O documento resume um livro sobre animais abandonados e a experiência da autora como protetora de animais por mais de 20 anos. Ele conta histórias de resgates e encontros com cães e gatos, além de abordar a situação dos animais abandonados no Brasil e a compaixão pelos animais pregada pelo Judaísmo há 3000 anos. Uma das histórias narra o reencontro surpreendente da autora com uma cadela que havia doado meses antes em outra cidade.
Cães & gatos encontro marcado (maria augusta de toledo bergerman)
1.
2. O livro fala sobre animais abandonados e reúne diversas crônicas que
relatam resgates, encontros e desencontros. O livro conta também
minha experiência como protetora independente por mais de 20 anos e
da doação de mais de 2.200 animais de rua para várias cidades do
Brasil e também para Portugal e Espanha.
Algumas das histórias são narradas pelos próprios animais e outras
tratam de sua situação de abandono no Brasil.
As ilustrações são de Marcelo Calenda.
Cães & Gatos: Encontro Marcado inclui a crônica “Judaísmo e os
animais” que procura mostrar como, há cerca de 3000 anos, já se falava
de compaixão por esses seres indefesos e sobre bem-estar animal.
5. Animais e Justiça Social: um outro olhar
sobre os animais
Esse livro tem como tema os animais e também Justiça Social.
Os animais são as personagens centrais de todas as crônicas, mas não
qualquer animal, e sim aquele que não teve nenhum privilégio, aquele que
foi abandonado pela sociedade.
Enquanto algumas pessoas cuidam com responsabilidade de seus
animais de estimação, outras não lhes oferecem uma vida digna e, na
primeira dificuldade, os descartam como se fossem objetos. É para esses
seres rejeitados, na sua grande maioria vira-latas, que esse livro é dedicado
e todas as histórias refletem minha experiência como protetora
independente por mais de vinte anos.
Os animais foram domesticados para cumprir vários propósitos como
segurança, caça e, no caso dos gatos, proteção dos alimentos contra
predadores. Entretanto, no momento em que eles saíram de seu habitat e
começaram a servir ao homem, não conseguiram mais sobreviver sozinhos
e, por séculos, eles dependem do ser humano para suprir suas necessidades
básicas.
O homem porém, falhou com esses seres inocentes, usou-os sem
nenhuma gratidão e sem oferecer nada em troca de sua dedicação e
fidelidade. Por isso, esse livro fala de Justiça Social, pois ela inclui também
os animais.
As histórias não procuram humanizar os animais, pois não cabe a eles
suprir desejos, necessidades ou carências dos seres humanos. Elas não
fazem apologia de um tipo de amor que substitua a convivência entre os
homens, elas não falam de exclusão e sim de inclusão. Aqui não se tece
juízos de valor e nem se considera que a ajuda dada aos animais seja
superior ou inferior à ajuda que devemos dar a nosso próximo.
Esse livro pretende apenas apontar para uma injustiça histórica e para a
necessidade de corrigirmos esse erro ao sugerir que os animais
abandonados têm direito a uma vida digna.
Em suma, ele propõe, um outro olhar na relação entre humanos e
animais, o mesmo olhar de amor e respeito com que eles foram criados, um
olhar de compaixão que foi formulado há cerca de 3.000 anos pela Torá,
6. Bíblia Judaica.
O Judaísmo ensina que somos proibidos de ser cruéis para com os
animais e que devemos tratá-los com compaixão, pois eles são parte da
criação divina e as pessoas têm responsabilidades especiais para com eles.
Este conceito está resumido no lema tsa’ar ba’alei chayim: não podemos
causar dor a nenhuma criatura viva.
O Judaísmo propõe também uma prática chamada Tikun Olam, que quer
dizer reparar o mundo e é um modo de agir visando consertar os defeitos
de nosso planeta. Uma pessoa faz Tikun Olam quando encontra uma
maneira, sua própria maneira de realizar a tarefa de tornar o mundo por
Ele criado em um lugar melhor para todos os seres vivos e assim, ela se
torna parceira de Deus em Sua criação.
Deus gostou de Sua criação, abençoou-a e deixou-nos a incumbência de
aperfeiçoar Sua obra, como foi dito na Ética dos Pais: “O dia é curto e a
tarefa é grande. Não cabe a você completar o trabalho, mas sim envolver-se
nele, mas você também não está livre para desistir dele.” Pirkei Avot - Ética
dos Pais (2:15,16)
Por isso, nós precisamos agir sempre que encontramos alguma injustiça
que precisa ser corrigida:
“Quando os nossos estudos excedem as nossas ações, somos como árvores cujos ramos são
muitos, mas as raízes são poucas: o vento vem e nos arranca. Quando nossas ações excedem os
nossos estudos, somos como árvores cujos ramos são poucos, mas nossas raízes são muitas:
assim, mesmo que todos os ventos do mundo venham e soprem contra elas, serão incapazes de
movê-las.” Pirkêi Avot – Ética dos Pais (3:22)
Muitas das histórias desse livro narram “coincidências”, animais que
foram salvos graças a situações que se sucederam e criaram conexões
perfeitas. O Judaísmo, por seu lado, nos ensina que não existem
coincidências, tudo está perfeitamente conectado, como descrito na
história da folha e da formiga atribuída ao Baal Shem Tov, fundador do
movimento Chassídico:
Baal Shem Tov disse que quando um pedaço de palha cai de um vagão,
isso foi decretado pelo Céu. Da mesma forma, quando uma folha cai de uma
árvore, é porque o Céu decretou que essa folha especial, neste momento
particular, deveria cair nesse determinado ponto. Uma vez Baal Shem Tov
mostrou aos seus discípulos uma folha caindo no chão e disse-lhes para
buscá-la. Eles o fizeram e viram que uma formiga estava debaixo dela. O
mestre então explicou que a formiga estava sofrendo muito devido ao calor
e que a folha tinha caído para dar-lhe sombra.
7. Mais do que compaixão, o olhar proposto nesse livro assinala que os
animais são seres sencientes, ou seja, sentem dor, medo e diversas outras
emoções e se diferenciam dos humanos apenas no aspecto racional e na
comunicação verbal e, uma vez que eles são seres que amam e são fiéis a
seus tutores, têm direito a uma vida digna e merecem ser tratados com
respeito. Porque são seres que não podem se defender sozinhos, nós temos
o dever de amenizar seu sofrimento e tentar corrigir a injustiça milenar a
que eles são submetidos.
8. Encontro marcado com Pintada
Pintada sempre foi uma cadela muito especial, única com relação à sua
aparência e, agora percebo, também sua boa estrela.
Seu corpo é todo malhado, preto e branco, como as pinceladas de um
artista impressionista. Seu rosto, porém é marrom, como se pertencesse a
outro corpo ou então tivessem esquecido de finalizá-lo, pois faltam as
pinceladas pretas e brancas. Quando você a olha pela segunda vez, já não
tem a mesma impressão, você a acha bonita, de tão meiga e serena que ela
é. É isso, ela é principalmente serena como se soubesse que no final tudo
dará certo e as peças do quebra-cabeça, por mais estranhas e inusitadas
que pareçam, irão se encaixar.
Perplexidade é o que sinto até agora. Passadas muitas horas do ocorrido,
eu ainda não consegui digerir todas as informações.
Pintada surgiu certo dia em frente de casa, ainda filhote, muito magra e
com sarna. Depois de medicada e bem alimentada ficou aguardando por um
dono que veio buscá-la muitos meses depois. Neste dia, eu a vi partir
assustada, sem entender o que estava acontecendo e nos deixando com
aquela sensação que sempre retorna nesses momentos: não podemos ficar
com todos os animais que resgatamos e, contra nossa vontade, precisamos
deixá-los partir sem a plena certeza de que irão ficar bem. Só nos resta
torcer por eles e esperar sempre pelo melhor.
Depois disso, tive notícias frequentes da Pintada e informaram que ela
estava bem e se acostumando ao novo lar. Depois de alguns meses, ela já
parecia estar bem adaptada.
Hoje, depois de quase um ano da doação, decidi ir ao supermercado
numa cidade próxima, lugar onde nunca tinha estado e aonde
provavelmente não retornarei, para comprar um produto, não tão
importante, que estava em oferta. Por que hoje ou por que decidi fazer algo
que nunca fizera antes?
Na porta de entrada do supermercado, com aquele ar desolado que só os
animais abandonados têm, eu vi a Pintada. Inicialmente, não acreditei em
meus olhos e pronunciei seu nome mais por susto que por constatação. Um
grito de alívio foi sua resposta, quase um choro, um misto de surpresa e
esperança.
Sim, era ela, com uma leve cicatriz perto do focinho, castrada e
9. principalmente com aquela pelagem inconfundível.
Como ela fora parar nesse lugar? Como nós fomos parar nesse lugar?
Depois do choque inicial, levei Pintada para o carro e ela foi se
aninhando no banco traseiro e começou a cochilar quase que
instantaneamente. Ela parecia estar finalmente relaxando, depois de muito
tempo de tensão e sofrimento.
Será que ela fora abandonada ou estava tentando voltar para o local em
que fora feliz? Como ela sabia que tinha que me esperar àquela hora,
naquele local? Que força poderosa é essa que nos reuniu?
Tínhamos um encontro marcado para aquele dia e para lá fomos
transportados, quase como marionetes.
Eu não tenho essas respostas.
A única certeza que tenho é que Pintada é uma cachorrinha que tem
muita sorte. Ou será que a sorte é nossa por conhecê-la?
E o produto que eu fui procurar no supermercado? Vocês podem
acreditar, já estava esgotado.
10. Maria Chiquinha, um grande achado
Ela vinha ziguezagueando pela avenida, totalmente desnorteada. Os
carros passavam ao seu lado e ela seguia em frente, trêmula, desengonçada,
em pânico total.
Quando tentei pegá-la, ela quase me mordeu e eu tive que jogar meu
casaco para conseguir segurá-la. Nesta hora, vi uma bicheira imensa em
uma das patas, muitos nós em seus pelos longos e encardidos e um
chumaço que cobria todo seu rosto. Quando finalmente consegui ver seus
olhos, entendi tudo, ela era cega e não sabia por onde estava caminhando,
só pressentia o perigo iminente.
Fiquei chocada por vários dias, pois coloquei-me em seu lugar e consegui
sentir seu desespero: ela sabia que tinha que continuar procurando um
abrigo, um local seguro, mas não tinha a menor ideia de qual direção tomar.
Até hoje recordo esse momento, não deve existir desespero maior do que
aquele sentido por um cego vagando sozinho em terreno desconhecido.
E também não pode haver maior covardia do que a cometida por pessoas
que abandonam animais cegos à sua própria sorte.
Nunca pensei em doar a Maria Chiquinha, não tive coragem.
Tentei fazer com que ela se acostumasse a um local tranquilo, seguro e
bem delimitado. No início, ela só ficava embaixo de um armário e lá eu
colocava sua comida e água. Ela foi saindo aos poucos e esse processo foi
longo e com muitos retrocessos. Eu não podia forçar nada, uma
aproximação, um afago, e ela se fechava novamente e voltava para seu
esconderijo.
Aos poucos, ela se acostumou e, algum tempo depois, começou a relaxar.
Mas, tranquila não é bem a palavra para descrevê-la, pois ela está sempre
atenta, desconfiada e pronta para se defender de algum perigo que só ela
pressente ou fareja. Hoje percebo que Chiquinha confia em mim e se
entrega às vezes com prazer e outras com resignação às minhas exageradas
demonstrações de carinho.
Maria Chiquinha está feliz, mas seu espaço é permanentemente invadido:
ela fica na lavanderia onde também abrigo os filhotes resgatados que
aguardam adoção.
No começo, isso me incomodava muito, pois achava que não estava
conseguindo dar a ela a paz que ela merecia.
11. Aos poucos percebi que esta é sua missão, educar os filhotes. E ela sabe
muito bem como fazê-lo: é enérgica, não gosta de bagunça, sujeira ou
barulho fora de hora. Todo mundo aprende a fazer suas necessidades no
lugar certo, aprende a hora certa para cada coisa e, principalmente, a hora
de dormir. É maravilhoso observar essa menina tão pequena e frágil dando
bronca em cachorros duas ou três vezes maiores que ela e eles
obedecendo!
Várias pessoas já me elogiaram, pois os filhotes que doo são muito
educados, tranquilos, asseados e obedientes.
Claro, com uma mãezinha tão rigorosa e competente, não poderia ser de
outra maneira.
12. Raposa
A Raposa morreu!
Ninguém parecia acreditar no que estava acontecendo. Tínhamos tanta
certeza que ela viveria muitos anos ainda.
Raposa iria sobreviver a todos os outros cachorros e morreria bem
velhinha. Eu também estava certa disso.
Estou falando dos cachorros do condomínio que moram nas guaritas há
anos. Eles são cachorros especiais que conquistaram seu espaço depois de
muita luta e persistência. Muitos passam por lá todos os dias, mas só alguns
permanecem e todos os residentes têm algo em comum: persistência,
docilidade e esperteza.
Raposa, com certeza, nasceu no mato e, de algum modo, conseguiu
sobreviver.
Certa manhã, ela foi se aproximando e esse processo foi muito, muito
longo. Foi chegando bem devagar, desconfiada, medrosa e arisca.
Meses depois já vinha comer. Dormir na casinha, porém, nem pensar! O
mato era bem mais seguro.
Um dia, ela chegou de vez, silenciosa e suavemente. Chegou e ficou.
Logo depois, levei-a para castrar. Ela voltou assustada e, ao contrário de
outros cachorros, teve complicações sérias. Uma manhã, percebi que ela
estava muito agitada e, ao me aproximar, vi suas entranhas começando a
sair.
Após horas de perseguição, ela foi novamente internada. Nova cirurgia.
Mais umas semanas e Raposa volta triunfante para a guarita.
Ainda ouço todos felizes e brincando:
- Raposa não morre mais! Ela deve ter alma de gato: mais umas seis
vidas, pelo menos ...
Três anos depois, novamente estranhei sua ausência: ela esperava minha
visita diária com a maior assiduidade. Sabia a hora exata da minha chegada,
portanto, algo errado acontecera. Depois de três dias de procura, ela
apareceu, só que dessa vez, Raposa veio se arrastando até a guarita com a
bacia fraturada e sem seu lindo e volumoso rabo.
- Onde já se viu uma Raposa cotó?
Novamente ela foi internada mas, desta vez, por um longo período.
Seu retorno foi ainda mais comemorado:
14. Rita
Consegui doar uma cadela adulta e vira-lata, uma combinação explosiva
e que dificulta as doações.
Rita porém, é pequena e bonita, com pelagem de Husky e tamanho de
Poodle e tem aquele encanto e beleza que só os vira-latas possuem: as
muitas misturas originam aparências totalmente inusitadas, algumas delas
incomparáveis. Se você tem um vira-lata, sabe do que eu estou falando, ele
com certeza é único e especial, não existe nenhum outro cachorro que se
pareça com ele.
Logo apareceu uma família querendo adotar Rita.
Mas, não sei se é porque esperavam por um cachorro de raça, só sei que
a devolveram após alguns dias com milhares de justificativas, todas elas
banais.
Lá fui eu buscar a Rita de volta.
Para chegar à casa da família é preciso atravessar toda a cidade, uma
pequena cidade do interior. Cruzei ruas repletas de animais abandonados,
de crianças pedindo esmola e adultos sem esperança. Você vai observando
em cada quarteirão três ou quatro cães famintos, mutilados por
atropelamentos, cobertos de sarna e cruzando. Em breve teremos muitos
mais perambulando por aí e sofrendo.
Pois bem, peguei a Rita com um nó na garganta e saí contando os
cachorros e homens abandonados que eu via pelo caminho de volta, com
uma angústia que crescia a cada quarteirão, enquanto me perguntava qual
seria o sentido desta doação mal sucedida e desta viagem. Por que eu tivera
que ir até lá e ver tudo aquilo? Qual seria a explicação para o sofrimento de
todos esses animais racionais ou não?
O auge da minha tristeza foi quando vi, no centro da cidade, um dálmata
em exposição numa casa de rações. Ele estava em uma gaiola muito
pequena, sem comida ou água e, como já tinha uns três meses de idade,
ficava com as patas para fora das grades por absoluta falta de espaço. Por
um breve momento, ele tentou se levantar, mas não teve sucesso. Enquanto
eu me distanciava, podia ver seus esforços inúteis, sua impotência e o
desânimo que ia tomando conta dele e de tudo que o cercava.
Cheguei em casa arrasada, só querendo compreender: qual é a
explicação para tudo isso?
16. O Observador - história do cachorro
Babão
Fomos recolhidos por uma senhora sensibilizada com nossa situação de
animais abandonados.
No começo éramos poucos, bem alimentados, usufruindo de bastante
espaço e felizes. Muitos eram filhotes eu, porém, já cheguei velho, fui
abandonado depois de adulto.
Após certo tempo, já éramos muitos para dividir o quintal da casa e a
solução encontrada foi a de nos deixar presos a correntes ou em
minúsculos cercados. A comida também passou a ser escassa e a
superpopulação nos tornou irritados, fazendo com que brigássemos muito.
Depois de certo tempo, estávamos divididos em dois grupos: os valentes e
os medrosos; os que batem e os que apanham.
Eu entendo que a querida senhora teve a melhor das intenções, ela não
queria nos ver sofrendo. Na minha modesta opinião, os culpados por essa
situação são as pessoas que não cuidam de seus animais de estimação,
aqueles que os abandonam por qualquer motivo ou sem motivo, os que não
castram seus bichos, deixando nascer filhotes indesejados que, por sua vez,
também serão abandonados.
Só sei que para mim teve início um período muito difícil, pois além de
tudo, eu fui espancado ainda jovem e hoje não consigo mais movimentar
meus maxilares, nem para me defender, comer ou mesmo beber. Eu me
babo todo, pois a ração e a água precisam escorrer pela minha garganta
para serem ingeridas e por isso me chamam Babão.
Assim, só me resta ficar no meu posto avançado, observando o
sofrimento dos meus irmãos e as ações dos humanos.
Certo dia, chegou a Vigilância Sanitária e deu prazo de uma semana para
mudança de local ou seríamos todos mortos. Pela agitação das pessoas
percebemos que a situação era mesmo grave. Ficamos também muito
agitados, esperando pelo pior, mas num domingo, chegaram outras
senhoras com ajudantes e um caminhão e fomos todos empilhados e
fizemos uma longa viagem.
Estamos agora em um sítio. Meus irmãos estão em baias maiores mas,
mesmo assim, ainda brigam muito, porque não estão acostumados a dividir
17. o mesmo espaço. Só vejo um pouco de alegria em seus olhos e rabos
quando sentem o corpo se aquecer com o sol, que aqui é bem generoso.
Eu continuo preso a uma corrente e observando. Estou num ponto
estratégico e tenho visão geral das baias.
As moças que nos resgataram já voltaram várias vezes, para trazer ração,
levar algum doente ao veterinário e, principalmente, para encaminhar os
mais jovens e bonitos para adoção. As branquinhas, mestiças de dálmata,
por exemplo, já foram embora. Sorte delas, além de jovens e lindas eram
também mestiças e já devem ter encontrado um bom lar.
Eu, puro vira-lata, deficiente e ainda por cima velho, ficarei sempre por
aqui, observando as transformações sem ser muito notado: alguns me
olham com piedade, e poucos, se aproximam de mim.
E, já que não vejo muita chance de que as coisas se modifiquem para
mim, gostaria de pelo menos poder alterar a paisagem que sou obrigado a
observar: eu não quero mais ver tanto sofrimento.
- Quero que permaneçam nesse local apenas alguns dos meus irmãos e
que eles não precisem mais brigar por comida ou espaço.
- E, principalmente, não quero mais ver meus irmãos implorando por
pão ou carinho.
Desse modo, com a situação melhorando para nós, eu até poderei me
considerar um observador feliz.
18. Respeito
Já vivenciei esse momento duas vezes.
Uma amiga ligou logo cedo para contar que tinha visto um cachorro na
Rodovia Raposo Tavares, imóvel, ao lado do corpo de outro cachorrinho.
Ela passou apressada e não pode parar, pois tinha um compromisso
importante.
Na hora do almoço ela voltou ao local e o cachorro permanecia no
mesmo lugar, no acostamento da estrada, embaixo de um sol escaldante de
verão. Então, ela me liga desesperada: o cão ainda está lá, o que eu faço?
Como não tinha local para abrigá-lo, eu pedi que ela o resgatasse que eu
encontraria um cantinho pra ele.
O cachorrinho foi provisoriamente para o escritório do meu marido e
está lá até hoje, passados mais de 10 anos.
Nunca tive coragem de doar o Mike. O processo de adoção contém
diversos riscos e eu não tenho coragem de arriscar, principalmente quando
se trata de animais que já sofreram muito.
Há pouco mais de um mês, outra amiga passa por uma rua movimentada
de Carapicuíba e vê um cachorrinho ao lado do corpo sem vida de outro
que fora atropelado.
Ela se desespera, mas segue em frente, pois tinha uma reunião de
trabalho. Anda mais alguns quarteirões, se arrepende e faz a volta para
resgatar o cachorro.
Ele estava muito assustado e mancando de uma pata, provavelmente em
decorrência do mesmo acidente que vitimou seu amigo.
Esse cachorro foi posteriormente doado para uma família muito especial.
Muitas outras vezes, ouvi casos semelhantes relatados por pessoas
conhecidas. O que sempre chamou a atenção de todas elas é o longo tempo,
muitas vezes dias, que os cães permanecem ao lado de seus amigos que
partiram.
O que leva um animal a ficar junto ao corpo de seu companheiro?
Será que ele está prestando uma homenagem? Será que ele está velando,
como nós humanos fazemos, o corpo do amigo que se foi? Será que ele está
pedindo ajuda?
Ou será que os animais permanecem com seus amigos enquanto
aguardam a chegada do anjo da morte?
19. Como eles têm muito mais intuição e sensibilidade do que nós humanos,
talvez seu ato vá além de tudo o que conseguiríamos apreender e eles
saibam que a morte está chegando e o outro precisa de companhia para
essa passagem.
O que mais me surpreende nessa atitude é que ela parece ser tão
racional, incapaz de ser adotada por um animal irracional.
O que também impressiona nesses casos é o respeito demonstrado por
eles ao companheiro que partiu.
O cuidado e carinho são mais fortes do que o perigo que o local
representa ou o incômodo de permanecer horas sob o sol e próximo ao
tráfego de veículos numa rodovia movimentada.
Os animais esquecem o medo, a fome e o cansaço e permanecem imóveis
como se estivessem aguardando algo acontecer.
Numa época em que raros seres humanos demonstram respeito por
qualquer coisa, seja ela viva ou morta, humana ou animal, é de se admirar
que os animais venham nos dar esse exemplo de amor, dignidade e
respeito.
Num mundo carente de gestos nobres, essa atitude emociona e nos faz
refletir.
20. Responsabilidade
Arlindo era um pedreiro que trabalhava e morava em uma obra perto de
casa. Todos os dias, eu o via brincando com seu cãozinho amarelo, um vira-
lata simpático e bem cuidado. Companheiros inseparáveis, ambos pareciam
estar de bem com a vida.
Um dia, notei uma cachorrinha nova com a dupla e, curiosa, fui saber da
novidade.
- Ela também foi abandonada e está se aproximando da obra à procura
de alimento e companhia, disse Arlindo. Bem que eu ficaria com ela, o
problema é que é fêmea e logo ficará prenha e não dá para cuidar de outros
cachorrinhos.
Levei a cachorrinha até o veterinário para ser castrada e uma semana
depois, ela estava de volta, feliz e curtindo seu novo lar.
Fiquei satisfeita também, pois percebi que Arlindo gostava
genuinamente dos animais. Ele não estava preocupado, como a maioria das
pessoas, com a raça de seus cães. Ele os amava do mesmo modo como era
amado. Os cães também não lhe perguntaram sobre sua raça, seu poder
aquisitivo ou sua posição social quando o viram pela primeira vez e
gostaram dele. E ele não precisava exibir seus cães como quem exibe um
carro novo.
Todo final de semana, Arlindo ia para o bar tomar uma cachaça,
encontrar amigos, driblar a solidão.
Naquele sábado não foi diferente, exceto pelo desfecho da noitada: muita
bebida, confusão, discussões, início de briga, apartes, mais confusão.
Arlindo voltou descontrolado para a obra. Pegou um facão e, decidido, o
colocou entre os poucos pertences. Arrumou sua trouxa e, antes de partir
para sua vingança, acordou o ajudante de pedreiro e lhe passou todas as
instruções:
- Cuide dos meus bichinhos. Se eles adoecerem ou precisarem de comida,
entre em contato com a senhora da casa da esquina. Não sei se volto. Por
favor, cuide bem deles.
E Arlindo se foi, deixando, como narrou nosso poeta Manuel Bandeira:
“lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar”.
E partiu para cumprir seu destino.
21.
22. História da Sarita
Sarita foi encontrada já sem forças, ao lado de sua ninhada. Só dois dos
filhotes sobreviveram.
Ela é uma mestiça de Pastor Alemão bastante velha, tem displasia e
muita dificuldade para se locomover.
Da sarna, ela e os filhos já estão curados, restam só algumas falhas no
pelo.
Da fome, também estão todos refeitos, os filhotes já estão até bem
gordinhos.
A dor do abandono, porém, deixou marcas profundas que são visíveis em
seus olhos e em todas suas atitudes.
Os filhos de Sarita serão doados já na próxima semana.
Para Sarita resta apenas: dividir um canil com outros trezentos animais,
onde ela terá poucas chances de sobrevivência,
Ou
Encontrar abrigo em um lar que possua: um quintal que pode até ser
pequeno, apenas um pouco de ração e muito, muito amor para que ela
possa ser feliz no pouco tempo que lhe resta.
Sarita pede desesperadamente sua ajuda.
Uma pessoa maravilhosa respondeu ao apelo de Sarita e a adotou.
Fomos levá-la ao Embu, num final de semana e confesso, fiquei muito
apreensiva. A casa tem um espaço enorme, uma chácara com muitos
animais: outros cães, gatos, porcos, galinhas, patos, marrecos, papagaio, etc.
Como se comportaria uma cadela já idosa, com hábitos adquiridos em
um local desse tipo?
Acompanhei diariamente a evolução do comportamento de Sarita e,
ainda preocupada, decidi comprar tela para delimitar um espaço onde ela
pudesse ter liberdade e, ao mesmo tempo, segurança.
Voltei ao local duas semanas depois e quase não acreditei: Sarita estava
rejuvenescida, o pelo brilhante, a coluna quase reta, apesar da displasia
severa e um brilho no olhar que me emocionou.
Como é possível a um animal com idade avançada se adaptar tão
rapidamente a um ambiente novo e tão carregado de informações?
Ela não só estava solta, como ajudava sua guardiã a cuidar dos outros
animais: cercava os pintinhos para que eles entrassem no seu espaço
23. depois de horas ciscando, latia com autoridade para os porcos, vigiava a
entrada da casa e parecia não ter a menor intenção de sair pelo portão
totalmente aberto.
Sarita encontrara uma ocupação, uma utilidade na velhice e estava
desempenhando seu novo papel com uma vitalidade invejável.
Fiquei emocionada e esperançosa. Com certeza, eu estava num local
abençoado, tendo o privilégio de observar a natureza se desenhando com
todo seu vigor.
Não pude deixar de refletir: como uma pessoa com poucos recursos
consegue administrar um mundo tão harmonioso? Como arruma tempo e
energia para admitir outros seres que poderiam quebrar todo aquele
equilíbrio?
Essa é uma lição para nossas vidas. Somente seres iluminados
conseguem abraçar as grandes causas com naturalidade e imprimir essa
mesma naturalidade à resolução dos seus problemas.
Entendi também que não é preciso delimitar um espaço e sim, dar uma
função: Sarita estava feliz, pois sua vida tinha adquirido significado.
Mais uma vez eu me senti privilegiada por conhecer um ser humano e
um animal totalmente integrados à natureza e à obra divina. Estava
agradecida por poder usufruir esses momentos mágicos, agradecida pela
oportunidade de ter conhecido Sarita e sua guardiã.
Elas são a resposta a um outro mundo, fundado na violência e no
desamor.
24. Solidariedade e os 36 Justos
Conheci Dorvina há vários anos. Foi ela que adotou Sarita, a mestiça de
Pastor que foi covardemente abandonada junto com seus bebês.
Desde nosso primeiro contato por telefone, eu já sabia que estava
conhecendo alguém muito especial, uma boa alma, amante da natureza e
uma pessoa dedicada e incansável, que acolheu uma cachorrinha velha e
com displasia com muito amor e dedicação.
Quando levei Sarita até sua casa, fiquei espantada com a fauna que
habitava o lugar: dificilmente você vê convivendo cães, gatos, porcos,
gansos, patos, marrecos, papagaios e sei lá o que mais. Eram tantas
espécies e todas convivendo tão harmoniosamente e em total liberdade que
o único pensamento que me ocorreu foi: assim devia ser o paraíso bíblico, o
Gan Éden.
O telefonema de Dorvina para me contar a partida da minha afilhada uns
quatro anos depois, foi inesperado e muito triste. Ela disse que Sarita
deitou em seu cobertor, como fazia todas as noites e, pela manhã, já estava
morta. Confesso que não me surpreendi, eu sabia que ela só poderia ter
uma morte assim, suave e indolor, pois já sofrera o suficiente. E como ela
era um ser abençoado, Deus só poderia levá-la em seus braços enquanto
dormia.
Depois que Sarita faleceu, numa noite fria de inverno, fiquei muito tempo
sem ter notícias da Dorvina.
Ela me ligou novamente, quase um ano depois para contar que seu
Rottweiler, amigo querido da Sarita estava doente. Algumas semanas
depois, me contou que ele também havia partido.
Qual não foi minha surpresa ao ouvir sua voz uma semana depois e ela
estava eufórica:
“- Eu precisava te contar, ainda não acredito no que aconteceu. Estava
indo trabalhar, pois depois que me aposentei arrumei um trabalho em um
consultório perto de casa. Atravesso o Rodoanel e ando mais um
pouquinho. Estava apressada quando vejo um cachorro deitado ao lado da
pista, bem debilitado, ele devia estar jogado lá há algum tempo. Ele me
olhou implorando ajuda e eu respondi: agora estou com muita pressa mas,
na minha volta, vou te socorrer e levar pra casa.
Trabalhei aflita e pedi para sair mais cedo, não aguentei esperar, ele não
25. saia da minha cabeça. Corri apressada e lá estava ele me aguardando.
Tentei levantá-lo, ele é imenso, mas ele não conseguia se erguer e muito
menos caminhar. Eu só rezava, pedia ajuda a Deus, e pensava: como vou
conseguir atravessar a pista e levá-lo para casa? Você sabe, no Rodoanel há
movimento contínuo e você precisa esperar aquela brecha de trânsito e
correr.
Eu já estava desistindo quando um caminhão parou no acostamento: - é
seu cachorro, senhora, precisa de ajuda? Dois homens com sotaque do sul
pararam o caminhão e vieram nos socorrer. Um deles, amparou o cachorro
enquanto o outro foi buscar uma marmita. Ele pegou toda sua comida e
ofereceu ao cachorro que comeu de uma única bocada. Depois pegaram a
água de uma garrafa e foram colocando na vasilha, acho que entornaram
uns dois litros de água.
Eu juro que comecei a chorar, eu não acreditava, nunca me emocionei
tanto, nem no ano passado quando me aposentei do Hospital e fui
homenageada.
O cachorro começou a se animar e conseguimos colocá-lo de pé. Ele
estava mancando, mas não tinha nada quebrado, tinha só fraqueza e um
pouco de dor.
A travessia pareceu longa, mas ele e eu nos sentimos muito amparados:
os homens iam segurando o trânsito e eu ia empurrando o menino até que
conseguimos atravessar.
Eles nos colocaram do outro lado da pista, se despediram e então
partiram.
Levei o cão pra casa e cuidei muito bem dele. Ele já está ótimo, feliz e
muito, muito agradecido. Confesso que poucas vezes vi um olhar como esse,
de mais puro agradecimento e amor. Ele deve ser um mestiço de Setter ou
Golden, não importa, e ele está ótimo!
Telefonei só para te contar essa experiência e dizer que aqueles homens
ficaram pouco tempo conosco e fizeram tanto, que vai ser difícil esquecê-
los. Eles deixaram sua comida, seu cuidado, seu carinho e partiram felizes
sabendo que salvaram uma vida. Neste mundinho de Deus tem muita gente
boa, né?”
Quando eu desliguei o telefone, comecei a rememorar todos os detalhes
da história que Dorvina havia me contado e fiquei maravilhada. Mais uma
vez, ela me provocava aquele sentimento de descoberta e aprendizado que
eu já havia experimentado antes, quando da doação da Sarita.
Lembrei-me, então, da antiga história judaica dos Lamed Vav Tzadikim,
dos 36 Justos. Ela conta que existem trinta e seis homens no mundo cuja
27. A Casa dos cachorros
Como tudo na vida, até as histórias tem dois lados.
Quando escrevi a crônica intitulada A casa dos gatos, meu filho veio com
a seguinte colocação:
- Mãe, seu quarto fica do lado do gatil, portanto é calmo e silencioso, mas
do outro lado, onde fica o meu quarto, a situação é totalmente diferente: eu
moro na Casa dos Cachorros.
É verdade, ele tem razão.
Minha casa é dividida em duas alas: de um lado os gatos e de outro os
cães. As pessoas ficam no meio.
Como os gatos são bem mais tranquilos, nessa parte da casa temos
bastante silêncio e você consegue ouvir o canto dos pássaros e o guincho
dos saguis. A natureza surge plena e derrama todos os seus sons.
Já do outro lado, dependendo do momento, o barulho é pesado.
Quem tem muitos cachorros sabe do que estou falando: basta um animal
passando na rua ou alguém conversando mais alto para que eles comecem
a latir sem trégua. Eles ouvem qualquer barulho diferente e reagem à
altura. Para os cães, qualquer movimento brusco ou barulho significa
invasão e eles são dirigidos desde sempre para proteger seu território. E
então latem, latem e latem, pois essa é a sua linguagem.
Na verdade, o que ocorre é uma sequência de latidos: os cães dos
vizinhos detectam algo anormal e dão a partida. Os cães da casa seguinte
dão continuidade ao aviso e os meus, sem saber ao certo o porquê, reagem
alto e prontamente. Ou seja, todos os cães do quarteirão latem ao mesmo
tempo e o barulho aumenta num crescendo assustador e explode em
nossos ouvidos.
Nessa hora, não há nada que os faça parar, nenhum grito ou ameaça. E a
coisa fica ainda pior quando pessoas desavisadas resolvem soltar fogos de
artifício. Aí a situação fica incontrolável mesmo, um verdadeiro
bombardeio. A reação dos cães é tão insana quanto aquela que leva um ser
humano adulto a soltar os perigosos artefatos. É por isso que todas as
pessoas que convivem com animais odeiam fogos de artifício.
Fora este pequeno detalhe sonoro, algo desagradável, o lado dos cães é
bem animado.
Eles se alegram de verdade quando você chega em casa e estão sempre
28. atentos aos seus menores gestos, pois é você que sempre comanda a
situação.
Ficam felizes com movimentação, visitas, adoram novidades e estão
sempre dispostos a te seguir por todos os lados. A vida para eles é uma
festa, desde que em sua companhia, claro.
Com os cães não tem baixo astral: a hora de passear, a hora de comer, a
hora de brincar, tudo é celebração.
Então, dependendo do seu estado de espírito, você pode escolher e
visitar um ou outro lado da minha casa.
Se você estiver meio mal, deprimido, o lado dos cães é o mais
recomendado. Lá você é valorizado e visto como uma pessoa especial. Na
casa dos cães você é o mais bonito, o mais inteligente e, sem dúvida, o mais
amado. Eles se esforçam ao máximo para te deixar feliz.
Já o lado dos gatos é bem mais sossegado, não tem correria e nem festa. É
um lado contemplativo, próprio para relaxamento. Tudo flui com lentidão e
até o tempo parece passar mais devagar, no ritmo próprio dos gatos.
Esta paz não significa que eles não se alegrem com sua companhia, é que
os gatos são bem mais discretos. Eles demonstram sua alegria com um
ronronar ou então passando por entre suas pernas, tudo muito sutil e
delicado.
No entanto, se você quiser meditar ou ler um bom livro, deve ficar na
companhia dos gatos. Só que lá não vão te achar o máximo, vão
simplesmente aceitá-lo como você é.
Lá você tem que ficar relaxado como eles para conseguir se sentir bem.
As pessoas mais agitadas precisam desacelerar aos poucos e entrar em
outra sintonia.
Para gostar de gatos, você precisa, primeiramente, estar satisfeito
consigo mesmo e esse é o motivo pelo qual algumas pessoas amam e outras
odeiam os gatos.
Voltando aos cães, eles são fascinantes por sua pureza, ausência de
maldade e por várias imperfeições que muito os aproximam dos humanos.
Já os gatos fascinam por sua delicadeza, elegância e requinte, o que
muito os afasta dos seres humanos.
Assim, o ideal é você conviver simultaneamente com estas duas
realidades tão distintas e complementares.
Porém, pode ter certeza que escolhendo um ou outro lado da minha casa,
você estará sempre fazendo uma espécie de terapia. Por sinal, uma ótima
terapia, eu recomendo.
32. Nostalgia
Durante toda a infância tive contato com animais, na casa de meus pais,
meus avós e todos os parentes e amigos de quem me lembro. Os animais
sempre estiveram relacionados a experiências agradáveis, brincadeiras
animadas e eram fonte de prazer e alegria. Eles também eram felizes e
tinham uma vida longa e saudável. Animais nunca me despertaram
compaixão ou essa urgência em ajudá-los e lutar por sua sobrevivência,
como acontece hoje.
É verdade que há alguns anos você não via, principalmente no interior de
São Paulo, animais vagando pelas ruas em péssimo estado. Você também
não encontrava pessoas vivendo em condição de extrema pobreza e os
sem-teto eram raros e motivo de assombro.
Os tempos mudaram!
Houve uma disseminação da pobreza e do desemprego e, com eles, a
banalização da miséria: hoje em dia é tão comum vermos crianças em
semáforos, famílias “vivendo” embaixo de pontes, animais famintos e
doentes que, a maioria das pessoas já não vê, ou não se importa, ou ainda,
nem se comove mais. Todos eles fazem parte de uma paisagem, uma triste
paisagem, à qual as pessoas se habituaram.
Os tempos mudaram!
Estive recentemente em uma reunião com vários protetores, um
encontro muito agradável com as pessoas relatando como se tornaram
amantes dos animais e descrevendo seu cotidiano pesado e, ao mesmo
tempo, gratificante.
Todos eles falavam de sua relação com animais desde sempre e como
esta preocupação pelo bem-estar deles vem crescendo à medida que
também cresce a pobreza e o descaso do poder público em nosso país.
Ambos os fatos estão profundamente relacionados: como o Estado é o
responsável pelos animais, “Todos os animais existentes no país são
tutelados pelo Estado”, e este não cumpre com seu dever, as pessoas que se
importam com a vida são obrigadas a despender seu tempo e seu dinheiro
para fazer o que foi negligenciado pelo poder público.
Não existe uma política de castração dos animais de rua para evitar o
excesso de população, assim como não existem campanhas educativas de
incentivo à posse responsável ou que estimulem as pessoas a não
34. Sem-teto, mas com cachorro
Com esse dinheiro eu posso até dar entrada num barraco lá na Vila. Ou
então comprar aquele tão sonhado som, uns presentinhos para a Tina.
Preciso planejar ...
É muito dinheiro de uma só vez. Quem sabe voltar para casa, reencontrar
a família, sair desta cidade sem alma. Posso comprar a passagem de volta e
dizer a eles que cansei de tudo isso aqui, dessa luta e que fui enganado.
No entanto, como esquecer o olhar de Branquinha, da Amarelinha e do
Polegar? Como esquecer os gritos da Tina, quando lhe arrancaram seu
cachorro Pimpão?
Tantos anos de convivência, tanta cumplicidade. Eu só sei que sinto
muita falta deles.
Os homens não tinham o direito de levá-los. Eles eram bem cuidados,
amados. Muito mais queridos do que os bichos de muita gente por aí, gente
rica que não se importa com seus amigos, que são tratados de qualquer
jeito. Gente que nunca olhou nos olhos de seu bicho e viu muito amor.
Só por que nós os sem-teto não temos um espaço delimitado? Será que
temos que nos comportar como os animais e marcar um território? Se eu
tivesse meu lugar, eles não teriam levado meu Polegar à força, indiferentes
aos meus gritos, à minha dor. Incrível, não é? Humanos precisam de muros!
Ainda bem que o professor foi testemunha de toda a violência. Ele viu
nosso desespero, sentiu nossa impotência e resolveu ajudar. E ele tem o
dinheiro que transformará tudo: posso trazer os cães de volta ou dar
entrada no barraco, comprar um presente para a Tina, ou a passagem de
volta para casa ...
Eu tenho certeza que nunca conseguiria ser feliz, sabendo que abandonei
meus amigos. Como eu posso ir embora, sabendo que eles não terão
nenhuma chance? Três dias, eles disseram: - Você só tem três dias para
conseguir o dinheiro e voltar para recuperar seus animais. É muito
dinheiro para se conseguir em três dias. Se o professor não resolvesse nos
ajudar, eu deveria fazer o que? Roubar?
É nessas horas que a gente entende as pessoas que perdem a cabeça.
Mas, não quero pensar sobre isso agora, nada de ruim aconteceu e
amanhã, com a ajuda de Deus e do professor, vou rever meus amigos do
coração.
35. “O sem-teto José Augusto dos Santos foi ontem ao Centro de Zoonoses (CCZ) buscar
Amarelinha, Branquinha e Polegar, os amigos que lhe foram retirados à força na quarta-feira pelo
mesmo CCZ. De quebra, pegou Pimpão, da amiga Tina. O quarteto foi recuperado depois que um
professor pagou a taxa exigida.” Jornal da Tarde de 21/07/2002
36. Ricardo e Garoa
Para Beatriz
Você já viu protetor elogiar criador de animais? Impossível! São duas
espécies incompatíveis. Citando apenas o lado econômico da questão: o
primeiro gasta seu dinheiro tentando ajudar animais, enquanto o segundo,
ganha todo seu dinheiro por intermédio deles.
Mas, é claro que não dá para generalizar, pois encontramos pessoas
sérias e picaretas em todas as profissões. Mesmo assim, é muito comum
protetores receberem denúncia sobre “criadores de fundo de quintal”,
pessoas inescrupulosas que usam os animais visando apenas o lucro fácil.
Quantas vezes, ficamos sabendo de cadelas que passam a vida parindo, uma
gestação após outra até serem abandonadas por velhice ou por estarem
muito debilitadas? Quantos machos ficam eternamente acorrentados ou
presos em gaiolas minúsculas com a única finalidade de servirem de
matriz? Denúncias sobre filhotes famintos e doentes, expostos à sujeira e
muito valorizados na hora da venda, também são muito comuns. E por aí
vai ...
Porém, este não era o caso do Ricardo. Jovem ainda, ele foi para o
interior de São Paulo viver em uma chácara e criar cachorros. No entanto,
ele não estava interessado em um cachorro qualquer, e sim em um
exemplar único de Fila Brasileiro. Seus cães viviam livres em amplos
espaços, local impecavelmente limpo e florido. Tinham direito à boa
alimentação, acompanhamento veterinário e, para as fêmeas, intervalos de
gestação respeitados para não colocar em risco sua saúde.
A venda dos filhotes era uma dificuldade à parte. Os donos eram
escolhidos com cautela, submetidos a entrevistas rigorosas e, muitos deles,
saiam de lá sem seus desejados filhotes. - Não posso entregá-los a qualquer
um, dizia Ricardo.
É claro que este comportamento atípico gerou muitos problemas.
Ricardo estava sempre passando por dificuldades financeiras, sempre
atrapalhado para pagar suas contas em dia. Tinha uma vida muito simples,
sem comodidade alguma, mas para seus cães não deixava faltar nada.
A austeridade era tamanha que ele começou a deixar de lado a própria
saúde e, aos 50 anos já tinha graves problemas de saúde. Mas, seus
38. Desamparo
Gosto de escrever histórias leves como a do Tiquinho Huguinho, o
Incompreendido ou a história do Frank, meus gatinhos. Eu me divirto
escrevendo, as pessoas ficam felizes quando leem e uma sensação
agradável perdura por um bom tempo.
Eu pretendia escrever sobre gatos filhotes e sua pureza, pois fiquei
encantada observando Lupi, um gatinho que tenho para doar e que ficou
tão feliz ao encontrar teto e comida, após sair da favela onde estava
abandonado, que exala alegria. Tudo é bom para ele: comer, brincar, ser
afagado, tudo é um prazer intenso. Explorar o mundo é algo mágico e
agradável, comer e dormir são puro deleite, brincar então, é o clímax de um
dia festivo.
Pensando sobre as descobertas do Lupi, tentei tirar essa imagem da
minha cabeça, mas ela sempre volta.
Para mim e para as pessoas que amam os animais, o protótipo do
desamparo é representado pela figura de um cachorro ou gato na rua, que
não sabe onde buscar ajuda. Não tem nada mais frágil que um animal
abandonado que só pode exprimir seu desespero e sua dor através do
olhar.
Cães e gatos foram domesticados pelos seres humanos e aprenderam a
depender de nós para suprir todas suas necessidades. Quando eles se
perdem ou são jogados fora, ficam totalmente desnorteados e o estresse é
tanto, que muitos deles adoecem e morrem rapidamente.
Outros, mais fortes, conseguem reagir e partem à procura de comida e
abrigo. Mas, mesmo para estes é uma questão de tempo adoecer e morrer:
as brigas e privações terminam por minar suas forças e eles acabam se
entregando também.
Quando vi aquela cadelinha tão pequena e frágil escondida no meio do
mato, onde acabara de parir, meu coração congelou.
Aliás, tudo em volta congelou, pois aquele foi o dia mais frio do ano e
mais, o dia mais frio dos últimos sete anos. Estes bebês não poderiam ter
escolhido outra data para nascer?
Eu não tinha como tirá-la de lá com seus filhotes, pois ela estava
agressiva, tentando proteger sua ninhada.
Voltei para casa chorando e rezando para que o tempo melhorasse, para
39. que não chovesse e eu tivesse uma inspiração para socorrê-los.
Por que será que os animais nos inspiram esses sentimentos tão
intensos?
Será porque sua alegria e tristeza são tão puras que nos contagiam?
Ou porque seu olhar é tão sincero que nos desarma?
Será porque seus sentimentos são tão verdadeiros que nós confiamos
plenamente neles?
Ou sua dor é tão profunda que nos arrasa?
Recordo que cachorro em hebraico é Kélev e um comentarista do
Talmude revela que o nome Kélev deriva de Shekulo Lev que quer dizer:
um ser que é puro coração.
Deve ser essa a explicação.
Eu queria muito ter escrito uma história alegre.
Aliás, eu queria viver em um mundo onde as pessoas pudessem se sentir
como gatos filhotes com teto e com comida.
40. Mistérios
Os mistérios existem para nos intrigar.
Como protetora de animais me pergunto, por que quase sempre é
preciso estar em situação de risco para se ter a chance de sobreviver?
Recordando os animais que resgatei e que já foram doados, a maioria
deles chegou até mim quando sua vida estava em perigo: ou estavam
atravessando uma rua movimentada, ou foram atropelados, ou se
encontravam muito doentes e por isso necessitavam de ajuda imediata.
Por outro lado, eu cruzei com vários outros e nada fiz por eles, por
estarem fortes, em locais mais seguros ou por serem bonitos e terem boa
chance de serem resgatados. Estes não foram socorridos e ficou a dúvida:
será que eles tiveram a sorte que eu imaginei que teriam?
Nós protetores, depois de algum tempo de experiência sempre
escolhemos os animais que estão em pior estado para resgatar. Para isso
precisamos selecionar e essa tarefa é muito delicada, pois você tem pouco
tempo para refletir e precisa decidir rapidamente entre ajudar ou não. Essa
é a nossa “escolha de Sofia”.
Nesse processo, várias coisas estarão em jogo. Muitas vezes, você não
tem mais lugar em casa para acolher nenhum animal e tudo irá depender
também de seu tempo disponível e, principalmente, de sua situação
financeira no momento.
Quantas vezes acontece de você saber que não tem condições de fazer
aquele resgate e mesmo assim insiste em acolher o animal, sem entender o
motivo que a leva a agir dessa maneira. Creio que, quando isso ocorre, não
foi você que escolheu o animal, ele foi escolhido para você.
Por um lado, quando conseguimos que os animais que salvamos fiquem
bem, saudáveis e sejam adotados, temos muito a comemorar. Sabe aquele
cachorro todo sarnento para quem ninguém mais olhava e que já estava
sendo até enxotado por causa de seu aspecto? Quando ele se torna um
príncipe e tem fila para adotá-lo e você só tem o trabalho de escolher
cuidadosamente para que lar encaminhá-lo, é uma situação muito
gratificante. Um ser que não tinha mais nenhum interesse aos olhos das
pessoas e que começa a ser valorizado e disputado, isto é motivo de
orgulho e satisfação.
Por outro lado, existem aqueles que já estavam enfraquecidos por terem
41. permanecido muito tempo nas ruas e que, quando são resgatados, adoecem
e não resistem. Então, você fica se perguntando: por que eu precisei cruzar
com ele e me esforçar para salvá-lo, se era para ele morrer? Por que
empenhamos nossa energia e temos tantas despesas, se no final ele iria
morrer mesmo?
O fato de ter sido escolhido não deveria fazer dele um sobrevivente?
Algumas pessoas irão dizer que desse modo o animal teve uma morte
digna, não ficou definhando, sozinho e sem cuidados na rua. Porém, todo
seu empenho foi em vão. Todo tempo e toda sua energia foram gastos com
que propósito? E tem também o lado psicológico, pois você fica arrasada,
colocando em dúvida sua luta e, depois dessa fatalidade, você precisa de
muito tempo para se recompor e reunir forças para continuar.
Isso faz parte dos mistérios que em vão tento desvendar.
Sei que é muita pretensão querer entender todos os motivos e julgar o
que é significativo ou não. Mas, no fundo, toda escolha que você faz não
deixa de ser intrigante.
A única certeza que tenho é que nada seria muito diferente do que é, pois
nós fomos criados para amar e cuidar.
42. Ser feliz dá trabalho
Tempos atrás, doei uma cachorrinha que estava há dois anos
aguardando um lar.
Ela é uma vira-lata muito dócil, amorosa e, como não podia deixar de ser,
se apegou ao pouco que tinha lá no abrigo: visitas diárias e a companhia de
uma dezena de outros cães, todos abandonados como ela.
Fiquei muito feliz com sua adoção e achei que sua hora de ser feliz
finalmente chegara.
Mas, ela foi devolvida semanas depois e disseram que não se adaptou,
que estava apática e não estava se alimentando direito.
Claro, ela precisava de um tempo para entender que tinha um novo lar e
também ter a certeza que estava em segurança. Esta sensação de “estar
abandonado” é muito comum em animais que viveram nas ruas e ficaram
muito tempo em abrigos.
Sempre digo para os adotantes: imagine que te sequestram e soltam em
outro local e com pessoas que você não conhece. Você precisa de um tempo
para se adaptar, certo?
Mas, a cachorrinha não teve esse tempo. Em vez de ampará-la, foi mais
fácil devolvê-la.
Eu não insisti, como sempre faço, pois entendi que o adotante não estava
preparado para conviver com um anjo.
O problema é que as pessoas, a maioria delas, não quer ter nenhum
trabalho. Diante da menor dificuldade elas desistem e, por isso, deixam de
sentir os maiores prazeres da vida.
Este moço que devolveu a cachorrinha se privou de seu olhar de
gratidão, de sua presença amorosa e seu amor incondicional. Ele não
chegou a sentir sua recepção calorosa ao chegar em casa depois de um dia
difícil. Ele não teve sua cumplicidade nos momentos de tristeza e de alegria.
Ele não sentiu nada disto, não deu tempo.
Muitas vezes me dizem: - Você faz um lindo trabalho e deve ter muita
satisfação com ele, deve se sentir uma pessoa realizada.
Sim, algumas vezes eu tenho a sensação do dever cumprido e sou grata
por ter as condições necessárias para realizar minha missão. No entanto,
tenho muito trabalho também.
Como dizia meu pai, citando um ditado popular: “Você sabe das pingas
43. que eu bebo, mas não sabe dos tombos que eu levo”. É exatamente isso: a
ajuda aos animais é muito gratificante pois você os salva, cuida deles,
encaminha para um bom lar e a história, muitas vezes, tem um final feliz.
Há também um outro lado bastante pesado: os dias de luto por aqueles
que foram resgatados, mas não conseguiram sobreviver; as horas de
intenso trabalho para cuidar de filhotes doentes; as dificuldades para
amparar animais idosos que não conseguem mais se virar sozinhos; o
desgaste diário por cuidar de dezenas de cães carentes de afeto e marcados
para sempre pelo abandono e daqueles que foram descartados por serem
especiais, cegos ou paraplégicos; a necessidade de sacrificar seu lazer para
comprar ração e poder cuidar dignamente dos animais; e a dor de sentir
um gatinho muito amado ir se apagando em seus braços, depois de muito
sofrimento.
A lista é longa.
Para se obter a dádiva de salvar uma vida é preciso muito esforço.
Ser feliz é trabalhoso, cansativo e por vezes muito triste.
Muitos protetores desistem, alguns piram ... eu escrevo.
44. Diga não aos rodeios
Rodeio é um espetáculo que reúne dois antagonistas em uma arena: de
um lado o animal, que aparenta ser selvagem e indomável e de outro o
mocinho, que transmite determinação e coragem.
O propósito do show é subjugar o animal e então o homem irá provar
toda sua força, superioridade e seu domínio sobre a natureza.
No entanto, neste embate entre a selvageria e a bravura, entre o bem e o
mal, você espectador está sendo ludibriado. Saiba que nada disto é
verdadeiro, pois o modo como os animais se comportam na arena é
resultado de sua exposição à tortura e à dor.
Primeiramente o animal entra em cena e fica apavorado pelo barulho da
plateia e pela iluminação excessiva do local, artifício usado para que ele se
sinta desnorteado.
Logo em seguida, ele fica desesperado, pois é vítima de instrumentos de
tortura e a dor que sente faz com que ele pule como se fosse um animal
selvagem, quando, na verdade, está inutilmente tentando se livrar dos
apetrechos que o martirizam.
Estudos sérios indicam as inúmeras irregularidades encontradas nos
rodeios. Foram listados os seguintes instrumentos de tortura: sedem,
apetrecho utilizado para comprimir a virilha e os genitais do animal;
choques e espancamentos; esporas; laçada ao bezerro; alfinetes, etc..
Tudo isso é irregular e ilegal, além de ferir a ética e a civilidade. Todos
nós sabemos que maus-tratos aos animais é crime com punição prevista
por lei mas, como não existe fiscalização na maioria dos rodeios, tudo se
torna permitido.
Como pode ser chamado de diversão um evento onde os animais são
torturados e humilhados? Como pode ser chamado de espetáculo um show
onde os super-homens que dominam os animais são covardes
torturadores?
E no final da encenação ocorre unicamente a celebração da crueldade
humana.
A comparação com o Coliseu criado pelo Imperador Vespasiano, onde
homens corajosos lutavam com animais selvagens não é inapropriada. A
diferença é que na época romana eles não usavam truques.
45.
46. A realidade dos abrigos de animais
Toda vez que me perguntam se conheço algum abrigo que receba
animais de estimação, eu recordo a necessidade de escrever sobre o
assunto.
Essa semana os pedidos foram tantos, que vou tentar descrever a
realidade dos abrigos, que é bem diferente da imagem que muitas pessoas
fazem deles.
O cão ou gato, quando vai para um abrigo, não está saindo de férias ou
indo passar uma temporada em um SPA ou hotel de cinco estrelas.
Infelizmente, ele vai enfrentar uma dura realidade.
Alguns humanos resolvem, por vários motivos, se desfazer do animal
que viveu muitos anos em sua companhia, outros então devolvem o animal
adotado depois de meses de convívio com uma família e todos acham que
ele ficará feliz indo para um abrigo.
Essas pessoas precisam saber que o estresse enfrentado pelo animal que
sai de um local onde ele se sente seguro e amado é tão grande que, nas
primeiras semanas no abrigo ele adoece e demora muito tempo para se
recompor e participar da vida coletiva. No período de adaptação, ele fica
apático, deprimido e muitas vezes para de se alimentar. Os mais sensíveis
ou velhos adoecem gravemente e alguns acabam morrendo.
Só quem já visitou um abrigo de animais sabe do que eu estou falando.
Existem vários tipos de abrigo: alguns são pequenos, com poucos
animais, o tipo de local que a maioria dos protetores acaba construindo e
que fica muitas vezes em sua própria casa. Nesses, os animais têm
alimento, proteção, mas nem sempre têm atenção e carinho, como
gostaríamos de lhes proporcionar.
Tem também aqueles abrigos maiores, que pertencem à sociedades
protetoras, onde os animais muitas vezes sofrem por falta de alimentos e
cuidados. Neles há superlotação e são rotineiras mortes causadas por
brigas, disputa por território, alimento e até disputa por atenção. Nesses
locais os cães e gatos estão sempre tristes, apáticos ou, ao contrário,
tornam-se tão agitados que não conseguem relaxar nunca.
Já resgatei animais de abrigos que se comportam como crianças
delinquentes, pois são agressivos, extremamente inquietos e podem
demorar anos para se reequilibrar.
47. Nos locais menores e mais bem equipados, os animais geralmente não
passam fome, mas estão sempre carentes e chegam a brigar por um simples
afago e você precisa ficar atento para não privilegiar nenhum deles.
Durante muitos anos fui voluntária em um abrigo que comporta uns
trinta cachorros e senti na pele todos os problemas que mencionei.
Chegava sempre no mesmo horário e os cachorros já começavam a
correr e a latir enquanto eu estava a um quarteirão de distância. Eles já
sabiam a hora certa da minha chegada e ficavam tão agitados que, muitas
vezes, começava uma briga, antes mesmo que eu abrisse o portão.
Nessa hora, eu precisava ser rigorosa e fazia de tudo para que eles se
acalmassem. Sempre levava algum petisco e começava a servir para a
turma que, só então, ficava quieta, esperando para ganhar o prêmio. Então,
eu aproveitava o silêncio para conversar com eles e explicava que estava
procurando bons lares para todos e que eles precisavam ter paciência, pois
tudo era uma questão de tempo e logo eles iriam ter uma vida melhor.
Contava também como que era difícil encontrar pessoas sem preconceito e
que também tivessem amor para dar. Essa conversa, na maioria das vezes,
os acalmava, pois cachorros gostam de ouvir uma voz humana que lhes fala
com carinho e transmita serenidade.
Todos os dias eu saia de lá com um nó na garganta, pois só voltaria no
dia seguinte e os cães teriam um longo dia pela frente, sem atenção e sem a
companhia de um humano. Lá, como na maioria dos abrigos, eles só têm o
básico: comida, água e proteção contra as intempéries.
Mas, felizmente e aos poucos, os animais acabam aprendendo a conviver
com a solidão e, depois de um tempo, já não sofrem tanto; resignados, eles
entravam em suas casinhas onde esperam o tempo passar.
Eu sempre ficava triste, mas me consolava pensando que eles viviam
melhor lá do que nas ruas, passando necessidades.
Por tudo que os animais são obrigados a suportar, é importante que o
abrigo seja sempre encarado como um local transitório, uma casa de
passagem e não o lar definitivo para cães e gatos. Animais domésticos,
como o próprio nome diz, existem para viver em contato e na companhia
de humanos, pois dependem deles para todas suas necessidades.
O certo é que sempre paira um ar de tristeza e resignação sobre os
abrigos. Isto porque todos os animais que lá estão foram um dia
abandonados e, mesmo os que se perderam de suas casas, ficaram
traumatizados, pois nas ruas passaram por muita privação e medo. Eles se
tornaram seres inseguros que têm receio de nos decepcionar, de fazer algo
errado e serem descartados e sofrer novamente.
48. Essa é infelizmente a realidade dos abrigos de animais.
Jim Willis, escritor e defensor dos animais, descreveu com precisão a
tristeza dos abrigos em seu livro Pieces of My Heart:
“Olhei para os animais abandonados no abrigo, os renegados da sociedade humana. Vi em
seus olhos amor e esperança, medo e horror, tristeza e a certeza de terem sido traídos.
Eu me revoltei e rezei:
- Deus, isto é horrível! Por que o Senhor não faz nada a respeito?
E Deus respondeu:
- Eu fiz. Eu criei você.”
49. Se todos fizerem um pouco
Se as pessoas cuidarem adequadamente de seu animal de estimação e o
tratarem com o respeito que ele merece, não haverá abandonos e maus-
tratos e os animais farão parte da família que eles tanto amam.
Se nas escolas ensinarem as crianças desde cedo como cuidar
dignamente de um animal e discutirem a importância dessa atitude, elas
crescerão valorizando seu amigo, além de se tornarem seres mais
responsáveis.
Se as crianças aprenderem a valorizar todas as formas de vida, quando
adultos saberão como ninguém amar e respeitar o ser humano e serão
menos preconceituosas também.
Se essas crianças transmitirem os conhecimentos adquiridos sobre posse
responsável aos pais, familiares e amigos e conseguirem influenciá-los, a
realidade dos animais será bem mais positiva.
Se os guardiões de animais entenderem a necessidade de levar seus
animais de estimação para castrar, como coisa rotineira, não haverá
nascimentos indesejados, abandonos e mortes.
Se as Prefeituras de todas as cidades realizarem campanhas de castração
gratuitas para as pessoas de baixa renda, o problema da superpopulação
estará resolvido ou pelo menos minimizado.
Se os governos entenderem que é muito mais barato e eficaz castrar os
animais do que manter a carrocinha e a morte indiscriminada de cães e
gatos por injeção letal, já teriam modificado há muito tempo a política dos
Centros de Zoonozes.
Se os animais estiverem todos castrados, não haverá superpopulação e
os que por acaso ainda estiverem nas ruas não procriarão, o que diminuirá
significativamente o número dos desabrigados.
Se não houver animais vagando pelas ruas, as pessoas passarão a
valorizá-los e eles serão poucos e especiais.
Se os animais que são comercializados só forem vendidos já castrados,
isso evitará que muitos aproveitadores usem os animais de raça só com o
intuito de procriação e venda de filhotes.
Se as pessoas entenderem que os animais são seres sensíveis, elas não
desejarão possuir um determinado animal só porque sua raça está na
moda. Elas saberão que, por trás daquela raça, existe um ser que ama e
54. O primeiro gatinho a gente nunca
esquece
Quando meu marido chegou dizendo que estava com vontade de trazer
para casa dois gatinhos que estavam em liquidação num pet-shop perto do
escritório, eu fui categórica:
- Acho que não gosto de gatos. Eles não gostam das pessoas, só das casas
e não são muito carinhosos.
Mas, ele insistiu:
- Isto não é verdade e esses são tão lindos, estão já com três meses e
custando uma ninharia, o preço já caiu três vezes e logo, logo, serão jogados
na rua. Nem cabem mais na gaiola ...
Claro, depois desses anos todos, ele sabia muito bem qual era meu ponto
fraco.
- Está bem, concordei, traga os gatinhos e vamos ver.
Eu nem sabia como fazer. Telefonei para a veterinária e precisei
perguntar tudo: como cuidar deles, quantas vezes comem por dia, o que
eles precisam, caixinha de areia?
Não sabia que gatos comem um pouco várias vezes por dia, não sabia
que usam uma caixinha de areia para suas necessidades e que não fazem
nenhuma sujeira, não sabia que eles adoram brincar e, principalmente, não
sabia que também gostam de um colo. Que são muito carinhosos,
inteligentes e interessantes, isso tudo fui descobrindo aos poucos.
Aliás, como a maioria das pessoas, eu não sabia nada sobre gatos.
As descobertas foram diárias e eu fui me apaixonando a ponto de
perguntar: como pude viver tanto tempo sem a companhia de um gato?
Eles brincam e se divertem o tempo todo, eles se alimentam o tempo
todo e eles são felizes o tempo todo. São seres fascinantes e instigantes.
E, quando você pensa que entendeu tudo, que já sabe como eles
“funcionam”, eles nos surpreendem: naquele dia resolvem não fazer a
brincadeira esperada ou nem te respondem quando você os chama. Este
dia vai ser diferente porque eles resolveram assim. Você começa a ficar
preocupada achando que tem algo errado com eles mas, algumas horas
depois, eles acordam de bom humor e tudo volta à rotina.
Os gatinhos filhotes, então, são um espetáculo à parte: divertidos, ágeis,
55. alegres e encantadores.
Você se pergunta: já vivi tanto, tenho tanta experiência e como nunca
soube disso? Como nunca me disseram que a felicidade é tão simples: basta
observar um gatinho filhote brincando e descobrindo o mundo.
Porém, com o tempo, você aprende também uma outra característica
felina: eles são especialistas em mascarar a dor e as doenças.
Eu era inexperiente e só percebi que havia algo errado com meu gatinho
Tom, quando já era muito tarde. Tenho certeza que ele fingiu estar bem
para não me chatear, ele não queria me ver sofrendo.
Foi muito difícil aceitar sua morte prematura somada à culpa que senti
por não ter percebido os sinais da doença, enquanto ainda haveria tempo
para a cura.
O breve período que Tom conviveu comigo foi suficiente para me ensinar
a entender e amar os felinos, admirá-los e descobrir com eles um aspecto
da vida que eu já estava esquecendo: o prazer de estar vivo.
56. Existem coincidências?
Para Eleonora
Algumas vezes, tenho certeza que sou um simples instrumento, uma
peça aleatória a serviço de uma engrenagem muito mais complexa e
abrangente.
Todos os dias, cruzo com vários animais precisando de ajuda e eu sofro,
mas reajo: não posso fazer mais nada, já ultrapassei todos os meus limites,
não dá para acolher mais ninguém.
Então, arrasada, continuo meu caminho e rezo para que alguém, com
mais disponibilidade, veja o animal, sinta sua dor e responda ao seu apelo.
Entretanto, chega o dia em que todas as forças do universo resolvem se
conectar para tornar determinado apelo irresistível. Naquele momento
começa a chover, ou então, faz muito frio, ele ou ela atravessa uma rua
movimentada e corre perigo iminente. Por vezes é a dor, a doença ou o
sofrimento, os fatores que desencadeiam sua ação.
Assim, tem início o resgate não planejado e, nessa hora, não raciocino e
muito menos deixo a razão prevalecer. Sou guiada pelo instinto. O que fazer
depois, já é uma segunda etapa, um problema a ser resolvido quando eu
recobrar a razão.
Naquele dia, tudo começou com um resgate planejado. Fui até aquele
bairro, em uma favela, para buscar uma poodle que perambulava por lá,
faminta e no cio, há vários dias. Já arrumara até lar provisório para que ela
se recuperasse enquanto aguardava adoção.
Mas, no meio do caminho, lá estava ele: pequeno, muito frágil e
implorando por ajuda. Gatos atravessando ruas movimentadas em plena
luz do dia são a personificação do desespero. Sempre que vejo esta cena me
lembro dos tigres no circo, lançando-se contra círculos de fogo. Quanta dor
os domadores teriam infligido àqueles pobres animais para que eles se
lançassem desse modo para o desconhecido, para a morte? Quanto
desespero guiou aquele gatinho para um local tão perigoso?
Não pude deixar de socorrê-lo. Instintivamente quis apenas mantê-lo
seguro, protegido e o levei para casa.
Tudo foi muito rápido e, em questão de horas, seu destino, antes escrito
com linhas tão tênues já estava decidido.
57. Aconteceu assim:
Naquele instante em que eu passei, ele atravessou a rua.
Levei-o para casa e coloquei o filhote num cantinho aconchegante.
Alimentei-o e tirei sua foto na esperança de achar um lar seguro para ele.
Algumas horas mais tarde, uma amiga foi conferir suas mensagens e lá
estava ele, indefeso e implorando por ajuda.
Naquele exato momento, alguém passou por ela e se emocionou com sua
figura frágil e carente.
Mais algumas horas e ele foi encaminhado para um lar amoroso e que
preencheu todas as suas necessidades.
Houve uma conjunção perfeita de fatos, lugares e pessoas, todos
distantes, desconhecidos. Uma sincronia de forças que culminou em
encontros e acertos.
Tudo muito rápido, coordenado, eficaz.
Creio que lá longe, os sinos dobraram e as pontas de um emaranhado,
aparentemente sem nexo, foram se encaixando com facilidade e uma soma
de fatos improváveis culminou num desenlace feliz.
Nesse momento, você descobre que foi apenas um instrumento para a
realização de um acordo que já havia sido firmado. Não aqui, mas em outra
dimensão.
58. Frank e sua gangue
Por que escrevemos sobre determinado animal?
Porque ele tem uma história marcante que merece ser contada, ou é por
causa de sua personalidade que também é muito marcante e deve ser
conhecida.
Frank se enquadra no segundo caso e pode ser descrito como um gatinho
peculiar: vesgo, desafinado, encrenqueiro, mandão e muito divertido.
De tão estrábico, não temos noção para qual direção ele está olhando e,
as vezes acho que ele não enxerga quase nada, pois longe de seu ambiente,
ele fica perdido e olhando para todos os lados como se não conseguisse
fixar um objeto.
Quando o encontrei ainda bebê, ele estava num terreno ao lado de casa e
passou a noite berrando até ser regatado. Seu miado é tão desafinado, tão
estridente que eu pensei, enquanto me revirava insone na cama: amanhã
vou pegar este gatinho só para colocar um grande esparadrapo no seu
focinho.
Desde pequeno, Frank começou a demonstrar espírito de liderança e
hoje ele é o macho dominante do gatil: mandão, briguento e, ao mesmo
tempo extremamente amoroso com os gatos que gozam de sua preferência,
e que são aqueles mais alegres e arteiros e que podem ser tanto machos
como fêmeas. Ele é o líder da turma dos bagunceiros e normalmente é
quem dá o sinal para que a folia tenha início: ele solta um miado alto e
desafinado, como se estivesse exercitando a voz e sai correndo e fazendo a
maior algazarra.
Implica com todos os gatos sérios, como se dissesse: larga de ser chato, a
vida é boa e breve e não adianta nada ser tão ranzinza.
Frank está sempre de bom humor. Quando faz alguma coisa errada,
corre e fica olhando para ver se eu o estou observando: derruba almofadas
de locais altos, vira casinhas, puxa os lençóis para o meio da sala e adora
fingir que vai fazer xixi na parede bem na hora que eu estou passando. Eu
dou um grito: - FRANK! e ele sai correndo com uma carinha de safado e é
visível que está se divertindo pra valer.
Então, eu lhe dou uma sonora bronca e o coloco de castigo no prato de
um brinquedo que tem no playground dos gatos. Trata-se de uma
construção que imita uma árvore, tem movimento e é composta por vários
59. pratos grandes espalhados por sua superfície. E Frank fica muito tempo
quietinho de castigo no mesmo lugar, até que eu lhe dou permissão para
sair:
- Pode sair agora Frank ... e, entendendo perfeitamente meu comando,
ele sai correndo para infernizar a vida de algum gato menos avisado.
Essa é a nossa brincadeira diária.
Até seu nome é perfeito. Assim como Sinatra, ele tem lindos olhos azuis e
veio morar conosco na mesma semana em que Sinatra faleceu. Ele só não é
afinado como o cantor.
Eu sempre penso nele como um líder mafioso de uma turma muito feliz
que fica se divertindo o tempo todo e alegrando aqueles que a assistem.
Fazem parte da turma: Frank, Tico e Teco, Chaplin e Ivan. Os meus meninos
que poderiam também se chamar: Frank Sinatra, Sammy Davis Jr., Peter
Lawford e Dean Martin.
Essa é a minha gangue, que se diverte tanto quanto se divertia a
americana e está sempre de bem com a vida.
60. Quatro gatinhos pretos
A primeira vez que os vi, tentavam atravessar uma rua movimentada às
11:00 horas da manhã de uma segunda-feira. Passo ritmado, como se
estivessem de mãos dadas, deram início à travessia, indiferentes ao
movimento de pessoas e carros.
A seu modo, eles pediam ajuda e a urgência do pedido era visível em seu
olhar e sua determinação. Eles sabiam que essa poderia ser sua última
chance e então se lançaram, sem hesitar, em busca da sobrevivência.
Eu me assustei com o inusitado da cena e, aflita, coloquei-os rapidamente
no carro, antes que fossem atropelados.
Estavam famintos, cobertos de pulgas e, principalmente, exaustos. Livres
de todos estes inconvenientes, dormiram longa e profundamente e, quando
acordaram, deram início a uma série incansável de brincadeiras.
Estes quatro gatinhos pretos são, sem exceção, muito alegres,
brincalhões, espertos, comilões e, principalmente, agradecidos e amorosos.
São gatinhos especiais destinados a pessoas especiais.
Escrevi esse texto tentando doá-los e um casal adotou as duas fêmeas.
Recebo sempre notícias das meninas que continuam até hoje
comemorando sua sorte.
Quanto aos dois machos, além da dificuldade que é doar gatos pretos e
também, como não tive coragem de separá-los, acabaram ficando em casa.
Permanecem muito unidos, são parceiros de toda hora, comem, dormem e
brincam juntos e, o mais importante, contagiam os outros gatos com sua
alegria e amor à vida.
E eles não são só inseparáveis, são também muito semelhantes, são
gêmeos idênticos. Você não consegue, mesmo após longa convivência,
identificá-los facilmente. Um pelo branco aqui, outro pelo branco ali, mas
quando precisamos agir com rapidez, é quase impossível acertar.
Isso é um problema na hora de administrar remédios ou vacina. Preciso
sempre da ajuda de outra pessoa: um deles é separado e o outro recebe o
medicamento e depois invertemos os papéis. Ou então, pego um deles,
amarro uma fitinha colorida, dou o remédio e tenho tempo para pegar o
outro, enquanto o primeiro se ocupa de ficar livre do enfeite incômodo.
De qualquer modo, preciso ser muito rápida, pois eles ficam poucos
instantes no mesmo lugar. São donos de uma energia e vigor
61. impressionantes e só param de correr e pular quando são vencidos pelo
cansaço. Nessa hora, procuram um cantinho aconchegante, abraçam-se e
fecham instantaneamente os olhos. Apagam.
Você diria que eles são típicos gatinhos filhotes. Só que estes dois já têm
mais de dois anos de idade e ainda conservam a alegria, a curiosidade e a
vitalidade dos bebês.
Tico e Teco são um espetáculo à parte para as pessoas e um convite à
celebração para os outros gatos que, de início, só observam e, minutos
depois, contagiados, passam a se divertir também. É como se os dois
gatinhos fossem animadores e tivessem o objetivo de fazer circular a
alegria e o alto astral.
No entanto, é paradoxal, pois sempre que penso neles surgem duas
imagens contrastantes: amor à vida e desespero. A primeira imagem é fruto
de seu comportamento cotidiano, de suas brincadeiras alegres e inocentes.
Aí me lembro do desespero, o sentimento que os impulsionou a atravessar
aquela rua e enfrentar o perigo e o desconhecido.
Então fica claro: só quem viveu e superou situações extremas pode ser
tão feliz. Estes gatos são sobreviventes e, por isso, dão tanto valor à vida e a
celebram diariamente como uma benção divina.
62. Quatro gatinhos pretos – Segunda parte
E a rotina continuou: muita alegria, celebração e muita, muita
curiosidade. Esta característica, por sinal, também diferenciava um dos
irmãos: Tico é mais curioso e amoroso com as pessoas, Teco mais
independente e próximo dos outros gatos.
Tico sempre me esperava pela manhã à porta do gatil e era o último a se
despedir à noite. Sempre interrompia suas atividades para correr até a
porta e desejar-me boa noite com seu olhar doce e carinhoso.
Uma manhã, no entanto, ele não estava me aguardando. Um rato, um
pássaro, a eterna curiosidade dos gatos, algo o impulsionou a forçar a tela
do gatil e sair para explorar o mundo lá fora.
Nesse momento, é como se houvesse uma cisão no tempo, uma
interrupção que paralisa ações e sacode sentimentos.
Para não sucumbir ao desespero você começa a planejar todo tipo de
buscas, diurnas e noturnas, silenciosas e barulhentas, racionais,
meticulosas e também descontroladas. Pede ajuda a todos, amigos e
conhecidos e faz contato com vizinhos que nem sabia que existiam.
A busca constante e obsessiva acaba levando a uma exaustão que faz
você questionar todas suas convicções. Afinal, para que eu salvara a vida
desses quatro gatos, se era para ele fugir e ficar em perigo novamente. Não
tinha sentido. Ou será que o trabalho de ajuda aos animais é que não tem
sentido?
O tempo vai passando e você começa a fraquejar, ânimo e desânimo se
alternam num mesmo dia, especialmente quando saímos atrás de pistas
falsas, dicas bem intencionadas daqueles que pretendem ajudar e elas se
tornam em novas frustrações. Como alternativa, você articula novas táticas
que também acabam apontando para sua impotência e fracasso.
Mesmo evitando a todo custo, passamos a imaginar os perigos e assim,
como num pesadelo, tudo se torna perigoso, desde o cachorro do vizinho
até o carro cruzando sua rua. E a fome e a sede são presenças constantes
quando você troca a água ou coloca ração na vasilha dos outros gatos.
E, o mais cruel, o fato dele ser um gato preto, aquele que sofre mais
discriminação e que corre mais perigo nas ruas.
Soma-se à dor da perda o desespero da impotência e o resultado é a
tristeza que se abate sobre tudo e contagia indistintamente pessoas e gatos.
63. Talvez para me consolar, Teco começou a tomar algumas atitudes que
antes eram próprias de seu irmão: esperava-me na porta do gatil, despedia-
se quando eu saia e tentava brincar sozinho. Corria para todos os lados
tentando contagiar os outros gatos, sem sucesso, porém. Então, postava-se
no local exato onde a tela fora forçada e chamava:
R A U L R A U L R A U L R A U L R A U L
T. S. Eliot em um de seus poemas fala sobre o nome secreto dos gatos, o
nome que eles partilham entre si e não nos contam. Teco, em sua dor,
deixou escapar o segredo e eu fiquei sabendo o nome verdadeiro do Tico.
De todo modo, a busca não foi totalmente infrutífera, pois resultou no
acolhimento de quatro outros gatinhos pretos que ficaram muito
agradecidos ao Tico quando foram encaminhados para seus novos lares.
Numa noite, 67 dias ou 1608 horas depois, eu ouço um fraco miado
vindo da rua, uma vozinha leve e insistente.
- É você, Tico?
E, contra todas as probabilidades, ele pula de uma árvore direto para
meu colo, como se estivesse acabado de se despedir à porta do gatil. Como
se não houvesse ocorrido uma interrupção, como se essa suspensão
temporal, este hiato de dor, fosse fruto da minha imaginação.
Minha rotina mudou. Hoje eu acordo, abro a cortina do quarto e quando
vejo os dois gatinhos pretos brincando, começo meu dia com um sorriso de
alívio e satisfação e agradeço a preciosa dádiva que me foi concedida.
Para eles houve uma retomada da rotina e, para mim, uma grande
mudança.
PS.:
Outro dia, estava acariciando Tico e recordando aqueles dias terríveis,
quando ele me olhou bem nos olhos e soprou um pensamento:
- “Nunca contei pra você, para não chateá-la. Mas, eu me diverti muito
enquanto estava fora: passeei, conheci lugares novos, fiz muitos amigos e
aprendi coisas interessantes. Hoje sou bem mais esperto e vivido.
Vinha toda noite para comer a ração que você deixava no muro da casa,
para o caso de eu voltar com fome.
Eu só voltei mesmo porque te ouvia me chamar, até altas horas e você
chorava também, coitada.
O certo é que não dá para se ter tudo: liberdade, boa comida e amor.
Fazer o que?”
Tive vontade de lhe dar um beliscão, mas emocionada, eu o abracei e dei-
lhe um sonoro beijo.
64.
65. Pequeno equívoco
Hoje foi um dia daqueles!
Se eu fosse supersticioso diria que essa segunda-feira está mais para
sexta-feira 13 do que qualquer outra coisa.
Mas não, eu não posso alimentar este tipo de sentimento: preconceito,
superstição são coisas similares e eu tenho que lutar contra elas.
Desde que nasci que ouço: Xô, Xô, Sai Gato Preto ... Gato Preto dá Azar!
Eles me enxotam como se eu tivesse algum dom especial, como se a
minha cor me concedesse poderes ... como se eu pudesse alterar algo que
está fora de mim, transmitir azar a alguém, por exemplo.
É tudo muito doido! Eu não consigo mudar meu próprio destino, como
poderia ter alguma influência sobre a sorte ou o azar das pessoas que
cruzam meu caminho?
E o mais incrível é que tem gente que acredita nesse meu poder. Se eu
tivesse algum, seria para melhorar minha vida e não para prejudicar a vida
desses seres estranhos e irracionais chamados “humanos”.
No entanto, vejam o meu dia.
Eu estava tranquilamente tomando sol com minha irmã mais nova,
quando começou uma gritaria daquelas. Como sempre eles estavam
conversando, depois discutindo, depois brigando e sempre culpando um ao
outro. Eles são muito bons nisso.
No fundo, eu sabia que ia sobrar pra mim, mas nunca supus que as coisas
pudessem chegar a tal ponto. Achei que iam só me expulsar, como era de
hábito.
Tá certo que eles nunca se importaram muito comigo: comida, só às
vezes. Carinho, então, nem pensar. Ficará para sempre a dúvida: será que
se eu fosse um gato branco e peludo, seria tratado de outra maneira?
Pelo menos eu tinha um cantinho só meu ... lugar tranquilo onde podia
observar as coisas dos humanos seguirem seu curso.
Certas atitudes são tão surpreendentes que eu não tive nenhuma reação.
Poderia ter tentado fugir, mas estava tão espantado que deixei que me
colocassem, junto com minha indefesa irmã, em uma caixa de papelão. Eu
não reagi, santa ingenuidade, pois não imaginei que pudesse haver
qualquer relação entre a discussão que acontecia e minha pacata figura.
Nós fomos amarrados numa caixa, fizeram uns furinhos generosos, e
66. levados para bem longe dali.
Começou então nossa longa agonia. Durante horas, eu diria muitas horas,
eu só consegui ouvir carros passando e freadas violentas. Estávamos, eu
mal pude acreditar, no meio de uma estrada muito movimentada. Eu só
conseguia ouvir o barulho dos pneus, cada vez mais próximos e, à medida
que o desespero crescia, ia ficando totalmente paralisado, certo de que
aquele seria meu último suspiro.
Depois de um longo período, eu já não tinha mais nenhuma reação.
Exausto, mal conseguia abrir os olhos, aliás, tinha muito medo de abri-los.
Estava ciente da inutilidade de qualquer esforço e deixei que a impotência e
o desespero tomassem conta de todo meu ser.
A partir desse momento, passei a ouvir apenas as batidas do meu
coração que, gradativamente, foram se tornando mais fortes do que o
barulho dos pneus no asfalto.
De repente, o silêncio. Estávamos sendo levados dali. E, como se
estivesse despertando de um pesadelo, comecei a ouvir vozes:
- Meu Deus! Uma mãe com seu filhinho. Coitados, estão tão apavorados!
Estão em pânico, mal conseguem respirar !!!!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Então, entre apavorado e indignado, finalmente me rendi.
Eu desisto. Nunca mais tento entender o ser humano. Primeiro me
prendem naquela caixa apertada, fedida e asfixiante. Depois, passado o
susto, e eu mal consegui me recuperar, aparece essa louca: - Mãezinha pra
cá, mãezinha pra lá! Só porque estou abraçado com minha irmã e sou,
digamos, meio gordinho ...
Quem ela pensa que eu sou?
Pra mim chega! Eu desisto. Nunca fui tão humilhado.
67. Dar nomes aos gatos
Dar nome aos gatos é uma arte. Requer um certo tempo, criatividade e
alguma paciência.
Precisamos de tempo para testar a eficácia do nome escolhido.
Normalmente fazemos várias tentativas até chegar àquele som que tem a
“cara do seu gatinho”. Quando acertamos, eles respondem na hora. Bingo!
Será que é porque eles mesmos escolheram o nome?
Criatividade: alguns nomes são motivados por circunstancias exteriores
ao bichinho, a época em que ele chegou, por exemplo. Outras vezes, nos
atemos à maneira ou ao local onde ele foi encontrado. Temos ainda nomes
desencadeados pela própria personalidade do gato, são os nomes que eles
mesmos nos sugerem.
Este processo permite a nós humanos ser muito mais criativos, pois não
precisamos, neste caso, agradar parentes ou o pai da criança. Ninguém vai
tentar nos impor aquele nome horrível, mas que homenageia uma tia
recém-falecida. No nome do meu gato, ninguém dá palpite!
Além de todas estas facilidades, temos ainda algum tempo para testar o
acerto da escolha. Se surgir outro nome mais adequado, pode-se ainda
corrigir o erro. Temos o tempo que o gato precisa para se acostumar ao
som de seu nome.
E o leque de opções é quase infinito. Podemos dar nomes de plantas,
flores, frutas, lugares, sentimentos e mesmo nomes humanos. A escolha
destes últimos aproxima felinos de nós humanos, faz surgir uma certa
cumplicidade, intimidade, um elo entre espécies. Algumas pessoas se
incomodam quando gatos levam seus nomes, mas eu acho que não existe
homenagem mais carinhosa.
Nos gatos é permitido colocar nomes em outro idioma e não correr o
risco de parecer brega. Dependendo do tipo do gato, essa escolha é até
inevitável. Alguns deles só podem ter nomes ingleses e ainda acrescidos de
Sir ou Lady. Outros, muito dengosos, pedem nomes franceses.
O prazer da escolha de um nome é um capítulo à parte. Um pouco de
pesquisa e depois é só deixar por conta de sua imaginação. Vou tentar me
lembrar de gatos passados e presentes e do processo de escolha de seus
nomes.
Eddie: meu primeiro gatinho preto. Foi só observá-lo por alguns