. Segundo Alshich, “desde a época em que D’us criou os céus e

72
   GINSBERG, Harold Louis. Supplementary Studies in Koheleth, 1952. Apud: EATON, Michael A. 
CARR, G. Lloyd. Eclesiastes e Cantares: introdução e comentário. [Série Cultura Bíblica]. São Paulo,
Vida Nova / Mundo Cristão, 1989, p.84.
73
   RUDMAN, Dominic. Determinism and Anti-Determinism in the Book of Koheleth, p.3.
74
   Seu nome é Moshe Ben Maimom.
75
   Maimônides, in: WASSERMAN, Adolpho. [Tradutor e compilador dos comentários]. Eclesiastes. São
Paulo, Maayanot, 1998, p.20.
76
   Maimônides, in: Idem, Ibidem, p.20. Os itálicos e os acréscimos entre colchetes são meus.

                                                                                        W
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a ordem do zodíaco, Ele conhece o futuro em toda sua inteireza. Ele sabe como
cada pessoa agirá e se ela merecerá recompensa ou punição por suas ações”.77
Porém, em outro momento, este sábio declara que a palavra                     t[eî (`ët), “tempo”,
em Qöheºlet 3.1, faz referência aos “sinais que são repartidos para todo propósito
e coisa sob os céus. Cada objeto tem seu futuro contido nas estrelas”.78




                                                                                                         © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
        Já o trecho de Qöheºlet 3.2-8 nos mostra um poema que apresenta 14 pares
de situações ou de ações antitéticas, as quais, embora não abranjam todas as
situações da vida, devem ser vistas como elementos emblemáticos e simbólicos
de sua totalidade, os quais não são de forma alguma casuais.79
        Este paralelismo antitético, observado nos 14 pares de situações
juntamente com os seus respectivos opostos, nos faz pensar naquilo que está
escrito no livro apócrifo de Eclesiástico 33.15, que diz: “Contempla, pois, todas
as obras do Altíssimo, duas a duas estão todas uma diante da outra”.80
        Segundo Rashi81 (1040-1105 d.C.), as expressões “tempo para nascer” e
“tempo para morrer” (v.2a) se referem, respectivamente, aos limites divinamente
ordenados colocados sobre o tempo de gestação e sobre o breve espaço de tempo
da vida humana.82 De acordo com Rashi, o período natural de gestação de nove
meses está além do controle humano.83 Em outras palavras, Rashi está
descrevendo aquilo que eu chamo de determinismo biológico, o qual afeta a
todos os nascituros. Além disso, podemos dizer de igual modo que tal
determinismo biológico também alcança o ser humano no fim de seu ciclo vital.
Por isso, há um “tempo para morrer”. Dito de outra forma, embora não esteja
determinado que todos devam nascer (com exceção daqueles que já nasceram, é
claro), todavia, está determinado que aqueles que nascerem experimentarão um
ciclo de gestação no ventre materno de aproximadamente nove meses e, está

77
   Alshich, in: WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.20.
78
   Idem, Ibidem, p.20.
79
    LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet, p.216. Cf. também: ANDERSON, William H. U.
Scepticism and Ironic Correlations in the Joy Statements of Qoheleth? [Doctoral Thesis in Philosophy].
Glasgow, University of Glasgow, 1997, p.72.
80
   GIRAUDO, Tiago  BORTOLINI, José. (Eds.). Bíblia de Jerusalém, p.1294.
81
   Acrônimo de Rabi Shlomo ben Yitschak.
82
   RUDMAN, Dominic. Determinism and Anti-Determinism in the Book of Koheleth, p.6.
83
   Rashi, in: WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.20.

                                                                                          W
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determinado também que, após o seu nascimento, tais pessoas deverão morrer
algum dia.84
        Todavia, Blenkinsopp acredita que as ideias contidas no poema foram
emprestadas da filosofia estóica por um “judeu estoicizado”.85 E, para tentar
comprovar a sua tese, ele traduz equivocadamente a expressão                                    tWm+l'




                                                                                                           © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
(literalmente, “para morrer”) encontrada no verso 2a como “dar um fim à vida
de alguém”, conectando assim o poema com a ideia estóica do suicídio.86 Porém,
tal tradução é bastante forçada, pois não reflete adequadamente o significado da
preposição hebraica, a qual aparece acompanhada pela construção verbal que
ocorre no infinitivo construto do Qal.
        A continuação do verso, que diz que há “tempo para plantar e tempo para
colher” (v.2b), também aponta para outro tipo de determinismo, que eu chamaria
de determinismo agrário. Esse tipo de determinismo faz referência ao tempo
certo de plantar e colher as várias espécies de sementes existentes, as quais
possuem um tempo apropriado para a sua plantação e também para a sua
colheita.87 O Midrash,88 contudo, explica essa frase dizendo assim: “um tempo
para plantar em tempo de paz e um tempo para arrancar a planta em tempo de
guerra”.89 Já Jerônimo (347-420 d.C.) aplica todo o verso dois a Israel, dizendo o
seguinte: “um tempo para nascer e plantar Israel; um tempo para morrer e ser




84
   Segundo Pfeiffer e Harrison, a morte que ocorre em uma guerra, em defesa própria, por exemplo, nunca
é acidental. Segundo estes autores, tal situação encontra eco na expressão moderna “era a sua hora de ir
embora”. (Cf. PFEIFFER, Charles F.  HARRISON, Everett F. (Eds.). The Wycliffe Bible Commentary.
Chicago, Moody Press, 1987, p.588).Rick Warren, por outro lado, enxerga a questão do nascimento e da
morte de forma acentuadamente determinista. Segundo ele: “Uma vez que Deus o fez por um motivo, ele
também decidiu o momento de seu nascimento e seu tempo de vida. Ele planejou os dias de sua vida
antecipadamente, escolhendo o momento exato de seu nascimento e de sua morte”. (Cf. WARREN, Rick.
Uma Vida Com Propósitos. São Paulo, Editora Vida, 2003, p.22).
85
   O estoicismo enfatizava o controle pessoal sobre as emoções. (Cf. EVANS, C. Stephen. Dicionário de
Apologética e Filosofia da Religião. São Paulo, Editora Vida, 2004, p.51).
86
   BLENKINSOPP, Joseph. Ecclesiastes 3.1-15: Another Interpretation. JSOT, Nº 66. Thousand Oaks,
1995, pp.56-57.
87
   Kathryn Imray observa que os conceitos de “plantar” e “desenraizar” (“colher”) também podem ser
compreendidos aqui como metáforas para o nascimento e para a morte. (Cf. IMRAY, Kathryn. Qohelet’s
Philosophies of Death. [Doctoral Thesis in Philosophy]. Perth, Murdoch University, 2009, p.70).
88
   Um nome genérico que se refere normalmente a ensinamentos não legais dos rabinos da era talmúdica.
89
   WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.20.

                                                                                           W
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levado para o exílio. Um tempo para matar no Egito e um tempo para a libertação
do Egito”.90
            No que se refere à frase que diz que há “tempo para matar, e tempo para
curar” (v.3a), devemos dar-lhe uma explicação prévia. O Qöheºlet não estava
querendo defender com estas palavras o assassinato premeditado.91 Talvez, ele




                                                                                                         © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
esteja se referindo aqui a situações de matanças legítimas, por mais absurdo que
isso nos pareça. Tais situações poderiam ser verificadas, por exemplo, em
contextos de guerra, nos casos de vingança dos vingadores do sangue, nas
ocasiões de pena de morte, ou, até mesmo, em situações de autodefesa.92 Se este
for o caso, então, em Qöheºlet 3.3 nós saímos da “zona determinista” de Qöheºlet
3.1,2 e entramos no “perímetro do livre-arbítrio”. Explico: embora esteja
determinado sobre todos os nascituros que eles devem cumprir certo período de
gestação e que eles também deverão morrer, não está de igual modo determinado
que um soldado irá necessariamente matar alguém em uma guerra ou que ele
deverá matar alguém com o intuito de se autodefender. O soldado pode
simplesmente se recusar a matar alguém por sua livre escolha. Um comentário
lingüístico judaico sobre a Bíblia, chamado em hebraico Michlol Yofi, e escrito
pelo Rav David Kimchi, o Radak (Séculos XII/XIII), explica o verso 3a dizendo
que o “tempo para matar” é o tempo para a execução legal de criminosos e o
“tempo para curar” é o tempo de investigação para uma possível absolvição do
suspeito.93 Na segunda parte do verso três, a expressão “tempo para destruir, e
tempo para construir” (v.3b) é interpretada pelo Midrash como um tempo para
destruir pela guerra e construir na paz.94
            No verso quatro, os dois pares de situações envolvem emoções humanas,
primeiro as particulares (chorar/rir) e, depois, as públicas (lamentar/dançar).95 A


90
   MANNS, F. Le Targum de Qohelet – Manuscrit Urbinati 1: Traduction et commentaire. [Studium
Biblicum Franciscanum]. Jerusalem, Liber Annuus, Nº 42,1992, p.152.
91
   LIOY, Dan T. The Divine Sabotage: An Exegetical and Theological Study of Ecclesiastes 3. [Article].
Vol.5. South Africa, South African Theological Seminary, 2008, p.118.
92
    CHAMPLIN, R. N. O Antigo Testamento Interpretado: versículo por versículo. [Vol. 4 | Salmos –
Cantares]. São Paulo, Editora Hagnos, 2001, p.2713.
93
   WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.20.
94
   Idem, Ibidem, p.21.
95
   EATON, Michael A.  CARR, G. Lloyd. Eclesiastes e Cantares: introdução e comentário, pp.86,87.

                                                                                          W
d             Y                     d                                     


frase “tempo para chorar e tempo para rir” (4a) é interpretada pelo Lekach Tov96
assim: “chorar pela destruição do Templo em Tishá BeAv [9 de Av] e rir pela
redenção de Israel”.97 Já a frase seguinte, “tempo de se lamentar e tempo de
dançar” (v.4b) é compreendida pelo Rabi David Altschuller (Séc. XVIII), em seu
Metsudat David (comentários sobre a Bíblia) como uma referência ao tempo de




                                                                                                     © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
luto pelos mortos e ao tempo de dançar em festas de casamento.98
            Os dois pares de situações do verso cinco parecem descrever
relacionamentos humanos de amizade e inimizade.99 Todavia, a primeira parte,
do verso, “tempo para lançar pedras, e tempo de amontoar pedras” (v.5a) tem
recebido quatro interpretações principais, as quais mencionamos abaixo:


        (i) O Targum aramaico de Eclesiastes via, aqui, uma referência a espalhar pedras
        num edifício velho, preparando-se para edificar-se um prédio novo; esta opinião
        era defendida, também, por Ibn Ezra. (ii) Outros viam, aqui, uma referência ao
        hábito de espalhar pedras nos campos, a fim de torná-los improdutivos (cf. 2 Rs
        3.19,25; Is 5.2). (iii) Plumptre via, aqui, “uma velha prática judaica... de atirar
        pedras, ou terra, no túmulo, num enterro”, na primeira frase [tempo para lançar
        pedras], e a preparação para construir uma casa, na segunda [tempo de amontoar
        pedras]. (iv) Eruditos mais recentes têm visto uma referência de ordem sexual
        seguindo a interpretação do Midrash.100


        Já a segunda parte do verso, “tempo para abraçar e tempo para afastar-se
de abraçar” (v.5b), é interpretada pelo Targum com conotações sexuais. Segundo
o Targum, o texto está se referindo a “um tempo escolhido para abraçar uma
mulher e um tempo escolhido para evitar abraçá-la no período de sete dias de
luto”.101



96
    Também conhecido como Pessikta Zutrata, um trabalho midráshico de Rabi Tovia (ben Eliezer) Ha
Gadol (1036-1108) sobre vários livros da Bíblia Hebraica, incluindo o livro de Qohélet, sendo este
publicado em 1908. (Cf. WASSERMAN. Eclesiastes, p.120).
97
   WASSERMAN, Adolpho. Op.Cit., p.21. Os acréscimos entre colchetes são meus.
98
   Idem, Ibidem, p.21.
99
   EATON, Michael A.  CARR, G. Lloyd. Eclesiastes e Cantares: introdução e comentário, p.87.
100
    Idem, Ibidem, p.87. Os acréscimos entre colchetes são meus.
101
    MANNS, F. Le Targum de Qohelet – Manuscrit Urbinati 1: Traduction et commentaire, p.153.

                                                                                      W
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           Contudo, a meu ver, todo o versículo cinco descreve, na verdade, um
paralelismo de ideias cruzadas, no qual as mesmas ideias se repetem, mas com
termos distintos. Em outras palavras, o “tempo para lançar pedras” e o “tempo
para afastar-se de abraçar” são correspondentes e descrevem relações de
inimizade. E, por outro lado, o “tempo de amontoar pedras” e o “tempo para




                                                                                      © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
abraçar” também possuem correspondência, mas descrevem relações de amizade.
Esse paralelismo de ideias cruzadas pode ser exemplificado pelo quadro abaixo:


              “tempo para lançar pedras e tempo de amontoar pedras” (v.5a)
                         A                           B

                       A                           B
           “tempo para abraçar e tempo para afastar-se de abraçar” (v.5b)


           O verso seis, que diz que há “tempo para buscar, e tempo para perder;
tempo para guardar, e tempo para lançar” (v.6) é interpretado por Rashi a partir
da perspectiva da liberdade humana. Rashi lê assim esse verso: “Um tempo para
buscar os espalhados de Israel e um tempo para perdê-los no exílio. Guardar
quando Israel cumpre a vontade de D’us, e jogar fora quando Israel age contra a
vontade de D’us”.102
           Então, neste verso, a capacidade que o homem tem tanto de cumprir
quanto de descumprir a vontade de Deus, evidencia a sua liberdade de vontade e
de ação em relação à vontade de Deus. Portanto, a partir da interpretação que
Rashi dá ao verso seis, verificamos que na “queda de braços” entre o
determinismo e a liberdade humana, a liberdade humana se sagrou vencedora.
Logo, tendo em mente essas observações, podemos dizer que o homem é livre no
que diz respeito à livre escolha de suas ações.
           Quanto ao verso sete, que diz que há um “tempo para rasgar, e tempo para
costurar; tempo para calar, e tempo para falar” (v.7), Saadia Gaon103 (892-942)
interpreta a primeira parte deste verso, “tempo para rasgar, e tempo para

102
      WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.21. Os itálicos são meus.
103
      Esta é a forma abreviada de Rabi Saadia ben Yossef Gaon.

                                                                          W
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costurar” (v.7a) com estas palavras: “rasgar as roupas em luto pelos mortos e
costurar as roupas para as festas de casamento”.104 Tais ações antitéticas de
“rasgar” e “costurar” as roupas pressupõem, segundo penso, ações humanas
livres, pois, nas situações de luto e de casamento, os atos de rasgar e costurar,
embora possam ser condicionados culturalmente pela sociedade na qual se vive,




                                                                                                     © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
constituem-se, porém, em última análise, em atos livres e autônomos por parte
daqueles que os praticam ou deixam de praticá-los. Já a segunda parte do verso,
“tempo para calar, e tempo para falar” (v.7b) pode ser interpretada pelo Talmude,
no Tratado Berachot 6b, assim:

        Disse Rav Papa: A recompensa por ir à casa do enlutado – provém do silêncio,
        pois é o meio principal de expressar apoio e confortar o enlutado. (...) Disse Rav
        Ashi: A recompensa por comparecer a um casamento – provém das palavras
        que são ditas aos noivos.105


        Aqui, devemos voltar a nossa atenção primeiramente para a frase “tempo
de calar, e tempo de falar” (v.7b). Acredito que esta frase exemplifique, melhor
do que qualquer outra, a liberdade de que gozamos em nossa existência humana.
Digo isso porque, o próprio Tanakh, em outras situações, fala, por exemplo,
sobre o perigo de “estar em silêncio” quando se deve falar e, por outro lado, o
perigo de “falar” quando se deveria estar em silêncio. Davi, em um Salmo
atribuído a ele, faz o seguinte lamento: “Com o silêncio fiquei como mudo;
calava-me mesmo acerca do bem; mas a minha dor se agravou” (Sl 39.2). Vemos
aqui que Davi, no momento em que deveria falar sobre o bem, permanece,
contudo, calado, valendo-se, portanto, da liberdade que tem de ficar em silêncio.
Além disso, lemos também que “como maçãs de ouro em salvas de prata, assim é
a palavra dita a seu tempo” (Pv 25.21).106 Aqui, o texto sagrado enaltece aquele
que sabe falar no momento apropriado, o que nos leva a pensar, por outro lado,
que é igualmente possível alguém falar mesmo quando a ocasião não é
104
    WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.21.
105
    ENDE, Shamai. (Ed.). Talmud Bavli. [Massechet Berachot]. Vol.1. São Paulo, Editora Lubavitch e
Yeshivá Tomchei Tmimim Lubavitch, 2010, pp.49,51. Os itálicos são meus.
106
    Estas duas citações bíblicas foram extraídas de: ALMEIDA, João Ferreira de. Bíblia Sagrada.
(Almeida, Revista e Corrigida). Rio de Janeiro, Imprensa Bíblica Brasileira, 1991.

                                                                                      W
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conveniente para isso. Em outras palavras, há muitos que “falam pelos
cotovelos” no “tempo para calar” qoheletiano e há também muitos que mantém
um “silêncio ensurdecedor”, por exemplo, diante da injustiça, quando, na
verdade, deveriam gritar a plenos pulmões contra ela.
       Além disso, note-se que o Tratado Berachot 6b, que acabamos de citar,




                                                                                                © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
fala ainda sobre as “recompensas” que existem tanto para aqueles que se mantêm
em silêncio na casa do enlutado, quanto para aqueles que falam boas palavras aos
noivos em um casamento. Ora, se há uma recompensa, deve-se pensar
conseqüentemente que há também uma boa ação livre que tenha sido executada e
que, portanto, merece ser justamente retribuída por tal ato.
       Finalmente, o último verso desta primeira subperícope de Qöheºlet diz que
há “tempo para amar, e tempo para odiar; tempo de guerra, e tempo de paz”
(v.8). Sobre este verso, o Rabi David Altschuller, em seu já citado Metsudat
David (comentários sobre a Bíblia) declarou que “pode-se amar algo hoje e
detestá-lo amanhã. Há tempos em que uma nação entra em guerra com seu
vizinho e outros tempos em que ela busca conviver com esse vizinho”.107 Essas
declarações do Qöheºlet acrescidas do comentário de Altschuller, mais uma vez
me fazem pensar na liberdade humana. Ou seja, se o ser humano não fosse livre
para poder escolher entre amar e odiar e entre guerrear e viver em paz, então qual
o propósito de textos como Lv 19.18, que diz: “Não te vingarás nem guardarás
ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo: eu
sou o Senhor”?108 Ora, estas ordens dadas ao povo de Israel para que este não se
vingue, não se ire e ame o seu próximo, só podem fazer sentido, se Israel tiver
real liberdade para cumprir ou não tais ordens. Sendo assim, não há como
entender as frases: “tempo para amar, e tempo para odiar; tempo de guerra, e
tempo de paz” (v.8) a não ser que elas sejam vistas sob a ótica da liberdade
humana. Caso contrário, se o homem não é livre para praticar ou deixar de
praticar tais atos, então, por que os mandamentos de Lv 19.18, por exemplo,
teriam sido ordenados? Tal pensamento não faria o menor sentido.
107
  WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.21.
108
   ALMEIDA, João Ferreira de. Bíblia Sagrada. (Almeida, Revista e Corrigida). Rio de Janeiro,
Imprensa Bíblica Brasileira, 1991.

                                                                                  W
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           De uma forma geral, na análise que fizemos de Qöheºlet 3.1-8 percebemos
que, enquanto o trecho de Qöheºlet 3.1,2 possui um tom mais determinista
(mencionando, por exemplo, o determinismo biológico e o determinismo
agrário), o trecho de Qöheºlet 3.3-8, por outro lado, acaba enfatizando mais a




                                                                                                        © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
liberdade humana.
           Neste momento de transição entre Qöheºlet 3.1-8 e Qöheºlet 3.9-15, cabe
citar aqui as perspicazes palavras de Michael Eaton:


           Os primeiros oito versículos declaram o controle providencial da vida, porém,
           com pouca interpretação ou comentário. Não se mencionou o Deus que origina e
           controla este programa de “tempos”. Não se explicou, tampouco, a relevância
           que isto tem na vida diária. Os versículos 9-15 retificam essa dupla omissão.109


           Ora, depois dessas importantes observações sobre o trecho de Qöheºlet
3.1-8, que, como vimos, possui caráter mais descritivo, partamos então agora
para a análise de Qöheºlet 3.9-15, que, reiteramos, busca explicar aquilo que foi
escrito anteriormente em Qöheºlet 3.1-8.


           3.2. Qöheºlet 3.9-15
                 öheº

           9
               Que proveito (tem) o trabalhador no que ele trabalha? 10 Eu tenho visto
                                                                                                   11
a tarefa que deu Deus aos filhos do homem para estarem ocupados nela.
Tudo fez belo em seu tempo; Também o mundo deu no coração deles, de tal
modo que não descubra o homem a obra que fez Deus desde o princípio e até o
fim. 12 Eu sei que não há nada melhor para eles que se alegrarem e fazerem (o)
bem em sua vida. 13 E também todo homem, que coma e beba e veja (o) bem em
                                                              14
todo seu trabalho. Isso (é) um dom de Deus.                        Eu sei que tudo (o) que fez
Deus, ele (isso) será para sempre. Sobre ele (isso) nada (há) para acrescentar e
dele (disso) nada (há) para tirar, e Deus (o) fez (para) que temam em face dele.
15
      O que foi, ele já (é); e (o) que será, já foi; E Deus buscará o perseguido.

109
      EATON, Michael A.  CARR, G. Lloyd. Eclesiastes e Cantares: introdução e comentário, p.87.

                                                                                         W
d              Y                      d                                       


        A segunda parte do texto começa com uma importante pergunta: “Que
proveito (tem) o trabalhador no que ele trabalha?” (v.9).110 Segundo James
Crenshaw, a própria forma do poema sobre os tempos em Qöheºlet 3.2-8 já
oferece uma resposta a esta questão. E a resposta é: “uma coisa cancela a
outra”.111 Parece, segundo Kidner, que nós estamos dançando “ao som de uma




                                                                                                           © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
música, ou de muitas delas, que não foram compostas por nós”.112 Como disse
Líndez, esse tom cético de Qöheºlet o caracteriza e o distingue radicalmente de
todos os sábios que o precederam.113 Aliás, o tom pessimista deste verso é
questionado tanto por Ibn Ezra quanto pelo Rabi Yaacov ben Yaacov Moshe de
Lissa (1760-1832). Ibn Ezra pergunta: “Uma vez que tudo é governado pelo
tempo, sobre o qual o homem não tem nenhum controle, que esperança existe
para ele em reter o domínio sobre seus esforços?”.114 E o Rabi Yaacov ben
Yaacov Moshé de Lissa, em seus comentários sobre o Qöheºlet                                intitulados
Taalumot Chochmá, de forma contundente, faz os seguintes questionamentos
sobre a predestinação e a liberdade humana: “Se tudo está predestinado por D’us,
independente da ação humana, seria próprio questionar o que o homem espera
alcançar por seu aparente desperdício em labutar estudando a Torá e praticando
as mitsvót”.115 De uma forma geral, verificamos que o Qöheºlet 3.9 acaba
servindo como introdução a Qöheºlet 3.10-15, versículos estes que, juntos,
fornecem “a resposta teológica de Qohélet à sua grande inquietude como sábio e

110
     Longman observa que a palavra yyitrôn, “proveito”, é uma palavra-chave em Eclesiastes, onde
aparece nove vezes. Contudo, estranhamente, ela não ocorre em nenhuma outra parte no Antigo
Testamento. Ao que tudo indica, o termo deriva do verbo ytr, “sobrar”, “restar”. (Cf. LONGMAN III,
Tremper. The Book of Ecclesiastes. [The New International Commentary on the Old Testament]. Grand
Rapids, Wm. B. Eerdmans Publishing Company,1998, p.65). Os Gallazzi, ao comentarem os versos nove
e dez, observam: “Tudo parece determinado, escrito, decidido. A vida parece ser um jogo com cartas
marcadas. Nem o ‘amal (v.9), o trabalho escravo imposto pelo Mercado, nem o ‘inian (v.10), a fadiga
incompreensível imposta por Deus, são de algum “proveito” para o trabalhador (…)”. (Cf. GALLAZZI,
Ana Maria Rizzante  GALLAZZI, Sandro. La Prueba de los Ojos, La Prueba de la Casa, La Prueba
del Sepulcro: una clave de lectura del libro de Qohélet. Quito, Ribla [Revista de Interpretacion Bíblica
Latino-Americana], Nº 14, 1993, p.10).
111
     CRENSHAW, James L. Ecclesiastes. [The Old Testament Library]. Philadelphia, The Westminster
Press, 1987, p.96.
112
     KIDNER, Derek. A Mensagem de Eclesiastes. [Série: A Bíblia Fala Hoje]. São Paulo, ABU Editora
S/C, 1998, p.26.
113
    LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet, p.225.
114
    WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.21.
115
    Idem, Ibidem, p.21.

                                                                                           W
d             Y                     d                                     


como crente”.116 Aliás, é digno de nota que no pequeno trecho de Qöheºlet 3.10-
15, o nome de Deus,           ~yhi²l{a/   (´élöhîm), aparece seis vezes (3.10,11,13,14

[2x],15). Tal constatação nos faz concluir que esse pequeno trecho de Qöheºlet
possui “uma das reflexões teológicas mais densas” de todo o livro.117




                                                                                                     © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011
        No que diz respeito aos dizeres do verso dez: “Eu tenho visto a tarefa que
deu Deus aos filhos do homem para estarem ocupados nela” (v.10), eles são
interpretados por Moshe Alshich de forma um tanto quanto confusa, pois, em seu
comentário, Alshich tenta harmonizar, porém, sem sucesso, o determinismo
divino e astrológico com a liberdade humana. Eis as suas palavras:


        Tudo é feito de acordo com o plano perfeito de D’us. Ele estabelece que o
        nascimento de cada homem se ajuste perfeitamente com o signo sob o qual ele
        nasceu, de modo que cada ação de sua parte não contradiga sua vida, conforme
        previsto pelas estrelas. Ele pode fazer coisas por seu livre-arbítrio, mas isso
        concorrerá com seu destino conforme determinado pelos sinais nos céus.118


        Ora, se, segundo Alshich, o destino do homem já foi “determinado pelos
sinais nos céus”, então, não sobra o mínimo espaço para a liberdade humana
atuar. Em outras palavras, de acordo com este sábio, a liberdade humana não
passa de uma mera escrava nas mãos do supremo e implacável senhor zodiacal.
        Já o teólogo cristão, R. N. Champlin, diferentemente de Alshich, denuncia
o determinismo absoluto contido no verso dez e faz o seguinte comentário:


        Esta (...) declaração reitera o Deus do autor, a Causa Única, mas ignora
        completamente que outros fatores operam no mundo – as causas secundárias,
        que se originam entre os homens, nas comunidades, na natureza, na lei natural e
        até no caos.119



116
    LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet, p.225.
117
    Idem, Ibidem, p.226.
118
    WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.22.
119
     CHAMPLIN, R. N. O Antigo Testamento Interpretado: versículo por versículo. [Vol. 4 | Salmos –
Cantares]. São Paulo, Editora Hagnos, 2001, p.2714.

                                                                                      W
Qohélet 3.1-15 e a tensão entre o determinismo e o livre-arbítrio
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Qohélet 3.1-15 e a tensão entre o determinismo e o livre-arbítrio

  • 1. d Y d ARTIGO TEOLÓGICO 1 Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio por Carlos Augusto Vailatti RESUMO Este artigo tem por objetivo analisar a perícope bíblica de Qöheºlet 3.1-15 (Eclesiastes 3.1-15) a partir da relação dialética existente entre os conceitos filosóficos e teológicos do determinismo e do livre-arbítrio. E, para podermos alcançar esse objetivo, daremos três passos básicos. Primeiro, daremos a nossa própria tradução do texto original hebraico, a qual será acompanhada por algumas breves observações lexicais e semânticas. Em segundo lugar, forneceremos quatro pontos de vista sobre a relação existente entre o determinismo e o livre-arbítrio. E, em terceiro lugar, faremos a leitura da perícope estudada através da ótica do determinismo e do livre-arbítrio. Neste terceiro item, nos valeremos principalmente das opiniões e comentários emitidos por fontes judaicas. Palavras-Chave: Qöheºlet, Eclesiastes, Determinismo, Livre-Arbítrio, Interpretação. RESUMEN En este artículo se pretende analizar el pasaje bíblica de Qöheºlet 3,1-15 (Eclesiastés 3,1-15) a partir de la relación dialéctica entre los conceptos teológicos y filosóficos del determinismo y del libre albedrío. Y con el fin de lograr este objetivo, vamos a dar tres pasos básicos. En primer lugar, vamos a dar nuestra propia traducción del texto hebreo original, que será acompañada por unas breves observaciones léxicas y semánticas. En segundo lugar, vamos a dar cuatro puntos de vista sobre la relación entre el determinismo y el libre albedrío. Y en tercer lugar, leemos el pasaje estudiada a través del lente del determinismo y del libre albedrío. En este tercer punto, sobre todo vamos a utilizar las opiniones y los comentarios de las fuentes judías. Palabras Clave: Qöheºlet, Eclesiastés, Determinismo, Libre Albedrío, Interpretación. ABSTRACT This article aims to analyze the biblical passage of Qöheºlet 3.1-15 (Ecclesiastes 3.1- 15) from the dialectical relationship between the theological and philosophical concepts of determinism and free will. And in order to achieve this goal, we will give three basic steps. First, we shall give our own translation of the original Hebrew text, which will be accompanied by some brief lexical and semantics observations. Secondly, we will provide four views on the relationship between determinism and free will. And thirdly, we will read the passage studied through the lens of determinism and free will. In this third item, we will use especially the views and comments made by Jewish sources. Keywords: Qöheºlet, Ecclesiastes, Determinism, Free Will, Interpretation. 1 Este artigo foi apresentado originalmente como trabalho em 06/2011 para a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (Departamento de Letras Orientais) da Universidade de São Paulo (USP).
  • 2. d Y d INTRODUÇÃO O livro de Qöheºlet (em hebraico, tl,h,äqo), também conhecido como Ekklēsiastēs (em grego, VEkklhsiasth,j), termo este derivado da Septuaginta, já foi chamado, e com muita justiça, de “o mais filosófico dos livros bíblicos”.2 © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 Esse livro sapiencial, que foi escrito provavelmente entre os séculos IV e III a.C.,3 é, no mínimo, “um livro estranho”, para usar as palavras de Haroldo de Campos.4 E essa “estranheza” se deve, segundo Robert Balgarnie Young Scott, a três fatores principais: 1) à divergência radical entre o conteúdo de Qöheºlet e aquele encontrado no resto da Bíblia Hebraica, 2) à língua na qual o livro foi escrito e 3) ao nome do livro. De acordo com Scott: No caso de Eclesiastes, não há (...) possibilidade (...) de harmonizá-lo com o tom e o ensino do resto da Bíblia. Ele diverge muito radicalmente. Na verdade, ele nega algumas das coisas sobre as quais os outros escritores colocam a maior importância – especialmente que Deus tem revelado a si próprio e a sua vontade para o homem, através do seu povo escolhido, Israel. Em Eclesiastes, Deus não é apenas desconhecido para o homem através da revelação; ele é incognoscível através da razão, o único meio pelo qual o autor acredita que o conhecimento é alcançável. Tal Deus não é Yahweh, o Deus da aliança de Israel. Ele é bastante misterioso, um Ser inescrutável cuja existência deve ser pressuposta como aquela que determina a vida e o destino do homem, em um mundo que o homem não pode mudar e onde todo o seu esforço e valores são esvaziados de sentido. (...) Um segundo elemento de estranheza é a língua na qual o livro foi escrito, um tipo de hebraico diferente de qualquer outro no Antigo Testamento. Ele possui características que se assemelham ao hebraico da Mishná (200 A.D.) e a algo do rolo de cobre anterior de Qumrã; aparentemente, este foi um dialeto desenvolvido em certos círculos sob a influência do aramaico, pouco antes do 2 FRIEDMAN, Richard Elliott. O Desaparecimento de Deus: um mistério divino. Rio de Janeiro, Imago, 1997, p.284. 3 CERESKO, Anthony R. Introdução ao Antigo Testamento numa Perspectiva Libertadora. São Paulo, Paulus, 1996, p.299. Para maiores informações sobre a data em que Qöheºlet foi escrito, veja: ARCHER, Gleason L. The Linguistic Evidence For the Date of “Ecclesiastes”. [Journal of the Evangelical Theological Society].Vol.12, nº3, Louisville, Evangelical Theological Society Press,1969, pp.167-181. 4 CAMPOS, Haroldo de. Qohélet = O-que-sabe: Eclesiastes: poema sapiencial. São Paulo, Editora Perspectiva, 1991, p.17. W
  • 3. d Y d início da era cristã. (...) Em terceiro lugar, o nome ou designação do autor, Qöheºlet (...) é um antigo enigma. Ele tem a forma de um particípio feminino ativo do verbo q-h-l (não encontrado no tronco simples no Antigo Testamento), do qual é derivado o substantivo q`h`l, “uma reunião, assembleia, congregação”. “Qöheºlet” parece significar, portanto, “aquele que reúne uma corporação ou congregação”. No contexto do movimento de Sabedoria, o termo © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 ou título poderia designar um mestre ou acadêmico que reúne em torno de si alunos ou discípulos, como, aliás (nos é dito em xii 9), Qohelet fez.5 Todavia, apesar de ser “estranho”, Qöheºlet é, ao mesmo tempo, um livro fascinante e bastante atual.6 O livro é fascinante pela profunda sabedoria atemporal de vida que ele exibe em suas páginas e também é, concomitantemente, atual, pois, segundo alguns estudiosos, o Qöheºlet advoga filosofias tais como: o pessimismo, o ceticismo, o agnosticismo, o racionalismo, o secularismo, o antropocentrismo, o conformismo, o epicurismo, o hedonismo, o materialismo, o fatalismo e o determinismo, dentre outros, elementos estes que também podem ser percebidos em larga escala em nossa sociedade contemporânea pós-moderna. No que se refere ao propósito que motivou a escrita de Qöheºlet, Stephan de Jong acredita que o livro tenha sido escrito com o propósito de reagir contra o espírito tecnocrático helenista, uma vez que a cultura helênica era a cultura dominante daquela época. Tal espírito, que era caracterizado por um grande otimismo e por um sentimento de superioridade helênicos, estava influenciando, sobretudo, a aristocracia judaica, e, por isso, Qöheºlet se dirige contra essa fé nas possibilidades ilimitadas do homem.7 Haroldo Reimer, que segue uma linha de pensamento semelhante à de Jong, afirma que o propósito do livro de Qöheºlet é 5 SCOTT, R. B. Y. [Ed.]. Proverbs, Ecclesiastes. Vol. 18. [The Anchor Bible]. New York, Doubleday, 1965, pp.191,192. 6 Ceresko, comentando sobre o conteúdo de Qöheºlet, afirma: “a obra quase soa moderna em suas inquisitivas reflexões”. (Cf. CERESKO, Anthony R. A Sabedoria no Antigo Testamento: espiritualidade libertadora. São Paulo, Paulus, 2004, p.100). 7 JONG, Stephan de. “Quítate de Mi Sol!”: Eclesiastés y La Tecnocracia Helenística. Quito, Ribla [Revista de Interpretacion Bíblica Latino-Americana], Nº 11, 1992, p.1. W
  • 4. d Y d duplo. Primeiramente, o Qöheºlet visa refletir criticamente sobre qual é o proveito real que se pode tirar do trabalho, uma vez que se vive debaixo de um sistema de dominação, isto é, o sistema helenístico. Em segundo lugar, Reimer ainda acredita que o Qöheºlet foi escrito para incentivar o judeu, que está dominado por um sistema estrangeiro, a praticar o seu carpe diem. Tal postura seria uma forma de contestar o sistema de trabalho helênico escravizante em Judá, o qual vigorava © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 na metade do III século a.C.8 Seja como for, em nosso trabalho, buscaremos tratar basicamente da relação dialética existente entre o determinismo e o livre-arbítrio a partir da análise da perícope bíblica de Qöheºlet 3.1-15. E, a fim de podermos atingir o nosso objetivo, daremos três passos básicos. Primeiro, daremos a nossa própria tradução do texto original hebraico, a qual será acompanhada por algumas breves observações lexicais e semânticas. Em segundo lugar, forneceremos quatro pontos de vista sobre a relação existente entre o determinismo e o livre-arbítrio. Em terceiro lugar, faremos o comentário do texto ora estudado, a partir da ótica da relação dialética existente entre o determinismo e o livre-arbítrio, visando compreender melhor o seu significado. Neste terceiro item, nos valeremos principalmente das opiniões e comentários emitidos por fontes judaicas. Depois disso tudo, mencionaremos finalmente algumas conclusões às quais chegamos ao término do nosso trabalho. Feitos estes esclarecimentos, avancemos, então, em nosso estudo. 8 REIMER, Haroldo. “Y ver la parte buena de todo su trabajo” (Eclesiastés 3,12) – Anotaciones Sobre Economia y Bienestar en la vida del Eclesiastés. Quito, Ribla [Revista de Interpretacion Bíblica Latino- Americana], Nº51, 2005, p.1. W
  • 5. d Y d I – O TEXTO DE QOHÉLET 3.1-15 E A SUA TRADUÇÃO Antes de começarmos a fazer a nossa análise sobre a perícope de Qöheºlet 3.1-15, é necessário dizer que o nosso estudo se baseará principalmente no texto massorético (TM) encontrado na BHS.9 Esse texto é visto atualmente como o © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 mais confiável da Bíblia Hebraica tanto por eruditos judeus, quanto por eruditos cristãos em todo o mundo. A nossa tradução desse texto buscará ser a mais literal possível, a fim de valorizar as nuances e características do texto hebraico clássico (bíblico). Eis o texto hebraico de Qöheºlet 3.1-15 e a sua respectiva tradução: Qöheºlet 3.1-15 Traduzido öheº Qöheºlet 3.1-15 em Hebraico öheº 1 Para tudo (há) um tempo determinado !m+z lKoßl; 1 E um tempo para todo propósito `~yIm)V'h; tx;T;î #p,xeÞ-lk'l. t[eîw debaixo dos céus. 2 Tempo para nascer tdl,Þl' t[eî 2 E tempo para morrer tWm+l' t[eäw Tempo para plantar t[;j;êl' t[eä E tempo para colher `[:Wj)n rAqï[]l; t[eÞw 3 Tempo para matar ‘gArh]l; t[eÛ 3 E tempo para curar aAPêrli t[eäw Tempo para destruir #Arßp.li t[eî E tempo para construir `tAn*b.li t[eîw 4 Tempo para chorar ‘tAKb.li t[eÛ 4 E tempo para rir qAxêf.li t[eäw Tempo de se lamentar dApßs. t[eî E tempo de dançar `dAq)r t[eîw 5 Tempo para lançar pedras ~ynIëb'a] %yliäv.h;l. t[e… 5 E tempo de amontoar pedras ~ynI+b'a] sAnæK. t[eÞw Tempo para abraçar qAbêx]l; t[eä E tempo para afastar-se de abraçar `qBe(x;me qxoïrli t[eÞw 9 Cf. ELLIGER, K. RUDOLPH, W. (Eds.). Bíblia Hebraica Stuttgartensia. [Editio Quinta Emendata]. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft,1997. W
  • 6. d Y d 6 Tempo para buscar ‘vQeb;l. t[eÛ 6 E tempo para perder dBeêa;l. t[eäw Tempo para guardar rAmàv.li t[eî E tempo para lançar `%yli(v.h;l. t[eîw © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 7 Tempo para rasgar ‘[:Ar’q.li t[eÛ 7 E tempo para costurar rAPêt.li t[eäw Tempo para calar tAvßx]l; t[eî E tempo para falar `rBE)d:l. t[eîw 8 Tempo para amar ‘bhoa/l,( t[eÛ 8 E tempo para odiar anOëf.li t[eäw Tempo de guerra hm'Þx'l.mi t[eî E tempo de paz `~Al)v' t[eîw 9 Que proveito (tem) ‘!Art.YI-hm; 9 O trabalhador hf,êA[h'(. No que ele trabalha? `lme([' aWhï rvßa]B; 10 Eu tenho visto a tarefa !y©n[ih'(-ta, ytiyaiär 10 Que deu Deus ~yhi²l{a/ !t:ôn rv,’a] Aos filhos do homem ~dÞa'h' ynEïb.li Para estarem ocupados nela. `AB* tAnð[]l; 11 Tudo fez belo em seu tempo; Também o mundo deu no coração AT=[ib. hp,äy hf'Þ[' lKoïh;-ta, 11 deles, ~B'êliB. !t:ån ‘~l'[oh'-ta, ~G:Ü De tal modo que não descubra o ~dªa'h' ac'äm.yI-al{ rvôa] yliúB.mi homem A obra que fez Deus ~yhiÞl{a/h' hf'î['-rv,a] hf,²[]M;h;(-ta, Desde o princípio e até o fim `@As)-d[;w varoïme 12 Eu sei que não há nada !yaeî yKi² yTi[.d:§y 12 Melhor para eles ~B'_ bAjß Que se alegrarem x:Amêf.li-~ai yKiä E fazerem (o) bem em sua vida `wyY)x;B. bAjß tAfï[]l;w W
  • 7. d Y d 13 ‘~da'h'-lK' ~g:Üw 13 E também todo homem Que coma e beba ht'êv'w lk;äaYOv, E veja (o) bem bAjß ha'îrw Em todo seu trabalho Al+m'[]-lk'B. © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 Isso (é) um dom de Deus `ayhi( ~yhiÞl{a/ tT;îm; 14 Eu sei que tudo (o) que fez Deus ‘~yhil{a/h' hf,Û[]y: rv,’a]-lK' yKiû yTi[.d:ªy 14 Ele (Isso) será para sempre ~l'êA[l. hyåh.yI aWh… Sobre ele (isso) nada (há) para acrescentar @ysiêAhl. !yaeä ‘wyl'[' E dele (disso) nada (há) para tirar [:ro+gli !yaeä WNM,ÞmiW E Deus (o) fez hf'ê[' ~yhiäl{a/h'w (para) que temam em face dele `wyn)p'L.mi Waßr.YI)v, 15 O que foi ‘hyh'V,(-hm; 15 Ele já (é) aWhê rbåK. E (o) que será tAyàh.li rvïa]w: Já foi hy+h' rbåK. E Deus buscará o perseguido `@D)rnI-ta, vQEïb;y ~yhiÞl{a/h'w Há algumas observações que devem ser feitas aqui sobre alguns vocábulos em hebraico que aparecem em Qöheºlet 3.1-15 e os significados correspondentes que escolhemos lhes atribuir. Em Qöheºlet 3.1, três palavras merecem a nossa atenção. Tratam-se dos termos: !m+z (zümän), t[eî (`ët) e #p,xeÞ (Hëºpec). Em primeiro lugar, o substantivo masculino !m+z (zümän) ocorre uma única vez em toda a perícope e significa, segundo Holladay, “tempo específico”, “hora”.10 Gesenius, um dos maiores eruditos do hebraico bíblico, concorda com esta opinião e declara que o vocábulo significa “tempo”, fazendo referência a 10 HOLLADAY, William L. (Ed.). A Concise Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament. Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Company / Leiden, E. J. Brill, 1988, p.89. W
  • 8. d Y d “um tempo estabelecido”.11 Segundo o Etymological Dictionary of Biblical Hebrew (Dicionário Etimológico de Hebraico Bíblico), a raiz !mz (zmn) que aparece aqui significa “designado para um propósito”. Tal raiz, ainda segundo esse mesmo dicionário, possui como significado cognato o conceito de “estabelecer um objetivo”.12 O termo aparece em outras passagens na Bíblia © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 Hebraica para se referir, por exemplo, ao tempo determinado ou designado para as festas judaicas (Est 9.27,31) e também para se referir ao período de tempo que Neemias definiu para a sua ausência de Susã (Ne 2.6).13 Em nosso trabalho, resolvemos traduzir zümän por “tempo determinado”, o que fazem também as traduções em português: ARA14 e ARC.15 Em segundo lugar, o substantivo feminino t[eî (`ët) que significa basicamente um “ponto no tempo”, possui outros significados a ele atrelados: 1) “tempo de um evento” e 2) “tempo para um evento”. O último possui algumas subcategorias: a) “tempo normal”, b) “o tempo adequado, conveniente ou apropriado”, c) “o tempo designado” e d) “tempo indeterminado”.16 Contudo, apesar da grafia distinta dos termos, as duas palavras semitas, zümän e `ët significam basicamente a mesma coisa.17 A Septuaginta (III–I século a.C.), por outro lado, traduz zümän por cro,noj (chrónos) e `ët por kairo.j (kairós).18 Segundo o An Intermediate Greek-English Lexicon (Léxico Intermediário Grego-Inglês) de Liddell e Scott, a palavra chrónos significa basicamente “tempo”, podendo se referir a “um tempo 11 GESENIUS, H.W.F. Geseniu’s Hebrew-Chaldee Lexicon to the Old Testament. Grand Rapids, Baker Book House, 1992, p.247. 12 CLARK, Matityahu. Etymological Dictionary of Biblical Hebrew. Jerusalem / New York, Feldheim Publishers, 1999, pp.67,68. 13 Cf. NET Bible. Ecclesiastes 3:1, note 2. Disponível em: http://bible.org/netbible/index.htm. Acesso em: 23/04/2011. 14 ALMEIDA, João Ferreira de. (Trad.). Bíblia Sagrada. (Edição Revista e Atualizada). São Paulo, Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. 15 ALMEIDA, João Ferreira de. (Trad.). Bíblia Sagrada. (Edição Revista e Corrigida). Rio de Janeiro, Imprensa Bíblica Brasileira, 1991. 16 Cf. NET Bible. Ecclesiastes 3:1, note 3. Disponível em: http://bible.org/netbible/index.htm. Acesso em: 23/04/2011. 17 LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet. [Coleção: Grande Comentário Bíblico]. São Paulo, Paulus, 1999, p.215. 18 Cf. RAHLFS, Alfred. (Ed.). Septuaginta. [Duo volumina in uno]. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 2004. W
  • 9. d Y d definitivo, um espaço de tempo, período ou estação”.19 Esse mesmo léxico define kairo.j como “o ponto certo do tempo, o tempo apropriado ou período de ação, o tempo exato ou crítico”.20 Como Líndez já observou antes de nós, a versão grega não nos ajuda muito a distinguir os significados dos termos neste caso.21 Por fim, a Vulgata de Jerônimo (IV–V século d.C.) traduziu zümän por © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 tempus (“tempo”) e `ët por spatiis (“estação”).22 Assim como o hebraico e o grego, o latim também não nos ajuda a identificar uma distinção nítida entre um vocábulo e o outro. Em terceiro lugar, o substantivo masculino #p,xeÞ (Hëºpec) pode significar “deleite, prazer, desejo, a boa vontade, vontade, propósito, negócio (em época tardia), questão (em época muito tardia)”.23 A Septuaginta traz no lugar de Hëºpec o substantivo neutro pra,gmati (prágmati), o qual, por sua vez, é derivado do termo pra/gma (prâgma), cujos significados básicos, dentre outros, são: “o que tem sido feito, uma ação, ato, uma coisa, questão, negócio”.24 É da mesma raiz dessa palavra que vem a nossa palavra moderna “pragmatismo”. Em nossa tradução, preferimos adotar o termo “propósito” como tradução para Hëºpec. Em Qöheºlet 3.2, os vocábulos tdl,Þl' (läleºdet) e [:Wj)n rAqï[]l; (la`áqôr nä†ûª` ) também merecem atenção. A primeira expressão, läleºdet, é um infinitivo construto na construção verbal Qal, o qual significa literalmente “dar à luz”. Porém, o contexto favorece a tradução da expressão no sentido passivo, porque o que está sendo enfatizado é o nascimento do filho e não o ato de a mãe dar à luz.25 Por isso, preferimos traduzir läleºdet como “para nascer”. A LXX conserva o mesmo significado literal do texto hebraico, ao passo que a Vulgata traz aqui “tempus nascendi”, isto é, “tempo para nascer”. 19 Cf. o verbete cro,noj, in: LIDDELL, H. G. SCOTT, R. An Intermediate Greek-English Lexicon. (Founded upon the Seventh Edition of Liddell and Scott’s Greek-English Lexicon). Oxford, Oxford University Press, 1889, p.896. 20 Cf. o verbete kairo.j, in: Idem, Ibidem, p.392. 21 LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet, p.215. 22 JÁNOS II, Pal. Nova Vulgata Bibliorum Sacrorum Editio. Vaticano, Libreria Editrice Vaticana, 1979. 23 BROWN, Francis, DRIVER, S. R. BRIGGS, Charles A. Hebrew and English Lexicon of the Old Testament. Oxford, Clarendon Press, 1951, p.343. 24 Cf. pra/gma, in: LIDDELL, H. G. SCOTT, R. Op.Cit., p.665,666. 25 LÍNDEZ, José Vílchez. Op.Cit., p.215. W
  • 10. d Y d No que diz respeito à expressão la`áqôr nä†ûª` , o seu significado literal é “arrancar o que foi plantado”. Temos aqui a expressão la`áqôr, que se encontra no infinitivo construto do Qal e significa “arrancar” e a construção verbal passiva que aparece no Nif‘al e que pode ser traduzida como “o que foi plantado”. Apesar disso, optamos por traduzir a expressão la`áqôr nä†ûª` por “colher”, uma © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 vez que concordamos com o argumento de Líndez, segundo quem “colher” é a tradução mais preferível por dois motivos: 1) a raiz `qr, de la`áqôr, “arrancar”, parece ser derivada da raiz fenícia `qrT, significando “armazém”, “depósito” e 2) a tradução “colher” se encaixa perfeitamente no contexto.26 Em Qöheºlet 3.11, o substantivo masculino ‘~l'[o (`öläm) tem sido alvo dos mais intensos debates no que diz respeito ao seu significado no citado verso. Vejamos o que Schökel tem a nos dizer sobre o significado de `öläm: Significa um tempo ou duração indefinida ou incalculável, no passado ou futuro, ou o definitivo de uma ação ou estado. A duração ilimitada pode referir-se a uma medida: no passado, o cósmico, a história; no futuro, a vida de um indivíduo, um povo, a história, o cósmico.27 O mesmo autor ainda irá dizer mais adiante que `öläm também pode ser traduzido como “mundo”, em uma concepção mais tardia. Aliás, esta é a tradução que Schökel propõe para `öläm em Qöheºlet 3.11.28 A LXX, por sua vez, verte `öläm por aivw/na (aiōna), substantivo no acusativo que é derivado de aivw,n (aiōn), cujos significados básicos são: “tempo, duração da vida, vida, eternidade, idade, geração, século”.29 Por fim, a Vulgata traduz öläm por mundum, “mundo”. Curiosamente, a Bíblia Hebraica (BH) publicada pela Sêfer 26 LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet, p.215. 27 SCHÖKEL, Luis Alonso. Dicionário Bíblico Hebraico-Português. São Paulo, Paulus, 1997, p.483. 28 Idem, Ibidem, p.484. 29 PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. Porto, Livraria Apostolado da Imprensa, 1976, p.19. W
  • 11. d Y d traduz öläm por “ânsia de compreender”.30 Seguindo os seus passos, a Bíblia na Tradução da Linguagem de Hoje (TLH) traz “desejo de entender as coisas que já aconteceram e as que ainda vão acontecer”.31 Na verdade, estas duas versões bíblicas refletem mais uma interpretação de öläm à luz do seu contexto imediato, do que uma tradução propriamente dita. Por outro lado, a Bíblia de Jerusalém © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 (BJ) traz no lugar de öläm a expressão “conjunto do tempo”,32 sendo acompanhada de perto pela Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB), que traz “sentido do tempo”.33 Além dessas versões, a versão espanhola da Bíblia, Reina- Valera, traz “eternidad”.34 A versão em português de João Ferreira de Almeida, Revista e Atualizada (ARA) também traz “eternidade”.35 Finalmente, a versão em português de João Ferreira de Almeida, Revista e Corrigida (ARC) verte öläm por “mundo”.36 Particularmente, preferi traduzir öläm por “mundo” por entender que o conceito de “mundo” possui maior materialidade e concretude de significado, sendo, a meu ver, mais condizente com o contexto de Qöheºlet 3.1- 15, que aborda aspectos “concretos” da vida humana, tais como: “nascer, morrer; plantar, colher; matar, curar; destruir, construir; chorar, rir; lamentar, dançar; lançar e amontoar pedras; abraçar e deixar de abraçar; buscar, perder; guardar, lançar; rasgar, costurar; calar, falar; amar, odiar; guerra e paz” (Qöheºlet 3:1-8). Obviamente, esta observação não significa que o autor de Qöheºlet fosse incapaz de abstrair. Aliás, a sua obra como um todo demonstra exatamente o contrário. Por fim, o sentido da última frase da nossa perícope, isto é, de Qöheºlet 3.15, também tem sido alvo de muita discussão. A frase inteira em hebraico diz: @D)rnI-ta, vQEïb;y ~yhiÞl{a/h'w (wühä´élöhîm yübaqqëš ´et-nirDäp) que, 30 Cf. GORODOVITS, David FRIDLIN, Jairo. Bíblia Hebraica. São Paulo, Editora e Livraria Sêfer Ltda., 2006. 31 Cf. A Bíblia Sagrada. (Tradução na Linguagem de Hoje). São Paulo, Sociedade Bíblica do Brasil, 1988. 32 Cf. GIRAUDO, Tiago BORTOLINI, José. (Eds.). Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Sociedade Bíblica Católica Internacional e Paulus, 1985. 33 Cf. Bíblia –Tradução Ecumênica (TEB). São Paulo, Edições Loyola, 1994. 34 Cf. Santa Biblia (Versión Española Reina-Valera). Miami, United Bible Societies, 1995. 35 Cf. ALMEIDA, João Ferreira de. (Trad.). Bíblia Sagrada. (Edição Revista e Atualizada). São Paulo, Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. 36 Cf. ALMEIDA, João Ferreira de. (Trad.). Bíblia Sagrada. (Edição Revista e Corrigida). Rio de Janeiro, Imprensa Bíblica Brasileira, 1991. W
  • 12. d Y d literalmente, significa: “E Deus buscará o perseguido”.37 Apesar disso, esta frase parece ser desconexa ou parece estar deslocada dentro do contexto no qual ela está inserida. Como a LXX acompanha o TM aqui, então, seguindo novamente a sugestão de Líndez, sou propenso a aceitar a tradução-interpretação da Vulgata como sendo a mais coerente dentro do pensamento do contexto.38 A versão latina © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 traz: et Deus instaurat quod abiit, ou seja, “e Deus renova o que passou”. Entre as versões da Bíblia em português, as que mais se aproximam deste sentido são as já citadas, Almeida, Revista e Atualizada (ARA): “Deus fará renovar-se o que se passou” e a Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB): “e Deus vai em busca do que passou”. Além dessas versões, a também já mencionada Almeida, Revista e Corrigida (ARC) declara: “e Deus pede conta do que passou”. E, finalmente, a Nova Versão Internacional (NVI) traz: “Deus investigará o passado”.39 Apesar de todas essas várias traduções dadas para a frase wühä´élöhîm yübaqqëš ´et-nirDäp (Qöheºlet 3.15), eu preferi conservar o significado do texto original em minha tradução, a saber, “e Deus buscará o perseguido”. Contudo, reitero que a versão latina da Vulgata (“E Deus renova o que passou”) a meu ver, parece ser uma tradução-interpretação mais coerente com o contexto da passagem, em vez do complicado texto hebraico: “E Deus buscará o perseguido”. O já mencionado Líndez, ao explicar a sua preferência pela Vulgata como a tradução-interpretação mais apropriada para a compreensão da última frase de Qöheºlet 3.15, disse: O homem, ser passageiro, não pode ser ponto de referência do tempo que foge e se escapa; Deus, porém, [que] não está sujeito ao processo do tempo, supera-o e alcança-o em toda sua extensão mesmo de passado e de futuro, por isso não é estranho que se possa dizer que Deus vai em busca do passado. Segundo a mentalidade de Qohélet, Deus o encontra e o alcança, o homem não.40 37 O Midrash Qohélet Rabá também traduz a construção verbal nirDäp, que aparece no Nif‘al, como “perseguido”. (Cf. GIRAUDO, Tiago BORTOLINI, José. (Eds.). Bíblia de Jerusalém, p.1170, nota z). 38 LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet, p.236. 39 Bíblia Sagrada (Nova Versão Internacional). Colorado Springs, International Bible Society, 2000. 40 LÍNDEZ, José Vílchez. Op.Cit., p.236. O acréscimo entre colchetes é meu. Os itálicos são do autor. W
  • 13. d Y d Ora, depois de fornecer e justificar a nossa tradução de Qöheºlet 3.1-15, destacando, sobretudo, o significado que atribuímos a algumas de suas principais palavras, frases e expressões, podemos partir agora, portanto, para a análise dos quatro pontos de vista principais sobre a relação existente entre o determinismo e o livre-arbítrio. A análise e definição preliminar de cada um desses pontos de © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 vista irão nos auxiliar no comentário e na compreensão do próprio texto em si que faremos no terceiro e último capítulo do nosso estudo. W
  • 14. d Y d II – QUATRO PONTOS DE VISTA SOBRE A RELAÇÃO EXISTENTE ENTRE O DETERMINISMO E O LIVRE-ARBÍTRIO Há, pelo menos, quatro maneiras fundamentais de entender a relação existente entre o determinismo e o livre-arbítrio.41 Entretanto, antes de © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 examinarmos a cada uma delas, vejamos primeiramente o que queremos dizer com os termos determinismo e livre-arbítrio. Em primeiro lugar, determinismo é “a crença de que o pensamento, ação e sentimentos humanos são, em um maior ou menor grau, controlados por uma grande força e que os seres humanos têm pouco ou nenhum livre-arbítrio de si mesmos. Esta força pode ser chamada Deus ou Destino, ou os dois podem ser vistos como idênticos”.42 Já livre-arbítrio (ou liberdade humana) é o nome dado ao “conceito de que os seres humanos determinam livremente seu próprio comportamento e que nenhum fator causal externo pode ser adequadamente responsabilizado por suas ações”.43 A partir destas definições, vejamos então como se configuram os quatro pontos de vista sobre a relação existente entre estes dois conceitos que acabamos de apresentar. 41 Para obter maiores informações sobre o determinismo e o livre-arbítrio sobre o ponto de vista filosófico-teológico cristão, veja: GEISLER, Norman FEINBERG, Paul D. Introdução à Filosofia: uma perspectiva cristã. São Paulo, Edições Vida Nova, 1996, pp.153-162; FEINBERG, John et al. Predestinação e Livre-Arbítrio: quatro perspectivas sobre a soberania de Deus e a liberdade humana. São Paulo, Mundo Cristão, 1996; HUNNEX, Milton. Filósofos e Correntes Filosóficas em Gráficos e Diagramas. São Paulo, Editora Vida, 2003, pp.50-52; CHAMPLIN, R. N. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. [Vol.2 | D – G]. São Paulo, Editora Hagnos, 2001, pp.91-96. Já para obter maiores informações sobre este mesmo assunto, mas a partir da perspectiva judaica, confira: MAIMONIDES, Rabi Moshe ben. Guia de Descarriados. Madrid, Editorial Barath, 1988, pp.226-232; REHFELD, Walter I. Nas Sendas do Judaísmo. São Paulo, Perspectiva; Associação Universitária de Cultura Judaica; Tecnisa, 2003, p.63-65. 42 RUDMAN, Dominic. Determinism and Anti-Determinism in the Book of Koheleth. [The Jewish Bible Quarterly]. Vol.XXX, Nº 2. Jerusalem, Jewish Bible Association Press, 2002, p.1. Shimon Bakon faz questão de distinguir o conceito de Providência Divina do conceito de Predestinação. Segundo ele: “Há uma considerável diferença entre estes dois conceitos, o primeiro significando participação divina, ou mesmo interferência, em assuntos humanos, o outro sugerindo uma força cósmica, predeterminando os destinos dos homens e até mesmo dos deuses. Em ambos, resta pouco espaço para a liberdade humana”. (Cf. BAKON, Shimon. Koheleth. [The Jewish Bible Quarterly]. Vol.XXVI, nº3. Jerusalem, The Jewish Bible Association Press, 1998, p.172). 43 Cf. o verbete: Liberdade Humana, in: ERICKSON, Millard J. Conciso Dicionário de Teologia Cristã. Rio de Janeiro, Juerp, 1995, p.99. W
  • 15. d Y d 2.1. Determinismo Radical Segundo o determinismo radical, a predeterminação divina de todos os acontecimentos ocorre a despeito da presciência divina das ações humanas livres. Este ponto de vista argumenta que Deus age com uma soberania tão inacessível © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 que Suas escolhas são feitas com total desconsideração das escolhas humanas.44 O determinismo radical também pode ser chamado de fatalismo ou, na teologia cristã reformada, de calvinismo extremado ou hiper-calvinismo. Os problemas que o determinismo radical traz consigo são basicamente dois: 1) Ele nega o livre-arbítrio humano, o qual encontra apoio em outras partes da Bíblia Hebraica e também na experiência humana e 2) Ele nega a benevolência divina, pois se Deus age desconsiderando as ações humanas, isto quer dizer que Deus é, em última análise, a origem de todas as coisas, inclusive do mal. 2.2. Determinismo Moderado De acordo com o determinismo moderado (ou calvinismo moderado, como é conhecido na teologia cristã), Deus simultaneamente tanto predetermina quanto preconhece desde toda a eternidade todos os acontecimentos, incluindo todos os atos livres dos seres humanos. Este ponto de vista afirma, em outras palavras, que Deus determinou que os seres humanos façam as coisas livremente e não que sejam forçados a fazer atos livres.45 Este posicionamento filosófico busca encontrar um equilíbrio entre a soberania divina e a responsabilidade humana, uma vez que ele assegura as prerrogativas divina e humana sem que qualquer delas seja prejudicada na sua autonomia. Sendo assim, nossos atos são realmente livres do ponto de vista das 44 GEISLER, Norman. Eleitos, Mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre- arbítrio. São Paulo, Editora Vida, 2001, p.53. 45 Idem, Ibidem, p.62. W
  • 16. d Y d escolhas que fazemos deles, mas são, ao mesmo tempo, determinados, a partir da perspectiva da presciência que Deus tem deles como Ser atemporal.46 2.3. Livre-Arbítrio Radical Já o livre-arbítrio radical (o qual é conhecido por vários outros nomes na © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 teologia cristã, tais como, arminianismo radical, arminianismo extremado, teísmo do livre-arbítrio, teísmo aberto,47 neoteísmo ou Openess of God, isto é, “Abertura de Deus”), ao contrário do determinismo radical, exalta o livre- arbítrio humano à custa do sacrifício da soberania divina. O autor, Clark Pinnock, no livro intitulado The Openess of God, menciona cinco características do livre-arbítrio radical ou teísmo aberto, as quais transcrevemos abaixo: 1) Deus não somente criou esse mundo, ex nihilo, mas pode (e às vezes faz) intervir unilateralmente nos acontecimentos na terra; 2) Deus escolheu criar-nos com liberdade incompatibilista (libertária) – uma liberdade sobre a qual ele não pode exercer controle total; 3) Deus valoriza tanto a liberdade – a integridade moral das criaturas livres e de um mundo no qual tal integridade é possível – que não atropela essa liberdade, mesmo que a veja produzindo resultados indesejáveis; 4) Deus sempre deseja o nosso mais alto bem, tanto individual como corporativamente, e assim é afetado pelo que acontece em nossas vidas; 5) Deus não possui um conhecimento exaustivo de como exatamente utilizaremos a liberdade, embora possa muito bem, às vezes, ser capaz de predizer com grande exatidão as escolhas que livremente faremos.48 46 GEISLER, Norman. Eleitos, Mas Livres, p.51. 47 Ware assim define o Teísmo Aberto: “Esse movimento é assim denominado pelo fato de seus adeptos verem grande parte do futuro como algo que está ‘em aberto’, e não fechado, mesmo para Deus. Boa parte do futuro está ainda indefinida e, conseqüentemente, Deus o desconhece. Deus conhece tudo o que pode ser conhecido, asseguram-nos os teístas abertos. Mas livres escolhas e ações futuras, por não terem ocorrido ainda, não existem e, desse modo, Deus (até mesmo Deus) não pode conhecê-las”. (Cf. WARE, Bruce A. Teísmo Aberto: a teologia de um Deus limitado. São Paulo, Vida Nova, 2010, p.14). 48 PINNOCK, Clark. The Openess of God, p. 156. Apud: GEISLER, Norman. Eleitos, Mas Livres, p.117. W
  • 17. d Y d Como já é evidente por si só, o conceito de livre-arbítrio radical traz consigo uma série de problemas, pois nega os atributos essenciais de Deus, tais como, a transcendência, a imanência, a onisciência, a onipresença, a onipotência, a imutabilidade e a soberania divinas. A meu ver, a filosofia teológica ou a teologia filosófica do livre-arbítrio radical rebaixou Deus à condição de um ser © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 impotente, pobre e frágil e, ao mesmo tempo, promoveu o homem, deificando-o, divinizando-o e entronizando-o em seu livre-arbítrio absoluto ilusório. Neste tipo de concepção das coisas, os papéis de Deus e do homem são praticamente invertidos. Deus adquire traços humanos, enquanto que o homem acaba adquirindo traços divinos. Penso que não pode haver maior equívoco do que este. 2.4. Livre-Arbítrio Moderado Segundo o livre-arbítrio moderado, o ser humano possui a capacidade parcial de agir sem ser condicionado por alguma causa. Essa capacidade de ação é apenas “parcial” porque, muitas vezes (ou sempre), causas biológicas, culturais e até mesmo espirituais (como a vontade de Deus, por exemplo), dentre outras, o levam a fazer o que ele faz.49 Este ponto de vista, assim como o determinismo moderado, busca encontrar uma relação de equilíbrio entre as ações humanas e a soberania divina. O conceito de livre-arbítrio moderado reconhece que o homem é livre, mas não plenamente livre, pois ele está irremediavelmente fadado a viver, em sua condição de ser humano, dentro de um mundo condicionado por certas leis naturais, biológicas, genéticas, sociais, espirituais etc. 49 CHAMPLIN, R. N. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. Vol.3. [H-L]. São Paulo, Editora Hagnos, 2001, pp.866,867. Aliás, a esse respeito, Rudman declara que “o homem não é de todo o mestre de sua própria vida”. (Cf. RUDMAN, Dominic. Determinism in the Book of Ecclesiastes. Sheffield, Sheffield Academic Press, 2001, p.33). Seow chama essa liberdade parcial do homem de “determinismo de circunstâncias”. (Cf. SEOW, C.L. Ecclesiastes. New York, Doubleday, 1997, pp.171-172) W
  • 18. d Y d 2.5. Um Apelo ao Equilíbrio Depois de descrever esses quatro pontos de vista sobre a relação existente entre o determinismo e o livre-arbítrio, eu pude chegar a duas conclusões fundamentais. © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 A primeira delas é que tanto o determinismo radical quanto o livre- arbítrio radical devem ser rejeitados, porque ambos são extremistas em suas posições, pois negam, de um lado, o livre-arbítrio humano e, do outro, os atributos essenciais divinos. Portanto, tais posicionamentos filosófico-teológicos não nos fornecem uma resposta adequada para o nosso assunto em questão. A segunda conclusão a que cheguei é a seguinte: uma vez que tanto a soberania divina quanto a responsabilidade humana são duas verdades repetidamente afirmadas na Bíblia Hebraica, logo, se faz necessário defender um ponto de vista que leve em consideração esses dois pólos juntos. Tendo esse intuito em mente, menciono a seguir alguns comentários que defendem uma postura de equilíbrio sobre a relação entre o determinismo e o livre-arbítrio, os quais foram feitos por representantes das três maiores religiões monoteístas do mundo, a saber, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. No que diz respeito ao judaísmo, o rabi Dan Cohn-Sherbok, apoiando-se na Bíblia Hebraica e no Talmude, faz a seguinte afirmação: De acordo com a Escritura, cada pessoa é capaz de escolher entre o bem e o mal. O conceito de punição e recompensa está baseado neste pressuposto. O Talmude especifica que Deus é onisciente: não obstante, os seres humanos têm capacidade para escolher seu próprio estilo de vida.50 Além de Cohn-Sherbok, outro judeu, Jacob B. Agus (1911-1986), em seu livro La Evolucion del Pensamiento Judio, também fala de forma equilibrada sobre a relação entre o determinismo e o livre-arbítrio. Eis as suas palavras: 50 COHN-SHERBOK, Dan. A Concise Encyclopedia of Judaism. Oxford, Oneworld Publications, 1998, p.77. W
  • 19. d Y d (...) o monoteísmo afirma que Deus transcende a natureza e que não é idêntico a ela nem a nenhuma parte dela (...). No monoteísmo, Deus está sujeito às variações da vida mortal.51 Já o teólogo cristão Arthur W. Pink (1886-1952), ao discorrer sobre a © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 soberania divina e a responsabilidade humana, comenta: Duas coisas são indisputáveis: a soberania de Deus e a responsabilidade do homem. (...) Reconhecemos que existe, sem dúvida, o perigo de salientar demais uma delas e negligenciar a outra. (...) Ressaltar a soberania de Deus, sem afirmar, ao mesmo tempo, a responsabilidade do homem, tende ao fatalismo; [Por outro lado] preocupar-se tanto em manter a responsabilidade do homem, ao ponto de perder de vista a soberania de Deus, é exaltar a criatura e desonrar o Criador.52 Além de Pink, a Confissão de Fé de Westminster (escrita em 1646), que apresenta uma das melhores e mais concisas declarações da fé cristã, em seu Capítulo III, intitulado Do Decreto Eterno de Deus, faz os seguintes comentários sobre o determinismo divino e a responsabilidade humana: Seção I. – Desde toda a eternidade, e pelo sapientíssimo e santíssimo conselho de sua própria vontade, Deus ordenou livre e imutavelmente tudo quanto acontece; porém, de modo tal que nem é Deus o autor do pecado, nem se faz violência à vontade das criaturas, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias, antes são estabelecidas. Seção II. – Embora Deus saiba tudo quanto pode ou há de suceder em todas as circunstâncias imagináveis, contudo não decretou coisa alguma por havê-la previsto como futura, nem como algo que haveria de acontecer em tais circunstâncias.53 51 AGUS, Jacob B. La Evolucion del Pensamiento Judio: desde la época bíblica hasta los comienzos de la era moderna. Buenos Aires, Editorial Paidós, 1969, pp.16,17. 52 PINK, A. W. Deus é Soberano. São José dos Campos, Editora Fiel, 1997, p.5. Os acréscimos entre colchetes são meus. 53 Confissão de Fé de Westminster. (Comentada por A. A. Hodge). São Paulo, Editora Os Puritanos, 1999, p.95. W
  • 20. d Y d Por fim, além desses comentários, o pensador muçulmano, aiatolá54 Nasir Makarim Shirazi, também defende um ponto de vista equilibrado entre o determinismo e a liberdade humana. Segundo Shirazi: (...) nós sabemos que os seres humanos têm liberdade de escolha e livre-arbítrio, © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 ao mesmo tempo em que sabemos que Deus é o Governante sobre todas as pessoas e ações.55 Sendo assim, por mais paradoxal que possa parecer, proponho uma posição de meio-termo, que leve em consideração tanto o determinismo moderado quanto o livre-arbítrio moderado, isto é, uma posição que leve em conta tanto o determinismo divino quanto a liberdade humana como os dois lados de uma mesma moeda. Aliás, sendo mais explícito ainda, defendo que embora a relação entre o determinismo divino e a liberdade humana seja um mistério, tal relação não implica necessariamente contradição. A finitude da nossa existência humana e a limitação da nossa razão não podem servir como argumentos infalíveis para comprovar a suposta contradição existente entre essas duas verdades. Nas palavras de Norman Geisler, “ninguém jamais demonstrou uma contradição entre predestinação e livre-escolha. Não há conflito insolúvel entre um acontecimento predeterminado por um Deus onisciente e um evento que é livremente escolhido por nós”.56 Ora, uma vez que nós definimos e justificamos a posição que, a nosso ver, corresponde melhor às verdades do determinismo divino e da liberdade humana, partamos então para o exame de Qöheºlet 3.1-15. 54 Aiatolá é o título pelo qual são conhecidos os principais líderes islâmicos xiitas. O aiatolá é inferior apenas ao Imã. (Cf. LOVISOLO, Elena et al. Dicionário da Língua Portuguesa. (Larousse Cultural). São Paulo, Editora Nova Cultural Ltda., 1992, p.33). 55 SHIRAZI, Nasir Makarim. Principios Basicos del Pensamiento Islamico. (Vol. IV: Justicia Divina). Tehran, Bonyad Be‘zat, 1987, p.43. 56 GEISLER, Norman. Eleitos, Mas Livres, pp.47,48. W
  • 21. d Y d III – O QOHÉLET 3.1-15 E A TENSÃO ENTRE O DETERMINISMO E O LIVRE-ARBÍTRIO Segundo Dominic Rudman, autor do artigo Determinism and Anti- Determinism in the Book of Koheleth (Determinismo e Anti-Determinismo no © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 Livro de Qohélet), “dentro da erudição moderna, o catálogo dos tempos e estações em 3.1-8 e o comentário que Qohélet fornece sobre esta passagem em 3.9ss., é visto como um texto chave para a compreensão do livro como um todo”.57 Tal observação revela a importância de Qöheºlet 3.1-15 e de seu estudo para a compreensão do tema que ora estamos abordando neste trabalho. Entretanto, antes de entrarmos no comentário da perícope em si, devemos mencionar preliminarmente as palavras de Baruch Spinoza (1632-1677) sobre a liberdade que as pessoas têm de interpretar os textos religiosos em geral e, em particular, a Bíblia. Dentro de seu Tratado Teológico-Político, no capítulo VIII, intitulado Da Interpretação da Escritura, Spinoza diz o seguinte: (...) como todos têm o pleno direito de pensar com liberdade, inclusive em matérias de religião, e não é concebível que se renuncie a este direito, cada um dispõe de uma autoridade suma de sumo direito para decidir em questões religiosas e, portanto, para lhes dar uma explicação e interpretação. Assim como o direito de interpretar as leis e a decisão soberana dos negócios públicos correspondem ao magistrado, por serem assuntos de direito político, da mesma forma cada um tem sua autoridade absoluta para julgar e explicar a religião, porque esta pertence ao direito de cada um.58 Estas palavras libertadoras de Spinoza, as quais fornecem uma salvaguarda ao leitor e ao intérprete da Bíblia no que diz respeito ao seu direito de interpretar o texto sagrado livremente, servirão como ponto de partida para o nosso estudo de Qöheºlet. Bem, analisemos então o texto de Qöheºlet 3.1-15 a partir da tensão existente entre o determinismo e o livre-arbítrio. 57 RUDMAN, Dominic. Determinism and Anti-Determinism in the Book of Koheleth. [The Jewish Bible Quarterly]. Vol.XXX, Nº 2. Jerusalem, Jewish Bible Association Press, 2002, p.3. 58 SPINOZA, Baruch. Tratado Teológico-Político e Tratado Político. [Traducción y estúdio preliminar de Enrique Tierno Galván]. Madrid, Editorial Tecnos S.A., 1985, p.45. W
  • 22. d Y d O trecho de Qöheºlet 3.1-15, assim como todo o livro de Qöheºlet de uma forma geral, emprega o paralelismo poético, até mesmo quando escreve em prosa rítmica no lugar do verso.59 Além disso, esse trecho de Qöheºlet apresenta uma unidade coesa, mas que, estruturalmente falando, pode ser dividido em duas subperícopes: 3.1-8 e 3.9-15. Em minha opinião, enquanto que a primeira © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 subperícope (3.1-8) possui um caráter descritivo,60 pois ela descreve simbolicamente, de forma não exaustiva, todas as situações da vida humana, a segunda subperícope (3.9-15), por sua vez, tem um caráter explicativo, porque visa explicar o porquê das coisas acontecerem assim em Qöheºlet 3.1-8.61 3.1. Qöheºlet 3.1-8 öheº 1 Para tudo (há) um tempo determinado, e um tempo para todo propósito 2 debaixo dos céus. Tempo para nascer, e tempo para morrer; tempo para plantar, e tempo para colher; 3 tempo para matar, e tempo para curar; tempo para destruir, e tempo para construir; 4 tempo para chorar, e tempo para rir; tempo de se lamentar, e tempo de dançar; 5 tempo para lançar pedras, e tempo de amontoar pedras; tempo para abraçar, e tempo para afastar-se de abraçar; 6 tempo para buscar, e tempo para perder; tempo para guardar, e tempo para lançar; 7 tempo para rasgar, e tempo para costurar; tempo para calar, e tempo para falar; 8 tempo para amar, e tempo para odiar; tempo de guerra, e tempo de paz. 59 ALTER, Robert KERMODE, Frank. (Orgs.). Guia Literário da Bíblia. São Paulo, Unesp,1997, p.299. Auzou diz que o autor de Qöheºlet “escreve em prosa ritmada entrecortada de sentenças e versos”. (Cf. AUZOU, Georges. A Tradição Bíblica. São Paulo, Livraria Duas Cidades Ltda., 1971, p.213). 60 Assim pensa também Loader, segundo quem, “a reflexão sobre as séries de eventos mutuamente exclusivos não é prescritiva, mas descritiva”. (Cf. LOADER, J. A. Polar Structures in the Book of Qohelet. Berlin / New York, De Gruyter, 1979, p.29). 61 Todavia, Lilia Veras possui opinião diferente da minha. Para a autora, 3.1-8 é uma reflexão sobre a incapacidade do homem de interferir na obra de Deus e 3.9-15 é uma revisão de alguns temas que o Qohélet tratou nos capítulos anteriores. (Cf. VERAS, Lilia Ladeira. Un Primer Contacto Con El Libro del Eclesiastés o Libro de Qohélet. Quito, Ribla [Revista de Interpretacion Bíblica Latino-Americana], nº 52, 2005, pp.8,9). Já Zenger afirma que o trecho de Qöheºlet 3.1-15 está dentro da estrutura maior de Qöheºlet 1.3-3.22, a qual trata do desdobramento e resposta à pergunta pelo conteúdo e pelas condições da felicidade humana. (Cf. ZENGER, Erich et al. Introdução ao Antigo Testamento. [Coleção Bíblica Loyola | Nº 36]. São Paulo, Edições Loyola, 2003, p.334). W
  • 23. d Y d Este primeiro versículo funciona como uma introdução para todo o trecho de Qöheºlet 3.1-8. Ele nos faz pensar, por exemplo, em um provérbio atribuído ao lendário autor grego, Esopo (VI Séc. a.C.), que teria dito que “é uma grande coisa fazer a coisa certa na época certa”.62 Contudo, dentro do contexto judaico, muitas opiniões têm surgido a fim de © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 poder responder à seguinte questão: “até que ponto a vida humana é determinada?”.63 No Talmude da Babilônia,64 por exemplo, Rava65 (nascido aproximadamente em 270 d.C.) afirma que até mesmo as questões mais elementares da vida humana estão sob a influência do zodíaco. Segundo ele: “A vida, as crianças e o sustento dependem não do mérito, mas das estrelas [mzl]” (B. Mo’ed Katan, 28a).66 Tal influência zodiacal também é notada nos menores detalhes da natureza, conforme pode ser percebido em Gênesis Rabá 10.6: “R. Simão disse ‘Não há uma espécie vegetal única, mas ela tem uma estrela [mzl] no céu que a atinge e diz, Cresça!’”.67 De forma bastante curiosa e, às vezes, também contraditória, o Talmude diz em um momento que Israel é uma nação predeterminada e em outro momento afirma que Israel é dotado de vontade livre. Isto pode ser visto nos seguintes trechos talmúdicos: “R. Hanina b. Hama disse: ‘As estrelas [mzl] fazem alguém sábio, as estrelas fazem alguém rico, e há estrelas para Israel’ (...) R. Yohanan disse: ‘Não há estrela para Israel’” (B. Shabat 156a-b, cf. Yevamot 21b).68 Além disso, há que se notar também que o Targum de Qöheºlet não está imune a esse tipo de pensamento determinista 62 SCOTT, R. B. Y. [Ed.]. Proverbs, Ecclesiastes, p.221. 63 V. D’Alario faz o seguinte comentário sobre o conceito de determinismo encontrado no livro de Qöheºlet: “O emprego da palavra hrq.mi [“acontecimento, evento, destino”] no livro de Qohélet [p.ex., em 3.19] é uma confirmação posterior da singularidade do nosso texto em comparação com outros livros do Antigo Testamento; hrq.mi na verdade poderia evocar uma força misteriosa que determina os eventos, considerando que na Bíblia o princípio da soberania absoluta de Deus está colocado de forma incontestável”. (Cf. D’ALARIO, V. Liberté de Dieu ou Destin? Un autre dilemme dans l’interprétation du Qohélet. In: SCHOORS, A. (Ed.). Qohelet in the Context of Wisdom. Leuven, Leuven University Press, 1998, p.457). Os acréscimos entre colchetes são meus. 64 Segundo Christianson, o uso que o Talmude faz de Eclesiastes geralmente se concentra na aplicação prática, muitas vezes, em apoio à observação mais banal. (Cf. CHRISTIANSON, Eric S. Ecclesiastes Through the Centuries. Oxford, Blackwell Publishing Ltd., 2007, p29). 65 Seu nome é Rabi Abba Ben Joseph Bar Hama. 66 RUDMAN, Dominic. Determinism and Anti-Determinism in the Book of Koheleth, p.4. 67 Idem, Ibidem, p.4. 68 Idem, Ibidem, p.4. W
  • 24. d Y d astrológico, o que é evidenciado pelo fato de que esse Targum lê todo o livro de Qöheºlet a partir da perspectiva determinista. A esse respeito, o filósofo francês judeu Emmanuel Levinas (1906-1995) escreveu o seguinte: Em quinze ocasiões, o Targum utiliza o termo MAZAL que eu, com sérias © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 reservas, tenho traduzido como ‘Providência’... No Targum, Deus determina mazal (Cf. V,18; VI,2; X,6) e o bom mazal é uma recompensa dada às pessoas merecedoras (V, 17). Por outro lado, mazal é usado para descrever o destino inevitável: uma pessoa não pode fazer nada para mudar o seu mazal (IX, 11). Devido às suas características mecanicistas e deterministas, o Targum o usa para explicar desigualdades tais como o sofrimento dos justos e o bem-estar do perverso (VIII, 15). Os elementos mazal no Targum testemunham que a tradição Farisaico-Rabínica não erradicou o controle da astrologia sobre a opinião popular, mesmo nos casos onde mazal triunfou sobre zekut, isto é, mérito acumulado. “Tudo é determinado por mazal!” (IX, 2). No entanto, aqui também de vez em quando o Targum tempera este fatalismo explicando que Deus determina até mesmo o que o mazal irá trazer (IX, 12). Finalmente, o Targum inclui uma severa advertência contra o estudo e a prática da astrologia (XI,4), embora seja, ele próprio, contaminado por ela.69 A opinião do rabino espanhol Ibn Ezra (1093-1167)70 sobre Qöheºlet 3.1 também merece a nossa atenção. Segundo Ibn Ezra, o destino dos seres humanos estava sujeito à influência astrológica. Tal tipo de pensamento não deve nos causar espanto, pois este sábio judeu era um estudioso das ciências em geral e, mais particularmente, da astronomia. Em seu comentário sobre Qöheºlet 3.1, Ibn Ezra observa que o texto se refere aos “tempos que são vigorosos sobre a humanidade, pois o ser humano é obrigado a fazer tudo em seu tempo determinado, e o início dos tempos determinados e seu fim o restringem”.71 Já Ginsberg (1903-1990) enxerga o Qöheºlet como alguém que se vê insatisfeito na vida por causa de seu fatalismo e de seu determinismo rígido. 69 LEVINE, E. The Aramaic Version of Qohelet. New York, Hermon, 1978, pp. 75-76. Apud: RUDMAN, Dominic. Determinism and Anti-Determinism in the Book of Koheleth, pp.4,5. 70 Seu nome é Abraham ben Meir Ibn Ezra. 71 RUDMAN, Dominic. Op.Cit., p.5. W
  • 25. d Y d Segundo ele, o “Qöheºlet considera Deus como um senhor absoluto e arbitrário do destino”.72 Entretanto, como Rudman declara: “levada à sua conclusão lógica, uma filosofia determinista implicaria que o próprio Deus, em última análise, é responsável pela execução não apenas das boas ações dos seres humanos, mas © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 também das más”.73 Sendo assim, segundo penso, essa leitura determinista radical de Qöheºlet não é adequada para a compreensão do nosso texto. Contudo, além destas leituras deterministas, há aqueles que buscaram interpretar a existência humana através de uma perspectiva mais equilibrada. Maimônides74 (1135-1204), por exemplo, buscou interpretar esta questão aliando o conceito de presciência divina ao conceito de liberdade humana. Este sábio observa que é muita ingenuidade acreditar que o mazal (sorte ou destino influenciados pelas estrelas e planetas) possa afetar a nossa vida. “Se isso fosse verdade”, declara o sábio, “a Torá não teria nenhum sentido para nós. Não existiria o conceito de recompensa e punição”.75 Maimônides ainda afirma: Nós chegamos à conclusão de que é possível acreditar nos sinais astrológicos que guiam o destino do homem assim como na Torá. Não são os sinais que dirigem a vida de uma pessoa, mas eles foram dispostos por D’us de acordo com a maneira como a vida de uma pessoa seria vivida [presciência divina]. Pois se os signos fossem capazes de ditar a vida de uma pessoa, isso significaria que ela não tem escolha [liberdade humana]. Todos os capítulos da Torá de reprovação não teriam nenhum sentido, se as pessoas fossem guiadas pelos signos.76 Além de Maimônides, outro sábio judeu, Moshe Alshich (1508-1593), também defende opinião semelhante, combinando o determinismo divino com a liberdade humana. Segundo Alshich, “desde a época em que D’us criou os céus e 72 GINSBERG, Harold Louis. Supplementary Studies in Koheleth, 1952. Apud: EATON, Michael A. CARR, G. Lloyd. Eclesiastes e Cantares: introdução e comentário. [Série Cultura Bíblica]. São Paulo, Vida Nova / Mundo Cristão, 1989, p.84. 73 RUDMAN, Dominic. Determinism and Anti-Determinism in the Book of Koheleth, p.3. 74 Seu nome é Moshe Ben Maimom. 75 Maimônides, in: WASSERMAN, Adolpho. [Tradutor e compilador dos comentários]. Eclesiastes. São Paulo, Maayanot, 1998, p.20. 76 Maimônides, in: Idem, Ibidem, p.20. Os itálicos e os acréscimos entre colchetes são meus. W
  • 26. d Y d a ordem do zodíaco, Ele conhece o futuro em toda sua inteireza. Ele sabe como cada pessoa agirá e se ela merecerá recompensa ou punição por suas ações”.77 Porém, em outro momento, este sábio declara que a palavra t[eî (`ët), “tempo”, em Qöheºlet 3.1, faz referência aos “sinais que são repartidos para todo propósito e coisa sob os céus. Cada objeto tem seu futuro contido nas estrelas”.78 © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 Já o trecho de Qöheºlet 3.2-8 nos mostra um poema que apresenta 14 pares de situações ou de ações antitéticas, as quais, embora não abranjam todas as situações da vida, devem ser vistas como elementos emblemáticos e simbólicos de sua totalidade, os quais não são de forma alguma casuais.79 Este paralelismo antitético, observado nos 14 pares de situações juntamente com os seus respectivos opostos, nos faz pensar naquilo que está escrito no livro apócrifo de Eclesiástico 33.15, que diz: “Contempla, pois, todas as obras do Altíssimo, duas a duas estão todas uma diante da outra”.80 Segundo Rashi81 (1040-1105 d.C.), as expressões “tempo para nascer” e “tempo para morrer” (v.2a) se referem, respectivamente, aos limites divinamente ordenados colocados sobre o tempo de gestação e sobre o breve espaço de tempo da vida humana.82 De acordo com Rashi, o período natural de gestação de nove meses está além do controle humano.83 Em outras palavras, Rashi está descrevendo aquilo que eu chamo de determinismo biológico, o qual afeta a todos os nascituros. Além disso, podemos dizer de igual modo que tal determinismo biológico também alcança o ser humano no fim de seu ciclo vital. Por isso, há um “tempo para morrer”. Dito de outra forma, embora não esteja determinado que todos devam nascer (com exceção daqueles que já nasceram, é claro), todavia, está determinado que aqueles que nascerem experimentarão um ciclo de gestação no ventre materno de aproximadamente nove meses e, está 77 Alshich, in: WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.20. 78 Idem, Ibidem, p.20. 79 LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet, p.216. Cf. também: ANDERSON, William H. U. Scepticism and Ironic Correlations in the Joy Statements of Qoheleth? [Doctoral Thesis in Philosophy]. Glasgow, University of Glasgow, 1997, p.72. 80 GIRAUDO, Tiago BORTOLINI, José. (Eds.). Bíblia de Jerusalém, p.1294. 81 Acrônimo de Rabi Shlomo ben Yitschak. 82 RUDMAN, Dominic. Determinism and Anti-Determinism in the Book of Koheleth, p.6. 83 Rashi, in: WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.20. W
  • 27. d Y d determinado também que, após o seu nascimento, tais pessoas deverão morrer algum dia.84 Todavia, Blenkinsopp acredita que as ideias contidas no poema foram emprestadas da filosofia estóica por um “judeu estoicizado”.85 E, para tentar comprovar a sua tese, ele traduz equivocadamente a expressão tWm+l' © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 (literalmente, “para morrer”) encontrada no verso 2a como “dar um fim à vida de alguém”, conectando assim o poema com a ideia estóica do suicídio.86 Porém, tal tradução é bastante forçada, pois não reflete adequadamente o significado da preposição hebraica, a qual aparece acompanhada pela construção verbal que ocorre no infinitivo construto do Qal. A continuação do verso, que diz que há “tempo para plantar e tempo para colher” (v.2b), também aponta para outro tipo de determinismo, que eu chamaria de determinismo agrário. Esse tipo de determinismo faz referência ao tempo certo de plantar e colher as várias espécies de sementes existentes, as quais possuem um tempo apropriado para a sua plantação e também para a sua colheita.87 O Midrash,88 contudo, explica essa frase dizendo assim: “um tempo para plantar em tempo de paz e um tempo para arrancar a planta em tempo de guerra”.89 Já Jerônimo (347-420 d.C.) aplica todo o verso dois a Israel, dizendo o seguinte: “um tempo para nascer e plantar Israel; um tempo para morrer e ser 84 Segundo Pfeiffer e Harrison, a morte que ocorre em uma guerra, em defesa própria, por exemplo, nunca é acidental. Segundo estes autores, tal situação encontra eco na expressão moderna “era a sua hora de ir embora”. (Cf. PFEIFFER, Charles F. HARRISON, Everett F. (Eds.). The Wycliffe Bible Commentary. Chicago, Moody Press, 1987, p.588).Rick Warren, por outro lado, enxerga a questão do nascimento e da morte de forma acentuadamente determinista. Segundo ele: “Uma vez que Deus o fez por um motivo, ele também decidiu o momento de seu nascimento e seu tempo de vida. Ele planejou os dias de sua vida antecipadamente, escolhendo o momento exato de seu nascimento e de sua morte”. (Cf. WARREN, Rick. Uma Vida Com Propósitos. São Paulo, Editora Vida, 2003, p.22). 85 O estoicismo enfatizava o controle pessoal sobre as emoções. (Cf. EVANS, C. Stephen. Dicionário de Apologética e Filosofia da Religião. São Paulo, Editora Vida, 2004, p.51). 86 BLENKINSOPP, Joseph. Ecclesiastes 3.1-15: Another Interpretation. JSOT, Nº 66. Thousand Oaks, 1995, pp.56-57. 87 Kathryn Imray observa que os conceitos de “plantar” e “desenraizar” (“colher”) também podem ser compreendidos aqui como metáforas para o nascimento e para a morte. (Cf. IMRAY, Kathryn. Qohelet’s Philosophies of Death. [Doctoral Thesis in Philosophy]. Perth, Murdoch University, 2009, p.70). 88 Um nome genérico que se refere normalmente a ensinamentos não legais dos rabinos da era talmúdica. 89 WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.20. W
  • 28. d Y d levado para o exílio. Um tempo para matar no Egito e um tempo para a libertação do Egito”.90 No que se refere à frase que diz que há “tempo para matar, e tempo para curar” (v.3a), devemos dar-lhe uma explicação prévia. O Qöheºlet não estava querendo defender com estas palavras o assassinato premeditado.91 Talvez, ele © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 esteja se referindo aqui a situações de matanças legítimas, por mais absurdo que isso nos pareça. Tais situações poderiam ser verificadas, por exemplo, em contextos de guerra, nos casos de vingança dos vingadores do sangue, nas ocasiões de pena de morte, ou, até mesmo, em situações de autodefesa.92 Se este for o caso, então, em Qöheºlet 3.3 nós saímos da “zona determinista” de Qöheºlet 3.1,2 e entramos no “perímetro do livre-arbítrio”. Explico: embora esteja determinado sobre todos os nascituros que eles devem cumprir certo período de gestação e que eles também deverão morrer, não está de igual modo determinado que um soldado irá necessariamente matar alguém em uma guerra ou que ele deverá matar alguém com o intuito de se autodefender. O soldado pode simplesmente se recusar a matar alguém por sua livre escolha. Um comentário lingüístico judaico sobre a Bíblia, chamado em hebraico Michlol Yofi, e escrito pelo Rav David Kimchi, o Radak (Séculos XII/XIII), explica o verso 3a dizendo que o “tempo para matar” é o tempo para a execução legal de criminosos e o “tempo para curar” é o tempo de investigação para uma possível absolvição do suspeito.93 Na segunda parte do verso três, a expressão “tempo para destruir, e tempo para construir” (v.3b) é interpretada pelo Midrash como um tempo para destruir pela guerra e construir na paz.94 No verso quatro, os dois pares de situações envolvem emoções humanas, primeiro as particulares (chorar/rir) e, depois, as públicas (lamentar/dançar).95 A 90 MANNS, F. Le Targum de Qohelet – Manuscrit Urbinati 1: Traduction et commentaire. [Studium Biblicum Franciscanum]. Jerusalem, Liber Annuus, Nº 42,1992, p.152. 91 LIOY, Dan T. The Divine Sabotage: An Exegetical and Theological Study of Ecclesiastes 3. [Article]. Vol.5. South Africa, South African Theological Seminary, 2008, p.118. 92 CHAMPLIN, R. N. O Antigo Testamento Interpretado: versículo por versículo. [Vol. 4 | Salmos – Cantares]. São Paulo, Editora Hagnos, 2001, p.2713. 93 WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.20. 94 Idem, Ibidem, p.21. 95 EATON, Michael A. CARR, G. Lloyd. Eclesiastes e Cantares: introdução e comentário, pp.86,87. W
  • 29. d Y d frase “tempo para chorar e tempo para rir” (4a) é interpretada pelo Lekach Tov96 assim: “chorar pela destruição do Templo em Tishá BeAv [9 de Av] e rir pela redenção de Israel”.97 Já a frase seguinte, “tempo de se lamentar e tempo de dançar” (v.4b) é compreendida pelo Rabi David Altschuller (Séc. XVIII), em seu Metsudat David (comentários sobre a Bíblia) como uma referência ao tempo de © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 luto pelos mortos e ao tempo de dançar em festas de casamento.98 Os dois pares de situações do verso cinco parecem descrever relacionamentos humanos de amizade e inimizade.99 Todavia, a primeira parte, do verso, “tempo para lançar pedras, e tempo de amontoar pedras” (v.5a) tem recebido quatro interpretações principais, as quais mencionamos abaixo: (i) O Targum aramaico de Eclesiastes via, aqui, uma referência a espalhar pedras num edifício velho, preparando-se para edificar-se um prédio novo; esta opinião era defendida, também, por Ibn Ezra. (ii) Outros viam, aqui, uma referência ao hábito de espalhar pedras nos campos, a fim de torná-los improdutivos (cf. 2 Rs 3.19,25; Is 5.2). (iii) Plumptre via, aqui, “uma velha prática judaica... de atirar pedras, ou terra, no túmulo, num enterro”, na primeira frase [tempo para lançar pedras], e a preparação para construir uma casa, na segunda [tempo de amontoar pedras]. (iv) Eruditos mais recentes têm visto uma referência de ordem sexual seguindo a interpretação do Midrash.100 Já a segunda parte do verso, “tempo para abraçar e tempo para afastar-se de abraçar” (v.5b), é interpretada pelo Targum com conotações sexuais. Segundo o Targum, o texto está se referindo a “um tempo escolhido para abraçar uma mulher e um tempo escolhido para evitar abraçá-la no período de sete dias de luto”.101 96 Também conhecido como Pessikta Zutrata, um trabalho midráshico de Rabi Tovia (ben Eliezer) Ha Gadol (1036-1108) sobre vários livros da Bíblia Hebraica, incluindo o livro de Qohélet, sendo este publicado em 1908. (Cf. WASSERMAN. Eclesiastes, p.120). 97 WASSERMAN, Adolpho. Op.Cit., p.21. Os acréscimos entre colchetes são meus. 98 Idem, Ibidem, p.21. 99 EATON, Michael A. CARR, G. Lloyd. Eclesiastes e Cantares: introdução e comentário, p.87. 100 Idem, Ibidem, p.87. Os acréscimos entre colchetes são meus. 101 MANNS, F. Le Targum de Qohelet – Manuscrit Urbinati 1: Traduction et commentaire, p.153. W
  • 30. d Y d Contudo, a meu ver, todo o versículo cinco descreve, na verdade, um paralelismo de ideias cruzadas, no qual as mesmas ideias se repetem, mas com termos distintos. Em outras palavras, o “tempo para lançar pedras” e o “tempo para afastar-se de abraçar” são correspondentes e descrevem relações de inimizade. E, por outro lado, o “tempo de amontoar pedras” e o “tempo para © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 abraçar” também possuem correspondência, mas descrevem relações de amizade. Esse paralelismo de ideias cruzadas pode ser exemplificado pelo quadro abaixo: “tempo para lançar pedras e tempo de amontoar pedras” (v.5a) A B A B “tempo para abraçar e tempo para afastar-se de abraçar” (v.5b) O verso seis, que diz que há “tempo para buscar, e tempo para perder; tempo para guardar, e tempo para lançar” (v.6) é interpretado por Rashi a partir da perspectiva da liberdade humana. Rashi lê assim esse verso: “Um tempo para buscar os espalhados de Israel e um tempo para perdê-los no exílio. Guardar quando Israel cumpre a vontade de D’us, e jogar fora quando Israel age contra a vontade de D’us”.102 Então, neste verso, a capacidade que o homem tem tanto de cumprir quanto de descumprir a vontade de Deus, evidencia a sua liberdade de vontade e de ação em relação à vontade de Deus. Portanto, a partir da interpretação que Rashi dá ao verso seis, verificamos que na “queda de braços” entre o determinismo e a liberdade humana, a liberdade humana se sagrou vencedora. Logo, tendo em mente essas observações, podemos dizer que o homem é livre no que diz respeito à livre escolha de suas ações. Quanto ao verso sete, que diz que há um “tempo para rasgar, e tempo para costurar; tempo para calar, e tempo para falar” (v.7), Saadia Gaon103 (892-942) interpreta a primeira parte deste verso, “tempo para rasgar, e tempo para 102 WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.21. Os itálicos são meus. 103 Esta é a forma abreviada de Rabi Saadia ben Yossef Gaon. W
  • 31. d Y d costurar” (v.7a) com estas palavras: “rasgar as roupas em luto pelos mortos e costurar as roupas para as festas de casamento”.104 Tais ações antitéticas de “rasgar” e “costurar” as roupas pressupõem, segundo penso, ações humanas livres, pois, nas situações de luto e de casamento, os atos de rasgar e costurar, embora possam ser condicionados culturalmente pela sociedade na qual se vive, © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 constituem-se, porém, em última análise, em atos livres e autônomos por parte daqueles que os praticam ou deixam de praticá-los. Já a segunda parte do verso, “tempo para calar, e tempo para falar” (v.7b) pode ser interpretada pelo Talmude, no Tratado Berachot 6b, assim: Disse Rav Papa: A recompensa por ir à casa do enlutado – provém do silêncio, pois é o meio principal de expressar apoio e confortar o enlutado. (...) Disse Rav Ashi: A recompensa por comparecer a um casamento – provém das palavras que são ditas aos noivos.105 Aqui, devemos voltar a nossa atenção primeiramente para a frase “tempo de calar, e tempo de falar” (v.7b). Acredito que esta frase exemplifique, melhor do que qualquer outra, a liberdade de que gozamos em nossa existência humana. Digo isso porque, o próprio Tanakh, em outras situações, fala, por exemplo, sobre o perigo de “estar em silêncio” quando se deve falar e, por outro lado, o perigo de “falar” quando se deveria estar em silêncio. Davi, em um Salmo atribuído a ele, faz o seguinte lamento: “Com o silêncio fiquei como mudo; calava-me mesmo acerca do bem; mas a minha dor se agravou” (Sl 39.2). Vemos aqui que Davi, no momento em que deveria falar sobre o bem, permanece, contudo, calado, valendo-se, portanto, da liberdade que tem de ficar em silêncio. Além disso, lemos também que “como maçãs de ouro em salvas de prata, assim é a palavra dita a seu tempo” (Pv 25.21).106 Aqui, o texto sagrado enaltece aquele que sabe falar no momento apropriado, o que nos leva a pensar, por outro lado, que é igualmente possível alguém falar mesmo quando a ocasião não é 104 WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.21. 105 ENDE, Shamai. (Ed.). Talmud Bavli. [Massechet Berachot]. Vol.1. São Paulo, Editora Lubavitch e Yeshivá Tomchei Tmimim Lubavitch, 2010, pp.49,51. Os itálicos são meus. 106 Estas duas citações bíblicas foram extraídas de: ALMEIDA, João Ferreira de. Bíblia Sagrada. (Almeida, Revista e Corrigida). Rio de Janeiro, Imprensa Bíblica Brasileira, 1991. W
  • 32. d Y d conveniente para isso. Em outras palavras, há muitos que “falam pelos cotovelos” no “tempo para calar” qoheletiano e há também muitos que mantém um “silêncio ensurdecedor”, por exemplo, diante da injustiça, quando, na verdade, deveriam gritar a plenos pulmões contra ela. Além disso, note-se que o Tratado Berachot 6b, que acabamos de citar, © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 fala ainda sobre as “recompensas” que existem tanto para aqueles que se mantêm em silêncio na casa do enlutado, quanto para aqueles que falam boas palavras aos noivos em um casamento. Ora, se há uma recompensa, deve-se pensar conseqüentemente que há também uma boa ação livre que tenha sido executada e que, portanto, merece ser justamente retribuída por tal ato. Finalmente, o último verso desta primeira subperícope de Qöheºlet diz que há “tempo para amar, e tempo para odiar; tempo de guerra, e tempo de paz” (v.8). Sobre este verso, o Rabi David Altschuller, em seu já citado Metsudat David (comentários sobre a Bíblia) declarou que “pode-se amar algo hoje e detestá-lo amanhã. Há tempos em que uma nação entra em guerra com seu vizinho e outros tempos em que ela busca conviver com esse vizinho”.107 Essas declarações do Qöheºlet acrescidas do comentário de Altschuller, mais uma vez me fazem pensar na liberdade humana. Ou seja, se o ser humano não fosse livre para poder escolher entre amar e odiar e entre guerrear e viver em paz, então qual o propósito de textos como Lv 19.18, que diz: “Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo: eu sou o Senhor”?108 Ora, estas ordens dadas ao povo de Israel para que este não se vingue, não se ire e ame o seu próximo, só podem fazer sentido, se Israel tiver real liberdade para cumprir ou não tais ordens. Sendo assim, não há como entender as frases: “tempo para amar, e tempo para odiar; tempo de guerra, e tempo de paz” (v.8) a não ser que elas sejam vistas sob a ótica da liberdade humana. Caso contrário, se o homem não é livre para praticar ou deixar de praticar tais atos, então, por que os mandamentos de Lv 19.18, por exemplo, teriam sido ordenados? Tal pensamento não faria o menor sentido. 107 WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.21. 108 ALMEIDA, João Ferreira de. Bíblia Sagrada. (Almeida, Revista e Corrigida). Rio de Janeiro, Imprensa Bíblica Brasileira, 1991. W
  • 33. d Y d De uma forma geral, na análise que fizemos de Qöheºlet 3.1-8 percebemos que, enquanto o trecho de Qöheºlet 3.1,2 possui um tom mais determinista (mencionando, por exemplo, o determinismo biológico e o determinismo agrário), o trecho de Qöheºlet 3.3-8, por outro lado, acaba enfatizando mais a © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 liberdade humana. Neste momento de transição entre Qöheºlet 3.1-8 e Qöheºlet 3.9-15, cabe citar aqui as perspicazes palavras de Michael Eaton: Os primeiros oito versículos declaram o controle providencial da vida, porém, com pouca interpretação ou comentário. Não se mencionou o Deus que origina e controla este programa de “tempos”. Não se explicou, tampouco, a relevância que isto tem na vida diária. Os versículos 9-15 retificam essa dupla omissão.109 Ora, depois dessas importantes observações sobre o trecho de Qöheºlet 3.1-8, que, como vimos, possui caráter mais descritivo, partamos então agora para a análise de Qöheºlet 3.9-15, que, reiteramos, busca explicar aquilo que foi escrito anteriormente em Qöheºlet 3.1-8. 3.2. Qöheºlet 3.9-15 öheº 9 Que proveito (tem) o trabalhador no que ele trabalha? 10 Eu tenho visto 11 a tarefa que deu Deus aos filhos do homem para estarem ocupados nela. Tudo fez belo em seu tempo; Também o mundo deu no coração deles, de tal modo que não descubra o homem a obra que fez Deus desde o princípio e até o fim. 12 Eu sei que não há nada melhor para eles que se alegrarem e fazerem (o) bem em sua vida. 13 E também todo homem, que coma e beba e veja (o) bem em 14 todo seu trabalho. Isso (é) um dom de Deus. Eu sei que tudo (o) que fez Deus, ele (isso) será para sempre. Sobre ele (isso) nada (há) para acrescentar e dele (disso) nada (há) para tirar, e Deus (o) fez (para) que temam em face dele. 15 O que foi, ele já (é); e (o) que será, já foi; E Deus buscará o perseguido. 109 EATON, Michael A. CARR, G. Lloyd. Eclesiastes e Cantares: introdução e comentário, p.87. W
  • 34. d Y d A segunda parte do texto começa com uma importante pergunta: “Que proveito (tem) o trabalhador no que ele trabalha?” (v.9).110 Segundo James Crenshaw, a própria forma do poema sobre os tempos em Qöheºlet 3.2-8 já oferece uma resposta a esta questão. E a resposta é: “uma coisa cancela a outra”.111 Parece, segundo Kidner, que nós estamos dançando “ao som de uma © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 música, ou de muitas delas, que não foram compostas por nós”.112 Como disse Líndez, esse tom cético de Qöheºlet o caracteriza e o distingue radicalmente de todos os sábios que o precederam.113 Aliás, o tom pessimista deste verso é questionado tanto por Ibn Ezra quanto pelo Rabi Yaacov ben Yaacov Moshe de Lissa (1760-1832). Ibn Ezra pergunta: “Uma vez que tudo é governado pelo tempo, sobre o qual o homem não tem nenhum controle, que esperança existe para ele em reter o domínio sobre seus esforços?”.114 E o Rabi Yaacov ben Yaacov Moshé de Lissa, em seus comentários sobre o Qöheºlet intitulados Taalumot Chochmá, de forma contundente, faz os seguintes questionamentos sobre a predestinação e a liberdade humana: “Se tudo está predestinado por D’us, independente da ação humana, seria próprio questionar o que o homem espera alcançar por seu aparente desperdício em labutar estudando a Torá e praticando as mitsvót”.115 De uma forma geral, verificamos que o Qöheºlet 3.9 acaba servindo como introdução a Qöheºlet 3.10-15, versículos estes que, juntos, fornecem “a resposta teológica de Qohélet à sua grande inquietude como sábio e 110 Longman observa que a palavra yyitrôn, “proveito”, é uma palavra-chave em Eclesiastes, onde aparece nove vezes. Contudo, estranhamente, ela não ocorre em nenhuma outra parte no Antigo Testamento. Ao que tudo indica, o termo deriva do verbo ytr, “sobrar”, “restar”. (Cf. LONGMAN III, Tremper. The Book of Ecclesiastes. [The New International Commentary on the Old Testament]. Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans Publishing Company,1998, p.65). Os Gallazzi, ao comentarem os versos nove e dez, observam: “Tudo parece determinado, escrito, decidido. A vida parece ser um jogo com cartas marcadas. Nem o ‘amal (v.9), o trabalho escravo imposto pelo Mercado, nem o ‘inian (v.10), a fadiga incompreensível imposta por Deus, são de algum “proveito” para o trabalhador (…)”. (Cf. GALLAZZI, Ana Maria Rizzante GALLAZZI, Sandro. La Prueba de los Ojos, La Prueba de la Casa, La Prueba del Sepulcro: una clave de lectura del libro de Qohélet. Quito, Ribla [Revista de Interpretacion Bíblica Latino-Americana], Nº 14, 1993, p.10). 111 CRENSHAW, James L. Ecclesiastes. [The Old Testament Library]. Philadelphia, The Westminster Press, 1987, p.96. 112 KIDNER, Derek. A Mensagem de Eclesiastes. [Série: A Bíblia Fala Hoje]. São Paulo, ABU Editora S/C, 1998, p.26. 113 LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet, p.225. 114 WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.21. 115 Idem, Ibidem, p.21. W
  • 35. d Y d como crente”.116 Aliás, é digno de nota que no pequeno trecho de Qöheºlet 3.10- 15, o nome de Deus, ~yhi²l{a/ (´élöhîm), aparece seis vezes (3.10,11,13,14 [2x],15). Tal constatação nos faz concluir que esse pequeno trecho de Qöheºlet possui “uma das reflexões teológicas mais densas” de todo o livro.117 © Carlos Augusto Vailatti ● Qöheºlet 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio ● 2011 No que diz respeito aos dizeres do verso dez: “Eu tenho visto a tarefa que deu Deus aos filhos do homem para estarem ocupados nela” (v.10), eles são interpretados por Moshe Alshich de forma um tanto quanto confusa, pois, em seu comentário, Alshich tenta harmonizar, porém, sem sucesso, o determinismo divino e astrológico com a liberdade humana. Eis as suas palavras: Tudo é feito de acordo com o plano perfeito de D’us. Ele estabelece que o nascimento de cada homem se ajuste perfeitamente com o signo sob o qual ele nasceu, de modo que cada ação de sua parte não contradiga sua vida, conforme previsto pelas estrelas. Ele pode fazer coisas por seu livre-arbítrio, mas isso concorrerá com seu destino conforme determinado pelos sinais nos céus.118 Ora, se, segundo Alshich, o destino do homem já foi “determinado pelos sinais nos céus”, então, não sobra o mínimo espaço para a liberdade humana atuar. Em outras palavras, de acordo com este sábio, a liberdade humana não passa de uma mera escrava nas mãos do supremo e implacável senhor zodiacal. Já o teólogo cristão, R. N. Champlin, diferentemente de Alshich, denuncia o determinismo absoluto contido no verso dez e faz o seguinte comentário: Esta (...) declaração reitera o Deus do autor, a Causa Única, mas ignora completamente que outros fatores operam no mundo – as causas secundárias, que se originam entre os homens, nas comunidades, na natureza, na lei natural e até no caos.119 116 LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet, p.225. 117 Idem, Ibidem, p.226. 118 WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.22. 119 CHAMPLIN, R. N. O Antigo Testamento Interpretado: versículo por versículo. [Vol. 4 | Salmos – Cantares]. São Paulo, Editora Hagnos, 2001, p.2714. W