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O livro fala sobre animais abandonados e reúne diversas crônicas que
relatam resgates, encontros e desencontros. O livro conta também
minha experiência como protetora independente por mais de 20 anos e
da doação de mais de 2.200 animais de rua para várias cidades do
Brasil e também para Portugal e Espanha.
Algumas das histórias são narradas pelos próprios animais e outras
tratam de sua situação de abandono no Brasil.
As ilustrações são de Marcelo Calenda.
Cães & Gatos: Encontro Marcado inclui a crônica “Judaísmo e os
animais” que procura mostrar como, há cerca de 3000 anos, já se falava
de compaixão por esses seres indefesos e sobre bem-estar animal.
“O	dia	é	curto	e	a	tarefa	é	grande.	Não	cabe	a	você	completar
o	 trabalho,	 mas	 sim	 envolver-se	 nele,	 mas	 você	 também	 não
está	 livre	 para	 desistir	 dele.”	 Pirkei	 Avot	 -	 Ética	 dos	 Pais
(2:15,16)
ENCONTRO	MARCADO	COM	CÃES
Animais	e	Justiça	Social:	um	outro	olhar
sobre	os	animais
Esse	livro	tem	como	tema	os	animais	e	também	Justiça	Social.
Os	animais	são	as	personagens	centrais	de	todas	as	crônicas,	mas	não
qualquer	animal,	e	sim	aquele	que	não	teve	nenhum	privilégio,	aquele	que
foi	abandonado	pela	sociedade.
Enquanto	 algumas	 pessoas	 cuidam	 com	 responsabilidade	 de	 seus
animais	 de	 estimação,	 outras	 não	 lhes	 oferecem	 uma	 vida	 digna	 e,	 na
primeira	dificuldade,	os	descartam	como	se	fossem	objetos.	É	para	esses
seres	rejeitados,	na	sua	grande	maioria	vira-latas,	que	esse	livro	é	dedicado
e	 todas	 as	 histórias	 refletem	 minha	 experiência	 como	 protetora
independente	por	mais	de	vinte	anos.
Os	 animais	 foram	 domesticados	 para	 cumprir	 vários	 propósitos	 como
segurança,	 caça	 e,	 no	 caso	 dos	 gatos,	 proteção	 dos	 alimentos	 contra
predadores.	Entretanto,	no	momento	em	que	eles	saíram	de	seu	habitat	e
começaram	a	servir	ao	homem,	não	conseguiram	mais	sobreviver	sozinhos
e,	por	séculos,	eles	dependem	do	ser	humano	para	suprir	suas	necessidades
básicas.
O	 homem	 porém,	 falhou	 com	 esses	 seres	 inocentes,	 usou-os	 sem
nenhuma	 gratidão	 e	 sem	 oferecer	 nada	 em	 troca	 de	 sua	 dedicação	 e
fidelidade.	Por	isso,	esse	livro	fala	de	Justiça	Social,	pois	ela	inclui	também
os	animais.
As	histórias	não	procuram	humanizar	os	animais,	pois	não	cabe	a	eles
suprir	 desejos,	 necessidades	 ou	 carências	 dos	 seres	 humanos.	 Elas	 não
fazem	apologia	de	um	tipo	de	amor	que	substitua	a	convivência	entre	os
homens,	 elas	 não	 falam	 de	 exclusão	 e	 sim	 de	 inclusão.	 Aqui	 não	 se	 tece
juízos	 de	 valor	 e	 nem	 se	 considera	 que	 a	 ajuda	 dada	 aos	 animais	 seja
superior	ou	inferior	à	ajuda	que	devemos	dar	a	nosso	próximo.
Esse	livro	pretende	apenas	apontar	para	uma	injustiça	histórica	e	para	a
necessidade	 de	 corrigirmos	 esse	 erro	 ao	 sugerir	 que	 os	 animais
abandonados	têm	direito	a	uma	vida	digna.
Em	 suma,	 ele	 propõe,	 um	 outro	 olhar	 na	 relação	 entre	 humanos	 e
animais,	o	mesmo	olhar	de	amor	e	respeito	com	que	eles	foram	criados,	um
olhar	de	compaixão	que	foi	formulado	há	cerca	de	3.000	anos	pela	Torá,
Bíblia	Judaica.
O	 Judaísmo	 ensina	 que	 somos	 proibidos	 de	 ser	 cruéis	 para	 com	 os
animais	 e	 que	 devemos	 tratá-los	 com	 compaixão,	 pois	 eles	 são	 parte	 da
criação	divina	e	as	pessoas	têm	responsabilidades	especiais	para	com	eles.
Este	conceito	 está	resumido	 no	lema	tsa’ar	 ba’alei	chayim:	 não	podemos
causar	dor	a	nenhuma	criatura	viva.
O	Judaísmo	propõe	também	uma	prática	chamada	Tikun	Olam,	que	quer
dizer	reparar	o	mundo	e	é	um	modo	de	agir	visando	consertar	os	defeitos
de	 nosso	 planeta.	 Uma	 pessoa	 faz	 Tikun	 Olam	 quando	 encontra	 uma
maneira,	sua	própria	maneira	de	realizar	a	tarefa	de	tornar	o	mundo	por
Ele	criado	em	um	lugar	melhor	para	todos	os	seres	vivos	e	assim,	ela	se
torna	parceira	de	Deus	em	Sua	criação.
Deus	gostou	de	Sua	criação,	abençoou-a	e	deixou-nos	a	incumbência	de
aperfeiçoar	 Sua	 obra,	 como	 foi	 dito	 na	 Ética	 dos	 Pais:	 “O	 dia	 é	 curto	 e	 a
tarefa	é	grande.	Não	cabe	a	você	completar	o	trabalho,	mas	sim	envolver-se
nele,	mas	você	também	não	está	livre	para	desistir	dele.”	Pirkei	Avot	-	Ética
dos	Pais	(2:15,16)
Por	isso,	nós	precisamos	agir	sempre	que	encontramos	alguma	injustiça
que	precisa	ser	corrigida:
“Quando	os	nossos	estudos	excedem	as	nossas	ações,	somos	como	árvores	cujos	ramos	são
muitos,	mas	as	raízes	são	poucas:	o	vento	vem	e	nos	arranca.	Quando	nossas	ações	excedem	os
nossos	 estudos,	 somos	 como	 árvores	 cujos	 ramos	 são	 poucos,	 mas	 nossas	 raízes	 são	 muitas:
assim,	mesmo	que	todos	os	ventos	do	mundo	venham	e	soprem	contra	elas,	serão	incapazes	de
movê-las.”	Pirkêi	Avot	–	Ética	dos	Pais	(3:22)
Muitas	 das	 histórias	 desse	 livro	 narram	 “coincidências”,	 animais	 que
foram	 salvos	 graças	 a	 situações	 que	 se	 sucederam	 e	 criaram	 conexões
perfeitas.	 O	 Judaísmo,	 por	 seu	 lado,	 nos	 ensina	 que	 não	 existem
coincidências,	 tudo	 está	 perfeitamente	 conectado,	 como	 descrito	 na
história	 da	 folha	 e	 da	 formiga	 atribuída	 ao	 Baal	 Shem	 Tov,	 fundador	 do
movimento	Chassídico:
Baal	Shem	Tov	disse	que	quando	um	pedaço	de	palha	cai	de	um	vagão,
isso	foi	decretado	pelo	Céu.	Da	mesma	forma,	quando	uma	folha	cai	de	uma
árvore,	é	porque	o	Céu	decretou	que	essa	folha	especial,	neste	momento
particular,	deveria	cair	nesse	determinado	ponto.	Uma	vez	Baal	Shem	Tov
mostrou	 aos	 seus	 discípulos	 uma	 folha	 caindo	 no	 chão	 e	 disse-lhes	 para
buscá-la.	Eles	o	fizeram	e	viram	que	uma	formiga	estava	debaixo	dela.	O
mestre	então	explicou	que	a	formiga	estava	sofrendo	muito	devido	ao	calor
e	que	a	folha	tinha	caído	para	dar-lhe	sombra.
Mais	 do	 que	 compaixão,	 o	 olhar	 proposto	 nesse	 livro	 assinala	 que	 os
animais	são	seres	sencientes,	ou	seja,	sentem	dor,	medo	e	diversas	outras
emoções	 e	 se	 diferenciam	 dos	 humanos	 apenas	 no	 aspecto	 racional	 e	 na
comunicação	verbal	e,	uma	vez	que	eles	são	seres	que	amam	e	são	fiéis	a
seus	 tutores,	 têm	 direito	 a	 uma	 vida	 digna	 e	 merecem	 ser	 tratados	 com
respeito.	Porque	são	seres	que	não	podem	se	defender	sozinhos,	nós	temos
o	dever	de	amenizar	seu	sofrimento	e	tentar	corrigir	a	injustiça	milenar	a
que	eles	são	submetidos.
Encontro	marcado	com	Pintada
Pintada	sempre	foi	uma	cadela	muito	especial,	única	com	relação	à	sua
aparência	e,	agora	percebo,	também	sua	boa	estrela.
Seu	 corpo	 é	 todo	 malhado,	 preto	 e	 branco,	 como	 as	 pinceladas	 de	 um
artista	impressionista.	Seu	rosto,	porém	é	marrom,	como	se	pertencesse	a
outro	 corpo	 ou	 então	 tivessem	 esquecido	 de	 finalizá-lo,	 pois	 faltam	 as
pinceladas	pretas	e	brancas.	Quando	você	a	olha	pela	segunda	vez,	já	não
tem	a	mesma	impressão,	você	a	acha	bonita,	de	tão	meiga	e	serena	que	ela
é.	É	isso,	ela	é	principalmente	serena	como	se	soubesse	que	no	final	tudo
dará	certo	e	as	peças	do	quebra-cabeça,	por	mais	estranhas	e	inusitadas
que	pareçam,	irão	se	encaixar.
Perplexidade	é	o	que	sinto	até	agora.	Passadas	muitas	horas	do	ocorrido,
eu	ainda	não	consegui	digerir	todas	as	informações.
Pintada	surgiu	certo	dia	em	frente	de	casa,	ainda	filhote,	muito	magra	e
com	sarna.	Depois	de	medicada	e	bem	alimentada	ficou	aguardando	por	um
dono	 que	 veio	 buscá-la	 muitos	 meses	 depois.	 Neste	 dia,	 eu	 a	 vi	 partir
assustada,	 sem	 entender	 o	 que	 estava	 acontecendo	 e	 nos	 deixando	 com
aquela	sensação	que	sempre	retorna	nesses	momentos:	não	podemos	ficar
com	todos	os	animais	que	resgatamos	e,	contra	nossa	vontade,	precisamos
deixá-los	 partir	 sem	 a	 plena	 certeza	 de	 que	 irão	 ficar	 bem.	 Só	 nos	 resta
torcer	por	eles	e	esperar	sempre	pelo	melhor.
Depois	disso,	tive	notícias	frequentes	da	Pintada	e	informaram	que	ela
estava	bem	e	se	acostumando	ao	novo	lar.	Depois	de	alguns	meses,	ela	já
parecia	estar	bem	adaptada.
Hoje,	 depois	 de	 quase	 um	 ano	 da	 doação,	 decidi	 ir	 ao	 supermercado
numa	 cidade	 próxima,	 lugar	 onde	 nunca	 tinha	 estado	 e	 aonde
provavelmente	 não	 retornarei,	 para	 comprar	 um	 produto,	 não	 tão
importante,	que	estava	em	oferta.	Por	que	hoje	ou	por	que	decidi	fazer	algo
que	nunca	fizera	antes?
Na	porta	de	entrada	do	supermercado,	com	aquele	ar	desolado	que	só	os
animais	abandonados	têm,	eu	vi	a	Pintada.	Inicialmente,	não	acreditei	em
meus	olhos	e	pronunciei	seu	nome	mais	por	susto	que	por	constatação.	Um
grito	de	alívio	foi	sua	resposta,	quase	um	choro,	um	misto	de	surpresa	e
esperança.
Sim,	 era	 ela,	 com	 uma	 leve	 cicatriz	 perto	 do	 focinho,	 castrada	 e
principalmente	com	aquela	pelagem	inconfundível.
Como	ela	fora	parar	nesse	lugar?	Como	nós	fomos	parar	nesse	lugar?
Depois	 do	 choque	 inicial,	 levei	 Pintada	 para	 o	 carro	 e	 ela	 foi	 se
aninhando	 no	 banco	 traseiro	 e	 começou	 a	 cochilar	 quase	 que
instantaneamente.	Ela	parecia	estar	finalmente	relaxando,	depois	de	muito
tempo	de	tensão	e	sofrimento.
Será	que	ela	fora	abandonada	ou	estava	tentando	voltar	para	o	local	em
que	 fora	 feliz?	 Como	 ela	 sabia	 que	 tinha	 que	 me	 esperar	 àquela	 hora,
naquele	local?	Que	força	poderosa	é	essa	que	nos	reuniu?
Tínhamos	 um	 encontro	 marcado	 para	 aquele	 dia	 e	 para	 lá	 fomos
transportados,	quase	como	marionetes.
Eu	não	tenho	essas	respostas.
A	 única	 certeza	 que	 tenho	 é	 que	 Pintada	 é	 uma	 cachorrinha	 que	 tem
muita	sorte.	Ou	será	que	a	sorte	é	nossa	por	conhecê-la?
E	 o	 produto	 que	 eu	 fui	 procurar	 no	 supermercado?	 Vocês	 podem
acreditar,	já	estava	esgotado.
Maria	Chiquinha,	um	grande	achado
Ela	 vinha	 ziguezagueando	 pela	 avenida,	 totalmente	 desnorteada.	 Os
carros	passavam	ao	seu	lado	e	ela	seguia	em	frente,	trêmula,	desengonçada,
em	pânico	total.
Quando	 tentei	 pegá-la,	 ela	 quase	 me	 mordeu	 e	 eu	 tive	 que	 jogar	 meu
casaco	 para	 conseguir	 segurá-la.	 Nesta	 hora,	 vi	 uma	 bicheira	 imensa	 em
uma	 das	 patas,	 muitos	 nós	 em	 seus	 pelos	 longos	 e	 encardidos	 e	 um
chumaço	que	cobria	todo	seu	rosto.	Quando	finalmente	consegui	ver	seus
olhos,	entendi	tudo,	ela	era	cega	e	não	sabia	por	onde	estava	caminhando,
só	pressentia	o	perigo	iminente.
Fiquei	chocada	por	vários	dias,	pois	coloquei-me	em	seu	lugar	e	consegui
sentir	 seu	 desespero:	 ela	 sabia	 que	 tinha	 que	 continuar	 procurando	 um
abrigo,	um	local	seguro,	mas	não	tinha	a	menor	ideia	de	qual	direção	tomar.
Até	hoje	recordo	esse	momento,	não	deve	existir	desespero	maior	do	que
aquele	sentido	por	um	cego	vagando	sozinho	em	terreno	desconhecido.
E	também	não	pode	haver	maior	covardia	do	que	a	cometida	por	pessoas
que	abandonam	animais	cegos	à	sua	própria	sorte.
Nunca	pensei	em	doar	a	Maria	Chiquinha,	não	tive	coragem.
Tentei	fazer	com	que	ela	se	acostumasse	a	um	local	tranquilo,	seguro	e
bem	 delimitado.	 No	 início,	 ela	 só	 ficava	 embaixo	 de	 um	 armário	 e	 lá	 eu
colocava	sua	comida	e	água.	Ela	foi	saindo	aos	poucos	e	esse	processo	foi
longo	 e	 com	 muitos	 retrocessos.	 Eu	 não	 podia	 forçar	 nada,	 uma
aproximação,	 um	 afago,	 e	 ela	 se	 fechava	 novamente	 e	 voltava	 para	 seu
esconderijo.
Aos	poucos,	ela	se	acostumou	e,	algum	tempo	depois,	começou	a	relaxar.
Mas,	tranquila	não	é	bem	a	palavra	para	descrevê-la,	pois	ela	está	sempre
atenta,	desconfiada	e	pronta	para	se	defender	de	algum	perigo	que	só	ela
pressente	 ou	 fareja.	 Hoje	 percebo	 que	 Chiquinha	 confia	 em	 mim	 e	 se
entrega	às	vezes	com	prazer	e	outras	com	resignação	às	minhas	exageradas
demonstrações	de	carinho.
Maria	Chiquinha	está	feliz,	mas	seu	espaço	é	permanentemente	invadido:
ela	 fica	 na	 lavanderia	 onde	 também	 abrigo	 os	 filhotes	 resgatados	 que
aguardam	adoção.
No	 começo,	 isso	 me	 incomodava	 muito,	 pois	 achava	 que	 não	 estava
conseguindo	dar	a	ela	a	paz	que	ela	merecia.
Aos	poucos	percebi	que	esta	é	sua	missão,	educar	os	filhotes.	E	ela	sabe
muito	 bem	 como	 fazê-lo:	 é	 enérgica,	 não	 gosta	 de	 bagunça,	 sujeira	 ou
barulho	fora	de	hora.	Todo	mundo	aprende	a	fazer	suas	necessidades	no
lugar	certo,	aprende	a	hora	certa	para	cada	coisa	e,	principalmente,	a	hora
de	dormir.	É	maravilhoso	observar	essa	menina	tão	pequena	e	frágil	dando
bronca	 em	 cachorros	 duas	 ou	 três	 vezes	 maiores	 que	 ela	 e	 eles
obedecendo!
Várias	 pessoas	 já	 me	 elogiaram,	 pois	 os	 filhotes	 que	 doo	 são	 muito
educados,	tranquilos,	asseados	e	obedientes.
Claro,	com	uma	mãezinha	tão	rigorosa	e	competente,	não	poderia	ser	de
outra	maneira.
Raposa
A	Raposa	morreu!
Ninguém	parecia	acreditar	no	que	estava	acontecendo.	Tínhamos	tanta
certeza	que	ela	viveria	muitos	anos	ainda.
Raposa	 iria	 sobreviver	 a	 todos	 os	 outros	 cachorros	 e	 morreria	 bem
velhinha.	Eu	também	estava	certa	disso.
Estou	falando	dos	cachorros	do	condomínio	que	moram	nas	guaritas	há
anos.	Eles	são	cachorros	especiais	que	conquistaram	seu	espaço	depois	de
muita	luta	e	persistência.	Muitos	passam	por	lá	todos	os	dias,	mas	só	alguns
permanecem	 e	 todos	 os	 residentes	 têm	 algo	 em	 comum:	 persistência,
docilidade	e	esperteza.
Raposa,	 com	 certeza,	 nasceu	 no	 mato	 e,	 de	 algum	 modo,	 conseguiu
sobreviver.
Certa	 manhã,	 ela	 foi	 se	 aproximando	 e	 esse	 processo	 foi	 muito,	 muito
longo.	Foi	chegando	bem	devagar,	desconfiada,	medrosa	e	arisca.
Meses	depois	já	vinha	comer.	Dormir	na	casinha,	porém,	nem	pensar!	O
mato	era	bem	mais	seguro.
Um	dia,	ela	chegou	de	vez,	silenciosa	e	suavemente.	Chegou	e	ficou.
Logo	depois,	levei-a	para	castrar.	Ela	voltou	assustada	e,	ao	contrário	de
outros	 cachorros,	 teve	 complicações	 sérias.	 Uma	 manhã,	 percebi	 que	 ela
estava	muito	agitada	e,	ao	me	aproximar,	vi	suas	entranhas	começando	a
sair.
Após	horas	de	perseguição,	ela	foi	novamente	internada.	Nova	cirurgia.
Mais	umas	semanas	e	Raposa	volta	triunfante	para	a	guarita.
Ainda	ouço	todos	felizes	e	brincando:
-	 Raposa	 não	 morre	 mais!	 Ela	 deve	 ter	 alma	 de	 gato:	 mais	 umas	 seis
vidas,	pelo	menos	...
Três	anos	depois,	novamente	estranhei	sua	ausência:	ela	esperava	minha
visita	diária	com	a	maior	assiduidade.	Sabia	a	hora	exata	da	minha	chegada,
portanto,	 algo	 errado	 acontecera.	 Depois	 de	 três	 dias	 de	 procura,	 ela
apareceu,	só	que	dessa	vez,	Raposa	veio	se	arrastando	até	a	guarita	com	a
bacia	fraturada	e	sem	seu	lindo	e	volumoso	rabo.
-	Onde	já	se	viu	uma	Raposa	cotó?
Novamente	ela	foi	internada	mas,	desta	vez,	por	um	longo	período.
Seu	retorno	foi	ainda	mais	comemorado:
-	Esta	tem	ainda	umas	cinco	vidas	pela	frente	...	Raposa	não	morre	tão
cedo!
Depois	do	acidente,	ela	passou	a	demonstrar	sua	felicidade	balançando
todo	o	corpo.	Na	ausência	do	rabo,	Raposa	gingava.
E	não	é	que	a	Raposa	morreu!
Silenciosa	e	suave	como	chegou,	ela	desprezou	a	caminha	quente	que	eu
lhe	presenteei	e	foi	à	procura	da	original.	Deitou-se	em	sua	cama	de	folhas	e
partiu.
Restou	um	imenso	vazio	e	a	certeza	de	que	sua	partida	foi	prematura.
Pior	ainda,	ela	ficou	nos	devendo	suas	outras	vidas.
Rita
Consegui	doar	uma	cadela	adulta	e	vira-lata,	uma	combinação	explosiva
e	que	dificulta	as	doações.
Rita	porém,	é	pequena	e	bonita,	com	pelagem	de	Husky	e	tamanho	de
Poodle	 e	 tem	 aquele	 encanto	 e	 beleza	 que	 só	 os	 vira-latas	 possuem:	 as
muitas	misturas	originam	aparências	totalmente	inusitadas,	algumas	delas
incomparáveis.	Se	você	tem	um	vira-lata,	sabe	do	que	eu	estou	falando,	ele
com	certeza	é	único	e	especial,	não	existe	nenhum	outro	cachorro	que	se
pareça	com	ele.
Logo	apareceu	uma	família	querendo	adotar	Rita.
Mas,	não	sei	se	é	porque	esperavam	por	um	cachorro	de	raça,	só	sei	que
a	 devolveram	 após	 alguns	 dias	 com	 milhares	 de	 justificativas,	 todas	 elas
banais.
Lá	fui	eu	buscar	a	Rita	de	volta.
Para	 chegar	 à	 casa	 da	 família	 é	 preciso	 atravessar	 toda	 a	 cidade,	 uma
pequena	cidade	do	interior.	Cruzei	ruas	repletas	de	animais	abandonados,
de	crianças	pedindo	esmola	e	adultos	sem	esperança.	Você	vai	observando
em	 cada	 quarteirão	 três	 ou	 quatro	 cães	 famintos,	 mutilados	 por
atropelamentos,	cobertos	de	sarna	e	cruzando.	Em	breve	teremos	muitos
mais	perambulando	por	aí	e	sofrendo.
Pois	 bem,	 peguei	 a	 Rita	 com	 um	 nó	 na	 garganta	 e	 saí	 contando	 os
cachorros	e	homens	abandonados	que	eu	via	pelo	caminho	de	volta,	com
uma	angústia	que	crescia	a	cada	quarteirão,	enquanto	me	perguntava	qual
seria	o	sentido	desta	doação	mal	sucedida	e	desta	viagem.	Por	que	eu	tivera
que	ir	até	lá	e	ver	tudo	aquilo?	Qual	seria	a	explicação	para	o	sofrimento	de
todos	esses	animais	racionais	ou	não?
O	auge	da	minha	tristeza	foi	quando	vi,	no	centro	da	cidade,	um	dálmata
em	 exposição	 numa	 casa	 de	 rações.	 Ele	 estava	 em	 uma	 gaiola	 muito
pequena,	 sem	 comida	 ou	 água	 e,	 como	 já	 tinha	 uns	 três	 meses	 de	 idade,
ficava	com	as	patas	para	fora	das	grades	por	absoluta	falta	de	espaço.	Por
um	breve	momento,	ele	tentou	se	levantar,	mas	não	teve	sucesso.	Enquanto
eu	 me	 distanciava,	 podia	 ver	 seus	 esforços	 inúteis,	 sua	 impotência	 e	 o
desânimo	que	ia	tomando	conta	dele	e	de	tudo	que	o	cercava.
Cheguei	 em	 casa	 arrasada,	 só	 querendo	 compreender:	 qual	 é	 a
explicação	para	tudo	isso?
No	dia	seguinte,	um	conhecido	da	família	veio	nos	visitar	e,	respondendo
à	clássica	pergunta	sobre	se	queria	adotar	um	cachorro,	disse:	Só	se	for	um
dálmata.
No	mesmo	instante,	eu	lhe	dei	a	localização	da	casa	de	rações,	ele	foi	até
lá	 e	 comprou	 a	 Frida	 Kahlo	 por	 um	 preço	 simbólico	 e	 hoje	 ela	 é
companheira	do	Van	Gogh,	também	um	dálmata.
Quando	 Frida	 chegou	 em	 seu	 novo	 lar,	 não	 conseguia	 esconder	 sua
felicidade:	 passou	 dois	 dias	 correndo	 de	 um	 lado	 a	 outro	 do	 quintal,
incansável,	como	se	quisesse	expandir	ainda	mais	sua	liberdade	e	anunciá-
la	ao	mundo.
Percebo	 agora	 que	 esse	 foi	 o	 sentido	 da	 minha	 viagem,	 da	 doação	 e
devolução	 da	 Rita:	 ela	 pacientemente	 me	 ensinou	 o	 caminho	 para	 que	 a
Frida	fosse	resgatada.
O	Observador	-	história	do	cachorro
Babão
Fomos	recolhidos	por	uma	senhora	sensibilizada	com	nossa	situação	de
animais	abandonados.
No	 começo	 éramos	 poucos,	 bem	 alimentados,	 usufruindo	 de	 bastante
espaço	 e	 felizes.	 Muitos	 eram	 filhotes	 eu,	 porém,	 já	 cheguei	 velho,	 fui
abandonado	depois	de	adulto.
Após	certo	tempo,	já	éramos	muitos	para	dividir	o	quintal	da	casa	e	a
solução	 encontrada	 foi	 a	 de	 nos	 deixar	 presos	 a	 correntes	 ou	 em
minúsculos	 cercados.	 A	 comida	 também	 passou	 a	 ser	 escassa	 e	 a
superpopulação	nos	tornou	irritados,	fazendo	com	que	brigássemos	muito.
Depois	de	certo	tempo,	estávamos	divididos	em	dois	grupos:	os	valentes	e
os	medrosos;	os	que	batem	e	os	que	apanham.
Eu	entendo	que	a	querida	senhora	teve	a	melhor	das	intenções,	ela	não
queria	nos	ver	sofrendo.	Na	minha	modesta	opinião,	os	culpados	por	essa
situação	 são	 as	 pessoas	 que	 não	 cuidam	 de	 seus	 animais	 de	 estimação,
aqueles	que	os	abandonam	por	qualquer	motivo	ou	sem	motivo,	os	que	não
castram	seus	bichos,	deixando	nascer	filhotes	indesejados	que,	por	sua	vez,
também	serão	abandonados.
Só	sei	que	para	mim	teve	início	um	período	muito	difícil,	pois	além	de
tudo,	eu	fui	espancado	ainda	jovem	e	hoje	não	consigo	mais	movimentar
meus	 maxilares,	 nem	 para	 me	 defender,	 comer	 ou	 mesmo	 beber.	 Eu	 me
babo	 todo,	 pois	 a	 ração	 e	 a	 água	 precisam	 escorrer	 pela	 minha	 garganta
para	serem	ingeridas	e	por	isso	me	chamam	Babão.
Assim,	 só	 me	 resta	 ficar	 no	 meu	 posto	 avançado,	 observando	 o
sofrimento	dos	meus	irmãos	e	as	ações	dos	humanos.
Certo	dia,	chegou	a	Vigilância	Sanitária	e	deu	prazo	de	uma	semana	para
mudança	 de	 local	 ou	 seríamos	 todos	 mortos.	 Pela	 agitação	 das	 pessoas
percebemos	 que	 a	 situação	 era	 mesmo	 grave.	 Ficamos	 também	 muito
agitados,	 esperando	 pelo	 pior,	 mas	 num	 domingo,	 chegaram	 outras
senhoras	 com	 ajudantes	 e	 um	 caminhão	 e	 fomos	 todos	 empilhados	 e
fizemos	uma	longa	viagem.
Estamos	agora	em	um	sítio.	Meus	irmãos	estão	em	baias	maiores	mas,
mesmo	assim,	ainda	brigam	muito,	porque	não	estão	acostumados	a	dividir
o	 mesmo	 espaço.	 Só	 vejo	 um	 pouco	 de	 alegria	 em	 seus	 olhos	 e	 rabos
quando	sentem	o	corpo	se	aquecer	com	o	sol,	que	aqui	é	bem	generoso.
Eu	 continuo	 preso	 a	 uma	 corrente	 e	 observando.	 Estou	 num	 ponto
estratégico	e	tenho	visão	geral	das	baias.
As	moças	que	nos	resgataram	já	voltaram	várias	vezes,	para	trazer	ração,
levar	algum	doente	ao	veterinário	e,	principalmente,	para	encaminhar	os
mais	jovens	e	bonitos	para	adoção.	As	branquinhas,	mestiças	de	dálmata,
por	exemplo,	já	foram	embora.	Sorte	delas,	além	de	jovens	e	lindas	eram
também	mestiças	e	já	devem	ter	encontrado	um	bom	lar.
Eu,	puro	vira-lata,	deficiente	e	ainda	por	cima	velho,	ficarei	sempre	por
aqui,	 observando	 as	 transformações	 sem	 ser	 muito	 notado:	 alguns	 me
olham	com	piedade,	e	poucos,	se	aproximam	de	mim.
E,	 já	 que	 não	 vejo	 muita	 chance	 de	 que	 as	 coisas	 se	 modifiquem	 para
mim,	gostaria	de	pelo	menos	poder	alterar	a	paisagem	que	sou	obrigado	a
observar:	eu	não	quero	mais	ver	tanto	sofrimento.
-	Quero	que	permaneçam	nesse	local	apenas	alguns	dos	meus	irmãos	e
que	eles	não	precisem	mais	brigar	por	comida	ou	espaço.
-	 E,	 principalmente,	 não	 quero	 mais	 ver	 meus	 irmãos	 implorando	 por
pão	ou	carinho.
Desse	 modo,	 com	 a	 situação	 melhorando	 para	 nós,	 eu	 até	 poderei	 me
considerar	um	observador	feliz.
Respeito
Já	vivenciei	esse	momento	duas	vezes.
Uma	amiga	ligou	logo	cedo	para	contar	que	tinha	visto	um	cachorro	na
Rodovia	Raposo	Tavares,	imóvel,	ao	lado	do	corpo	de	outro	cachorrinho.
Ela	 passou	 apressada	 e	 não	 pode	 parar,	 pois	 tinha	 um	 compromisso
importante.
Na	 hora	 do	 almoço	 ela	 voltou	 ao	 local	 e	 o	 cachorro	 permanecia	 no
mesmo	lugar,	no	acostamento	da	estrada,	embaixo	de	um	sol	escaldante	de
verão.	Então,	ela	me	liga	desesperada:	o	cão	ainda	está	lá,	o	que	eu	faço?
Como	não	tinha	local	para	abrigá-lo,	eu	pedi	que	ela	o	resgatasse	que	eu
encontraria	um	cantinho	pra	ele.
O	 cachorrinho	 foi	 provisoriamente	 para	 o	 escritório	 do	 meu	 marido	 e
está	lá	até	hoje,	passados	mais	de	10	anos.
Nunca	 tive	 coragem	 de	 doar	 o	 Mike.	 O	 processo	 de	 adoção	 contém
diversos	riscos	e	eu	não	tenho	coragem	de	arriscar,	principalmente	quando
se	trata	de	animais	que	já	sofreram	muito.
Há	pouco	mais	de	um	mês,	outra	amiga	passa	por	uma	rua	movimentada
de	Carapicuíba	e	vê	um	cachorrinho	ao	lado	do	corpo	sem	vida	de	outro
que	fora	atropelado.
Ela	 se	 desespera,	 mas	 segue	 em	 frente,	 pois	 tinha	 uma	 reunião	 de
trabalho.	 Anda	 mais	 alguns	 quarteirões,	 se	 arrepende	 e	 faz	 a	 volta	 para
resgatar	o	cachorro.
Ele	estava	muito	assustado	e	mancando	de	uma	pata,	provavelmente	em
decorrência	do	mesmo	acidente	que	vitimou	seu	amigo.
Esse	cachorro	foi	posteriormente	doado	para	uma	família	muito	especial.
Muitas	 outras	 vezes,	 ouvi	 casos	 semelhantes	 relatados	 por	 pessoas
conhecidas.	O	que	sempre	chamou	a	atenção	de	todas	elas	é	o	longo	tempo,
muitas	 vezes	 dias,	 que	 os	 cães	 permanecem	 ao	 lado	 de	 seus	 amigos	 que
partiram.
O	que	leva	um	animal	a	ficar	junto	ao	corpo	de	seu	companheiro?
Será	que	ele	está	prestando	uma	homenagem?	Será	que	ele	está	velando,
como	nós	humanos	fazemos,	o	corpo	do	amigo	que	se	foi?	Será	que	ele	está
pedindo	ajuda?
Ou	 será	 que	 os	 animais	 permanecem	 com	 seus	 amigos	 enquanto
aguardam	a	chegada	do	anjo	da	morte?
Como	eles	têm	muito	mais	intuição	e	sensibilidade	do	que	nós	humanos,
talvez	 seu	 ato	 vá	 além	 de	 tudo	 o	 que	 conseguiríamos	 apreender	 e	 eles
saibam	que	a	morte	está	chegando	e	o	outro	precisa	de	companhia	para
essa	passagem.
O	 que	 mais	 me	 surpreende	 nessa	 atitude	 é	 que	 ela	 parece	 ser	 tão
racional,	incapaz	de	ser	adotada	por	um	animal	irracional.
O	que	também	impressiona	nesses	casos	é	o	respeito	demonstrado	por
eles	ao	companheiro	que	partiu.
O	 cuidado	 e	 carinho	 são	 mais	 fortes	 do	 que	 o	 perigo	 que	 o	 local
representa	 ou	 o	 incômodo	 de	 permanecer	 horas	 sob	 o	 sol	 e	 próximo	 ao
tráfego	de	veículos	numa	rodovia	movimentada.
Os	animais	esquecem	o	medo,	a	fome	e	o	cansaço	e	permanecem	imóveis
como	se	estivessem	aguardando	algo	acontecer.
Numa	 época	 em	 que	 raros	 seres	 humanos	 demonstram	 respeito	 por
qualquer	coisa,	seja	ela	viva	ou	morta,	humana	ou	animal,	é	de	se	admirar
que	 os	 animais	 venham	 nos	 dar	 esse	 exemplo	 de	 amor,	 dignidade	 e
respeito.
Num	mundo	carente	de	gestos	nobres,	essa	atitude	emociona	e	nos	faz
refletir.
Responsabilidade
Arlindo	era	um	pedreiro	que	trabalhava	e	morava	em	uma	obra	perto	de
casa.	Todos	os	dias,	eu	o	via	brincando	com	seu	cãozinho	amarelo,	um	vira-
lata	simpático	e	bem	cuidado.	Companheiros	inseparáveis,	ambos	pareciam
estar	de	bem	com	a	vida.
Um	dia,	notei	uma	cachorrinha	nova	com	a	dupla	e,	curiosa,	fui	saber	da
novidade.
-	Ela	também	foi	abandonada	e	está	se	aproximando	da	obra	à	procura
de	 alimento	 e	 companhia,	 disse	 Arlindo.	 Bem	 que	 eu	 ficaria	 com	 ela,	 o
problema	é	que	é	fêmea	e	logo	ficará	prenha	e	não	dá	para	cuidar	de	outros
cachorrinhos.
Levei	a	cachorrinha	até	o	veterinário	para	ser	castrada	e	uma	semana
depois,	ela	estava	de	volta,	feliz	e	curtindo	seu	novo	lar.
Fiquei	 satisfeita	 também,	 pois	 percebi	 que	 Arlindo	 gostava
genuinamente	dos	animais.	Ele	não	estava	preocupado,	como	a	maioria	das
pessoas,	com	a	raça	de	seus	cães.	Ele	os	amava	do	mesmo	modo	como	era
amado.	 Os	 cães	 também	 não	 lhe	 perguntaram	 sobre	 sua	 raça,	 seu	 poder
aquisitivo	 ou	 sua	 posição	 social	 quando	 o	 viram	 pela	 primeira	 vez	 e
gostaram	dele.	E	ele	não	precisava	exibir	seus	cães	como	quem	exibe	um
carro	novo.
Todo	 final	 de	 semana,	 Arlindo	 ia	 para	 o	 bar	 tomar	 uma	 cachaça,
encontrar	amigos,	driblar	a	solidão.
Naquele	sábado	não	foi	diferente,	exceto	pelo	desfecho	da	noitada:	muita
bebida,	confusão,	discussões,	início	de	briga,	apartes,	mais	confusão.
Arlindo	voltou	descontrolado	para	a	obra.	Pegou	um	facão	e,	decidido,	o
colocou	entre	os	poucos	pertences.	Arrumou	sua	trouxa	e,	antes	de	partir
para	sua	vingança,	acordou	o	ajudante	de	pedreiro	e	lhe	passou	todas	as
instruções:
-	Cuide	dos	meus	bichinhos.	Se	eles	adoecerem	ou	precisarem	de	comida,
entre	em	contato	com	a	senhora	da	casa	da	esquina.	Não	sei	se	volto.	Por
favor,	cuide	bem	deles.
E	Arlindo	se	foi,	deixando,	como	narrou	nosso	poeta	Manuel	Bandeira:
“lavrado	o	campo,	a	casa	limpa,	a	mesa	posta,	com	cada	coisa	em	seu	lugar”.
E	partiu	para	cumprir	seu	destino.
História	da	Sarita
Sarita	foi	encontrada	já	sem	forças,	ao	lado	de	sua	ninhada.	Só	dois	dos
filhotes	sobreviveram.
Ela	 é	 uma	 mestiça	 de	 Pastor	 Alemão	 bastante	 velha,	 tem	 displasia	 e
muita	dificuldade	para	se	locomover.
Da	sarna,	ela	e	os	filhos	já	estão	curados,	restam	só	algumas	falhas	no
pelo.
Da	 fome,	 também	 estão	 todos	 refeitos,	 os	 filhotes	 já	 estão	 até	 bem
gordinhos.
A	dor	do	abandono,	porém,	deixou	marcas	profundas	que	são	visíveis	em
seus	olhos	e	em	todas	suas	atitudes.
Os	filhos	de	Sarita	serão	doados	já	na	próxima	semana.
Para	Sarita	resta	apenas:	dividir	um	canil	com	outros	trezentos	animais,
onde	ela	terá	poucas	chances	de	sobrevivência,
Ou
Encontrar	 abrigo	 em	 um	 lar	 que	 possua:	 um	 quintal	 que	 pode	 até	 ser
pequeno,	 apenas	 um	 pouco	 de	 ração	 e	 muito,	 muito	 amor	 para	 que	 ela
possa	ser	feliz	no	pouco	tempo	que	lhe	resta.
Sarita	pede	desesperadamente	sua	ajuda.
Uma	pessoa	maravilhosa	respondeu	ao	apelo	de	Sarita	e	a	adotou.
Fomos	 levá-la	 ao	 Embu,	 num	 final	 de	 semana	 e	 confesso,	 fiquei	 muito
apreensiva.	 A	 casa	 tem	 um	 espaço	 enorme,	 uma	 chácara	 com	 muitos
animais:	outros	cães,	gatos,	porcos,	galinhas,	patos,	marrecos,	papagaio,	etc.
Como	se	comportaria	uma	cadela	já	idosa,	com	hábitos	adquiridos	em
um	local	desse	tipo?
Acompanhei	 diariamente	 a	 evolução	 do	 comportamento	 de	 Sarita	 e,
ainda	preocupada,	decidi	comprar	tela	para	delimitar	um	espaço	onde	ela
pudesse	ter	liberdade	e,	ao	mesmo	tempo,	segurança.
Voltei	ao	local	duas	semanas	depois	e	quase	não	acreditei:	Sarita	estava
rejuvenescida,	 o	 pelo	 brilhante,	 a	 coluna	 quase	 reta,	 apesar	 da	 displasia
severa	e	um	brilho	no	olhar	que	me	emocionou.
Como	 é	 possível	 a	 um	 animal	 com	 idade	 avançada	 se	 adaptar	 tão
rapidamente	a	um	ambiente	novo	e	tão	carregado	de	informações?
Ela	não	só	estava	solta,	como	ajudava	sua	guardiã	a	cuidar	dos	outros
animais:	 cercava	 os	 pintinhos	 para	 que	 eles	 entrassem	 no	 seu	 espaço
depois	de	horas	ciscando,	latia	com	autoridade	para	os	porcos,	vigiava	a
entrada	 da	 casa	 e	 parecia	 não	 ter	 a	 menor	 intenção	 de	 sair	 pelo	 portão
totalmente	aberto.
Sarita	 encontrara	 uma	 ocupação,	 uma	 utilidade	 na	 velhice	 e	 estava
desempenhando	seu	novo	papel	com	uma	vitalidade	invejável.
Fiquei	 emocionada	 e	 esperançosa.	 Com	 certeza,	 eu	 estava	 num	 local
abençoado,	tendo	o	privilégio	de	observar	a	natureza	se	desenhando	com
todo	seu	vigor.
Não	 pude	 deixar	 de	 refletir:	 como	 uma	 pessoa	 com	 poucos	 recursos
consegue	administrar	um	mundo	tão	harmonioso?	Como	arruma	tempo	e
energia	 para	 admitir	 outros	 seres	 que	 poderiam	 quebrar	 todo	 aquele
equilíbrio?
Essa	 é	 uma	 lição	 para	 nossas	 vidas.	 Somente	 seres	 iluminados
conseguem	 abraçar	 as	 grandes	 causas	 com	 naturalidade	 e	 imprimir	 essa
mesma	naturalidade	à	resolução	dos	seus	problemas.
Entendi	também	que	não	é	preciso	delimitar	um	espaço	e	sim,	dar	uma
função:	Sarita	estava	feliz,	pois	sua	vida	tinha	adquirido	significado.
Mais	uma	vez	eu	me	senti	privilegiada	por	conhecer	um	ser	humano	e
um	 animal	 totalmente	 integrados	 à	 natureza	 e	 à	 obra	 divina.	 Estava
agradecida	por	poder	usufruir	esses	momentos	mágicos,	agradecida	pela
oportunidade	de	ter	conhecido	Sarita	e	sua	guardiã.
Elas	 são	 a	 resposta	 a	 um	 outro	 mundo,	 fundado	 na	 violência	 e	 no
desamor.
Solidariedade	e	os	36	Justos
Conheci	Dorvina	há	vários	anos.	Foi	ela	que	adotou	Sarita,	a	mestiça	de
Pastor	que	foi	covardemente	abandonada	junto	com	seus	bebês.
Desde	 nosso	 primeiro	 contato	 por	 telefone,	 eu	 já	 sabia	 que	 estava
conhecendo	alguém	muito	especial,	uma	boa	alma,	amante	da	natureza	e
uma	pessoa	dedicada	e	incansável,	que	acolheu	uma	cachorrinha	velha	e
com	displasia	com	muito	amor	e	dedicação.
Quando	 levei	 Sarita	 até	 sua	 casa,	 fiquei	 espantada	 com	 a	 fauna	 que
habitava	 o	 lugar:	 dificilmente	 você	 vê	 convivendo	 cães,	 gatos,	 porcos,
gansos,	 patos,	 marrecos,	 papagaios	 e	 sei	 lá	 o	 que	 mais.	 Eram	 tantas
espécies	e	todas	convivendo	tão	harmoniosamente	e	em	total	liberdade	que
o	único	pensamento	que	me	ocorreu	foi:	assim	devia	ser	o	paraíso	bíblico,	o
Gan	Éden.
O	telefonema	de	Dorvina	para	me	contar	a	partida	da	minha	afilhada	uns
quatro	 anos	 depois,	 foi	 inesperado	 e	 muito	 triste.	 Ela	 disse	 que	 Sarita
deitou	em	seu	cobertor,	como	fazia	todas	as	noites	e,	pela	manhã,	já	estava
morta.	 Confesso	 que	 não	 me	 surpreendi,	 eu	 sabia	 que	 ela	 só	 poderia	 ter
uma	morte	assim,	suave	e	indolor,	pois	já	sofrera	o	suficiente.	E	como	ela
era	um	ser	abençoado,	Deus	só	poderia	levá-la	em	seus	braços	enquanto
dormia.
Depois	que	Sarita	faleceu,	numa	noite	fria	de	inverno,	fiquei	muito	tempo
sem	ter	notícias	da	Dorvina.
Ela	 me	 ligou	 novamente,	 quase	 um	 ano	 depois	 para	 contar	 que	 seu
Rottweiler,	 amigo	 querido	 da	 Sarita	 estava	 doente.	 Algumas	 semanas
depois,	me	contou	que	ele	também	havia	partido.
Qual	não	foi	minha	surpresa	ao	ouvir	sua	voz	uma	semana	depois	e	ela
estava	eufórica:
“-	Eu	precisava	te	contar,	ainda	não	acredito	no	que	aconteceu.	Estava
indo	trabalhar,	pois	depois	que	me	aposentei	arrumei	um	trabalho	em	um
consultório	 perto	 de	 casa.	 Atravesso	 o	 Rodoanel	 e	 ando	 mais	 um
pouquinho.	Estava	apressada	quando	vejo	um	cachorro	deitado	ao	lado	da
pista,	 bem	 debilitado,	 ele	 devia	 estar	 jogado	 lá	 há	 algum	 tempo.	 Ele	 me
olhou	implorando	ajuda	e	eu	respondi:	agora	estou	com	muita	pressa	mas,
na	minha	volta,	vou	te	socorrer	e	levar	pra	casa.
Trabalhei	aflita	e	pedi	para	sair	mais	cedo,	não	aguentei	esperar,	ele	não
saia	da	minha	cabeça.	Corri	apressada	e	lá	estava	ele	me	aguardando.
Tentei	levantá-lo,	ele	é	imenso,	mas	ele	não	conseguia	se	erguer	e	muito
menos	caminhar.	Eu	só	rezava,	pedia	ajuda	a	Deus,	e	pensava:	como	vou
conseguir	atravessar	a	pista	e	levá-lo	para	casa?	Você	sabe,	no	Rodoanel	há
movimento	 contínuo	 e	 você	 precisa	 esperar	 aquela	 brecha	 de	 trânsito	 e
correr.
Eu	já	estava	desistindo	quando	um	caminhão	parou	no	acostamento:	-	é
seu	cachorro,	senhora,	precisa	de	ajuda?	Dois	homens	com	sotaque	do	sul
pararam	o	caminhão	e	vieram	nos	socorrer.	Um	deles,	amparou	o	cachorro
enquanto	 o	 outro	 foi	 buscar	 uma	 marmita.	 Ele	 pegou	 toda	 sua	 comida	 e
ofereceu	ao	cachorro	que	comeu	de	uma	única	bocada.	Depois	pegaram	a
água	de	uma	garrafa	e	foram	colocando	na	vasilha,	acho	que	entornaram
uns	dois	litros	de	água.
Eu	juro	que	comecei	a	chorar,	eu	não	acreditava,	nunca	me	emocionei
tanto,	 nem	 no	 ano	 passado	 quando	 me	 aposentei	 do	 Hospital	 e	 fui
homenageada.
O	 cachorro	 começou	 a	 se	 animar	 e	 conseguimos	 colocá-lo	 de	 pé.	 Ele
estava	mancando,	mas	não	tinha	nada	quebrado,	tinha	só	fraqueza	e	um
pouco	de	dor.
A	travessia	pareceu	longa,	mas	ele	e	eu	nos	sentimos	muito	amparados:
os	homens	iam	segurando	o	trânsito	e	eu	ia	empurrando	o	menino	até	que
conseguimos	atravessar.
Eles	 nos	 colocaram	 do	 outro	 lado	 da	 pista,	 se	 despediram	 e	 então
partiram.
Levei	o	cão	pra	casa	e	cuidei	muito	bem	dele.	Ele	já	está	ótimo,	feliz	e
muito,	muito	agradecido.	Confesso	que	poucas	vezes	vi	um	olhar	como	esse,
de	mais	puro	agradecimento	e	amor.	Ele	deve	ser	um	mestiço	de	Setter	ou
Golden,	não	importa,	e	ele	está	ótimo!
Telefonei	só	para	te	contar	essa	experiência	e	dizer	que	aqueles	homens
ficaram	pouco	tempo	conosco	e	fizeram	tanto,	que	vai	ser	difícil	esquecê-
los.	Eles	deixaram	sua	comida,	seu	cuidado,	seu	carinho	e	partiram	felizes
sabendo	que	salvaram	uma	vida.	Neste	mundinho	de	Deus	tem	muita	gente
boa,	né?”
Quando	eu	desliguei	o	telefone,	comecei	a	rememorar	todos	os	detalhes
da	história	que	Dorvina	havia	me	contado	e	fiquei	maravilhada.	Mais	uma
vez,	ela	me	provocava	aquele	sentimento	de	descoberta	e	aprendizado	que
eu	já	havia	experimentado	antes,	quando	da	doação	da	Sarita.
Lembrei-me,	então,	da	antiga	história	judaica	dos	Lamed	Vav	Tzadikim,
dos	36	Justos.	Ela	conta	que	existem	trinta	e	seis	homens	no	mundo	cuja
missão	é	justificar	a	existência	humana	perante	Deus.
E	 é	 por	 isso	 que	 ainda	 estamos	 aqui,	 vivos	 e	 apreciando	 esse	 lindo
espetáculo.
A	Casa	dos	cachorros
Como	tudo	na	vida,	até	as	histórias	tem	dois	lados.
Quando	escrevi	a	crônica	intitulada	A	casa	dos	gatos,	meu	filho	veio	com
a	seguinte	colocação:
-	Mãe,	seu	quarto	fica	do	lado	do	gatil,	portanto	é	calmo	e	silencioso,	mas
do	outro	lado,	onde	fica	o	meu	quarto,	a	situação	é	totalmente	diferente:	eu
moro	na	Casa	dos	Cachorros.
É	verdade,	ele	tem	razão.
Minha	casa	é	dividida	em	duas	alas:	de	um	lado	os	gatos	e	de	outro	os
cães.	As	pessoas	ficam	no	meio.
Como	 os	 gatos	 são	 bem	 mais	 tranquilos,	 nessa	 parte	 da	 casa	 temos
bastante	silêncio	e	você	consegue	ouvir	o	canto	dos	pássaros	e	o	guincho
dos	saguis.	A	natureza	surge	plena	e	derrama	todos	os	seus	sons.
Já	do	outro	lado,	dependendo	do	momento,	o	barulho	é	pesado.
Quem	tem	muitos	cachorros	sabe	do	que	estou	falando:	basta	um	animal
passando	na	rua	ou	alguém	conversando	mais	alto	para	que	eles	comecem
a	 latir	 sem	 trégua.	 Eles	 ouvem	 qualquer	 barulho	 diferente	 e	 reagem	 à
altura.	 Para	 os	 cães,	 qualquer	 movimento	 brusco	 ou	 barulho	 significa
invasão	e	eles	são	dirigidos	desde	sempre	para	proteger	seu	território.	E
então	latem,	latem	e	latem,	pois	essa	é	a	sua	linguagem.
Na	 verdade,	 o	 que	 ocorre	 é	 uma	 sequência	 de	 latidos:	 os	 cães	 dos
vizinhos	detectam	algo	anormal	e	dão	a	partida.	Os	cães	da	casa	seguinte
dão	continuidade	ao	aviso	e	os	meus,	sem	saber	ao	certo	o	porquê,	reagem
alto	e	prontamente.	Ou	seja,	todos	os	cães	do	quarteirão	latem	ao	mesmo
tempo	 e	 o	 barulho	 aumenta	 num	 crescendo	 assustador	 e	 explode	 em
nossos	ouvidos.
Nessa	hora,	não	há	nada	que	os	faça	parar,	nenhum	grito	ou	ameaça.	E	a
coisa	fica	ainda	pior	quando	pessoas	desavisadas	resolvem	soltar	fogos	de
artifício.	 Aí	 a	 situação	 fica	 incontrolável	 mesmo,	 um	 verdadeiro
bombardeio.	A	reação	dos	cães	é	tão	insana	quanto	aquela	que	leva	um	ser
humano	 adulto	 a	 soltar	 os	 perigosos	 artefatos.	 É	 por	 isso	 que	 todas	 as
pessoas	que	convivem	com	animais	odeiam	fogos	de	artifício.
Fora	este	pequeno	detalhe	sonoro,	algo	desagradável,	o	lado	dos	cães	é
bem	animado.
Eles	se	alegram	de	verdade	quando	você	chega	em	casa	e	estão	sempre
atentos	 aos	 seus	 menores	 gestos,	 pois	 é	 você	 que	 sempre	 comanda	 a
situação.
Ficam	 felizes	 com	 movimentação,	 visitas,	 adoram	 novidades	 e	 estão
sempre	dispostos	a	te	seguir	por	todos	os	lados.	A	vida	para	eles	é	uma
festa,	desde	que	em	sua	companhia,	claro.
Com	os	cães	não	tem	baixo	astral:	a	hora	de	passear,	a	hora	de	comer,	a
hora	de	brincar,	tudo	é	celebração.
Então,	 dependendo	 do	 seu	 estado	 de	 espírito,	 você	 pode	 escolher	 e
visitar	um	ou	outro	lado	da	minha	casa.
Se	 você	 estiver	 meio	 mal,	 deprimido,	 o	 lado	 dos	 cães	 é	 o	 mais
recomendado.	Lá	você	é	valorizado	e	visto	como	uma	pessoa	especial.	Na
casa	dos	cães	você	é	o	mais	bonito,	o	mais	inteligente	e,	sem	dúvida,	o	mais
amado.	Eles	se	esforçam	ao	máximo	para	te	deixar	feliz.
Já	o	lado	dos	gatos	é	bem	mais	sossegado,	não	tem	correria	e	nem	festa.	É
um	lado	contemplativo,	próprio	para	relaxamento.	Tudo	flui	com	lentidão	e
até	o	tempo	parece	passar	mais	devagar,	no	ritmo	próprio	dos	gatos.
Esta	paz	não	significa	que	eles	não	se	alegrem	com	sua	companhia,	é	que
os	 gatos	 são	 bem	 mais	 discretos.	 Eles	 demonstram	 sua	 alegria	 com	 um
ronronar	 ou	 então	 passando	 por	 entre	 suas	 pernas,	 tudo	 muito	 sutil	 e
delicado.
No	entanto,	se	você	quiser	meditar	ou	ler	um	bom	livro,	deve	ficar	na
companhia	 dos	 gatos.	 Só	 que	 lá	 não	 vão	 te	 achar	 o	 máximo,	 vão
simplesmente	aceitá-lo	como	você	é.
Lá	você	tem	que	ficar	relaxado	como	eles	para	conseguir	se	sentir	bem.
As	 pessoas	 mais	 agitadas	 precisam	 desacelerar	 aos	 poucos	 e	 entrar	 em
outra	sintonia.
Para	 gostar	 de	 gatos,	 você	 precisa,	 primeiramente,	 estar	 satisfeito
consigo	mesmo	e	esse	é	o	motivo	pelo	qual	algumas	pessoas	amam	e	outras
odeiam	os	gatos.
Voltando	 aos	 cães,	 eles	 são	 fascinantes	 por	 sua	 pureza,	 ausência	 de
maldade	e	por	várias	imperfeições	que	muito	os	aproximam	dos	humanos.
Já	 os	 gatos	 fascinam	 por	 sua	 delicadeza,	 elegância	 e	 requinte,	 o	 que
muito	os	afasta	dos	seres	humanos.
Assim,	 o	 ideal	 é	 você	 conviver	 simultaneamente	 com	 estas	 duas
realidades	tão	distintas	e	complementares.
Porém,	pode	ter	certeza	que	escolhendo	um	ou	outro	lado	da	minha	casa,
você	estará	sempre	fazendo	uma	espécie	de	terapia.	Por	sinal,	uma	ótima
terapia,	eu	recomendo.
O	patinho	DiFeReNTe
Eu	sou	o	Pingo	e	nunca	percebi	nada	de	errado	comigo.	Sou	tão	feliz!
Acho	que	já	passei	um	pouco	de	fome	mas,	pra	dizer	a	verdade,	nem	me
lembro	mais.
Quando	cheguei	nessa	casa,	parei	bem	na	porta,	logo	me	encheram	de
comida	e	me	deram	uma	cama	bem	quentinha.	Puxa,	que	gostoso	...	lembro
que	adorei	tudo	aquilo	e	nunca	mais	deixei	de	ser	feliz.
Adoro	meus	amigos,	minhas	folias	e	meus	ossinhos.	Adoro	viver!
Só	acho	estranho	que	meus	amigos	mudam	sempre.	Nesses	meses	que
estou	 aqui	 já	 tive	 uns	 20	 amigos,	 mais	 ou	 menos.	 Eles	 chegam	 meio
tristinhos,	logo	ficam	alegres	e,	quando	começamos	a	brincar	e	a	curtir,	eles
vão	embora.
Fico	triste	por	uns	dias,	mas	logo	aparecem	outros	e	começamos	a	fazer
amizade.
Só	não	entendo	uma	coisa:	por	que	será	que	eles	logo	partem	quando	a
coisa	começa	a	melhorar?
Comecei	a	ficar	desconfiado	e	resolvi	observar:	as	pessoas	ficam	tirando
fotos	 novas	 minhas	 toda	 semana	 e	 dizem:	 essa	 ficou	 melhor,	 quem	 sabe
dessa	vez	...
Será	que	estão	insinuando	que	minhas	fotos	não	ficam	boas?	Por	que	eles
querem	que	elas	melhorem?	Por	que	minhas	fotos	não	ficam	boas?
Nunca	percebi	nada	de	errado	comigo.
Aliás,	 tenho	 certeza	 que	 não	 tem	 nada	 de	 errado	 comigo.	 Eu	 sou
saudável,	 alegre	 e	 dócil,	 amoroso	 e	 obediente.	 Um	 pouco	 mimado	 e
bagunceiro,	mas	ninguém	é	perfeito.
Já	 ouvi	 minha	 madrinha	 dizendo:	 ele	 é	 exótico,	 tem	 uma	 beleza	 não
convencional	e	só	as	pessoas	não	convencionais	irão	apreciá-lo.
Então	ela	fica	brava	e	diz:
A	 maioria	 das	 pessoas	 quer	 um	 lhasapoodlemaltês	 igualzinho	 ao	 da
vizinha	 e,	 de	 preferência,	 da	 mesma	 cor!	 É	 para	 irem	 passear	 com	 as
crianças	na	pracinha	e	todos	vestidos	com	roupas	idênticas.	Ela	fica	muito
brava!
O	que	será	que	ela	quer	dizer	quando	ela	diz:	diferente?
Acho	 que	 estou	 começando	 a	 entender:	 minha	 madrinha	 quer	 que	 a
pessoa	certa	olhe	para	mim,	veja	um	cisne	e	me	leve	para	morar	em	seu
castelo.
Nostalgia
Durante	toda	a	infância	tive	contato	com	animais,	na	casa	de	meus	pais,
meus	avós	e	todos	os	parentes	e	amigos	de	quem	me	lembro.	Os	animais
sempre	 estiveram	 relacionados	 a	 experiências	 agradáveis,	 brincadeiras
animadas	 e	 eram	 fonte	 de	 prazer	 e	 alegria.	 Eles	 também	 eram	 felizes	 e
tinham	 uma	 vida	 longa	 e	 saudável.	 Animais	 nunca	 me	 despertaram
compaixão	 ou	 essa	 urgência	 em	 ajudá-los	 e	 lutar	 por	 sua	 sobrevivência,
como	acontece	hoje.
É	verdade	que	há	alguns	anos	você	não	via,	principalmente	no	interior	de
São	Paulo,	animais	vagando	pelas	ruas	em	péssimo	estado.	Você	também
não	 encontrava	 pessoas	 vivendo	 em	 condição	 de	 extrema	 pobreza	 e	 os
sem-teto	eram	raros	e	motivo	de	assombro.
Os	tempos	mudaram!
Houve	 uma	 disseminação	 da	 pobreza	 e	 do	 desemprego	 e,	 com	 eles,	 a
banalização	 da	 miséria:	 hoje	 em	 dia	 é	 tão	 comum	 vermos	 crianças	 em
semáforos,	 famílias	 “vivendo”	 embaixo	 de	 pontes,	 animais	 famintos	 e
doentes	que,	a	maioria	das	pessoas	já	não	vê,	ou	não	se	importa,	ou	ainda,
nem	se	comove	mais.	Todos	eles	fazem	parte	de	uma	paisagem,	uma	triste
paisagem,	à	qual	as	pessoas	se	habituaram.
Os	tempos	mudaram!
Estive	 recentemente	 em	 uma	 reunião	 com	 vários	 protetores,	 um
encontro	 muito	 agradável	 com	 as	 pessoas	 relatando	 como	 se	 tornaram
amantes	 dos	 animais	 e	 descrevendo	 seu	 cotidiano	 pesado	 e,	 ao	 mesmo
tempo,	gratificante.
Todos	 eles	 falavam	 de	 sua	 relação	 com	 animais	 desde	 sempre	 e	 como
esta	 preocupação	 pelo	 bem-estar	 deles	 vem	 crescendo	 à	 medida	 que
também	cresce	a	pobreza	e	o	descaso	do	poder	público	em	nosso	país.
Ambos	os	fatos	estão	profundamente	relacionados:	como	o	Estado	é	o
responsável	 pelos	 animais,	 “Todos	 os	 animais	 existentes	 no	 país	 são
tutelados	pelo	Estado”,	e	este	não	cumpre	com	seu	dever,	as	pessoas	que	se
importam	com	a	vida	são	obrigadas	a	despender	seu	tempo	e	seu	dinheiro
para	fazer	o	que	foi	negligenciado	pelo	poder	público.
Não	existe	uma	política	de	castração	dos	animais	de	rua	para	evitar	o
excesso	de	população,	assim	como	não	existem	campanhas	educativas	de
incentivo	 à	 posse	 responsável	 ou	 que	 estimulem	 as	 pessoas	 a	 não
abandonar	seus	animais	de	estimação.
Claro,	não	existe	uma	preocupação	política	na	medida	em	que	os	animais
não	votam	e	os	políticos	acham	que	essa	matéria	não	tem	retorno	eleitoral.
O	resultado	é	a	proliferação	desordenada	de	animais	abandonados	que
ficam	aguardando	a	morte	nas	ruas,	à	mercê	de	atropelamentos,	doenças	e
toda	sorte	de	sofrimentos.
Os	tempos	mudaram	para	pior!
Todo	 este	 descaso	 com	 a	 vida	 e	 ausência	 de	 valores	 que	 impera	 nos
nossos	 dias	 me	 fez	 lembrar	 de	 uma	 música	 de	 Taiguara,	 compositor
brasileiro	que	marcou	os	anos	70	por	sua	sensibilidade	e	sua	percepção	do
caos	que	se	aproximava.	Uma	de	suas	composições	relata	o	desânimo	com
que	ele	encarava	a	sociedade	brasileira	da	época.	Suas	palavras	mostraram-
se	proféticas:
“Eu	desisto.
Não	existe	essa	manhã	que	eu	perseguia
Um	lugar	que	me	dê	trégua	ou	me	sorria
Uma	gente	que	não	viva	só	pra	si
Só	encontro
Gente	amarga	mergulhada	no	passado
Procurando	repartir	seu	mundo	errado
Nessa	vida	sem	amor	que	eu	aprendi.”
Infelizmente,	 as	 novas	 gerações	 nunca	 ouviram	 falar	 de	 Taiguara	 e
tantos	outros	que	ficaram	esquecidos	pelo	caminho.	Assim	como	não	estão
a	 par	 da	 urgência	 de	 se	 preservar	 a	 vida	 para	 que	 haja	 uma	 saída	 para
nosso	planeta.
Pobre	do	país	que	não	respeita	suas	florestas,	seus	animais,	suas	crianças
e	seus	artistas.
Sem-teto,	mas	com	cachorro
Com	esse	dinheiro	eu	posso	até	dar	entrada	num	barraco	lá	na	Vila.	Ou
então	 comprar	 aquele	 tão	 sonhado	 som,	 uns	 presentinhos	 para	 a	 Tina.
Preciso	planejar	...
É	muito	dinheiro	de	uma	só	vez.	Quem	sabe	voltar	para	casa,	reencontrar
a	família,	sair	desta	cidade	sem	alma.	Posso	comprar	a	passagem	de	volta	e
dizer	a	eles	que	cansei	de	tudo	isso	aqui,	dessa	luta	e	que	fui	enganado.
No	entanto,	como	esquecer	o	olhar	de	Branquinha,	da	Amarelinha	e	do
Polegar?	 Como	 esquecer	 os	 gritos	 da	 Tina,	 quando	 lhe	 arrancaram	 seu
cachorro	Pimpão?
Tantos	 anos	 de	 convivência,	 tanta	 cumplicidade.	 Eu	 só	 sei	 que	 sinto
muita	falta	deles.
Os	 homens	 não	 tinham	 o	 direito	 de	 levá-los.	 Eles	 eram	 bem	 cuidados,
amados.	Muito	mais	queridos	do	que	os	bichos	de	muita	gente	por	aí,	gente
rica	 que	 não	 se	 importa	 com	 seus	 amigos,	 que	 são	 tratados	 de	 qualquer
jeito.	Gente	que	nunca	olhou	nos	olhos	de	seu	bicho	e	viu	muito	amor.
Só	por	que	nós	os	sem-teto	não	temos	um	espaço	delimitado?	Será	que
temos	que	nos	comportar	como	os	animais	e	marcar	um	território?	Se	eu
tivesse	meu	lugar,	eles	não	teriam	levado	meu	Polegar	à	força,	indiferentes
aos	meus	gritos,	à	minha	dor.	Incrível,	não	é?	Humanos	precisam	de	muros!
Ainda	bem	que	o	professor	foi	testemunha	de	toda	a	violência.	Ele	viu
nosso	 desespero,	 sentiu	 nossa	 impotência	 e	 resolveu	 ajudar.	 E	 ele	 tem	 o
dinheiro	 que	 transformará	 tudo:	 posso	 trazer	 os	 cães	 de	 volta	 ou	 dar
entrada	no	barraco,	comprar	um	presente	para	a	Tina,	ou	a	passagem	de
volta	para	casa	...
Eu	tenho	certeza	que	nunca	conseguiria	ser	feliz,	sabendo	que	abandonei
meus	 amigos.	 Como	 eu	 posso	 ir	 embora,	 sabendo	 que	 eles	 não	 terão
nenhuma	 chance?	 Três	 dias,	 eles	 disseram:	 -	 Você	 só	 tem	 três	 dias	 para
conseguir	 o	 dinheiro	 e	 voltar	 para	 recuperar	 seus	 animais.	 É	 muito
dinheiro	para	se	conseguir	em	três	dias.	Se	o	professor	não	resolvesse	nos
ajudar,	eu	deveria	fazer	o	que?	Roubar?
É	nessas	horas	que	a	gente	entende	as	pessoas	que	perdem	a	cabeça.
Mas,	 não	 quero	 pensar	 sobre	 isso	 agora,	 nada	 de	 ruim	 aconteceu	 e
amanhã,	com	a	ajuda	de	Deus	e	do	professor,	vou	rever	meus	amigos	do
coração.
“O	 sem-teto	 José	 Augusto	 dos	 Santos	 foi	 ontem	 ao	 Centro	 de	 Zoonoses	 (CCZ)	 buscar
Amarelinha,	Branquinha	e	Polegar,	os	amigos	que	lhe	foram	retirados	à	força	na	quarta-feira	pelo
mesmo	CCZ.	De	quebra,	pegou	Pimpão,	da	amiga	Tina.	O	quarteto	foi	recuperado	depois	que	um
professor	pagou	a	taxa	exigida.”	Jornal	da	Tarde	de	21/07/2002
Ricardo	e	Garoa
Para	Beatriz
Você	 já	 viu	 protetor	 elogiar	 criador	 de	 animais?	 Impossível!	 São	 duas
espécies	 incompatíveis.	 Citando	 apenas	 o	 lado	 econômico	 da	 questão:	 o
primeiro	gasta	seu	dinheiro	tentando	ajudar	animais,	enquanto	o	segundo,
ganha	todo	seu	dinheiro	por	intermédio	deles.
Mas,	 é	 claro	 que	 não	 dá	 para	 generalizar,	 pois	 encontramos	 pessoas
sérias	 e	 picaretas	 em	 todas	 as	 profissões.	 Mesmo	 assim,	 é	 muito	 comum
protetores	 receberem	 denúncia	 sobre	 “criadores	 de	 fundo	 de	 quintal”,
pessoas	inescrupulosas	que	usam	os	animais	visando	apenas	o	lucro	fácil.
Quantas	vezes,	ficamos	sabendo	de	cadelas	que	passam	a	vida	parindo,	uma
gestação	 após	 outra	 até	 serem	 abandonadas	 por	 velhice	 ou	 por	 estarem
muito	 debilitadas?	 Quantos	 machos	 ficam	 eternamente	 acorrentados	 ou
presos	 em	 gaiolas	 minúsculas	 com	 a	 única	 finalidade	 de	 servirem	 de
matriz?	Denúncias	sobre	filhotes	famintos	e	doentes,	expostos	à	sujeira	e
muito	valorizados	na	hora	da	venda,	também	são	muito	comuns.	E	por	aí
vai	...
Porém,	 este	 não	 era	 o	 caso	 do	 Ricardo.	 Jovem	 ainda,	 ele	 foi	 para	 o
interior	de	São	Paulo	viver	em	uma	chácara	e	criar	cachorros.	No	entanto,
ele	 não	 estava	 interessado	 em	 um	 cachorro	 qualquer,	 e	 sim	 em	 um
exemplar	 único	 de	 Fila	 Brasileiro.	 Seus	 cães	 viviam	 livres	 em	 amplos
espaços,	 local	 impecavelmente	 limpo	 e	 florido.	 Tinham	 direito	 à	 boa
alimentação,	acompanhamento	veterinário	e,	para	as	fêmeas,	intervalos	de
gestação	respeitados	para	não	colocar	em	risco	sua	saúde.
A	 venda	 dos	 filhotes	 era	 uma	 dificuldade	 à	 parte.	 Os	 donos	 eram
escolhidos	com	cautela,	submetidos	a	entrevistas	rigorosas	e,	muitos	deles,
saiam	de	lá	sem	seus	desejados	filhotes.	-	Não	posso	entregá-los	a	qualquer
um,	dizia	Ricardo.
É	 claro	 que	 este	 comportamento	 atípico	 gerou	 muitos	 problemas.
Ricardo	 estava	 sempre	 passando	 por	 dificuldades	 financeiras,	 sempre
atrapalhado	para	pagar	suas	contas	em	dia.	Tinha	uma	vida	muito	simples,
sem	comodidade	alguma,	mas	para	seus	cães	não	deixava	faltar	nada.
A	austeridade	era	tamanha	que	ele	começou	a	deixar	de	lado	a	própria
saúde	 e,	 aos	 50	 anos	 já	 tinha	 graves	 problemas	 de	 saúde.	 Mas,	 seus
cachorros	não,	esses	esbanjavam	alegria	e	disposição	e	eram	valorizados	e
disputados	por	pretendentes	de	várias	partes	do	Brasil.
A	primeira	vez	que	Ricardo	ficou	doente	e	precisou	de	internação	foi	um
pesadelo.	Os	médicos	não	sabiam	como	segurá-lo	no	Hospital	para	realizar
os	exames	necessários.	Ele	tinha	urgência	de	voltar	para	casa,	pois	ninguém
iria	cuidar	dos	cães	como	ele	o	fazia,	é	claro!	Ricardo	precisou	assinar	um
Termo	de	Responsabilidade	para	poder	“fugir”	do	Hospital.
E,	 assim,	 ele	 foi	 levando	 a	 vida	 até	 que	 uma	 noite	 passou	 mal	 e	 não
conseguiu	 pedir	 ajuda.	 Seu	 corpo	 só	 foi	 encontrado	 na	 manhã	 do	 dia
seguinte	e	a	seu	lado,	a	cadela	Garoa,	que	por	oito	anos	foi	sua	companheira
fiel	 e	 inseparável.	 Eles	 tinham	 uma	 amizade	 tão	 profunda	 que	 foi	 muito
difícil	 tirá-la	 do	 lado	 do	 amigo,	 ela	 estava	 irredutível	 e	 se	 recusava	 a
abandoná-lo.	Garoa	estava	transtornada	e	a	dor	refletida	em	seus	olhos	era
algo	palpável,	parecia	que	um	véu	encobria	e	imobilizava	suas	feições.	Ela
era	a	personificação	da	dor.
Quando	finalmente	conseguiram	levá-la,	entrou	em	um	estado	de	apatia
profundo.	Garoa	se	recusou	a	comer	e,	apesar	de	todos	os	esforços	médicos,
também	partiu,	exatos	quinze	dias	da	morte	de	Ricardo.
Desamparo
Gosto	 de	 escrever	 histórias	 leves	 como	 a	 do	 Tiquinho	 Huguinho,	 o
Incompreendido	 ou	 a	 história	 do	 Frank,	 meus	 gatinhos.	 Eu	 me	 divirto
escrevendo,	 as	 pessoas	 ficam	 felizes	 quando	 leem	 e	 uma	 sensação
agradável	perdura	por	um	bom	tempo.
Eu	 pretendia	 escrever	 sobre	 gatos	 filhotes	 e	 sua	 pureza,	 pois	 fiquei
encantada	observando	Lupi,	um	gatinho	que	tenho	para	doar	e	que	ficou
tão	 feliz	 ao	 encontrar	 teto	 e	 comida,	 após	 sair	 da	 favela	 onde	 estava
abandonado,	que	exala	alegria.	Tudo	é	bom	para	ele:	comer,	brincar,	ser
afagado,	 tudo	 é	 um	 prazer	 intenso.	 Explorar	 o	 mundo	 é	 algo	 mágico	 e
agradável,	comer	e	dormir	são	puro	deleite,	brincar	então,	é	o	clímax	de	um
dia	festivo.
Pensando	 sobre	 as	 descobertas	 do	 Lupi,	 tentei	 tirar	 essa	 imagem	 da
minha	cabeça,	mas	ela	sempre	volta.
Para	 mim	 e	 para	 as	 pessoas	 que	 amam	 os	 animais,	 o	 protótipo	 do
desamparo	é	representado	pela	figura	de	um	cachorro	ou	gato	na	rua,	que
não	 sabe	 onde	 buscar	 ajuda.	 Não	 tem	 nada	 mais	 frágil	 que	 um	 animal
abandonado	 que	 só	 pode	 exprimir	 seu	 desespero	 e	 sua	 dor	 através	 do
olhar.
Cães	e	gatos	foram	domesticados	pelos	seres	humanos	e	aprenderam	a
depender	 de	 nós	 para	 suprir	 todas	 suas	 necessidades.	 Quando	 eles	 se
perdem	ou	são	jogados	fora,	ficam	totalmente	desnorteados	e	o	estresse	é
tanto,	que	muitos	deles	adoecem	e	morrem	rapidamente.
Outros,	mais	fortes,	conseguem	reagir	e	partem	à	procura	de	comida	e
abrigo.	Mas,	mesmo	para	estes	é	uma	questão	de	tempo	adoecer	e	morrer:
as	 brigas	 e	 privações	 terminam	 por	 minar	 suas	 forças	 e	 eles	 acabam	 se
entregando	também.
Quando	vi	aquela	cadelinha	tão	pequena	e	frágil	escondida	no	meio	do
mato,	onde	acabara	de	parir,	meu	coração	congelou.
Aliás,	tudo	em	volta	congelou,	pois	aquele	foi	o	dia	mais	frio	do	ano	e
mais,	o	dia	mais	frio	dos	últimos	sete	anos.	Estes	bebês	não	poderiam	ter
escolhido	outra	data	para	nascer?
Eu	 não	 tinha	 como	 tirá-la	 de	 lá	 com	 seus	 filhotes,	 pois	 ela	 estava
agressiva,	tentando	proteger	sua	ninhada.
Voltei	para	casa	chorando	e	rezando	para	que	o	tempo	melhorasse,	para
que	não	chovesse	e	eu	tivesse	uma	inspiração	para	socorrê-los.
Por	 que	 será	 que	 os	 animais	 nos	 inspiram	 esses	 sentimentos	 tão
intensos?
Será	porque	sua	alegria	e	tristeza	são	tão	puras	que	nos	contagiam?
Ou	porque	seu	olhar	é	tão	sincero	que	nos	desarma?
Será	 porque	 seus	 sentimentos	 são	 tão	 verdadeiros	 que	 nós	 confiamos
plenamente	neles?
Ou	sua	dor	é	tão	profunda	que	nos	arrasa?
Recordo	 que	 cachorro	 em	 hebraico	 é	 Kélev	 e	 um	 comentarista	 do
Talmude	revela	que	o	nome	Kélev	deriva	de	Shekulo	Lev	que	quer	dizer:
um	ser	que	é	puro	coração.
Deve	ser	essa	a	explicação.
Eu	queria	muito	ter	escrito	uma	história	alegre.
Aliás,	eu	queria	viver	em	um	mundo	onde	as	pessoas	pudessem	se	sentir
como	gatos	filhotes	com	teto	e	com	comida.
Mistérios
Os	mistérios	existem	para	nos	intrigar.
Como	 protetora	 de	 animais	 me	 pergunto,	 por	 que	 quase	 sempre	 é
preciso	estar	em	situação	de	risco	para	se	ter	a	chance	de	sobreviver?
Recordando	 os	 animais	 que	 resgatei	 e	 que	 já	 foram	 doados,	 a	 maioria
deles	 chegou	 até	 mim	 quando	 sua	 vida	 estava	 em	 perigo:	 ou	 estavam
atravessando	 uma	 rua	 movimentada,	 ou	 foram	 atropelados,	 ou	 se
encontravam	muito	doentes	e	por	isso	necessitavam	de	ajuda	imediata.
Por	 outro	 lado,	 eu	 cruzei	 com	 vários	 outros	 e	 nada	 fiz	 por	 eles,	 por
estarem	fortes,	em	locais	mais	seguros	ou	por	serem	bonitos	e	terem	boa
chance	de	serem	resgatados.	Estes	não	foram	socorridos	e	ficou	a	dúvida:
será	que	eles	tiveram	a	sorte	que	eu	imaginei	que	teriam?
Nós	 protetores,	 depois	 de	 algum	 tempo	 de	 experiência	 sempre
escolhemos	os	animais	que	estão	em	pior	estado	para	resgatar.	Para	isso
precisamos	selecionar	e	essa	tarefa	é	muito	delicada,	pois	você	tem	pouco
tempo	para	refletir	e	precisa	decidir	rapidamente	entre	ajudar	ou	não.	Essa
é	a	nossa	“escolha	de	Sofia”.
Nesse	 processo,	 várias	 coisas	 estarão	 em	 jogo.	 Muitas	 vezes,	 você	 não
tem	mais	lugar	em	casa	para	acolher	nenhum	animal	e	tudo	irá	depender
também	 de	 seu	 tempo	 disponível	 e,	 principalmente,	 de	 sua	 situação
financeira	no	momento.
Quantas	vezes	acontece	de	você	saber	que	não	tem	condições	de	fazer
aquele	resgate	e	mesmo	assim	insiste	em	acolher	o	animal,	sem	entender	o
motivo	que	a	leva	a	agir	dessa	maneira.	Creio	que,	quando	isso	ocorre,	não
foi	você	que	escolheu	o	animal,	ele	foi	escolhido	para	você.
Por	um	lado,	quando	conseguimos	que	os	animais	que	salvamos	fiquem
bem,	saudáveis	e	sejam	adotados,	temos	muito	a	comemorar.	Sabe	aquele
cachorro	todo	sarnento	para	quem	ninguém	mais	olhava	e	que	já	estava
sendo	 até	 enxotado	 por	 causa	 de	 seu	 aspecto?	 Quando	 ele	 se	 torna	 um
príncipe	 e	 tem	 fila	 para	 adotá-lo	 e	 você	 só	 tem	 o	 trabalho	 de	 escolher
cuidadosamente	 para	 que	 lar	 encaminhá-lo,	 é	 uma	 situação	 muito
gratificante.	 Um	 ser	 que	 não	 tinha	 mais	 nenhum	 interesse	 aos	 olhos	 das
pessoas	 e	 que	 começa	 a	 ser	 valorizado	 e	 disputado,	 isto	 é	 motivo	 de
orgulho	e	satisfação.
Por	outro	lado,	existem	aqueles	que	já	estavam	enfraquecidos	por	terem
permanecido	muito	tempo	nas	ruas	e	que,	quando	são	resgatados,	adoecem
e	não	resistem.	Então,	você	fica	se	perguntando:	por	que	eu	precisei	cruzar
com	 ele	 e	 me	 esforçar	 para	 salvá-lo,	 se	 era	 para	 ele	 morrer?	 Por	 que
empenhamos	 nossa	 energia	 e	 temos	 tantas	 despesas,	 se	 no	 final	 ele	 iria
morrer	mesmo?
O	fato	de	ter	sido	escolhido	não	deveria	fazer	dele	um	sobrevivente?
Algumas	pessoas	irão	dizer	que	desse	modo	o	animal	teve	uma	morte
digna,	não	ficou	definhando,	sozinho	e	sem	cuidados	na	rua.	Porém,	todo
seu	empenho	foi	em	vão.	Todo	tempo	e	toda	sua	energia	foram	gastos	com
que	propósito?	E	tem	também	o	lado	psicológico,	pois	você	fica	arrasada,
colocando	em	dúvida	sua	luta	e,	depois	dessa	fatalidade,	você	precisa	de
muito	tempo	para	se	recompor	e	reunir	forças	para	continuar.
Isso	faz	parte	dos	mistérios	que	em	vão	tento	desvendar.
Sei	que	é	muita	pretensão	querer	entender	todos	os	motivos	e	julgar	o
que	é	significativo	ou	não.	Mas,	no	fundo,	toda	escolha	que	você	faz	não
deixa	de	ser	intrigante.
A	única	certeza	que	tenho	é	que	nada	seria	muito	diferente	do	que	é,	pois
nós	fomos	criados	para	amar	e	cuidar.
Ser	feliz	dá	trabalho
Tempos	 atrás,	 doei	 uma	 cachorrinha	 que	 estava	 há	 dois	 anos
aguardando	um	lar.
Ela	é	uma	vira-lata	muito	dócil,	amorosa	e,	como	não	podia	deixar	de	ser,
se	apegou	ao	pouco	que	tinha	lá	no	abrigo:	visitas	diárias	e	a	companhia	de
uma	dezena	de	outros	cães,	todos	abandonados	como	ela.
Fiquei	 muito	 feliz	 com	 sua	 adoção	 e	 achei	 que	 sua	 hora	 de	 ser	 feliz
finalmente	chegara.
Mas,	ela	foi	devolvida	semanas	depois	e	disseram	que	não	se	adaptou,
que	estava	apática	e	não	estava	se	alimentando	direito.
Claro,	ela	precisava	de	um	tempo	para	entender	que	tinha	um	novo	lar	e
também	 ter	 a	 certeza	 que	 estava	 em	 segurança.	 Esta	 sensação	 de	 “estar
abandonado”	é	muito	comum	em	animais	que	viveram	nas	ruas	e	ficaram
muito	tempo	em	abrigos.
Sempre	digo	para	os	adotantes:	imagine	que	te	sequestram	e	soltam	em
outro	local	e	com	pessoas	que	você	não	conhece.	Você	precisa	de	um	tempo
para	se	adaptar,	certo?
Mas,	a	cachorrinha	não	teve	esse	tempo.	Em	vez	de	ampará-la,	foi	mais
fácil	devolvê-la.
Eu	não	insisti,	como	sempre	faço,	pois	entendi	que	o	adotante	não	estava
preparado	para	conviver	com	um	anjo.
O	 problema	 é	 que	 as	 pessoas,	 a	 maioria	 delas,	 não	 quer	 ter	 nenhum
trabalho.	Diante	da	menor	dificuldade	elas	desistem	e,	por	isso,	deixam	de
sentir	os	maiores	prazeres	da	vida.
Este	 moço	 que	 devolveu	 a	 cachorrinha	 se	 privou	 de	 seu	 olhar	 de
gratidão,	 de	 sua	 presença	 amorosa	 e	 seu	 amor	 incondicional.	 Ele	 não
chegou	a	sentir	sua	recepção	calorosa	ao	chegar	em	casa	depois	de	um	dia
difícil.	Ele	não	teve	sua	cumplicidade	nos	momentos	de	tristeza	e	de	alegria.
Ele	não	sentiu	nada	disto,	não	deu	tempo.
Muitas	vezes	me	dizem:	-	Você	faz	um	lindo	trabalho	e	deve	ter	muita
satisfação	com	ele,	deve	se	sentir	uma	pessoa	realizada.
Sim,	algumas	vezes	eu	tenho	a	sensação	do	dever	cumprido	e	sou	grata
por	ter	as	condições	necessárias	para	realizar	minha	missão.	No	entanto,
tenho	muito	trabalho	também.
Como	dizia	meu	pai,	citando	um	ditado	popular:	“Você	sabe	das	pingas
que	eu	bebo,	mas	não	sabe	dos	tombos	que	eu	levo”.	É	exatamente	isso:	a
ajuda	 aos	 animais	 é	 muito	 gratificante	 pois	 você	 os	 salva,	 cuida	 deles,
encaminha	para	um	bom	lar	e	a	história,	muitas	vezes,	tem	um	final	feliz.
Há	também	um	outro	lado	bastante	pesado:	os	dias	de	luto	por	aqueles
que	 foram	 resgatados,	 mas	 não	 conseguiram	 sobreviver;	 as	 horas	 de
intenso	 trabalho	 para	 cuidar	 de	 filhotes	 doentes;	 as	 dificuldades	 para
amparar	 animais	 idosos	 que	 não	 conseguem	 mais	 se	 virar	 sozinhos;	 o
desgaste	diário	por	cuidar	de	dezenas	de	cães	carentes	de	afeto	e	marcados
para	sempre	pelo	abandono	e	daqueles	que	foram	descartados	por	serem
especiais,	cegos	ou	paraplégicos;	a	necessidade	de	sacrificar	seu	lazer	para
comprar	ração	e	poder	cuidar	dignamente	dos	animais;	e	a	dor	de	sentir
um	gatinho	muito	amado	ir	se	apagando	em	seus	braços,	depois	de	muito
sofrimento.
A	lista	é	longa.
Para	se	obter	a	dádiva	de	salvar	uma	vida	é	preciso	muito	esforço.
Ser	feliz	é	trabalhoso,	cansativo	e	por	vezes	muito	triste.
Muitos	protetores	desistem,	alguns	piram	...	eu	escrevo.
Diga	não	aos	rodeios
Rodeio	é	um	espetáculo	que	reúne	dois	antagonistas	em	uma	arena:	de
um	 lado	 o	 animal,	 que	 aparenta	 ser	 selvagem	 e	 indomável	 e	 de	 outro	 o
mocinho,	que	transmite	determinação	e	coragem.
O	propósito	do	show	é	subjugar	o	animal	e	então	o	homem	irá	provar
toda	sua	força,	superioridade	e	seu	domínio	sobre	a	natureza.
No	entanto,	neste	embate	entre	a	selvageria	e	a	bravura,	entre	o	bem	e	o
mal,	 você	 espectador	 está	 sendo	 ludibriado.	 Saiba	 que	 nada	 disto	 é
verdadeiro,	 pois	 o	 modo	 como	 os	 animais	 se	 comportam	 na	 arena	 é
resultado	de	sua	exposição	à	tortura	e	à	dor.
Primeiramente	o	animal	entra	em	cena	e	fica	apavorado	pelo	barulho	da
plateia	e	pela	iluminação	excessiva	do	local,	artifício	usado	para	que	ele	se
sinta	desnorteado.
Logo	em	seguida,	ele	fica	desesperado,	pois	é	vítima	de	instrumentos	de
tortura	e	a	dor	que	sente	faz	com	que	ele	pule	como	se	fosse	um	animal
selvagem,	 quando,	 na	 verdade,	 está	 inutilmente	 tentando	 se	 livrar	 dos
apetrechos	que	o	martirizam.
Estudos	 sérios	 indicam	 as	 inúmeras	 irregularidades	 encontradas	 nos
rodeios.	 Foram	 listados	 os	 seguintes	 instrumentos	 de	 tortura:	 sedem,
apetrecho	 utilizado	 para	 comprimir	 a	 virilha	 e	 os	 genitais	 do	 animal;
choques	e	espancamentos;	esporas;	laçada	ao	bezerro;	alfinetes,	etc..
Tudo	isso	é	irregular	e	ilegal,	além	de	ferir	a	ética	e	a	civilidade.	Todos
nós	sabemos	 que	maus-tratos	 aos	 animais	é	 crime	com	 punição	prevista
por	lei	mas,	como	não	existe	fiscalização	na	maioria	dos	rodeios,	tudo	se
torna	permitido.
Como	 pode	 ser	 chamado	 de	 diversão	 um	 evento	 onde	 os	 animais	 são
torturados	e	humilhados?	Como	pode	ser	chamado	de	espetáculo	um	show
onde	 os	 super-homens	 que	 dominam	 os	 animais	 são	 covardes
torturadores?
E	 no	 final	 da	 encenação	 ocorre	 unicamente	 a	 celebração	 da	 crueldade
humana.
A	 comparação	 com	 o	 Coliseu	 criado	 pelo	 Imperador	 Vespasiano,	 onde
homens	 corajosos	 lutavam	 com	 animais	 selvagens	 não	 é	 inapropriada.	 A
diferença	é	que	na	época	romana	eles	não	usavam	truques.
A	realidade	dos	abrigos	de	animais
Toda	 vez	 que	 me	 perguntam	 se	 conheço	 algum	 abrigo	 que	 receba
animais	 de	 estimação,	 eu	 recordo	 a	 necessidade	 de	 escrever	 sobre	 o
assunto.
Essa	 semana	 os	 pedidos	 foram	 tantos,	 que	 vou	 tentar	 descrever	 a
realidade	dos	abrigos,	que	é	bem	diferente	da	imagem	que	muitas	pessoas
fazem	deles.
O	cão	ou	gato,	quando	vai	para	um	abrigo,	não	está	saindo	de	férias	ou
indo	 passar	 uma	 temporada	 em	 um	 SPA	 ou	 hotel	 de	 cinco	 estrelas.
Infelizmente,	ele	vai	enfrentar	uma	dura	realidade.
Alguns	 humanos	 resolvem,	 por	 vários	 motivos,	 se	 desfazer	 do	 animal
que	viveu	muitos	anos	em	sua	companhia,	outros	então	devolvem	o	animal
adotado	depois	de	meses	de	convívio	com	uma	família	e	todos	acham	que
ele	ficará	feliz	indo	para	um	abrigo.
Essas	pessoas	precisam	saber	que	o	estresse	enfrentado	pelo	animal	que
sai	de	 um	local	 onde	 ele	se	 sente	seguro	 e	amado	 é	 tão	grande	 que,	nas
primeiras	 semanas	 no	 abrigo	 ele	 adoece	 e	 demora	 muito	 tempo	 para	 se
recompor	e	participar	da	vida	coletiva.	No	período	de	adaptação,	ele	fica
apático,	deprimido	e	muitas	vezes	para	de	se	alimentar.	Os	mais	sensíveis
ou	velhos	adoecem	gravemente	e	alguns	acabam	morrendo.
Só	quem	já	visitou	um	abrigo	de	animais	sabe	do	que	eu	estou	falando.
Existem	 vários	 tipos	 de	 abrigo:	 alguns	 são	 pequenos,	 com	 poucos
animais,	o	tipo	de	local	que	a	maioria	dos	protetores	acaba	construindo	e
que	 fica	 muitas	 vezes	 em	 sua	 própria	 casa.	 Nesses,	 os	 animais	 têm
alimento,	 proteção,	 mas	 nem	 sempre	 têm	 atenção	 e	 carinho,	 como
gostaríamos	de	lhes	proporcionar.
Tem	 também	 aqueles	 abrigos	 maiores,	 que	 pertencem	 à	 sociedades
protetoras,	onde	os	animais	muitas	vezes	sofrem	por	falta	de	alimentos	e
cuidados.	 Neles	 há	 superlotação	 e	 são	 rotineiras	 mortes	 causadas	 por
brigas,	disputa	por	território,	alimento	e	até	disputa	por	atenção.	Nesses
locais	 os	 cães	 e	 gatos	 estão	 sempre	 tristes,	 apáticos	 ou,	 ao	 contrário,
tornam-se	tão	agitados	que	não	conseguem	relaxar	nunca.
Já	 resgatei	 animais	 de	 abrigos	 que	 se	 comportam	 como	 crianças
delinquentes,	 pois	 são	 agressivos,	 extremamente	 inquietos	 e	 podem
demorar	anos	para	se	reequilibrar.
Nos	locais	menores	e	mais	bem	equipados,	os	animais	geralmente	não
passam	fome,	mas	estão	sempre	carentes	e	chegam	a	brigar	por	um	simples
afago	e	você	precisa	ficar	atento	para	não	privilegiar	nenhum	deles.
Durante	 muitos	 anos	 fui	 voluntária	 em	 um	 abrigo	 que	 comporta	 uns
trinta	cachorros	e	senti	na	pele	todos	os	problemas	que	mencionei.
Chegava	 sempre	 no	 mesmo	 horário	 e	 os	 cachorros	 já	 começavam	 a
correr	 e	 a	 latir	 enquanto	 eu	 estava	 a	 um	 quarteirão	 de	 distância.	 Eles	 já
sabiam	a	hora	certa	da	minha	chegada	e	ficavam	tão	agitados	que,	muitas
vezes,	começava	uma	briga,	antes	mesmo	que	eu	abrisse	o	portão.
Nessa	hora,	eu	precisava	ser	rigorosa	e	fazia	de	tudo	para	que	eles	se
acalmassem.	 Sempre	 levava	 algum	 petisco	 e	 começava	 a	 servir	 para	 a
turma	que,	só	então,	ficava	quieta,	esperando	para	ganhar	o	prêmio.	Então,
eu	aproveitava	o	silêncio	para	conversar	com	eles	e	explicava	que	estava
procurando	bons	lares	para	todos	e	que	eles	precisavam	ter	paciência,	pois
tudo	 era	 uma	 questão	 de	 tempo	 e	 logo	 eles	 iriam	 ter	 uma	 vida	 melhor.
Contava	também	como	que	era	difícil	encontrar	pessoas	sem	preconceito	e
que	também	tivessem	amor	para	dar.	Essa	conversa,	na	maioria	das	vezes,
os	acalmava,	pois	cachorros	gostam	de	ouvir	uma	voz	humana	que	lhes	fala
com	carinho	e	transmita	serenidade.
Todos	os	dias	eu	saia	de	lá	com	um	nó	na	garganta,	pois	só	voltaria	no
dia	seguinte	e	os	cães	teriam	um	longo	dia	pela	frente,	sem	atenção	e	sem	a
companhia	de	um	humano.	Lá,	como	na	maioria	dos	abrigos,	eles	só	têm	o
básico:	comida,	água	e	proteção	contra	as	intempéries.
Mas,	felizmente	e	aos	poucos,	os	animais	acabam	aprendendo	a	conviver
com	a	solidão	e,	depois	de	um	tempo,	já	não	sofrem	tanto;	resignados,	eles
entravam	em	suas	casinhas	onde	esperam	o	tempo	passar.
Eu	 sempre	 ficava	 triste,	 mas	 me	 consolava	 pensando	 que	 eles	 viviam
melhor	lá	do	que	nas	ruas,	passando	necessidades.
Por	tudo	que	os	animais	são	obrigados	a	suportar,	é	importante	que	o
abrigo	 seja	 sempre	 encarado	 como	 um	 local	 transitório,	 uma	 casa	 de
passagem	 e	 não	 o	 lar	 definitivo	 para	 cães	 e	 gatos.	 Animais	 domésticos,
como	o	próprio	nome	diz,	existem	para	viver	em	contato	e	na	companhia
de	humanos,	pois	dependem	deles	para	todas	suas	necessidades.
O	 certo	 é	 que	 sempre	 paira	 um	 ar	 de	 tristeza	 e	 resignação	 sobre	 os
abrigos.	 Isto	 porque	 todos	 os	 animais	 que	 lá	 estão	 foram	 um	 dia
abandonados	 e,	 mesmo	 os	 que	 se	 perderam	 de	 suas	 casas,	 ficaram
traumatizados,	pois	nas	ruas	passaram	por	muita	privação	e	medo.	Eles	se
tornaram	seres	inseguros	que	têm	receio	de	nos	decepcionar,	de	fazer	algo
errado	e	serem	descartados	e	sofrer	novamente.
Essa	é	infelizmente	a	realidade	dos	abrigos	de	animais.
Jim	 Willis,	 escritor	 e	 defensor	 dos	 animais,	 descreveu	 com	 precisão	 a
tristeza	dos	abrigos	em	seu	livro	Pieces	of	My	Heart:
“Olhei	 para	 os	 animais	 abandonados	 no	 abrigo,	 os	 renegados	 da	 sociedade	 humana.	 Vi	 em
seus	olhos	amor	e	esperança,	medo	e	horror,	tristeza	e	a	certeza	de	terem	sido	traídos.
Eu	me	revoltei	e	rezei:
-	Deus,	isto	é	horrível!	Por	que	o	Senhor	não	faz	nada	a	respeito?
E	Deus	respondeu:
-	Eu	fiz.	Eu	criei	você.”
Se	todos	fizerem	um	pouco
Se	as	pessoas	cuidarem	adequadamente	de	seu	animal	de	estimação	e	o
tratarem	com	o	respeito	que	ele	merece,	não	haverá	abandonos	e	maus-
tratos	e	os	animais	farão	parte	da	família	que	eles	tanto	amam.
Se	 nas	 escolas	 ensinarem	 as	 crianças	 desde	 cedo	 como	 cuidar
dignamente	de	um	animal	e	discutirem	a	importância	dessa	atitude,	elas
crescerão	 valorizando	 seu	 amigo,	 além	 de	 se	 tornarem	 seres	 mais
responsáveis.
Se	as	crianças	aprenderem	a	valorizar	todas	as	formas	de	vida,	quando
adultos	 saberão	 como	 ninguém	 amar	 e	 respeitar	 o	 ser	 humano	 e	 serão
menos	preconceituosas	também.
Se	essas	crianças	transmitirem	os	conhecimentos	adquiridos	sobre	posse
responsável	 aos	 pais,	 familiares	 e	 amigos	 e	 conseguirem	 influenciá-los,	 a
realidade	dos	animais	será	bem	mais	positiva.
Se	 os	 guardiões	 de	 animais	 entenderem	 a	 necessidade	 de	 levar	 seus
animais	 de	 estimação	 para	 castrar,	 como	 coisa	 rotineira,	 não	 haverá
nascimentos	indesejados,	abandonos	e	mortes.
Se	as	Prefeituras	de	todas	as	cidades	realizarem	campanhas	de	castração
gratuitas	para	as	pessoas	de	baixa	renda,	o	problema	da	superpopulação
estará	resolvido	ou	pelo	menos	minimizado.
Se	os	governos	entenderem	que	é	muito	mais	barato	e	eficaz	castrar	os
animais	 do	 que	 manter	 a	 carrocinha	 e	 a	 morte	 indiscriminada	 de	 cães	 e
gatos	por	injeção	letal,	já	teriam	modificado	há	muito	tempo	a	política	dos
Centros	de	Zoonozes.
Se	os	animais	estiverem	todos	castrados,	não	haverá	superpopulação	e
os	que	por	acaso	ainda	estiverem	nas	ruas	não	procriarão,	o	que	diminuirá
significativamente	o	número	dos	desabrigados.
Se	 não	 houver	 animais	 vagando	 pelas	 ruas,	 as	 pessoas	 passarão	 a
valorizá-los	e	eles	serão	poucos	e	especiais.
Se	os	animais	que	são	comercializados	só	forem	vendidos	já	castrados,
isso	evitará	que	muitos	aproveitadores	usem	os	animais	de	raça	só	com	o
intuito	de	procriação	e	venda	de	filhotes.
Se	as	pessoas	entenderem	que	os	animais	são	seres	sensíveis,	elas	não
desejarão	 possuir	 um	 determinado	 animal	 só	 porque	 sua	 raça	 está	 na
moda.	 Elas	 saberão	 que,	 por	 trás	 daquela	 raça,	 existe	 um	 ser	 que	 ama	 e
sofre	e	que	se	apega	às	pessoas	que	cuidam	dele.
Se	as	pessoas	entenderem	que	os	animais,	assim	como	nós,	sentem	dor	e
medo,	elas	se	compadecerão	deles	e	tentarão	ajudá-los	quando	estiverem
necessitados.
Se	as	pessoas	se	compadecerem	dos	animais	que	estão	sofrendo	nas	ruas
e	os	resgatarem	e	cuidarem	deles	para	depois	encaminhá-los	para	adoção,
diminuirá	significativamente	o	número	de	mortes	causadas	por	doenças	e
desnutrição.
Se	as	pessoas	ficarem	atentas	às	necessidades	básicas	dos	animais	como
alimentação	 adequada,	 vacinação	 anual	 e	 abrigo	 contra	 as	 intempéries,
todos	eles	terão	uma	vida	longa	e	digna.
Se	 as	 pessoas	 souberem	 que	 os	 animais,	 além	 de	 comida	 e	 abrigo,
precisam	também	de	atenção	e	carinho,	eles	serão	muito	mais	felizes.
Se	 todos	 souberem	 que	 prender	 animais	 em	 correntes	 ou	 espaços
mínimos	 só	 gera	 revolta	 e	 infelicidade,	 todos	 os	 animais	 viverão	 livres	 e
satisfeitos	no	espaço	a	eles	destinado.
Se	 todos	 souberem	 que	 os	 filhotes	 devem	 ser	 ensinados	 apenas	 com
recompensas	pelo	acerto	e	nunca	com	castigos	e	violência,	as	pessoas	terão
em	sua	companhia	animais	adestrados	e	educados.
Se	as	pessoas	se	conscientizarem,	antes	de	comprar	ou	adotar	um	animal
doméstico,	 que	 ele	 pode	 viver	 entre	 doze	 e	 quinze	 anos	 ou	 mais,
dependendo	 do	 porte,	 não	 haverá	 tantos	 abandonos	 provocados	 por
velhice.
Se	 as	 pessoas	 souberem	 que,	 como	 qualquer	 ser	 humano,	 os	 animais
precisam	 mais	 delas	 quando	 estão	 doentes	 ou	 velhos,	 eles	 não	 serão
abandonados	no	momento	que	mais	necessitam	de	cuidados.
Se	 todos	 se	 conscientizarem	 de	 que	 existem	 muitos	 animais
abandonados	esperando	por	adoção,	entenderão	que	não	devem	comprar	e
sim	adotar:	o	melhor	amigo	não	se	compra.
Se	as	pessoas	proporcionarem	uma	boa	vida	aos	animais	de	estimação,
receberão	em	troca	uma	gratidão	sem	limites	e	uma	dedicação	que	não	se
iguala	a	nenhum	outro	sentimento	humano.
Se	 todos	 fizerem	 um	 pouco,	 com	 certeza	 essa	 situação	 de	 abandono,
sofrimento	e	morte	será	atenuada.
Para	que	tudo	isto	aconteça,	precisamos	lutar	e	nos	empenhar,	pois	os
animais	não	podem	se	comunicar	e	dependem	de	nós.
ENCONTRO	MARCADO	COM	GATOS
Sumário
Encontro	marcado	com	gatos
O	primeiro	gatinho	a	gente	nunca	esquece
Existem	coincidências?
Frank	e	sua	gangue
Quatro	gatinhos	pretos
Quatro	gatinhos	pretos	–	segunda	parte
Pequeno	equívoco
Dar	nomes	aos	gatos
A	casa	dos	gatos
Gato	preto	dá	sorte
Anjos	também	morrem
Tiquinho	Huguinho,	o	incompreendido
Impressões	felinas
Gato	de	Israel
A	última	visita	de	Bob
A	Inquisição,	os	judeus	e	os	gatos
Momentos	felinos
Perfeição
O	melhor	presente	de	aniversário
Kiwi
Anjos	da	Raposo
Mia	e	Vince
O	tal	Dorival
Judaísmo	e	os	animais
O	primeiro	gatinho	a	gente	nunca
esquece
Quando	meu	marido	chegou	dizendo	que	estava	com	vontade	de	trazer
para	casa	dois	gatinhos	que	estavam	em	liquidação	num	pet-shop	perto	do
escritório,	eu	fui	categórica:
-	Acho	que	não	gosto	de	gatos.	Eles	não	gostam	das	pessoas,	só	das	casas
e	não	são	muito	carinhosos.
Mas,	ele	insistiu:
-	Isto	 não	é	 verdade	 e	esses	 são	tão	 lindos,	estão	 já	 com	três	 meses	e
custando	uma	ninharia,	o	preço	já	caiu	três	vezes	e	logo,	logo,	serão	jogados
na	rua.	Nem	cabem	mais	na	gaiola	...
Claro,	depois	desses	anos	todos,	ele	sabia	muito	bem	qual	era	meu	ponto
fraco.
-	Está	bem,	concordei,	traga	os	gatinhos	e	vamos	ver.
Eu	 nem	 sabia	 como	 fazer.	 Telefonei	 para	 a	 veterinária	 e	 precisei
perguntar	 tudo:	 como	 cuidar	 deles,	 quantas	 vezes	 comem	 por	 dia,	 o	 que
eles	precisam,	caixinha	de	areia?
Não	sabia	que	gatos	comem	um	pouco	várias	vezes	por	dia,	não	sabia
que	usam	uma	caixinha	de	areia	para	suas	necessidades	e	que	não	fazem
nenhuma	sujeira,	não	sabia	que	eles	adoram	brincar	e,	principalmente,	não
sabia	 que	 também	 gostam	 de	 um	 colo.	 Que	 são	 muito	 carinhosos,
inteligentes	e	interessantes,	isso	tudo	fui	descobrindo	aos	poucos.
Aliás,	como	a	maioria	das	pessoas,	eu	não	sabia	nada	sobre	gatos.
As	 descobertas	 foram	 diárias	 e	 eu	 fui	 me	 apaixonando	 a	 ponto	 de
perguntar:	como	pude	viver	tanto	tempo	sem	a	companhia	de	um	gato?
Eles	 brincam	 e	 se	 divertem	 o	 tempo	 todo,	 eles	 se	 alimentam	 o	 tempo
todo	e	eles	são	felizes	o	tempo	todo.	São	seres	fascinantes	e	instigantes.
E,	 quando	 você	 pensa	 que	 entendeu	 tudo,	 que	 já	 sabe	 como	 eles
“funcionam”,	 eles	 nos	 surpreendem:	 naquele	 dia	 resolvem	 não	 fazer	 a
brincadeira	esperada	 ou	nem	 te	respondem	 quando	 você	os	 chama.	Este
dia	 vai	 ser	 diferente	 porque	 eles	 resolveram	 assim.	 Você	 começa	 a	 ficar
preocupada	 achando	 que	 tem	 algo	 errado	 com	 eles	 mas,	 algumas	 horas
depois,	eles	acordam	de	bom	humor	e	tudo	volta	à	rotina.
Os	gatinhos	filhotes,	então,	são	um	espetáculo	à	parte:	divertidos,	ágeis,
alegres	e	encantadores.
Você	 se	 pergunta:	 já	 vivi	 tanto,	 tenho	 tanta	 experiência	 e	 como	 nunca
soube	disso?	Como	nunca	me	disseram	que	a	felicidade	é	tão	simples:	basta
observar	um	gatinho	filhote	brincando	e	descobrindo	o	mundo.
Porém,	 com	 o	 tempo,	 você	 aprende	 também	 uma	 outra	 característica
felina:	eles	são	especialistas	em	mascarar	a	dor	e	as	doenças.
Eu	era	inexperiente	e	só	percebi	que	havia	algo	errado	com	meu	gatinho
Tom,	 quando	 já	 era	 muito	 tarde.	 Tenho	 certeza	 que	 ele	 fingiu	 estar	 bem
para	não	me	chatear,	ele	não	queria	me	ver	sofrendo.
Foi	muito	difícil	aceitar	sua	morte	prematura	somada	à	culpa	que	senti
por	não	ter	percebido	os	sinais	da	doença,	enquanto	ainda	haveria	tempo
para	a	cura.
O	breve	período	que	Tom	conviveu	comigo	foi	suficiente	para	me	ensinar
a	entender	e	amar	os	felinos,	admirá-los	e	descobrir	com	eles	um	aspecto
da	vida	que	eu	já	estava	esquecendo:	o	prazer	de	estar	vivo.
Existem	coincidências?
Para	Eleonora
Algumas	 vezes,	 tenho	 certeza	 que	 sou	 um	 simples	 instrumento,	 uma
peça	 aleatória	 a	 serviço	 de	 uma	 engrenagem	 muito	 mais	 complexa	 e
abrangente.
Todos	os	dias,	cruzo	com	vários	animais	precisando	de	ajuda	e	eu	sofro,
mas	reajo:	não	posso	fazer	mais	nada,	já	ultrapassei	todos	os	meus	limites,
não	dá	para	acolher	mais	ninguém.
Então,	 arrasada,	 continuo	 meu	 caminho	 e	 rezo	 para	 que	 alguém,	 com
mais	disponibilidade,	veja	o	animal,	sinta	sua	dor	e	responda	ao	seu	apelo.
Entretanto,	chega	o	dia	em	que	todas	as	forças	do	universo	resolvem	se
conectar	 para	 tornar	 determinado	 apelo	 irresistível.	 Naquele	 momento
começa	 a	 chover,	 ou	 então,	 faz	 muito	 frio,	 ele	 ou	 ela	 atravessa	 uma	 rua
movimentada	 e	 corre	 perigo	 iminente.	 Por	 vezes	 é	 a	 dor,	 a	 doença	 ou	 o
sofrimento,	os	fatores	que	desencadeiam	sua	ação.
Assim,	tem	início	o	resgate	não	planejado	e,	nessa	hora,	não	raciocino	e
muito	menos	deixo	a	razão	prevalecer.	Sou	guiada	pelo	instinto.	O	que	fazer
depois,	já	é	uma	segunda	etapa,	um	problema	a	ser	resolvido	quando	eu
recobrar	a	razão.
Naquele	 dia,	 tudo	 começou	 com	 um	 resgate	 planejado.	 Fui	 até	 aquele
bairro,	em	uma	favela,	para	buscar	uma	poodle	que	perambulava	por	lá,
faminta	e	no	cio,	há	vários	dias.	Já	arrumara	até	lar	provisório	para	que	ela
se	recuperasse	enquanto	aguardava	adoção.
Mas,	 no	 meio	 do	 caminho,	 lá	 estava	 ele:	 pequeno,	 muito	 frágil	 e
implorando	 por	 ajuda.	 Gatos	 atravessando	 ruas	 movimentadas	 em	 plena
luz	do	dia	são	a	personificação	do	desespero.	Sempre	que	vejo	esta	cena	me
lembro	dos	tigres	no	circo,	lançando-se	contra	círculos	de	fogo.	Quanta	dor
os	 domadores	 teriam	 infligido	 àqueles	 pobres	 animais	 para	 que	 eles	 se
lançassem	 desse	 modo	 para	 o	 desconhecido,	 para	 a	 morte?	 Quanto
desespero	guiou	aquele	gatinho	para	um	local	tão	perigoso?
Não	 pude	 deixar	 de	 socorrê-lo.	 Instintivamente	 quis	 apenas	 mantê-lo
seguro,	protegido	e	o	levei	para	casa.
Tudo	foi	muito	rápido	e,	em	questão	de	horas,	seu	destino,	antes	escrito
com	linhas	tão	tênues	já	estava	decidido.
Aconteceu	assim:
Naquele	instante	em	que	eu	passei,	ele	atravessou	a	rua.
Levei-o	 para	 casa	 e	 coloquei	 o	 filhote	 num	 cantinho	 aconchegante.
Alimentei-o	e	tirei	sua	foto	na	esperança	de	achar	um	lar	seguro	para	ele.
Algumas	horas	mais	tarde,	uma	amiga	foi	conferir	suas	mensagens	e	lá
estava	ele,	indefeso	e	implorando	por	ajuda.
Naquele	exato	momento,	alguém	passou	por	ela	e	se	emocionou	com	sua
figura	frágil	e	carente.
Mais	algumas	horas	e	ele	foi	encaminhado	para	um	lar	amoroso	e	que
preencheu	todas	as	suas	necessidades.
Houve	 uma	 conjunção	 perfeita	 de	 fatos,	 lugares	 e	 pessoas,	 todos
distantes,	 desconhecidos.	 Uma	 sincronia	 de	 forças	 que	 culminou	 em
encontros	e	acertos.
Tudo	muito	rápido,	coordenado,	eficaz.
Creio	que	lá	longe,	os	sinos	dobraram	e	as	pontas	de	um	emaranhado,
aparentemente	sem	nexo,	foram	se	encaixando	com	facilidade	e	uma	soma
de	fatos	improváveis	culminou	num	desenlace	feliz.
Nesse	momento,	você	descobre	que	foi	apenas	um	instrumento	para	a
realização	de	um	acordo	que	já	havia	sido	firmado.	Não	aqui,	mas	em	outra
dimensão.
Frank	e	sua	gangue
Por	que	escrevemos	sobre	determinado	animal?
Porque	ele	tem	uma	história	marcante	que	merece	ser	contada,	ou	é	por
causa	 de	 sua	 personalidade	 que	 também	 é	 muito	 marcante	 e	 deve	 ser
conhecida.
Frank	se	enquadra	no	segundo	caso	e	pode	ser	descrito	como	um	gatinho
peculiar:	vesgo,	desafinado,	encrenqueiro,	mandão	e	muito	divertido.
De	tão	estrábico,	não	temos	noção	para	qual	direção	ele	está	olhando	e,
as	vezes	acho	que	ele	não	enxerga	quase	nada,	pois	longe	de	seu	ambiente,
ele	 fica	 perdido	 e	 olhando	 para	 todos	 os	 lados	 como	 se	 não	 conseguisse
fixar	um	objeto.
Quando	o	encontrei	ainda	bebê,	ele	estava	num	terreno	ao	lado	de	casa	e
passou	a	noite	berrando	até	ser	regatado.	Seu	miado	é	tão	desafinado,	tão
estridente	que	eu	pensei,	enquanto	me	revirava	insone	na	cama:	amanhã
vou	 pegar	 este	 gatinho	 só	 para	 colocar	 um	 grande	 esparadrapo	 no	 seu
focinho.
Desde	 pequeno,	 Frank	 começou	 a	 demonstrar	 espírito	 de	 liderança	 e
hoje	 ele	 é	 o	 macho	 dominante	 do	 gatil:	 mandão,	 briguento	 e,	 ao	 mesmo
tempo	extremamente	amoroso	com	os	gatos	que	gozam	de	sua	preferência,
e	que	são	aqueles	mais	alegres	e	arteiros	e	que	podem	ser	tanto	machos
como	 fêmeas.	 Ele	 é	 o	 líder	 da	 turma	 dos	 bagunceiros	 e	 normalmente	 é
quem	 dá	 o	 sinal	 para	 que	 a	 folia	 tenha	 início:	 ele	 solta	 um	 miado	 alto	 e
desafinado,	como	se	estivesse	exercitando	a	voz	e	sai	correndo	e	fazendo	a
maior	algazarra.
Implica	com	todos	os	gatos	sérios,	como	se	dissesse:	larga	de	ser	chato,	a
vida	é	boa	e	breve	e	não	adianta	nada	ser	tão	ranzinza.
Frank	 está	 sempre	 de	 bom	 humor.	 Quando	 faz	 alguma	 coisa	 errada,
corre	e	fica	olhando	para	ver	se	eu	o	estou	observando:	derruba	almofadas
de	locais	altos,	vira	casinhas,	puxa	os	lençóis	para	o	meio	da	sala	e	adora
fingir	que	vai	fazer	xixi	na	parede	bem	na	hora	que	eu	estou	passando.	Eu
dou	um	grito:	-	FRANK!	e	ele	sai	correndo	com	uma	carinha	de	safado	e	é
visível	que	está	se	divertindo	pra	valer.
Então,	eu	lhe	dou	uma	sonora	bronca	e	o	coloco	de	castigo	no	prato	de
um	 brinquedo	 que	 tem	 no	 playground	 dos	 gatos.	 Trata-se	 de	 uma
construção	que	imita	uma	árvore,	tem	movimento	e	é	composta	por	vários
pratos	 grandes	 espalhados	 por	 sua	 superfície.	 E	 Frank	 fica	 muito	 tempo
quietinho	de	castigo	no	mesmo	lugar,	até	que	eu	lhe	dou	permissão	para
sair:
-	Pode	sair	agora	Frank	...	e,	entendendo	perfeitamente	meu	comando,
ele	sai	correndo	para	infernizar	a	vida	de	algum	gato	menos	avisado.
Essa	é	a	nossa	brincadeira	diária.
Até	seu	nome	é	perfeito.	Assim	como	Sinatra,	ele	tem	lindos	olhos	azuis	e
veio	morar	conosco	na	mesma	semana	em	que	Sinatra	faleceu.	Ele	só	não	é
afinado	como	o	cantor.
Eu	sempre	penso	nele	como	um	líder	mafioso	de	uma	turma	muito	feliz
que	fica	se	divertindo	o	tempo	todo	e	alegrando	aqueles	que	a	assistem.
Fazem	parte	da	turma:	Frank,	Tico	e	Teco,	Chaplin	e	Ivan.	Os	meus	meninos
que	 poderiam	 também	 se	 chamar:	 Frank	 Sinatra,	 Sammy	 Davis	 Jr.,	 Peter
Lawford	e	Dean	Martin.
Essa	 é	 a	 minha	 gangue,	 que	 se	 diverte	 tanto	 quanto	 se	 divertia	 a
americana	e	está	sempre	de	bem	com	a	vida.
Quatro	gatinhos	pretos
A	primeira	vez	que	os	vi,	tentavam	atravessar	uma	rua	movimentada	às
11:00	 horas	 da	 manhã	 de	 uma	 segunda-feira.	 Passo	 ritmado,	 como	 se
estivessem	 de	 mãos	 dadas,	 deram	 início	 à	 travessia,	 indiferentes	 ao
movimento	de	pessoas	e	carros.
A	seu	modo,	eles	pediam	ajuda	e	a	urgência	do	pedido	era	visível	em	seu
olhar	 e	 sua	 determinação.	 Eles	 sabiam	 que	 essa	 poderia	 ser	 sua	 última
chance	e	então	se	lançaram,	sem	hesitar,	em	busca	da	sobrevivência.
Eu	me	assustei	com	o	inusitado	da	cena	e,	aflita,	coloquei-os	rapidamente
no	carro,	antes	que	fossem	atropelados.
Estavam	famintos,	cobertos	de	pulgas	e,	principalmente,	exaustos.	Livres
de	todos	estes	inconvenientes,	dormiram	longa	e	profundamente	e,	quando
acordaram,	deram	início	a	uma	série	incansável	de	brincadeiras.
Estes	 quatro	 gatinhos	 pretos	 são,	 sem	 exceção,	 muito	 alegres,
brincalhões,	espertos,	comilões	e,	principalmente,	agradecidos	e	amorosos.
São	gatinhos	especiais	destinados	a	pessoas	especiais.
Escrevi	esse	texto	tentando	doá-los	e	um	casal	adotou	as	duas	fêmeas.
Recebo	 sempre	 notícias	 das	 meninas	 que	 continuam	 até	 hoje
comemorando	sua	sorte.
Quanto	aos	dois	machos,	além	da	dificuldade	que	é	doar	gatos	pretos	e
também,	como	não	tive	coragem	de	separá-los,	acabaram	ficando	em	casa.
Permanecem	muito	unidos,	são	parceiros	de	toda	hora,	comem,	dormem	e
brincam	juntos	e,	o	mais	importante,	contagiam	os	outros	gatos	com	sua
alegria	e	amor	à	vida.
E	 eles	 não	 são	 só	 inseparáveis,	 são	 também	 muito	 semelhantes,	 são
gêmeos	 idênticos.	 Você	 não	 consegue,	 mesmo	 após	 longa	 convivência,
identificá-los	facilmente.	Um	pelo	branco	aqui,	outro	pelo	branco	ali,	mas
quando	precisamos	agir	com	rapidez,	é	quase	impossível	acertar.
Isso	é	um	problema	na	hora	de	administrar	remédios	ou	vacina.	Preciso
sempre	da	ajuda	de	outra	pessoa:	um	deles	é	separado	e	o	outro	recebe	o
medicamento	 e	 depois	 invertemos	 os	 papéis.	 Ou	 então,	 pego	 um	 deles,
amarro	uma	fitinha	colorida,	dou	o	remédio	e	tenho	tempo	para	pegar	o
outro,	enquanto	o	primeiro	se	ocupa	de	ficar	livre	do	enfeite	incômodo.
De	 qualquer	 modo,	 preciso	 ser	 muito	 rápida,	 pois	 eles	 ficam	 poucos
instantes	 no	 mesmo	 lugar.	 São	 donos	 de	 uma	 energia	 e	 vigor
impressionantes	e	só	param	de	correr	e	pular	quando	são	vencidos	pelo
cansaço.	 Nessa	 hora,	 procuram	 um	 cantinho	 aconchegante,	 abraçam-se	 e
fecham	instantaneamente	os	olhos.	Apagam.
Você	diria	que	eles	são	típicos	gatinhos	filhotes.	Só	que	estes	dois	já	têm
mais	de	dois	anos	de	idade	e	ainda	conservam	a	alegria,	a	curiosidade	e	a
vitalidade	dos	bebês.
Tico	e	Teco	são	um	espetáculo	à	parte	para	as	pessoas	e	um	convite	à
celebração	 para	 os	 outros	 gatos	 que,	 de	 início,	 só	 observam	 e,	 minutos
depois,	 contagiados,	 passam	 a	 se	 divertir	 também.	 É	 como	 se	 os	 dois
gatinhos	 fossem	 animadores	 e	 tivessem	 o	 objetivo	 de	 fazer	 circular	 a
alegria	e	o	alto	astral.
No	 entanto,	 é	 paradoxal,	 pois	 sempre	 que	 penso	 neles	 surgem	 duas
imagens	contrastantes:	amor	à	vida	e	desespero.	A	primeira	imagem	é	fruto
de	seu	comportamento	cotidiano,	de	suas	brincadeiras	alegres	e	inocentes.
Aí	me	lembro	do	desespero,	o	sentimento	que	os	impulsionou	a	atravessar
aquela	rua	e	enfrentar	o	perigo	e	o	desconhecido.
Então	fica	claro:	só	quem	viveu	e	superou	situações	extremas	pode	ser
tão	feliz.	Estes	gatos	são	sobreviventes	e,	por	isso,	dão	tanto	valor	à	vida	e	a
celebram	diariamente	como	uma	benção	divina.
Quatro	gatinhos	pretos	–	Segunda	parte
E	 a	 rotina	 continuou:	 muita	 alegria,	 celebração	 e	 muita,	 muita
curiosidade.	 Esta	 característica,	 por	 sinal,	 também	 diferenciava	 um	 dos
irmãos:	 Tico	 é	 mais	 curioso	 e	 amoroso	 com	 as	 pessoas,	 Teco	 mais
independente	e	próximo	dos	outros	gatos.
Tico	sempre	me	esperava	pela	manhã	à	porta	do	gatil	e	era	o	último	a	se
despedir	 à	 noite.	 Sempre	 interrompia	 suas	 atividades	 para	 correr	 até	 a
porta	e	desejar-me	boa	noite	com	seu	olhar	doce	e	carinhoso.
Uma	 manhã,	 no	 entanto,	 ele	 não	 estava	 me	 aguardando.	 Um	 rato,	 um
pássaro,	a	eterna	curiosidade	dos	gatos,	algo	o	impulsionou	a	forçar	a	tela
do	gatil	e	sair	para	explorar	o	mundo	lá	fora.
Nesse	 momento,	 é	 como	 se	 houvesse	 uma	 cisão	 no	 tempo,	 uma
interrupção	que	paralisa	ações	e	sacode	sentimentos.
Para	 não	 sucumbir	 ao	 desespero	 você	 começa	 a	 planejar	 todo	 tipo	 de
buscas,	 diurnas	 e	 noturnas,	 silenciosas	 e	 barulhentas,	 racionais,
meticulosas	 e	 também	 descontroladas.	 Pede	 ajuda	 a	 todos,	 amigos	 e
conhecidos	e	faz	contato	com	vizinhos	que	nem	sabia	que	existiam.
A	 busca	 constante	 e	 obsessiva	 acaba	 levando	 a	 uma	 exaustão	 que	 faz
você	questionar	todas	suas	convicções.	Afinal,	para	que	eu	salvara	a	vida
desses	quatro	gatos,	se	era	para	ele	fugir	e	ficar	em	perigo	novamente.	Não
tinha	sentido.	Ou	será	que	o	trabalho	de	ajuda	aos	animais	é	que	não	tem
sentido?
O	tempo	vai	passando	e	você	começa	a	fraquejar,	ânimo	e	desânimo	se
alternam	 num	 mesmo	 dia,	 especialmente	 quando	 saímos	 atrás	 de	 pistas
falsas,	dicas	bem	intencionadas	daqueles	que	pretendem	ajudar	e	elas	se
tornam	em	novas	frustrações.	Como	alternativa,	você	articula	novas	táticas
que	também	acabam	apontando	para	sua	impotência	e	fracasso.
Mesmo	evitando	a	todo	custo,	passamos	a	imaginar	os	perigos	e	assim,
como	num	pesadelo,	tudo	se	torna	perigoso,	desde	o	cachorro	do	vizinho
até	o	carro	cruzando	sua	rua.	E	a	fome	e	a	sede	são	presenças	constantes
quando	você	troca	a	água	ou	coloca	ração	na	vasilha	dos	outros	gatos.
E,	 o	 mais	 cruel,	 o	 fato	 dele	 ser	 um	 gato	 preto,	 aquele	 que	 sofre	 mais
discriminação	e	que	corre	mais	perigo	nas	ruas.
Soma-se	 à	 dor	 da	 perda	 o	 desespero	 da	 impotência	 e	 o	 resultado	 é	 a
tristeza	que	se	abate	sobre	tudo	e	contagia	indistintamente	pessoas	e	gatos.
Talvez	para	me	consolar,	Teco	começou	a	tomar	algumas	atitudes	que
antes	eram	próprias	de	seu	irmão:	esperava-me	na	porta	do	gatil,	despedia-
se	 quando	 eu	 saia	 e	 tentava	 brincar	 sozinho.	 Corria	 para	 todos	 os	 lados
tentando	contagiar	os	outros	gatos,	sem	sucesso,	porém.	Então,	postava-se
no	local	exato	onde	a	tela	fora	forçada	e	chamava:
R	A	U	L			R	A	U	L			R	A	U	L			R	A	U	L			R	A	U	L
T.	S.	Eliot	em	um	de	seus	poemas	fala	sobre	o	nome	secreto	dos	gatos,	o
nome	 que	 eles	 partilham	 entre	 si	 e	 não	 nos	 contam.	 Teco,	 em	 sua	 dor,
deixou	escapar	o	segredo	e	eu	fiquei	sabendo	o	nome	verdadeiro	do	Tico.
De	todo	modo,	a	busca	não	foi	totalmente	infrutífera,	pois	resultou	no
acolhimento	 de	 quatro	 outros	 gatinhos	 pretos	 que	 ficaram	 muito
agradecidos	ao	Tico	quando	foram	encaminhados	para	seus	novos	lares.
Numa	 noite,	 67	 dias	 ou	 1608	 horas	 depois,	 eu	 ouço	 um	 fraco	 miado
vindo	da	rua,	uma	vozinha	leve	e	insistente.
-	É	você,	Tico?
E,	 contra	 todas	 as	 probabilidades,	 ele	 pula	 de	 uma	 árvore	 direto	 para
meu	colo,	como	se	estivesse	acabado	de	se	despedir	à	porta	do	gatil.	Como
se	 não	 houvesse	 ocorrido	 uma	 interrupção,	 como	 se	 essa	 suspensão
temporal,	este	hiato	de	dor,	fosse	fruto	da	minha	imaginação.
Minha	rotina	mudou.	Hoje	eu	acordo,	abro	a	cortina	do	quarto	e	quando
vejo	os	dois	gatinhos	pretos	brincando,	começo	meu	dia	com	um	sorriso	de
alívio	e	satisfação	e	agradeço	a	preciosa	dádiva	que	me	foi	concedida.
Para	 eles	 houve	 uma	 retomada	 da	 rotina	 e,	 para	 mim,	 uma	 grande
mudança.
PS.:
Outro	dia,	estava	acariciando	Tico	e	recordando	aqueles	dias	terríveis,
quando	ele	me	olhou	bem	nos	olhos	e	soprou	um	pensamento:
-	“Nunca	contei	pra	você,	para	não	chateá-la.	Mas,	eu	me	diverti	muito
enquanto	estava	fora:	passeei,	conheci	lugares	novos,	fiz	muitos	amigos	e
aprendi	coisas	interessantes.	Hoje	sou	bem	mais	esperto	e	vivido.
Vinha	toda	noite	para	comer	a	ração	que	você	deixava	no	muro	da	casa,
para	o	caso	de	eu	voltar	com	fome.
Eu	só	voltei	mesmo	porque	te	ouvia	me	chamar,	até	altas	horas	e	você
chorava	também,	coitada.
O	certo	é	que	não	dá	para	se	ter	tudo:	liberdade,	boa	comida	e	amor.
Fazer	o	que?”
Tive	vontade	de	lhe	dar	um	beliscão,	mas	emocionada,	eu	o	abracei	e	dei-
lhe	um	sonoro	beijo.
Pequeno	equívoco
Hoje	foi	um	dia	daqueles!
Se	 eu	 fosse	 supersticioso	 diria	 que	 essa	 segunda-feira	 está	 mais	 para
sexta-feira	13	do	que	qualquer	outra	coisa.
Mas	não,	eu	não	posso	alimentar	este	tipo	de	sentimento:	preconceito,
superstição	são	coisas	similares	e	eu	tenho	que	lutar	contra	elas.
Desde	que	nasci	que	ouço:	Xô,	Xô,	Sai	Gato	Preto	...	Gato	Preto	dá	Azar!
Eles	 me	 enxotam	 como	 se	 eu	 tivesse	 algum	 dom	 especial,	 como	 se	 a
minha	cor	me	concedesse	poderes	...	como	se	eu	pudesse	alterar	algo	que
está	fora	de	mim,	transmitir	azar	a	alguém,	por	exemplo.
É	tudo	muito	doido!	Eu	não	consigo	mudar	meu	próprio	destino,	como
poderia	 ter	 alguma	 influência	 sobre	 a	 sorte	 ou	 o	 azar	 das	 pessoas	 que
cruzam	meu	caminho?
E	o	mais	incrível	é	que	tem	gente	que	acredita	nesse	meu	poder.	Se	eu
tivesse	algum,	seria	para	melhorar	minha	vida	e	não	para	prejudicar	a	vida
desses	seres	estranhos	e	irracionais	chamados	“humanos”.
No	entanto,	vejam	o	meu	dia.
Eu	 estava	 tranquilamente	 tomando	 sol	 com	 minha	 irmã	 mais	 nova,
quando	 começou	 uma	 gritaria	 daquelas.	 Como	 sempre	 eles	 estavam
conversando,	depois	discutindo,	depois	brigando	e	sempre	culpando	um	ao
outro.	Eles	são	muito	bons	nisso.
No	fundo,	eu	sabia	que	ia	sobrar	pra	mim,	mas	nunca	supus	que	as	coisas
pudessem	chegar	a	tal	ponto.	Achei	que	iam	só	me	expulsar,	como	era	de
hábito.
Tá	 certo	 que	 eles	 nunca	 se	 importaram	 muito	 comigo:	 comida,	 só	 às
vezes.	Carinho,	então,	nem	pensar.	Ficará	para	sempre	a	dúvida:	será	que
se	eu	fosse	um	gato	branco	e	peludo,	seria	tratado	de	outra	maneira?
Pelo	menos	eu	tinha	um	cantinho	só	meu	...	lugar	tranquilo	onde	podia
observar	as	coisas	dos	humanos	seguirem	seu	curso.
Certas	atitudes	são	tão	surpreendentes	que	eu	não	tive	nenhuma	reação.
Poderia	 ter	 tentado	 fugir,	 mas	 estava	 tão	 espantado	 que	 deixei	 que	 me
colocassem,	junto	com	minha	indefesa	irmã,	em	uma	caixa	de	papelão.	Eu
não	 reagi,	 santa	 ingenuidade,	 pois	 não	 imaginei	 que	 pudesse	 haver
qualquer	relação	entre	a	discussão	que	acontecia	e	minha	pacata	figura.
Nós	 fomos	 amarrados	 numa	 caixa,	 fizeram	 uns	 furinhos	 generosos,	 e
levados	para	bem	longe	dali.
Começou	então	nossa	longa	agonia.	Durante	horas,	eu	diria	muitas	horas,
eu	 só	 consegui	 ouvir	 carros	 passando	 e	 freadas	 violentas.	 Estávamos,	 eu
mal	 pude	 acreditar,	 no	 meio	 de	 uma	 estrada	 muito	 movimentada.	 Eu	 só
conseguia	ouvir	o	barulho	dos	pneus,	cada	vez	mais	próximos	e,	à	medida
que	 o	 desespero	 crescia,	 ia	 ficando	 totalmente	 paralisado,	 certo	 de	 que
aquele	seria	meu	último	suspiro.
Depois	 de	 um	 longo	 período,	 eu	 já	 não	 tinha	 mais	 nenhuma	 reação.
Exausto,	mal	conseguia	abrir	os	olhos,	aliás,	tinha	muito	medo	de	abri-los.
Estava	ciente	da	inutilidade	de	qualquer	esforço	e	deixei	que	a	impotência	e
o	desespero	tomassem	conta	de	todo	meu	ser.
A	 partir	 desse	 momento,	 passei	 a	 ouvir	 apenas	 as	 batidas	 do	 meu
coração	 que,	 gradativamente,	 foram	 se	 tornando	 mais	 fortes	 do	 que	 o
barulho	dos	pneus	no	asfalto.
De	 repente,	 o	 silêncio.	 Estávamos	 sendo	 levados	 dali.	 E,	 como	 se
estivesse	despertando	de	um	pesadelo,	comecei	a	ouvir	vozes:
-	Meu	Deus!	Uma	mãe	com	seu	filhinho.	Coitados,	estão	tão	apavorados!
Estão	em	pânico,	mal	conseguem	respirar	!!!!
.	.	.	.	.	.	.	.	.	.	.	.	.	.	.	.	.	.	.	.	.	.	.	.	.	.	.	.
Então,	entre	apavorado	e	indignado,	finalmente	me	rendi.
Eu	 desisto.	 Nunca	 mais	 tento	 entender	 o	 ser	 humano.	 Primeiro	 me
prendem	 naquela	 caixa	 apertada,	 fedida	 e	 asfixiante.	 Depois,	 passado	 o
susto,	e	eu	mal	consegui	me	recuperar,	aparece	essa	louca:	-	Mãezinha	pra
cá,	 mãezinha	 pra	 lá!	 Só	 porque	 estou	 abraçado	 com	 minha	 irmã	 e	 sou,
digamos,	meio	gordinho	...
Quem	ela	pensa	que	eu	sou?
Pra	mim	chega!	Eu	desisto.	Nunca	fui	tão	humilhado.
Dar	nomes	aos	gatos
Dar	nome	aos	gatos	é	uma	arte.	Requer	um	certo	tempo,	criatividade	e
alguma	paciência.
Precisamos	 de	 tempo	 para	 testar	 a	 eficácia	 do	 nome	 escolhido.
Normalmente	fazemos	várias	tentativas	até	chegar	àquele	som	que	tem	a
“cara	do	seu	gatinho”.	Quando	acertamos,	eles	respondem	na	hora.	Bingo!
Será	que	é	porque	eles	mesmos	escolheram	o	nome?
Criatividade:	alguns	nomes	são	motivados	por	circunstancias	exteriores
ao	 bichinho,	 a	 época	 em	 que	 ele	 chegou,	 por	 exemplo.	 Outras	 vezes,	 nos
atemos	à	maneira	ou	ao	local	onde	ele	foi	encontrado.	Temos	ainda	nomes
desencadeados	pela	própria	personalidade	do	gato,	são	os	nomes	que	eles
mesmos	nos	sugerem.
Este	processo	permite	a	nós	humanos	ser	muito	mais	criativos,	pois	não
precisamos,	neste	caso,	agradar	parentes	ou	o	pai	da	criança.	Ninguém	vai
tentar	 nos	 impor	 aquele	 nome	 horrível,	 mas	 que	 homenageia	 uma	 tia
recém-falecida.	No	nome	do	meu	gato,	ninguém	dá	palpite!
Além	de	todas	estas	facilidades,	temos	ainda	algum	tempo	para	testar	o
acerto	 da	 escolha.	 Se	 surgir	 outro	 nome	 mais	 adequado,	 pode-se	 ainda
corrigir	o	erro.	Temos	o	tempo	que	o	gato	precisa	para	se	acostumar	ao
som	de	seu	nome.
E	 o	 leque	 de	 opções	 é	 quase	 infinito.	 Podemos	 dar	 nomes	 de	 plantas,
flores,	 frutas,	 lugares,	 sentimentos	 e	 mesmo	 nomes	 humanos.	 A	 escolha
destes	 últimos	 aproxima	 felinos	 de	 nós	 humanos,	 faz	 surgir	 uma	 certa
cumplicidade,	 intimidade,	 um	 elo	 entre	 espécies.	 Algumas	 pessoas	 se
incomodam	quando	gatos	levam	seus	nomes,	mas	eu	acho	que	não	existe
homenagem	mais	carinhosa.
Nos	 gatos	 é	 permitido	 colocar	 nomes	 em	 outro	 idioma	 e	 não	 correr	 o
risco	 de	 parecer	 brega.	 Dependendo	 do	 tipo	 do	 gato,	 essa	 escolha	 é	 até
inevitável.	Alguns	deles	só	podem	ter	nomes	ingleses	e	ainda	acrescidos	de
Sir	ou	Lady.	Outros,	muito	dengosos,	pedem	nomes	franceses.
O	prazer	da	escolha	de	um	nome	é	um	capítulo	à	parte.	Um	pouco	de
pesquisa	e	depois	é	só	deixar	por	conta	de	sua	imaginação.	Vou	tentar	me
lembrar	de	gatos	passados	e	presentes	e	do	processo	de	escolha	de	seus
nomes.
Eddie:	 meu	 primeiro	 gatinho	 preto.	 Foi	 só	 observá-lo	 por	 alguns
Cães & gatos   encontro marcado (maria augusta de toledo bergerman)
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Cães & gatos encontro marcado (maria augusta de toledo bergerman)

  • 1.
  • 2. O livro fala sobre animais abandonados e reúne diversas crônicas que relatam resgates, encontros e desencontros. O livro conta também minha experiência como protetora independente por mais de 20 anos e da doação de mais de 2.200 animais de rua para várias cidades do Brasil e também para Portugal e Espanha. Algumas das histórias são narradas pelos próprios animais e outras tratam de sua situação de abandono no Brasil. As ilustrações são de Marcelo Calenda. Cães & Gatos: Encontro Marcado inclui a crônica “Judaísmo e os animais” que procura mostrar como, há cerca de 3000 anos, já se falava de compaixão por esses seres indefesos e sobre bem-estar animal.
  • 3. “O dia é curto e a tarefa é grande. Não cabe a você completar o trabalho, mas sim envolver-se nele, mas você também não está livre para desistir dele.” Pirkei Avot - Ética dos Pais (2:15,16)
  • 5. Animais e Justiça Social: um outro olhar sobre os animais Esse livro tem como tema os animais e também Justiça Social. Os animais são as personagens centrais de todas as crônicas, mas não qualquer animal, e sim aquele que não teve nenhum privilégio, aquele que foi abandonado pela sociedade. Enquanto algumas pessoas cuidam com responsabilidade de seus animais de estimação, outras não lhes oferecem uma vida digna e, na primeira dificuldade, os descartam como se fossem objetos. É para esses seres rejeitados, na sua grande maioria vira-latas, que esse livro é dedicado e todas as histórias refletem minha experiência como protetora independente por mais de vinte anos. Os animais foram domesticados para cumprir vários propósitos como segurança, caça e, no caso dos gatos, proteção dos alimentos contra predadores. Entretanto, no momento em que eles saíram de seu habitat e começaram a servir ao homem, não conseguiram mais sobreviver sozinhos e, por séculos, eles dependem do ser humano para suprir suas necessidades básicas. O homem porém, falhou com esses seres inocentes, usou-os sem nenhuma gratidão e sem oferecer nada em troca de sua dedicação e fidelidade. Por isso, esse livro fala de Justiça Social, pois ela inclui também os animais. As histórias não procuram humanizar os animais, pois não cabe a eles suprir desejos, necessidades ou carências dos seres humanos. Elas não fazem apologia de um tipo de amor que substitua a convivência entre os homens, elas não falam de exclusão e sim de inclusão. Aqui não se tece juízos de valor e nem se considera que a ajuda dada aos animais seja superior ou inferior à ajuda que devemos dar a nosso próximo. Esse livro pretende apenas apontar para uma injustiça histórica e para a necessidade de corrigirmos esse erro ao sugerir que os animais abandonados têm direito a uma vida digna. Em suma, ele propõe, um outro olhar na relação entre humanos e animais, o mesmo olhar de amor e respeito com que eles foram criados, um olhar de compaixão que foi formulado há cerca de 3.000 anos pela Torá,
  • 6. Bíblia Judaica. O Judaísmo ensina que somos proibidos de ser cruéis para com os animais e que devemos tratá-los com compaixão, pois eles são parte da criação divina e as pessoas têm responsabilidades especiais para com eles. Este conceito está resumido no lema tsa’ar ba’alei chayim: não podemos causar dor a nenhuma criatura viva. O Judaísmo propõe também uma prática chamada Tikun Olam, que quer dizer reparar o mundo e é um modo de agir visando consertar os defeitos de nosso planeta. Uma pessoa faz Tikun Olam quando encontra uma maneira, sua própria maneira de realizar a tarefa de tornar o mundo por Ele criado em um lugar melhor para todos os seres vivos e assim, ela se torna parceira de Deus em Sua criação. Deus gostou de Sua criação, abençoou-a e deixou-nos a incumbência de aperfeiçoar Sua obra, como foi dito na Ética dos Pais: “O dia é curto e a tarefa é grande. Não cabe a você completar o trabalho, mas sim envolver-se nele, mas você também não está livre para desistir dele.” Pirkei Avot - Ética dos Pais (2:15,16) Por isso, nós precisamos agir sempre que encontramos alguma injustiça que precisa ser corrigida: “Quando os nossos estudos excedem as nossas ações, somos como árvores cujos ramos são muitos, mas as raízes são poucas: o vento vem e nos arranca. Quando nossas ações excedem os nossos estudos, somos como árvores cujos ramos são poucos, mas nossas raízes são muitas: assim, mesmo que todos os ventos do mundo venham e soprem contra elas, serão incapazes de movê-las.” Pirkêi Avot – Ética dos Pais (3:22) Muitas das histórias desse livro narram “coincidências”, animais que foram salvos graças a situações que se sucederam e criaram conexões perfeitas. O Judaísmo, por seu lado, nos ensina que não existem coincidências, tudo está perfeitamente conectado, como descrito na história da folha e da formiga atribuída ao Baal Shem Tov, fundador do movimento Chassídico: Baal Shem Tov disse que quando um pedaço de palha cai de um vagão, isso foi decretado pelo Céu. Da mesma forma, quando uma folha cai de uma árvore, é porque o Céu decretou que essa folha especial, neste momento particular, deveria cair nesse determinado ponto. Uma vez Baal Shem Tov mostrou aos seus discípulos uma folha caindo no chão e disse-lhes para buscá-la. Eles o fizeram e viram que uma formiga estava debaixo dela. O mestre então explicou que a formiga estava sofrendo muito devido ao calor e que a folha tinha caído para dar-lhe sombra.
  • 7. Mais do que compaixão, o olhar proposto nesse livro assinala que os animais são seres sencientes, ou seja, sentem dor, medo e diversas outras emoções e se diferenciam dos humanos apenas no aspecto racional e na comunicação verbal e, uma vez que eles são seres que amam e são fiéis a seus tutores, têm direito a uma vida digna e merecem ser tratados com respeito. Porque são seres que não podem se defender sozinhos, nós temos o dever de amenizar seu sofrimento e tentar corrigir a injustiça milenar a que eles são submetidos.
  • 8. Encontro marcado com Pintada Pintada sempre foi uma cadela muito especial, única com relação à sua aparência e, agora percebo, também sua boa estrela. Seu corpo é todo malhado, preto e branco, como as pinceladas de um artista impressionista. Seu rosto, porém é marrom, como se pertencesse a outro corpo ou então tivessem esquecido de finalizá-lo, pois faltam as pinceladas pretas e brancas. Quando você a olha pela segunda vez, já não tem a mesma impressão, você a acha bonita, de tão meiga e serena que ela é. É isso, ela é principalmente serena como se soubesse que no final tudo dará certo e as peças do quebra-cabeça, por mais estranhas e inusitadas que pareçam, irão se encaixar. Perplexidade é o que sinto até agora. Passadas muitas horas do ocorrido, eu ainda não consegui digerir todas as informações. Pintada surgiu certo dia em frente de casa, ainda filhote, muito magra e com sarna. Depois de medicada e bem alimentada ficou aguardando por um dono que veio buscá-la muitos meses depois. Neste dia, eu a vi partir assustada, sem entender o que estava acontecendo e nos deixando com aquela sensação que sempre retorna nesses momentos: não podemos ficar com todos os animais que resgatamos e, contra nossa vontade, precisamos deixá-los partir sem a plena certeza de que irão ficar bem. Só nos resta torcer por eles e esperar sempre pelo melhor. Depois disso, tive notícias frequentes da Pintada e informaram que ela estava bem e se acostumando ao novo lar. Depois de alguns meses, ela já parecia estar bem adaptada. Hoje, depois de quase um ano da doação, decidi ir ao supermercado numa cidade próxima, lugar onde nunca tinha estado e aonde provavelmente não retornarei, para comprar um produto, não tão importante, que estava em oferta. Por que hoje ou por que decidi fazer algo que nunca fizera antes? Na porta de entrada do supermercado, com aquele ar desolado que só os animais abandonados têm, eu vi a Pintada. Inicialmente, não acreditei em meus olhos e pronunciei seu nome mais por susto que por constatação. Um grito de alívio foi sua resposta, quase um choro, um misto de surpresa e esperança. Sim, era ela, com uma leve cicatriz perto do focinho, castrada e
  • 9. principalmente com aquela pelagem inconfundível. Como ela fora parar nesse lugar? Como nós fomos parar nesse lugar? Depois do choque inicial, levei Pintada para o carro e ela foi se aninhando no banco traseiro e começou a cochilar quase que instantaneamente. Ela parecia estar finalmente relaxando, depois de muito tempo de tensão e sofrimento. Será que ela fora abandonada ou estava tentando voltar para o local em que fora feliz? Como ela sabia que tinha que me esperar àquela hora, naquele local? Que força poderosa é essa que nos reuniu? Tínhamos um encontro marcado para aquele dia e para lá fomos transportados, quase como marionetes. Eu não tenho essas respostas. A única certeza que tenho é que Pintada é uma cachorrinha que tem muita sorte. Ou será que a sorte é nossa por conhecê-la? E o produto que eu fui procurar no supermercado? Vocês podem acreditar, já estava esgotado.
  • 10. Maria Chiquinha, um grande achado Ela vinha ziguezagueando pela avenida, totalmente desnorteada. Os carros passavam ao seu lado e ela seguia em frente, trêmula, desengonçada, em pânico total. Quando tentei pegá-la, ela quase me mordeu e eu tive que jogar meu casaco para conseguir segurá-la. Nesta hora, vi uma bicheira imensa em uma das patas, muitos nós em seus pelos longos e encardidos e um chumaço que cobria todo seu rosto. Quando finalmente consegui ver seus olhos, entendi tudo, ela era cega e não sabia por onde estava caminhando, só pressentia o perigo iminente. Fiquei chocada por vários dias, pois coloquei-me em seu lugar e consegui sentir seu desespero: ela sabia que tinha que continuar procurando um abrigo, um local seguro, mas não tinha a menor ideia de qual direção tomar. Até hoje recordo esse momento, não deve existir desespero maior do que aquele sentido por um cego vagando sozinho em terreno desconhecido. E também não pode haver maior covardia do que a cometida por pessoas que abandonam animais cegos à sua própria sorte. Nunca pensei em doar a Maria Chiquinha, não tive coragem. Tentei fazer com que ela se acostumasse a um local tranquilo, seguro e bem delimitado. No início, ela só ficava embaixo de um armário e lá eu colocava sua comida e água. Ela foi saindo aos poucos e esse processo foi longo e com muitos retrocessos. Eu não podia forçar nada, uma aproximação, um afago, e ela se fechava novamente e voltava para seu esconderijo. Aos poucos, ela se acostumou e, algum tempo depois, começou a relaxar. Mas, tranquila não é bem a palavra para descrevê-la, pois ela está sempre atenta, desconfiada e pronta para se defender de algum perigo que só ela pressente ou fareja. Hoje percebo que Chiquinha confia em mim e se entrega às vezes com prazer e outras com resignação às minhas exageradas demonstrações de carinho. Maria Chiquinha está feliz, mas seu espaço é permanentemente invadido: ela fica na lavanderia onde também abrigo os filhotes resgatados que aguardam adoção. No começo, isso me incomodava muito, pois achava que não estava conseguindo dar a ela a paz que ela merecia.
  • 11. Aos poucos percebi que esta é sua missão, educar os filhotes. E ela sabe muito bem como fazê-lo: é enérgica, não gosta de bagunça, sujeira ou barulho fora de hora. Todo mundo aprende a fazer suas necessidades no lugar certo, aprende a hora certa para cada coisa e, principalmente, a hora de dormir. É maravilhoso observar essa menina tão pequena e frágil dando bronca em cachorros duas ou três vezes maiores que ela e eles obedecendo! Várias pessoas já me elogiaram, pois os filhotes que doo são muito educados, tranquilos, asseados e obedientes. Claro, com uma mãezinha tão rigorosa e competente, não poderia ser de outra maneira.
  • 12. Raposa A Raposa morreu! Ninguém parecia acreditar no que estava acontecendo. Tínhamos tanta certeza que ela viveria muitos anos ainda. Raposa iria sobreviver a todos os outros cachorros e morreria bem velhinha. Eu também estava certa disso. Estou falando dos cachorros do condomínio que moram nas guaritas há anos. Eles são cachorros especiais que conquistaram seu espaço depois de muita luta e persistência. Muitos passam por lá todos os dias, mas só alguns permanecem e todos os residentes têm algo em comum: persistência, docilidade e esperteza. Raposa, com certeza, nasceu no mato e, de algum modo, conseguiu sobreviver. Certa manhã, ela foi se aproximando e esse processo foi muito, muito longo. Foi chegando bem devagar, desconfiada, medrosa e arisca. Meses depois já vinha comer. Dormir na casinha, porém, nem pensar! O mato era bem mais seguro. Um dia, ela chegou de vez, silenciosa e suavemente. Chegou e ficou. Logo depois, levei-a para castrar. Ela voltou assustada e, ao contrário de outros cachorros, teve complicações sérias. Uma manhã, percebi que ela estava muito agitada e, ao me aproximar, vi suas entranhas começando a sair. Após horas de perseguição, ela foi novamente internada. Nova cirurgia. Mais umas semanas e Raposa volta triunfante para a guarita. Ainda ouço todos felizes e brincando: - Raposa não morre mais! Ela deve ter alma de gato: mais umas seis vidas, pelo menos ... Três anos depois, novamente estranhei sua ausência: ela esperava minha visita diária com a maior assiduidade. Sabia a hora exata da minha chegada, portanto, algo errado acontecera. Depois de três dias de procura, ela apareceu, só que dessa vez, Raposa veio se arrastando até a guarita com a bacia fraturada e sem seu lindo e volumoso rabo. - Onde já se viu uma Raposa cotó? Novamente ela foi internada mas, desta vez, por um longo período. Seu retorno foi ainda mais comemorado:
  • 14. Rita Consegui doar uma cadela adulta e vira-lata, uma combinação explosiva e que dificulta as doações. Rita porém, é pequena e bonita, com pelagem de Husky e tamanho de Poodle e tem aquele encanto e beleza que só os vira-latas possuem: as muitas misturas originam aparências totalmente inusitadas, algumas delas incomparáveis. Se você tem um vira-lata, sabe do que eu estou falando, ele com certeza é único e especial, não existe nenhum outro cachorro que se pareça com ele. Logo apareceu uma família querendo adotar Rita. Mas, não sei se é porque esperavam por um cachorro de raça, só sei que a devolveram após alguns dias com milhares de justificativas, todas elas banais. Lá fui eu buscar a Rita de volta. Para chegar à casa da família é preciso atravessar toda a cidade, uma pequena cidade do interior. Cruzei ruas repletas de animais abandonados, de crianças pedindo esmola e adultos sem esperança. Você vai observando em cada quarteirão três ou quatro cães famintos, mutilados por atropelamentos, cobertos de sarna e cruzando. Em breve teremos muitos mais perambulando por aí e sofrendo. Pois bem, peguei a Rita com um nó na garganta e saí contando os cachorros e homens abandonados que eu via pelo caminho de volta, com uma angústia que crescia a cada quarteirão, enquanto me perguntava qual seria o sentido desta doação mal sucedida e desta viagem. Por que eu tivera que ir até lá e ver tudo aquilo? Qual seria a explicação para o sofrimento de todos esses animais racionais ou não? O auge da minha tristeza foi quando vi, no centro da cidade, um dálmata em exposição numa casa de rações. Ele estava em uma gaiola muito pequena, sem comida ou água e, como já tinha uns três meses de idade, ficava com as patas para fora das grades por absoluta falta de espaço. Por um breve momento, ele tentou se levantar, mas não teve sucesso. Enquanto eu me distanciava, podia ver seus esforços inúteis, sua impotência e o desânimo que ia tomando conta dele e de tudo que o cercava. Cheguei em casa arrasada, só querendo compreender: qual é a explicação para tudo isso?
  • 15. No dia seguinte, um conhecido da família veio nos visitar e, respondendo à clássica pergunta sobre se queria adotar um cachorro, disse: Só se for um dálmata. No mesmo instante, eu lhe dei a localização da casa de rações, ele foi até lá e comprou a Frida Kahlo por um preço simbólico e hoje ela é companheira do Van Gogh, também um dálmata. Quando Frida chegou em seu novo lar, não conseguia esconder sua felicidade: passou dois dias correndo de um lado a outro do quintal, incansável, como se quisesse expandir ainda mais sua liberdade e anunciá- la ao mundo. Percebo agora que esse foi o sentido da minha viagem, da doação e devolução da Rita: ela pacientemente me ensinou o caminho para que a Frida fosse resgatada.
  • 16. O Observador - história do cachorro Babão Fomos recolhidos por uma senhora sensibilizada com nossa situação de animais abandonados. No começo éramos poucos, bem alimentados, usufruindo de bastante espaço e felizes. Muitos eram filhotes eu, porém, já cheguei velho, fui abandonado depois de adulto. Após certo tempo, já éramos muitos para dividir o quintal da casa e a solução encontrada foi a de nos deixar presos a correntes ou em minúsculos cercados. A comida também passou a ser escassa e a superpopulação nos tornou irritados, fazendo com que brigássemos muito. Depois de certo tempo, estávamos divididos em dois grupos: os valentes e os medrosos; os que batem e os que apanham. Eu entendo que a querida senhora teve a melhor das intenções, ela não queria nos ver sofrendo. Na minha modesta opinião, os culpados por essa situação são as pessoas que não cuidam de seus animais de estimação, aqueles que os abandonam por qualquer motivo ou sem motivo, os que não castram seus bichos, deixando nascer filhotes indesejados que, por sua vez, também serão abandonados. Só sei que para mim teve início um período muito difícil, pois além de tudo, eu fui espancado ainda jovem e hoje não consigo mais movimentar meus maxilares, nem para me defender, comer ou mesmo beber. Eu me babo todo, pois a ração e a água precisam escorrer pela minha garganta para serem ingeridas e por isso me chamam Babão. Assim, só me resta ficar no meu posto avançado, observando o sofrimento dos meus irmãos e as ações dos humanos. Certo dia, chegou a Vigilância Sanitária e deu prazo de uma semana para mudança de local ou seríamos todos mortos. Pela agitação das pessoas percebemos que a situação era mesmo grave. Ficamos também muito agitados, esperando pelo pior, mas num domingo, chegaram outras senhoras com ajudantes e um caminhão e fomos todos empilhados e fizemos uma longa viagem. Estamos agora em um sítio. Meus irmãos estão em baias maiores mas, mesmo assim, ainda brigam muito, porque não estão acostumados a dividir
  • 17. o mesmo espaço. Só vejo um pouco de alegria em seus olhos e rabos quando sentem o corpo se aquecer com o sol, que aqui é bem generoso. Eu continuo preso a uma corrente e observando. Estou num ponto estratégico e tenho visão geral das baias. As moças que nos resgataram já voltaram várias vezes, para trazer ração, levar algum doente ao veterinário e, principalmente, para encaminhar os mais jovens e bonitos para adoção. As branquinhas, mestiças de dálmata, por exemplo, já foram embora. Sorte delas, além de jovens e lindas eram também mestiças e já devem ter encontrado um bom lar. Eu, puro vira-lata, deficiente e ainda por cima velho, ficarei sempre por aqui, observando as transformações sem ser muito notado: alguns me olham com piedade, e poucos, se aproximam de mim. E, já que não vejo muita chance de que as coisas se modifiquem para mim, gostaria de pelo menos poder alterar a paisagem que sou obrigado a observar: eu não quero mais ver tanto sofrimento. - Quero que permaneçam nesse local apenas alguns dos meus irmãos e que eles não precisem mais brigar por comida ou espaço. - E, principalmente, não quero mais ver meus irmãos implorando por pão ou carinho. Desse modo, com a situação melhorando para nós, eu até poderei me considerar um observador feliz.
  • 18. Respeito Já vivenciei esse momento duas vezes. Uma amiga ligou logo cedo para contar que tinha visto um cachorro na Rodovia Raposo Tavares, imóvel, ao lado do corpo de outro cachorrinho. Ela passou apressada e não pode parar, pois tinha um compromisso importante. Na hora do almoço ela voltou ao local e o cachorro permanecia no mesmo lugar, no acostamento da estrada, embaixo de um sol escaldante de verão. Então, ela me liga desesperada: o cão ainda está lá, o que eu faço? Como não tinha local para abrigá-lo, eu pedi que ela o resgatasse que eu encontraria um cantinho pra ele. O cachorrinho foi provisoriamente para o escritório do meu marido e está lá até hoje, passados mais de 10 anos. Nunca tive coragem de doar o Mike. O processo de adoção contém diversos riscos e eu não tenho coragem de arriscar, principalmente quando se trata de animais que já sofreram muito. Há pouco mais de um mês, outra amiga passa por uma rua movimentada de Carapicuíba e vê um cachorrinho ao lado do corpo sem vida de outro que fora atropelado. Ela se desespera, mas segue em frente, pois tinha uma reunião de trabalho. Anda mais alguns quarteirões, se arrepende e faz a volta para resgatar o cachorro. Ele estava muito assustado e mancando de uma pata, provavelmente em decorrência do mesmo acidente que vitimou seu amigo. Esse cachorro foi posteriormente doado para uma família muito especial. Muitas outras vezes, ouvi casos semelhantes relatados por pessoas conhecidas. O que sempre chamou a atenção de todas elas é o longo tempo, muitas vezes dias, que os cães permanecem ao lado de seus amigos que partiram. O que leva um animal a ficar junto ao corpo de seu companheiro? Será que ele está prestando uma homenagem? Será que ele está velando, como nós humanos fazemos, o corpo do amigo que se foi? Será que ele está pedindo ajuda? Ou será que os animais permanecem com seus amigos enquanto aguardam a chegada do anjo da morte?
  • 19. Como eles têm muito mais intuição e sensibilidade do que nós humanos, talvez seu ato vá além de tudo o que conseguiríamos apreender e eles saibam que a morte está chegando e o outro precisa de companhia para essa passagem. O que mais me surpreende nessa atitude é que ela parece ser tão racional, incapaz de ser adotada por um animal irracional. O que também impressiona nesses casos é o respeito demonstrado por eles ao companheiro que partiu. O cuidado e carinho são mais fortes do que o perigo que o local representa ou o incômodo de permanecer horas sob o sol e próximo ao tráfego de veículos numa rodovia movimentada. Os animais esquecem o medo, a fome e o cansaço e permanecem imóveis como se estivessem aguardando algo acontecer. Numa época em que raros seres humanos demonstram respeito por qualquer coisa, seja ela viva ou morta, humana ou animal, é de se admirar que os animais venham nos dar esse exemplo de amor, dignidade e respeito. Num mundo carente de gestos nobres, essa atitude emociona e nos faz refletir.
  • 20. Responsabilidade Arlindo era um pedreiro que trabalhava e morava em uma obra perto de casa. Todos os dias, eu o via brincando com seu cãozinho amarelo, um vira- lata simpático e bem cuidado. Companheiros inseparáveis, ambos pareciam estar de bem com a vida. Um dia, notei uma cachorrinha nova com a dupla e, curiosa, fui saber da novidade. - Ela também foi abandonada e está se aproximando da obra à procura de alimento e companhia, disse Arlindo. Bem que eu ficaria com ela, o problema é que é fêmea e logo ficará prenha e não dá para cuidar de outros cachorrinhos. Levei a cachorrinha até o veterinário para ser castrada e uma semana depois, ela estava de volta, feliz e curtindo seu novo lar. Fiquei satisfeita também, pois percebi que Arlindo gostava genuinamente dos animais. Ele não estava preocupado, como a maioria das pessoas, com a raça de seus cães. Ele os amava do mesmo modo como era amado. Os cães também não lhe perguntaram sobre sua raça, seu poder aquisitivo ou sua posição social quando o viram pela primeira vez e gostaram dele. E ele não precisava exibir seus cães como quem exibe um carro novo. Todo final de semana, Arlindo ia para o bar tomar uma cachaça, encontrar amigos, driblar a solidão. Naquele sábado não foi diferente, exceto pelo desfecho da noitada: muita bebida, confusão, discussões, início de briga, apartes, mais confusão. Arlindo voltou descontrolado para a obra. Pegou um facão e, decidido, o colocou entre os poucos pertences. Arrumou sua trouxa e, antes de partir para sua vingança, acordou o ajudante de pedreiro e lhe passou todas as instruções: - Cuide dos meus bichinhos. Se eles adoecerem ou precisarem de comida, entre em contato com a senhora da casa da esquina. Não sei se volto. Por favor, cuide bem deles. E Arlindo se foi, deixando, como narrou nosso poeta Manuel Bandeira: “lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar”. E partiu para cumprir seu destino.
  • 21.
  • 22. História da Sarita Sarita foi encontrada já sem forças, ao lado de sua ninhada. Só dois dos filhotes sobreviveram. Ela é uma mestiça de Pastor Alemão bastante velha, tem displasia e muita dificuldade para se locomover. Da sarna, ela e os filhos já estão curados, restam só algumas falhas no pelo. Da fome, também estão todos refeitos, os filhotes já estão até bem gordinhos. A dor do abandono, porém, deixou marcas profundas que são visíveis em seus olhos e em todas suas atitudes. Os filhos de Sarita serão doados já na próxima semana. Para Sarita resta apenas: dividir um canil com outros trezentos animais, onde ela terá poucas chances de sobrevivência, Ou Encontrar abrigo em um lar que possua: um quintal que pode até ser pequeno, apenas um pouco de ração e muito, muito amor para que ela possa ser feliz no pouco tempo que lhe resta. Sarita pede desesperadamente sua ajuda. Uma pessoa maravilhosa respondeu ao apelo de Sarita e a adotou. Fomos levá-la ao Embu, num final de semana e confesso, fiquei muito apreensiva. A casa tem um espaço enorme, uma chácara com muitos animais: outros cães, gatos, porcos, galinhas, patos, marrecos, papagaio, etc. Como se comportaria uma cadela já idosa, com hábitos adquiridos em um local desse tipo? Acompanhei diariamente a evolução do comportamento de Sarita e, ainda preocupada, decidi comprar tela para delimitar um espaço onde ela pudesse ter liberdade e, ao mesmo tempo, segurança. Voltei ao local duas semanas depois e quase não acreditei: Sarita estava rejuvenescida, o pelo brilhante, a coluna quase reta, apesar da displasia severa e um brilho no olhar que me emocionou. Como é possível a um animal com idade avançada se adaptar tão rapidamente a um ambiente novo e tão carregado de informações? Ela não só estava solta, como ajudava sua guardiã a cuidar dos outros animais: cercava os pintinhos para que eles entrassem no seu espaço
  • 23. depois de horas ciscando, latia com autoridade para os porcos, vigiava a entrada da casa e parecia não ter a menor intenção de sair pelo portão totalmente aberto. Sarita encontrara uma ocupação, uma utilidade na velhice e estava desempenhando seu novo papel com uma vitalidade invejável. Fiquei emocionada e esperançosa. Com certeza, eu estava num local abençoado, tendo o privilégio de observar a natureza se desenhando com todo seu vigor. Não pude deixar de refletir: como uma pessoa com poucos recursos consegue administrar um mundo tão harmonioso? Como arruma tempo e energia para admitir outros seres que poderiam quebrar todo aquele equilíbrio? Essa é uma lição para nossas vidas. Somente seres iluminados conseguem abraçar as grandes causas com naturalidade e imprimir essa mesma naturalidade à resolução dos seus problemas. Entendi também que não é preciso delimitar um espaço e sim, dar uma função: Sarita estava feliz, pois sua vida tinha adquirido significado. Mais uma vez eu me senti privilegiada por conhecer um ser humano e um animal totalmente integrados à natureza e à obra divina. Estava agradecida por poder usufruir esses momentos mágicos, agradecida pela oportunidade de ter conhecido Sarita e sua guardiã. Elas são a resposta a um outro mundo, fundado na violência e no desamor.
  • 24. Solidariedade e os 36 Justos Conheci Dorvina há vários anos. Foi ela que adotou Sarita, a mestiça de Pastor que foi covardemente abandonada junto com seus bebês. Desde nosso primeiro contato por telefone, eu já sabia que estava conhecendo alguém muito especial, uma boa alma, amante da natureza e uma pessoa dedicada e incansável, que acolheu uma cachorrinha velha e com displasia com muito amor e dedicação. Quando levei Sarita até sua casa, fiquei espantada com a fauna que habitava o lugar: dificilmente você vê convivendo cães, gatos, porcos, gansos, patos, marrecos, papagaios e sei lá o que mais. Eram tantas espécies e todas convivendo tão harmoniosamente e em total liberdade que o único pensamento que me ocorreu foi: assim devia ser o paraíso bíblico, o Gan Éden. O telefonema de Dorvina para me contar a partida da minha afilhada uns quatro anos depois, foi inesperado e muito triste. Ela disse que Sarita deitou em seu cobertor, como fazia todas as noites e, pela manhã, já estava morta. Confesso que não me surpreendi, eu sabia que ela só poderia ter uma morte assim, suave e indolor, pois já sofrera o suficiente. E como ela era um ser abençoado, Deus só poderia levá-la em seus braços enquanto dormia. Depois que Sarita faleceu, numa noite fria de inverno, fiquei muito tempo sem ter notícias da Dorvina. Ela me ligou novamente, quase um ano depois para contar que seu Rottweiler, amigo querido da Sarita estava doente. Algumas semanas depois, me contou que ele também havia partido. Qual não foi minha surpresa ao ouvir sua voz uma semana depois e ela estava eufórica: “- Eu precisava te contar, ainda não acredito no que aconteceu. Estava indo trabalhar, pois depois que me aposentei arrumei um trabalho em um consultório perto de casa. Atravesso o Rodoanel e ando mais um pouquinho. Estava apressada quando vejo um cachorro deitado ao lado da pista, bem debilitado, ele devia estar jogado lá há algum tempo. Ele me olhou implorando ajuda e eu respondi: agora estou com muita pressa mas, na minha volta, vou te socorrer e levar pra casa. Trabalhei aflita e pedi para sair mais cedo, não aguentei esperar, ele não
  • 25. saia da minha cabeça. Corri apressada e lá estava ele me aguardando. Tentei levantá-lo, ele é imenso, mas ele não conseguia se erguer e muito menos caminhar. Eu só rezava, pedia ajuda a Deus, e pensava: como vou conseguir atravessar a pista e levá-lo para casa? Você sabe, no Rodoanel há movimento contínuo e você precisa esperar aquela brecha de trânsito e correr. Eu já estava desistindo quando um caminhão parou no acostamento: - é seu cachorro, senhora, precisa de ajuda? Dois homens com sotaque do sul pararam o caminhão e vieram nos socorrer. Um deles, amparou o cachorro enquanto o outro foi buscar uma marmita. Ele pegou toda sua comida e ofereceu ao cachorro que comeu de uma única bocada. Depois pegaram a água de uma garrafa e foram colocando na vasilha, acho que entornaram uns dois litros de água. Eu juro que comecei a chorar, eu não acreditava, nunca me emocionei tanto, nem no ano passado quando me aposentei do Hospital e fui homenageada. O cachorro começou a se animar e conseguimos colocá-lo de pé. Ele estava mancando, mas não tinha nada quebrado, tinha só fraqueza e um pouco de dor. A travessia pareceu longa, mas ele e eu nos sentimos muito amparados: os homens iam segurando o trânsito e eu ia empurrando o menino até que conseguimos atravessar. Eles nos colocaram do outro lado da pista, se despediram e então partiram. Levei o cão pra casa e cuidei muito bem dele. Ele já está ótimo, feliz e muito, muito agradecido. Confesso que poucas vezes vi um olhar como esse, de mais puro agradecimento e amor. Ele deve ser um mestiço de Setter ou Golden, não importa, e ele está ótimo! Telefonei só para te contar essa experiência e dizer que aqueles homens ficaram pouco tempo conosco e fizeram tanto, que vai ser difícil esquecê- los. Eles deixaram sua comida, seu cuidado, seu carinho e partiram felizes sabendo que salvaram uma vida. Neste mundinho de Deus tem muita gente boa, né?” Quando eu desliguei o telefone, comecei a rememorar todos os detalhes da história que Dorvina havia me contado e fiquei maravilhada. Mais uma vez, ela me provocava aquele sentimento de descoberta e aprendizado que eu já havia experimentado antes, quando da doação da Sarita. Lembrei-me, então, da antiga história judaica dos Lamed Vav Tzadikim, dos 36 Justos. Ela conta que existem trinta e seis homens no mundo cuja
  • 26. missão é justificar a existência humana perante Deus. E é por isso que ainda estamos aqui, vivos e apreciando esse lindo espetáculo.
  • 27. A Casa dos cachorros Como tudo na vida, até as histórias tem dois lados. Quando escrevi a crônica intitulada A casa dos gatos, meu filho veio com a seguinte colocação: - Mãe, seu quarto fica do lado do gatil, portanto é calmo e silencioso, mas do outro lado, onde fica o meu quarto, a situação é totalmente diferente: eu moro na Casa dos Cachorros. É verdade, ele tem razão. Minha casa é dividida em duas alas: de um lado os gatos e de outro os cães. As pessoas ficam no meio. Como os gatos são bem mais tranquilos, nessa parte da casa temos bastante silêncio e você consegue ouvir o canto dos pássaros e o guincho dos saguis. A natureza surge plena e derrama todos os seus sons. Já do outro lado, dependendo do momento, o barulho é pesado. Quem tem muitos cachorros sabe do que estou falando: basta um animal passando na rua ou alguém conversando mais alto para que eles comecem a latir sem trégua. Eles ouvem qualquer barulho diferente e reagem à altura. Para os cães, qualquer movimento brusco ou barulho significa invasão e eles são dirigidos desde sempre para proteger seu território. E então latem, latem e latem, pois essa é a sua linguagem. Na verdade, o que ocorre é uma sequência de latidos: os cães dos vizinhos detectam algo anormal e dão a partida. Os cães da casa seguinte dão continuidade ao aviso e os meus, sem saber ao certo o porquê, reagem alto e prontamente. Ou seja, todos os cães do quarteirão latem ao mesmo tempo e o barulho aumenta num crescendo assustador e explode em nossos ouvidos. Nessa hora, não há nada que os faça parar, nenhum grito ou ameaça. E a coisa fica ainda pior quando pessoas desavisadas resolvem soltar fogos de artifício. Aí a situação fica incontrolável mesmo, um verdadeiro bombardeio. A reação dos cães é tão insana quanto aquela que leva um ser humano adulto a soltar os perigosos artefatos. É por isso que todas as pessoas que convivem com animais odeiam fogos de artifício. Fora este pequeno detalhe sonoro, algo desagradável, o lado dos cães é bem animado. Eles se alegram de verdade quando você chega em casa e estão sempre
  • 28. atentos aos seus menores gestos, pois é você que sempre comanda a situação. Ficam felizes com movimentação, visitas, adoram novidades e estão sempre dispostos a te seguir por todos os lados. A vida para eles é uma festa, desde que em sua companhia, claro. Com os cães não tem baixo astral: a hora de passear, a hora de comer, a hora de brincar, tudo é celebração. Então, dependendo do seu estado de espírito, você pode escolher e visitar um ou outro lado da minha casa. Se você estiver meio mal, deprimido, o lado dos cães é o mais recomendado. Lá você é valorizado e visto como uma pessoa especial. Na casa dos cães você é o mais bonito, o mais inteligente e, sem dúvida, o mais amado. Eles se esforçam ao máximo para te deixar feliz. Já o lado dos gatos é bem mais sossegado, não tem correria e nem festa. É um lado contemplativo, próprio para relaxamento. Tudo flui com lentidão e até o tempo parece passar mais devagar, no ritmo próprio dos gatos. Esta paz não significa que eles não se alegrem com sua companhia, é que os gatos são bem mais discretos. Eles demonstram sua alegria com um ronronar ou então passando por entre suas pernas, tudo muito sutil e delicado. No entanto, se você quiser meditar ou ler um bom livro, deve ficar na companhia dos gatos. Só que lá não vão te achar o máximo, vão simplesmente aceitá-lo como você é. Lá você tem que ficar relaxado como eles para conseguir se sentir bem. As pessoas mais agitadas precisam desacelerar aos poucos e entrar em outra sintonia. Para gostar de gatos, você precisa, primeiramente, estar satisfeito consigo mesmo e esse é o motivo pelo qual algumas pessoas amam e outras odeiam os gatos. Voltando aos cães, eles são fascinantes por sua pureza, ausência de maldade e por várias imperfeições que muito os aproximam dos humanos. Já os gatos fascinam por sua delicadeza, elegância e requinte, o que muito os afasta dos seres humanos. Assim, o ideal é você conviver simultaneamente com estas duas realidades tão distintas e complementares. Porém, pode ter certeza que escolhendo um ou outro lado da minha casa, você estará sempre fazendo uma espécie de terapia. Por sinal, uma ótima terapia, eu recomendo.
  • 29.
  • 30. O patinho DiFeReNTe Eu sou o Pingo e nunca percebi nada de errado comigo. Sou tão feliz! Acho que já passei um pouco de fome mas, pra dizer a verdade, nem me lembro mais. Quando cheguei nessa casa, parei bem na porta, logo me encheram de comida e me deram uma cama bem quentinha. Puxa, que gostoso ... lembro que adorei tudo aquilo e nunca mais deixei de ser feliz. Adoro meus amigos, minhas folias e meus ossinhos. Adoro viver! Só acho estranho que meus amigos mudam sempre. Nesses meses que estou aqui já tive uns 20 amigos, mais ou menos. Eles chegam meio tristinhos, logo ficam alegres e, quando começamos a brincar e a curtir, eles vão embora. Fico triste por uns dias, mas logo aparecem outros e começamos a fazer amizade. Só não entendo uma coisa: por que será que eles logo partem quando a coisa começa a melhorar? Comecei a ficar desconfiado e resolvi observar: as pessoas ficam tirando fotos novas minhas toda semana e dizem: essa ficou melhor, quem sabe dessa vez ... Será que estão insinuando que minhas fotos não ficam boas? Por que eles querem que elas melhorem? Por que minhas fotos não ficam boas? Nunca percebi nada de errado comigo. Aliás, tenho certeza que não tem nada de errado comigo. Eu sou saudável, alegre e dócil, amoroso e obediente. Um pouco mimado e bagunceiro, mas ninguém é perfeito. Já ouvi minha madrinha dizendo: ele é exótico, tem uma beleza não convencional e só as pessoas não convencionais irão apreciá-lo. Então ela fica brava e diz: A maioria das pessoas quer um lhasapoodlemaltês igualzinho ao da vizinha e, de preferência, da mesma cor! É para irem passear com as crianças na pracinha e todos vestidos com roupas idênticas. Ela fica muito brava! O que será que ela quer dizer quando ela diz: diferente? Acho que estou começando a entender: minha madrinha quer que a pessoa certa olhe para mim, veja um cisne e me leve para morar em seu
  • 32. Nostalgia Durante toda a infância tive contato com animais, na casa de meus pais, meus avós e todos os parentes e amigos de quem me lembro. Os animais sempre estiveram relacionados a experiências agradáveis, brincadeiras animadas e eram fonte de prazer e alegria. Eles também eram felizes e tinham uma vida longa e saudável. Animais nunca me despertaram compaixão ou essa urgência em ajudá-los e lutar por sua sobrevivência, como acontece hoje. É verdade que há alguns anos você não via, principalmente no interior de São Paulo, animais vagando pelas ruas em péssimo estado. Você também não encontrava pessoas vivendo em condição de extrema pobreza e os sem-teto eram raros e motivo de assombro. Os tempos mudaram! Houve uma disseminação da pobreza e do desemprego e, com eles, a banalização da miséria: hoje em dia é tão comum vermos crianças em semáforos, famílias “vivendo” embaixo de pontes, animais famintos e doentes que, a maioria das pessoas já não vê, ou não se importa, ou ainda, nem se comove mais. Todos eles fazem parte de uma paisagem, uma triste paisagem, à qual as pessoas se habituaram. Os tempos mudaram! Estive recentemente em uma reunião com vários protetores, um encontro muito agradável com as pessoas relatando como se tornaram amantes dos animais e descrevendo seu cotidiano pesado e, ao mesmo tempo, gratificante. Todos eles falavam de sua relação com animais desde sempre e como esta preocupação pelo bem-estar deles vem crescendo à medida que também cresce a pobreza e o descaso do poder público em nosso país. Ambos os fatos estão profundamente relacionados: como o Estado é o responsável pelos animais, “Todos os animais existentes no país são tutelados pelo Estado”, e este não cumpre com seu dever, as pessoas que se importam com a vida são obrigadas a despender seu tempo e seu dinheiro para fazer o que foi negligenciado pelo poder público. Não existe uma política de castração dos animais de rua para evitar o excesso de população, assim como não existem campanhas educativas de incentivo à posse responsável ou que estimulem as pessoas a não
  • 33. abandonar seus animais de estimação. Claro, não existe uma preocupação política na medida em que os animais não votam e os políticos acham que essa matéria não tem retorno eleitoral. O resultado é a proliferação desordenada de animais abandonados que ficam aguardando a morte nas ruas, à mercê de atropelamentos, doenças e toda sorte de sofrimentos. Os tempos mudaram para pior! Todo este descaso com a vida e ausência de valores que impera nos nossos dias me fez lembrar de uma música de Taiguara, compositor brasileiro que marcou os anos 70 por sua sensibilidade e sua percepção do caos que se aproximava. Uma de suas composições relata o desânimo com que ele encarava a sociedade brasileira da época. Suas palavras mostraram- se proféticas: “Eu desisto. Não existe essa manhã que eu perseguia Um lugar que me dê trégua ou me sorria Uma gente que não viva só pra si Só encontro Gente amarga mergulhada no passado Procurando repartir seu mundo errado Nessa vida sem amor que eu aprendi.” Infelizmente, as novas gerações nunca ouviram falar de Taiguara e tantos outros que ficaram esquecidos pelo caminho. Assim como não estão a par da urgência de se preservar a vida para que haja uma saída para nosso planeta. Pobre do país que não respeita suas florestas, seus animais, suas crianças e seus artistas.
  • 34. Sem-teto, mas com cachorro Com esse dinheiro eu posso até dar entrada num barraco lá na Vila. Ou então comprar aquele tão sonhado som, uns presentinhos para a Tina. Preciso planejar ... É muito dinheiro de uma só vez. Quem sabe voltar para casa, reencontrar a família, sair desta cidade sem alma. Posso comprar a passagem de volta e dizer a eles que cansei de tudo isso aqui, dessa luta e que fui enganado. No entanto, como esquecer o olhar de Branquinha, da Amarelinha e do Polegar? Como esquecer os gritos da Tina, quando lhe arrancaram seu cachorro Pimpão? Tantos anos de convivência, tanta cumplicidade. Eu só sei que sinto muita falta deles. Os homens não tinham o direito de levá-los. Eles eram bem cuidados, amados. Muito mais queridos do que os bichos de muita gente por aí, gente rica que não se importa com seus amigos, que são tratados de qualquer jeito. Gente que nunca olhou nos olhos de seu bicho e viu muito amor. Só por que nós os sem-teto não temos um espaço delimitado? Será que temos que nos comportar como os animais e marcar um território? Se eu tivesse meu lugar, eles não teriam levado meu Polegar à força, indiferentes aos meus gritos, à minha dor. Incrível, não é? Humanos precisam de muros! Ainda bem que o professor foi testemunha de toda a violência. Ele viu nosso desespero, sentiu nossa impotência e resolveu ajudar. E ele tem o dinheiro que transformará tudo: posso trazer os cães de volta ou dar entrada no barraco, comprar um presente para a Tina, ou a passagem de volta para casa ... Eu tenho certeza que nunca conseguiria ser feliz, sabendo que abandonei meus amigos. Como eu posso ir embora, sabendo que eles não terão nenhuma chance? Três dias, eles disseram: - Você só tem três dias para conseguir o dinheiro e voltar para recuperar seus animais. É muito dinheiro para se conseguir em três dias. Se o professor não resolvesse nos ajudar, eu deveria fazer o que? Roubar? É nessas horas que a gente entende as pessoas que perdem a cabeça. Mas, não quero pensar sobre isso agora, nada de ruim aconteceu e amanhã, com a ajuda de Deus e do professor, vou rever meus amigos do coração.
  • 35. “O sem-teto José Augusto dos Santos foi ontem ao Centro de Zoonoses (CCZ) buscar Amarelinha, Branquinha e Polegar, os amigos que lhe foram retirados à força na quarta-feira pelo mesmo CCZ. De quebra, pegou Pimpão, da amiga Tina. O quarteto foi recuperado depois que um professor pagou a taxa exigida.” Jornal da Tarde de 21/07/2002
  • 36. Ricardo e Garoa Para Beatriz Você já viu protetor elogiar criador de animais? Impossível! São duas espécies incompatíveis. Citando apenas o lado econômico da questão: o primeiro gasta seu dinheiro tentando ajudar animais, enquanto o segundo, ganha todo seu dinheiro por intermédio deles. Mas, é claro que não dá para generalizar, pois encontramos pessoas sérias e picaretas em todas as profissões. Mesmo assim, é muito comum protetores receberem denúncia sobre “criadores de fundo de quintal”, pessoas inescrupulosas que usam os animais visando apenas o lucro fácil. Quantas vezes, ficamos sabendo de cadelas que passam a vida parindo, uma gestação após outra até serem abandonadas por velhice ou por estarem muito debilitadas? Quantos machos ficam eternamente acorrentados ou presos em gaiolas minúsculas com a única finalidade de servirem de matriz? Denúncias sobre filhotes famintos e doentes, expostos à sujeira e muito valorizados na hora da venda, também são muito comuns. E por aí vai ... Porém, este não era o caso do Ricardo. Jovem ainda, ele foi para o interior de São Paulo viver em uma chácara e criar cachorros. No entanto, ele não estava interessado em um cachorro qualquer, e sim em um exemplar único de Fila Brasileiro. Seus cães viviam livres em amplos espaços, local impecavelmente limpo e florido. Tinham direito à boa alimentação, acompanhamento veterinário e, para as fêmeas, intervalos de gestação respeitados para não colocar em risco sua saúde. A venda dos filhotes era uma dificuldade à parte. Os donos eram escolhidos com cautela, submetidos a entrevistas rigorosas e, muitos deles, saiam de lá sem seus desejados filhotes. - Não posso entregá-los a qualquer um, dizia Ricardo. É claro que este comportamento atípico gerou muitos problemas. Ricardo estava sempre passando por dificuldades financeiras, sempre atrapalhado para pagar suas contas em dia. Tinha uma vida muito simples, sem comodidade alguma, mas para seus cães não deixava faltar nada. A austeridade era tamanha que ele começou a deixar de lado a própria saúde e, aos 50 anos já tinha graves problemas de saúde. Mas, seus
  • 37. cachorros não, esses esbanjavam alegria e disposição e eram valorizados e disputados por pretendentes de várias partes do Brasil. A primeira vez que Ricardo ficou doente e precisou de internação foi um pesadelo. Os médicos não sabiam como segurá-lo no Hospital para realizar os exames necessários. Ele tinha urgência de voltar para casa, pois ninguém iria cuidar dos cães como ele o fazia, é claro! Ricardo precisou assinar um Termo de Responsabilidade para poder “fugir” do Hospital. E, assim, ele foi levando a vida até que uma noite passou mal e não conseguiu pedir ajuda. Seu corpo só foi encontrado na manhã do dia seguinte e a seu lado, a cadela Garoa, que por oito anos foi sua companheira fiel e inseparável. Eles tinham uma amizade tão profunda que foi muito difícil tirá-la do lado do amigo, ela estava irredutível e se recusava a abandoná-lo. Garoa estava transtornada e a dor refletida em seus olhos era algo palpável, parecia que um véu encobria e imobilizava suas feições. Ela era a personificação da dor. Quando finalmente conseguiram levá-la, entrou em um estado de apatia profundo. Garoa se recusou a comer e, apesar de todos os esforços médicos, também partiu, exatos quinze dias da morte de Ricardo.
  • 38. Desamparo Gosto de escrever histórias leves como a do Tiquinho Huguinho, o Incompreendido ou a história do Frank, meus gatinhos. Eu me divirto escrevendo, as pessoas ficam felizes quando leem e uma sensação agradável perdura por um bom tempo. Eu pretendia escrever sobre gatos filhotes e sua pureza, pois fiquei encantada observando Lupi, um gatinho que tenho para doar e que ficou tão feliz ao encontrar teto e comida, após sair da favela onde estava abandonado, que exala alegria. Tudo é bom para ele: comer, brincar, ser afagado, tudo é um prazer intenso. Explorar o mundo é algo mágico e agradável, comer e dormir são puro deleite, brincar então, é o clímax de um dia festivo. Pensando sobre as descobertas do Lupi, tentei tirar essa imagem da minha cabeça, mas ela sempre volta. Para mim e para as pessoas que amam os animais, o protótipo do desamparo é representado pela figura de um cachorro ou gato na rua, que não sabe onde buscar ajuda. Não tem nada mais frágil que um animal abandonado que só pode exprimir seu desespero e sua dor através do olhar. Cães e gatos foram domesticados pelos seres humanos e aprenderam a depender de nós para suprir todas suas necessidades. Quando eles se perdem ou são jogados fora, ficam totalmente desnorteados e o estresse é tanto, que muitos deles adoecem e morrem rapidamente. Outros, mais fortes, conseguem reagir e partem à procura de comida e abrigo. Mas, mesmo para estes é uma questão de tempo adoecer e morrer: as brigas e privações terminam por minar suas forças e eles acabam se entregando também. Quando vi aquela cadelinha tão pequena e frágil escondida no meio do mato, onde acabara de parir, meu coração congelou. Aliás, tudo em volta congelou, pois aquele foi o dia mais frio do ano e mais, o dia mais frio dos últimos sete anos. Estes bebês não poderiam ter escolhido outra data para nascer? Eu não tinha como tirá-la de lá com seus filhotes, pois ela estava agressiva, tentando proteger sua ninhada. Voltei para casa chorando e rezando para que o tempo melhorasse, para
  • 39. que não chovesse e eu tivesse uma inspiração para socorrê-los. Por que será que os animais nos inspiram esses sentimentos tão intensos? Será porque sua alegria e tristeza são tão puras que nos contagiam? Ou porque seu olhar é tão sincero que nos desarma? Será porque seus sentimentos são tão verdadeiros que nós confiamos plenamente neles? Ou sua dor é tão profunda que nos arrasa? Recordo que cachorro em hebraico é Kélev e um comentarista do Talmude revela que o nome Kélev deriva de Shekulo Lev que quer dizer: um ser que é puro coração. Deve ser essa a explicação. Eu queria muito ter escrito uma história alegre. Aliás, eu queria viver em um mundo onde as pessoas pudessem se sentir como gatos filhotes com teto e com comida.
  • 40. Mistérios Os mistérios existem para nos intrigar. Como protetora de animais me pergunto, por que quase sempre é preciso estar em situação de risco para se ter a chance de sobreviver? Recordando os animais que resgatei e que já foram doados, a maioria deles chegou até mim quando sua vida estava em perigo: ou estavam atravessando uma rua movimentada, ou foram atropelados, ou se encontravam muito doentes e por isso necessitavam de ajuda imediata. Por outro lado, eu cruzei com vários outros e nada fiz por eles, por estarem fortes, em locais mais seguros ou por serem bonitos e terem boa chance de serem resgatados. Estes não foram socorridos e ficou a dúvida: será que eles tiveram a sorte que eu imaginei que teriam? Nós protetores, depois de algum tempo de experiência sempre escolhemos os animais que estão em pior estado para resgatar. Para isso precisamos selecionar e essa tarefa é muito delicada, pois você tem pouco tempo para refletir e precisa decidir rapidamente entre ajudar ou não. Essa é a nossa “escolha de Sofia”. Nesse processo, várias coisas estarão em jogo. Muitas vezes, você não tem mais lugar em casa para acolher nenhum animal e tudo irá depender também de seu tempo disponível e, principalmente, de sua situação financeira no momento. Quantas vezes acontece de você saber que não tem condições de fazer aquele resgate e mesmo assim insiste em acolher o animal, sem entender o motivo que a leva a agir dessa maneira. Creio que, quando isso ocorre, não foi você que escolheu o animal, ele foi escolhido para você. Por um lado, quando conseguimos que os animais que salvamos fiquem bem, saudáveis e sejam adotados, temos muito a comemorar. Sabe aquele cachorro todo sarnento para quem ninguém mais olhava e que já estava sendo até enxotado por causa de seu aspecto? Quando ele se torna um príncipe e tem fila para adotá-lo e você só tem o trabalho de escolher cuidadosamente para que lar encaminhá-lo, é uma situação muito gratificante. Um ser que não tinha mais nenhum interesse aos olhos das pessoas e que começa a ser valorizado e disputado, isto é motivo de orgulho e satisfação. Por outro lado, existem aqueles que já estavam enfraquecidos por terem
  • 41. permanecido muito tempo nas ruas e que, quando são resgatados, adoecem e não resistem. Então, você fica se perguntando: por que eu precisei cruzar com ele e me esforçar para salvá-lo, se era para ele morrer? Por que empenhamos nossa energia e temos tantas despesas, se no final ele iria morrer mesmo? O fato de ter sido escolhido não deveria fazer dele um sobrevivente? Algumas pessoas irão dizer que desse modo o animal teve uma morte digna, não ficou definhando, sozinho e sem cuidados na rua. Porém, todo seu empenho foi em vão. Todo tempo e toda sua energia foram gastos com que propósito? E tem também o lado psicológico, pois você fica arrasada, colocando em dúvida sua luta e, depois dessa fatalidade, você precisa de muito tempo para se recompor e reunir forças para continuar. Isso faz parte dos mistérios que em vão tento desvendar. Sei que é muita pretensão querer entender todos os motivos e julgar o que é significativo ou não. Mas, no fundo, toda escolha que você faz não deixa de ser intrigante. A única certeza que tenho é que nada seria muito diferente do que é, pois nós fomos criados para amar e cuidar.
  • 42. Ser feliz dá trabalho Tempos atrás, doei uma cachorrinha que estava há dois anos aguardando um lar. Ela é uma vira-lata muito dócil, amorosa e, como não podia deixar de ser, se apegou ao pouco que tinha lá no abrigo: visitas diárias e a companhia de uma dezena de outros cães, todos abandonados como ela. Fiquei muito feliz com sua adoção e achei que sua hora de ser feliz finalmente chegara. Mas, ela foi devolvida semanas depois e disseram que não se adaptou, que estava apática e não estava se alimentando direito. Claro, ela precisava de um tempo para entender que tinha um novo lar e também ter a certeza que estava em segurança. Esta sensação de “estar abandonado” é muito comum em animais que viveram nas ruas e ficaram muito tempo em abrigos. Sempre digo para os adotantes: imagine que te sequestram e soltam em outro local e com pessoas que você não conhece. Você precisa de um tempo para se adaptar, certo? Mas, a cachorrinha não teve esse tempo. Em vez de ampará-la, foi mais fácil devolvê-la. Eu não insisti, como sempre faço, pois entendi que o adotante não estava preparado para conviver com um anjo. O problema é que as pessoas, a maioria delas, não quer ter nenhum trabalho. Diante da menor dificuldade elas desistem e, por isso, deixam de sentir os maiores prazeres da vida. Este moço que devolveu a cachorrinha se privou de seu olhar de gratidão, de sua presença amorosa e seu amor incondicional. Ele não chegou a sentir sua recepção calorosa ao chegar em casa depois de um dia difícil. Ele não teve sua cumplicidade nos momentos de tristeza e de alegria. Ele não sentiu nada disto, não deu tempo. Muitas vezes me dizem: - Você faz um lindo trabalho e deve ter muita satisfação com ele, deve se sentir uma pessoa realizada. Sim, algumas vezes eu tenho a sensação do dever cumprido e sou grata por ter as condições necessárias para realizar minha missão. No entanto, tenho muito trabalho também. Como dizia meu pai, citando um ditado popular: “Você sabe das pingas
  • 43. que eu bebo, mas não sabe dos tombos que eu levo”. É exatamente isso: a ajuda aos animais é muito gratificante pois você os salva, cuida deles, encaminha para um bom lar e a história, muitas vezes, tem um final feliz. Há também um outro lado bastante pesado: os dias de luto por aqueles que foram resgatados, mas não conseguiram sobreviver; as horas de intenso trabalho para cuidar de filhotes doentes; as dificuldades para amparar animais idosos que não conseguem mais se virar sozinhos; o desgaste diário por cuidar de dezenas de cães carentes de afeto e marcados para sempre pelo abandono e daqueles que foram descartados por serem especiais, cegos ou paraplégicos; a necessidade de sacrificar seu lazer para comprar ração e poder cuidar dignamente dos animais; e a dor de sentir um gatinho muito amado ir se apagando em seus braços, depois de muito sofrimento. A lista é longa. Para se obter a dádiva de salvar uma vida é preciso muito esforço. Ser feliz é trabalhoso, cansativo e por vezes muito triste. Muitos protetores desistem, alguns piram ... eu escrevo.
  • 44. Diga não aos rodeios Rodeio é um espetáculo que reúne dois antagonistas em uma arena: de um lado o animal, que aparenta ser selvagem e indomável e de outro o mocinho, que transmite determinação e coragem. O propósito do show é subjugar o animal e então o homem irá provar toda sua força, superioridade e seu domínio sobre a natureza. No entanto, neste embate entre a selvageria e a bravura, entre o bem e o mal, você espectador está sendo ludibriado. Saiba que nada disto é verdadeiro, pois o modo como os animais se comportam na arena é resultado de sua exposição à tortura e à dor. Primeiramente o animal entra em cena e fica apavorado pelo barulho da plateia e pela iluminação excessiva do local, artifício usado para que ele se sinta desnorteado. Logo em seguida, ele fica desesperado, pois é vítima de instrumentos de tortura e a dor que sente faz com que ele pule como se fosse um animal selvagem, quando, na verdade, está inutilmente tentando se livrar dos apetrechos que o martirizam. Estudos sérios indicam as inúmeras irregularidades encontradas nos rodeios. Foram listados os seguintes instrumentos de tortura: sedem, apetrecho utilizado para comprimir a virilha e os genitais do animal; choques e espancamentos; esporas; laçada ao bezerro; alfinetes, etc.. Tudo isso é irregular e ilegal, além de ferir a ética e a civilidade. Todos nós sabemos que maus-tratos aos animais é crime com punição prevista por lei mas, como não existe fiscalização na maioria dos rodeios, tudo se torna permitido. Como pode ser chamado de diversão um evento onde os animais são torturados e humilhados? Como pode ser chamado de espetáculo um show onde os super-homens que dominam os animais são covardes torturadores? E no final da encenação ocorre unicamente a celebração da crueldade humana. A comparação com o Coliseu criado pelo Imperador Vespasiano, onde homens corajosos lutavam com animais selvagens não é inapropriada. A diferença é que na época romana eles não usavam truques.
  • 45.
  • 46. A realidade dos abrigos de animais Toda vez que me perguntam se conheço algum abrigo que receba animais de estimação, eu recordo a necessidade de escrever sobre o assunto. Essa semana os pedidos foram tantos, que vou tentar descrever a realidade dos abrigos, que é bem diferente da imagem que muitas pessoas fazem deles. O cão ou gato, quando vai para um abrigo, não está saindo de férias ou indo passar uma temporada em um SPA ou hotel de cinco estrelas. Infelizmente, ele vai enfrentar uma dura realidade. Alguns humanos resolvem, por vários motivos, se desfazer do animal que viveu muitos anos em sua companhia, outros então devolvem o animal adotado depois de meses de convívio com uma família e todos acham que ele ficará feliz indo para um abrigo. Essas pessoas precisam saber que o estresse enfrentado pelo animal que sai de um local onde ele se sente seguro e amado é tão grande que, nas primeiras semanas no abrigo ele adoece e demora muito tempo para se recompor e participar da vida coletiva. No período de adaptação, ele fica apático, deprimido e muitas vezes para de se alimentar. Os mais sensíveis ou velhos adoecem gravemente e alguns acabam morrendo. Só quem já visitou um abrigo de animais sabe do que eu estou falando. Existem vários tipos de abrigo: alguns são pequenos, com poucos animais, o tipo de local que a maioria dos protetores acaba construindo e que fica muitas vezes em sua própria casa. Nesses, os animais têm alimento, proteção, mas nem sempre têm atenção e carinho, como gostaríamos de lhes proporcionar. Tem também aqueles abrigos maiores, que pertencem à sociedades protetoras, onde os animais muitas vezes sofrem por falta de alimentos e cuidados. Neles há superlotação e são rotineiras mortes causadas por brigas, disputa por território, alimento e até disputa por atenção. Nesses locais os cães e gatos estão sempre tristes, apáticos ou, ao contrário, tornam-se tão agitados que não conseguem relaxar nunca. Já resgatei animais de abrigos que se comportam como crianças delinquentes, pois são agressivos, extremamente inquietos e podem demorar anos para se reequilibrar.
  • 47. Nos locais menores e mais bem equipados, os animais geralmente não passam fome, mas estão sempre carentes e chegam a brigar por um simples afago e você precisa ficar atento para não privilegiar nenhum deles. Durante muitos anos fui voluntária em um abrigo que comporta uns trinta cachorros e senti na pele todos os problemas que mencionei. Chegava sempre no mesmo horário e os cachorros já começavam a correr e a latir enquanto eu estava a um quarteirão de distância. Eles já sabiam a hora certa da minha chegada e ficavam tão agitados que, muitas vezes, começava uma briga, antes mesmo que eu abrisse o portão. Nessa hora, eu precisava ser rigorosa e fazia de tudo para que eles se acalmassem. Sempre levava algum petisco e começava a servir para a turma que, só então, ficava quieta, esperando para ganhar o prêmio. Então, eu aproveitava o silêncio para conversar com eles e explicava que estava procurando bons lares para todos e que eles precisavam ter paciência, pois tudo era uma questão de tempo e logo eles iriam ter uma vida melhor. Contava também como que era difícil encontrar pessoas sem preconceito e que também tivessem amor para dar. Essa conversa, na maioria das vezes, os acalmava, pois cachorros gostam de ouvir uma voz humana que lhes fala com carinho e transmita serenidade. Todos os dias eu saia de lá com um nó na garganta, pois só voltaria no dia seguinte e os cães teriam um longo dia pela frente, sem atenção e sem a companhia de um humano. Lá, como na maioria dos abrigos, eles só têm o básico: comida, água e proteção contra as intempéries. Mas, felizmente e aos poucos, os animais acabam aprendendo a conviver com a solidão e, depois de um tempo, já não sofrem tanto; resignados, eles entravam em suas casinhas onde esperam o tempo passar. Eu sempre ficava triste, mas me consolava pensando que eles viviam melhor lá do que nas ruas, passando necessidades. Por tudo que os animais são obrigados a suportar, é importante que o abrigo seja sempre encarado como um local transitório, uma casa de passagem e não o lar definitivo para cães e gatos. Animais domésticos, como o próprio nome diz, existem para viver em contato e na companhia de humanos, pois dependem deles para todas suas necessidades. O certo é que sempre paira um ar de tristeza e resignação sobre os abrigos. Isto porque todos os animais que lá estão foram um dia abandonados e, mesmo os que se perderam de suas casas, ficaram traumatizados, pois nas ruas passaram por muita privação e medo. Eles se tornaram seres inseguros que têm receio de nos decepcionar, de fazer algo errado e serem descartados e sofrer novamente.
  • 48. Essa é infelizmente a realidade dos abrigos de animais. Jim Willis, escritor e defensor dos animais, descreveu com precisão a tristeza dos abrigos em seu livro Pieces of My Heart: “Olhei para os animais abandonados no abrigo, os renegados da sociedade humana. Vi em seus olhos amor e esperança, medo e horror, tristeza e a certeza de terem sido traídos. Eu me revoltei e rezei: - Deus, isto é horrível! Por que o Senhor não faz nada a respeito? E Deus respondeu: - Eu fiz. Eu criei você.”
  • 49. Se todos fizerem um pouco Se as pessoas cuidarem adequadamente de seu animal de estimação e o tratarem com o respeito que ele merece, não haverá abandonos e maus- tratos e os animais farão parte da família que eles tanto amam. Se nas escolas ensinarem as crianças desde cedo como cuidar dignamente de um animal e discutirem a importância dessa atitude, elas crescerão valorizando seu amigo, além de se tornarem seres mais responsáveis. Se as crianças aprenderem a valorizar todas as formas de vida, quando adultos saberão como ninguém amar e respeitar o ser humano e serão menos preconceituosas também. Se essas crianças transmitirem os conhecimentos adquiridos sobre posse responsável aos pais, familiares e amigos e conseguirem influenciá-los, a realidade dos animais será bem mais positiva. Se os guardiões de animais entenderem a necessidade de levar seus animais de estimação para castrar, como coisa rotineira, não haverá nascimentos indesejados, abandonos e mortes. Se as Prefeituras de todas as cidades realizarem campanhas de castração gratuitas para as pessoas de baixa renda, o problema da superpopulação estará resolvido ou pelo menos minimizado. Se os governos entenderem que é muito mais barato e eficaz castrar os animais do que manter a carrocinha e a morte indiscriminada de cães e gatos por injeção letal, já teriam modificado há muito tempo a política dos Centros de Zoonozes. Se os animais estiverem todos castrados, não haverá superpopulação e os que por acaso ainda estiverem nas ruas não procriarão, o que diminuirá significativamente o número dos desabrigados. Se não houver animais vagando pelas ruas, as pessoas passarão a valorizá-los e eles serão poucos e especiais. Se os animais que são comercializados só forem vendidos já castrados, isso evitará que muitos aproveitadores usem os animais de raça só com o intuito de procriação e venda de filhotes. Se as pessoas entenderem que os animais são seres sensíveis, elas não desejarão possuir um determinado animal só porque sua raça está na moda. Elas saberão que, por trás daquela raça, existe um ser que ama e
  • 50. sofre e que se apega às pessoas que cuidam dele. Se as pessoas entenderem que os animais, assim como nós, sentem dor e medo, elas se compadecerão deles e tentarão ajudá-los quando estiverem necessitados. Se as pessoas se compadecerem dos animais que estão sofrendo nas ruas e os resgatarem e cuidarem deles para depois encaminhá-los para adoção, diminuirá significativamente o número de mortes causadas por doenças e desnutrição. Se as pessoas ficarem atentas às necessidades básicas dos animais como alimentação adequada, vacinação anual e abrigo contra as intempéries, todos eles terão uma vida longa e digna. Se as pessoas souberem que os animais, além de comida e abrigo, precisam também de atenção e carinho, eles serão muito mais felizes. Se todos souberem que prender animais em correntes ou espaços mínimos só gera revolta e infelicidade, todos os animais viverão livres e satisfeitos no espaço a eles destinado. Se todos souberem que os filhotes devem ser ensinados apenas com recompensas pelo acerto e nunca com castigos e violência, as pessoas terão em sua companhia animais adestrados e educados. Se as pessoas se conscientizarem, antes de comprar ou adotar um animal doméstico, que ele pode viver entre doze e quinze anos ou mais, dependendo do porte, não haverá tantos abandonos provocados por velhice. Se as pessoas souberem que, como qualquer ser humano, os animais precisam mais delas quando estão doentes ou velhos, eles não serão abandonados no momento que mais necessitam de cuidados. Se todos se conscientizarem de que existem muitos animais abandonados esperando por adoção, entenderão que não devem comprar e sim adotar: o melhor amigo não se compra. Se as pessoas proporcionarem uma boa vida aos animais de estimação, receberão em troca uma gratidão sem limites e uma dedicação que não se iguala a nenhum outro sentimento humano. Se todos fizerem um pouco, com certeza essa situação de abandono, sofrimento e morte será atenuada. Para que tudo isto aconteça, precisamos lutar e nos empenhar, pois os animais não podem se comunicar e dependem de nós.
  • 51.
  • 54. O primeiro gatinho a gente nunca esquece Quando meu marido chegou dizendo que estava com vontade de trazer para casa dois gatinhos que estavam em liquidação num pet-shop perto do escritório, eu fui categórica: - Acho que não gosto de gatos. Eles não gostam das pessoas, só das casas e não são muito carinhosos. Mas, ele insistiu: - Isto não é verdade e esses são tão lindos, estão já com três meses e custando uma ninharia, o preço já caiu três vezes e logo, logo, serão jogados na rua. Nem cabem mais na gaiola ... Claro, depois desses anos todos, ele sabia muito bem qual era meu ponto fraco. - Está bem, concordei, traga os gatinhos e vamos ver. Eu nem sabia como fazer. Telefonei para a veterinária e precisei perguntar tudo: como cuidar deles, quantas vezes comem por dia, o que eles precisam, caixinha de areia? Não sabia que gatos comem um pouco várias vezes por dia, não sabia que usam uma caixinha de areia para suas necessidades e que não fazem nenhuma sujeira, não sabia que eles adoram brincar e, principalmente, não sabia que também gostam de um colo. Que são muito carinhosos, inteligentes e interessantes, isso tudo fui descobrindo aos poucos. Aliás, como a maioria das pessoas, eu não sabia nada sobre gatos. As descobertas foram diárias e eu fui me apaixonando a ponto de perguntar: como pude viver tanto tempo sem a companhia de um gato? Eles brincam e se divertem o tempo todo, eles se alimentam o tempo todo e eles são felizes o tempo todo. São seres fascinantes e instigantes. E, quando você pensa que entendeu tudo, que já sabe como eles “funcionam”, eles nos surpreendem: naquele dia resolvem não fazer a brincadeira esperada ou nem te respondem quando você os chama. Este dia vai ser diferente porque eles resolveram assim. Você começa a ficar preocupada achando que tem algo errado com eles mas, algumas horas depois, eles acordam de bom humor e tudo volta à rotina. Os gatinhos filhotes, então, são um espetáculo à parte: divertidos, ágeis,
  • 55. alegres e encantadores. Você se pergunta: já vivi tanto, tenho tanta experiência e como nunca soube disso? Como nunca me disseram que a felicidade é tão simples: basta observar um gatinho filhote brincando e descobrindo o mundo. Porém, com o tempo, você aprende também uma outra característica felina: eles são especialistas em mascarar a dor e as doenças. Eu era inexperiente e só percebi que havia algo errado com meu gatinho Tom, quando já era muito tarde. Tenho certeza que ele fingiu estar bem para não me chatear, ele não queria me ver sofrendo. Foi muito difícil aceitar sua morte prematura somada à culpa que senti por não ter percebido os sinais da doença, enquanto ainda haveria tempo para a cura. O breve período que Tom conviveu comigo foi suficiente para me ensinar a entender e amar os felinos, admirá-los e descobrir com eles um aspecto da vida que eu já estava esquecendo: o prazer de estar vivo.
  • 56. Existem coincidências? Para Eleonora Algumas vezes, tenho certeza que sou um simples instrumento, uma peça aleatória a serviço de uma engrenagem muito mais complexa e abrangente. Todos os dias, cruzo com vários animais precisando de ajuda e eu sofro, mas reajo: não posso fazer mais nada, já ultrapassei todos os meus limites, não dá para acolher mais ninguém. Então, arrasada, continuo meu caminho e rezo para que alguém, com mais disponibilidade, veja o animal, sinta sua dor e responda ao seu apelo. Entretanto, chega o dia em que todas as forças do universo resolvem se conectar para tornar determinado apelo irresistível. Naquele momento começa a chover, ou então, faz muito frio, ele ou ela atravessa uma rua movimentada e corre perigo iminente. Por vezes é a dor, a doença ou o sofrimento, os fatores que desencadeiam sua ação. Assim, tem início o resgate não planejado e, nessa hora, não raciocino e muito menos deixo a razão prevalecer. Sou guiada pelo instinto. O que fazer depois, já é uma segunda etapa, um problema a ser resolvido quando eu recobrar a razão. Naquele dia, tudo começou com um resgate planejado. Fui até aquele bairro, em uma favela, para buscar uma poodle que perambulava por lá, faminta e no cio, há vários dias. Já arrumara até lar provisório para que ela se recuperasse enquanto aguardava adoção. Mas, no meio do caminho, lá estava ele: pequeno, muito frágil e implorando por ajuda. Gatos atravessando ruas movimentadas em plena luz do dia são a personificação do desespero. Sempre que vejo esta cena me lembro dos tigres no circo, lançando-se contra círculos de fogo. Quanta dor os domadores teriam infligido àqueles pobres animais para que eles se lançassem desse modo para o desconhecido, para a morte? Quanto desespero guiou aquele gatinho para um local tão perigoso? Não pude deixar de socorrê-lo. Instintivamente quis apenas mantê-lo seguro, protegido e o levei para casa. Tudo foi muito rápido e, em questão de horas, seu destino, antes escrito com linhas tão tênues já estava decidido.
  • 57. Aconteceu assim: Naquele instante em que eu passei, ele atravessou a rua. Levei-o para casa e coloquei o filhote num cantinho aconchegante. Alimentei-o e tirei sua foto na esperança de achar um lar seguro para ele. Algumas horas mais tarde, uma amiga foi conferir suas mensagens e lá estava ele, indefeso e implorando por ajuda. Naquele exato momento, alguém passou por ela e se emocionou com sua figura frágil e carente. Mais algumas horas e ele foi encaminhado para um lar amoroso e que preencheu todas as suas necessidades. Houve uma conjunção perfeita de fatos, lugares e pessoas, todos distantes, desconhecidos. Uma sincronia de forças que culminou em encontros e acertos. Tudo muito rápido, coordenado, eficaz. Creio que lá longe, os sinos dobraram e as pontas de um emaranhado, aparentemente sem nexo, foram se encaixando com facilidade e uma soma de fatos improváveis culminou num desenlace feliz. Nesse momento, você descobre que foi apenas um instrumento para a realização de um acordo que já havia sido firmado. Não aqui, mas em outra dimensão.
  • 58. Frank e sua gangue Por que escrevemos sobre determinado animal? Porque ele tem uma história marcante que merece ser contada, ou é por causa de sua personalidade que também é muito marcante e deve ser conhecida. Frank se enquadra no segundo caso e pode ser descrito como um gatinho peculiar: vesgo, desafinado, encrenqueiro, mandão e muito divertido. De tão estrábico, não temos noção para qual direção ele está olhando e, as vezes acho que ele não enxerga quase nada, pois longe de seu ambiente, ele fica perdido e olhando para todos os lados como se não conseguisse fixar um objeto. Quando o encontrei ainda bebê, ele estava num terreno ao lado de casa e passou a noite berrando até ser regatado. Seu miado é tão desafinado, tão estridente que eu pensei, enquanto me revirava insone na cama: amanhã vou pegar este gatinho só para colocar um grande esparadrapo no seu focinho. Desde pequeno, Frank começou a demonstrar espírito de liderança e hoje ele é o macho dominante do gatil: mandão, briguento e, ao mesmo tempo extremamente amoroso com os gatos que gozam de sua preferência, e que são aqueles mais alegres e arteiros e que podem ser tanto machos como fêmeas. Ele é o líder da turma dos bagunceiros e normalmente é quem dá o sinal para que a folia tenha início: ele solta um miado alto e desafinado, como se estivesse exercitando a voz e sai correndo e fazendo a maior algazarra. Implica com todos os gatos sérios, como se dissesse: larga de ser chato, a vida é boa e breve e não adianta nada ser tão ranzinza. Frank está sempre de bom humor. Quando faz alguma coisa errada, corre e fica olhando para ver se eu o estou observando: derruba almofadas de locais altos, vira casinhas, puxa os lençóis para o meio da sala e adora fingir que vai fazer xixi na parede bem na hora que eu estou passando. Eu dou um grito: - FRANK! e ele sai correndo com uma carinha de safado e é visível que está se divertindo pra valer. Então, eu lhe dou uma sonora bronca e o coloco de castigo no prato de um brinquedo que tem no playground dos gatos. Trata-se de uma construção que imita uma árvore, tem movimento e é composta por vários
  • 59. pratos grandes espalhados por sua superfície. E Frank fica muito tempo quietinho de castigo no mesmo lugar, até que eu lhe dou permissão para sair: - Pode sair agora Frank ... e, entendendo perfeitamente meu comando, ele sai correndo para infernizar a vida de algum gato menos avisado. Essa é a nossa brincadeira diária. Até seu nome é perfeito. Assim como Sinatra, ele tem lindos olhos azuis e veio morar conosco na mesma semana em que Sinatra faleceu. Ele só não é afinado como o cantor. Eu sempre penso nele como um líder mafioso de uma turma muito feliz que fica se divertindo o tempo todo e alegrando aqueles que a assistem. Fazem parte da turma: Frank, Tico e Teco, Chaplin e Ivan. Os meus meninos que poderiam também se chamar: Frank Sinatra, Sammy Davis Jr., Peter Lawford e Dean Martin. Essa é a minha gangue, que se diverte tanto quanto se divertia a americana e está sempre de bem com a vida.
  • 60. Quatro gatinhos pretos A primeira vez que os vi, tentavam atravessar uma rua movimentada às 11:00 horas da manhã de uma segunda-feira. Passo ritmado, como se estivessem de mãos dadas, deram início à travessia, indiferentes ao movimento de pessoas e carros. A seu modo, eles pediam ajuda e a urgência do pedido era visível em seu olhar e sua determinação. Eles sabiam que essa poderia ser sua última chance e então se lançaram, sem hesitar, em busca da sobrevivência. Eu me assustei com o inusitado da cena e, aflita, coloquei-os rapidamente no carro, antes que fossem atropelados. Estavam famintos, cobertos de pulgas e, principalmente, exaustos. Livres de todos estes inconvenientes, dormiram longa e profundamente e, quando acordaram, deram início a uma série incansável de brincadeiras. Estes quatro gatinhos pretos são, sem exceção, muito alegres, brincalhões, espertos, comilões e, principalmente, agradecidos e amorosos. São gatinhos especiais destinados a pessoas especiais. Escrevi esse texto tentando doá-los e um casal adotou as duas fêmeas. Recebo sempre notícias das meninas que continuam até hoje comemorando sua sorte. Quanto aos dois machos, além da dificuldade que é doar gatos pretos e também, como não tive coragem de separá-los, acabaram ficando em casa. Permanecem muito unidos, são parceiros de toda hora, comem, dormem e brincam juntos e, o mais importante, contagiam os outros gatos com sua alegria e amor à vida. E eles não são só inseparáveis, são também muito semelhantes, são gêmeos idênticos. Você não consegue, mesmo após longa convivência, identificá-los facilmente. Um pelo branco aqui, outro pelo branco ali, mas quando precisamos agir com rapidez, é quase impossível acertar. Isso é um problema na hora de administrar remédios ou vacina. Preciso sempre da ajuda de outra pessoa: um deles é separado e o outro recebe o medicamento e depois invertemos os papéis. Ou então, pego um deles, amarro uma fitinha colorida, dou o remédio e tenho tempo para pegar o outro, enquanto o primeiro se ocupa de ficar livre do enfeite incômodo. De qualquer modo, preciso ser muito rápida, pois eles ficam poucos instantes no mesmo lugar. São donos de uma energia e vigor
  • 61. impressionantes e só param de correr e pular quando são vencidos pelo cansaço. Nessa hora, procuram um cantinho aconchegante, abraçam-se e fecham instantaneamente os olhos. Apagam. Você diria que eles são típicos gatinhos filhotes. Só que estes dois já têm mais de dois anos de idade e ainda conservam a alegria, a curiosidade e a vitalidade dos bebês. Tico e Teco são um espetáculo à parte para as pessoas e um convite à celebração para os outros gatos que, de início, só observam e, minutos depois, contagiados, passam a se divertir também. É como se os dois gatinhos fossem animadores e tivessem o objetivo de fazer circular a alegria e o alto astral. No entanto, é paradoxal, pois sempre que penso neles surgem duas imagens contrastantes: amor à vida e desespero. A primeira imagem é fruto de seu comportamento cotidiano, de suas brincadeiras alegres e inocentes. Aí me lembro do desespero, o sentimento que os impulsionou a atravessar aquela rua e enfrentar o perigo e o desconhecido. Então fica claro: só quem viveu e superou situações extremas pode ser tão feliz. Estes gatos são sobreviventes e, por isso, dão tanto valor à vida e a celebram diariamente como uma benção divina.
  • 62. Quatro gatinhos pretos – Segunda parte E a rotina continuou: muita alegria, celebração e muita, muita curiosidade. Esta característica, por sinal, também diferenciava um dos irmãos: Tico é mais curioso e amoroso com as pessoas, Teco mais independente e próximo dos outros gatos. Tico sempre me esperava pela manhã à porta do gatil e era o último a se despedir à noite. Sempre interrompia suas atividades para correr até a porta e desejar-me boa noite com seu olhar doce e carinhoso. Uma manhã, no entanto, ele não estava me aguardando. Um rato, um pássaro, a eterna curiosidade dos gatos, algo o impulsionou a forçar a tela do gatil e sair para explorar o mundo lá fora. Nesse momento, é como se houvesse uma cisão no tempo, uma interrupção que paralisa ações e sacode sentimentos. Para não sucumbir ao desespero você começa a planejar todo tipo de buscas, diurnas e noturnas, silenciosas e barulhentas, racionais, meticulosas e também descontroladas. Pede ajuda a todos, amigos e conhecidos e faz contato com vizinhos que nem sabia que existiam. A busca constante e obsessiva acaba levando a uma exaustão que faz você questionar todas suas convicções. Afinal, para que eu salvara a vida desses quatro gatos, se era para ele fugir e ficar em perigo novamente. Não tinha sentido. Ou será que o trabalho de ajuda aos animais é que não tem sentido? O tempo vai passando e você começa a fraquejar, ânimo e desânimo se alternam num mesmo dia, especialmente quando saímos atrás de pistas falsas, dicas bem intencionadas daqueles que pretendem ajudar e elas se tornam em novas frustrações. Como alternativa, você articula novas táticas que também acabam apontando para sua impotência e fracasso. Mesmo evitando a todo custo, passamos a imaginar os perigos e assim, como num pesadelo, tudo se torna perigoso, desde o cachorro do vizinho até o carro cruzando sua rua. E a fome e a sede são presenças constantes quando você troca a água ou coloca ração na vasilha dos outros gatos. E, o mais cruel, o fato dele ser um gato preto, aquele que sofre mais discriminação e que corre mais perigo nas ruas. Soma-se à dor da perda o desespero da impotência e o resultado é a tristeza que se abate sobre tudo e contagia indistintamente pessoas e gatos.
  • 63. Talvez para me consolar, Teco começou a tomar algumas atitudes que antes eram próprias de seu irmão: esperava-me na porta do gatil, despedia- se quando eu saia e tentava brincar sozinho. Corria para todos os lados tentando contagiar os outros gatos, sem sucesso, porém. Então, postava-se no local exato onde a tela fora forçada e chamava: R A U L R A U L R A U L R A U L R A U L T. S. Eliot em um de seus poemas fala sobre o nome secreto dos gatos, o nome que eles partilham entre si e não nos contam. Teco, em sua dor, deixou escapar o segredo e eu fiquei sabendo o nome verdadeiro do Tico. De todo modo, a busca não foi totalmente infrutífera, pois resultou no acolhimento de quatro outros gatinhos pretos que ficaram muito agradecidos ao Tico quando foram encaminhados para seus novos lares. Numa noite, 67 dias ou 1608 horas depois, eu ouço um fraco miado vindo da rua, uma vozinha leve e insistente. - É você, Tico? E, contra todas as probabilidades, ele pula de uma árvore direto para meu colo, como se estivesse acabado de se despedir à porta do gatil. Como se não houvesse ocorrido uma interrupção, como se essa suspensão temporal, este hiato de dor, fosse fruto da minha imaginação. Minha rotina mudou. Hoje eu acordo, abro a cortina do quarto e quando vejo os dois gatinhos pretos brincando, começo meu dia com um sorriso de alívio e satisfação e agradeço a preciosa dádiva que me foi concedida. Para eles houve uma retomada da rotina e, para mim, uma grande mudança. PS.: Outro dia, estava acariciando Tico e recordando aqueles dias terríveis, quando ele me olhou bem nos olhos e soprou um pensamento: - “Nunca contei pra você, para não chateá-la. Mas, eu me diverti muito enquanto estava fora: passeei, conheci lugares novos, fiz muitos amigos e aprendi coisas interessantes. Hoje sou bem mais esperto e vivido. Vinha toda noite para comer a ração que você deixava no muro da casa, para o caso de eu voltar com fome. Eu só voltei mesmo porque te ouvia me chamar, até altas horas e você chorava também, coitada. O certo é que não dá para se ter tudo: liberdade, boa comida e amor. Fazer o que?” Tive vontade de lhe dar um beliscão, mas emocionada, eu o abracei e dei- lhe um sonoro beijo.
  • 64.
  • 65. Pequeno equívoco Hoje foi um dia daqueles! Se eu fosse supersticioso diria que essa segunda-feira está mais para sexta-feira 13 do que qualquer outra coisa. Mas não, eu não posso alimentar este tipo de sentimento: preconceito, superstição são coisas similares e eu tenho que lutar contra elas. Desde que nasci que ouço: Xô, Xô, Sai Gato Preto ... Gato Preto dá Azar! Eles me enxotam como se eu tivesse algum dom especial, como se a minha cor me concedesse poderes ... como se eu pudesse alterar algo que está fora de mim, transmitir azar a alguém, por exemplo. É tudo muito doido! Eu não consigo mudar meu próprio destino, como poderia ter alguma influência sobre a sorte ou o azar das pessoas que cruzam meu caminho? E o mais incrível é que tem gente que acredita nesse meu poder. Se eu tivesse algum, seria para melhorar minha vida e não para prejudicar a vida desses seres estranhos e irracionais chamados “humanos”. No entanto, vejam o meu dia. Eu estava tranquilamente tomando sol com minha irmã mais nova, quando começou uma gritaria daquelas. Como sempre eles estavam conversando, depois discutindo, depois brigando e sempre culpando um ao outro. Eles são muito bons nisso. No fundo, eu sabia que ia sobrar pra mim, mas nunca supus que as coisas pudessem chegar a tal ponto. Achei que iam só me expulsar, como era de hábito. Tá certo que eles nunca se importaram muito comigo: comida, só às vezes. Carinho, então, nem pensar. Ficará para sempre a dúvida: será que se eu fosse um gato branco e peludo, seria tratado de outra maneira? Pelo menos eu tinha um cantinho só meu ... lugar tranquilo onde podia observar as coisas dos humanos seguirem seu curso. Certas atitudes são tão surpreendentes que eu não tive nenhuma reação. Poderia ter tentado fugir, mas estava tão espantado que deixei que me colocassem, junto com minha indefesa irmã, em uma caixa de papelão. Eu não reagi, santa ingenuidade, pois não imaginei que pudesse haver qualquer relação entre a discussão que acontecia e minha pacata figura. Nós fomos amarrados numa caixa, fizeram uns furinhos generosos, e
  • 66. levados para bem longe dali. Começou então nossa longa agonia. Durante horas, eu diria muitas horas, eu só consegui ouvir carros passando e freadas violentas. Estávamos, eu mal pude acreditar, no meio de uma estrada muito movimentada. Eu só conseguia ouvir o barulho dos pneus, cada vez mais próximos e, à medida que o desespero crescia, ia ficando totalmente paralisado, certo de que aquele seria meu último suspiro. Depois de um longo período, eu já não tinha mais nenhuma reação. Exausto, mal conseguia abrir os olhos, aliás, tinha muito medo de abri-los. Estava ciente da inutilidade de qualquer esforço e deixei que a impotência e o desespero tomassem conta de todo meu ser. A partir desse momento, passei a ouvir apenas as batidas do meu coração que, gradativamente, foram se tornando mais fortes do que o barulho dos pneus no asfalto. De repente, o silêncio. Estávamos sendo levados dali. E, como se estivesse despertando de um pesadelo, comecei a ouvir vozes: - Meu Deus! Uma mãe com seu filhinho. Coitados, estão tão apavorados! Estão em pânico, mal conseguem respirar !!!! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Então, entre apavorado e indignado, finalmente me rendi. Eu desisto. Nunca mais tento entender o ser humano. Primeiro me prendem naquela caixa apertada, fedida e asfixiante. Depois, passado o susto, e eu mal consegui me recuperar, aparece essa louca: - Mãezinha pra cá, mãezinha pra lá! Só porque estou abraçado com minha irmã e sou, digamos, meio gordinho ... Quem ela pensa que eu sou? Pra mim chega! Eu desisto. Nunca fui tão humilhado.
  • 67. Dar nomes aos gatos Dar nome aos gatos é uma arte. Requer um certo tempo, criatividade e alguma paciência. Precisamos de tempo para testar a eficácia do nome escolhido. Normalmente fazemos várias tentativas até chegar àquele som que tem a “cara do seu gatinho”. Quando acertamos, eles respondem na hora. Bingo! Será que é porque eles mesmos escolheram o nome? Criatividade: alguns nomes são motivados por circunstancias exteriores ao bichinho, a época em que ele chegou, por exemplo. Outras vezes, nos atemos à maneira ou ao local onde ele foi encontrado. Temos ainda nomes desencadeados pela própria personalidade do gato, são os nomes que eles mesmos nos sugerem. Este processo permite a nós humanos ser muito mais criativos, pois não precisamos, neste caso, agradar parentes ou o pai da criança. Ninguém vai tentar nos impor aquele nome horrível, mas que homenageia uma tia recém-falecida. No nome do meu gato, ninguém dá palpite! Além de todas estas facilidades, temos ainda algum tempo para testar o acerto da escolha. Se surgir outro nome mais adequado, pode-se ainda corrigir o erro. Temos o tempo que o gato precisa para se acostumar ao som de seu nome. E o leque de opções é quase infinito. Podemos dar nomes de plantas, flores, frutas, lugares, sentimentos e mesmo nomes humanos. A escolha destes últimos aproxima felinos de nós humanos, faz surgir uma certa cumplicidade, intimidade, um elo entre espécies. Algumas pessoas se incomodam quando gatos levam seus nomes, mas eu acho que não existe homenagem mais carinhosa. Nos gatos é permitido colocar nomes em outro idioma e não correr o risco de parecer brega. Dependendo do tipo do gato, essa escolha é até inevitável. Alguns deles só podem ter nomes ingleses e ainda acrescidos de Sir ou Lady. Outros, muito dengosos, pedem nomes franceses. O prazer da escolha de um nome é um capítulo à parte. Um pouco de pesquisa e depois é só deixar por conta de sua imaginação. Vou tentar me lembrar de gatos passados e presentes e do processo de escolha de seus nomes. Eddie: meu primeiro gatinho preto. Foi só observá-lo por alguns