Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar
Ensinar crianças com autismo
1. AUTISMO E APRENDIZAGEM
Ensinar a criança com autismo
Shopler e tal (1978) demonstraram que as crianças com autismo funcionam
melhor em condições bem estruturadas: como a organização dos espaços físicos
de ensino, a organização dos materiais e actividades adaptados às diferenças
individuais de cada criança, definição de tarefas (como, quando e quanto) e a
definição de rotinas e regras explícitas.
Este tipo de intervenção baseia-se num trabalho directo com crianças num
programa curricular centrado nas áreas fortes e emergentes, identificadas numa
avaliação especializada.
Contudo, apesar de uma boa estruturação do ambiente e das actividades e do
empenho e formação dos técnicos, muitos factores dificultam a aprendizagem
destas crianças, nomeadamente défices de:
Motivação
Sequenciação
Processamento sensorial
Atenção
Memória
Resolução de problemas
Comunicação
Para controlar todos os factores comprometedores de aprendizagem na criança
com autismo, não há receitas mágicas, mas existem estratégias que, se
sistematicamente aplicadas, podem facilitar os trabalhos dos pais e técnicos e
permitirem uma aprendizagem menos fatigante para todos: criança, técnicos e
pais.
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2. MOTIVAÇÃO
Para a criança com autismo não faz sentido a necessidade de iniciar, realizar ou
terminar uma dada tarefa ou actividade. Para ela, essa actividade não tem ou
não representa uma finalidade bem definida.
Estas crianças não têm qualquer sentimento de competição, orgulho no sucesso
ou vergonha de falhar. São indiferentes ao desejo de agradar aos outros.
Contudo, não são indiferentes ao seu próprio sucesso nas tarefas. É mesmo
frequente mostrarem satisfação ao completar uma tarefa e frustração em não a
realizar.
De facto, alguns dos comportamentos ritualistas e obsessivos destas crianças são
claramente auto-motivaçionais , mas diferem do auto-reforço normal, uma vez
que parecem não existir limites.
Este tipo de comportamento dificulta que a criança direccione a sua atenção
para as actividades da sala de aula.
SEQUENCIAÇÃO
Estas crianças têm dificuldades em seguir sequências. Muitas vezes constatamos
que têm dificuldade em seguir o modelo dado. Parece que falham na abstracção
do princípio ou da regra na qual a sequência se baseia. Outras vezes
constatamos que podem até seguir a regra, mas sem a compreender. As crianças
autistas mais capazes produzem para si próprias sequências que demonstram a
existência de princípios sequenciadores, mas mantêm as dificuldades em segui-
las, se impostas pelos outros.
Tempo e casualidade são dois tipos de sequências. O tempo pode ser
interpretado como uma sequência de acontecimentos, e isso não representa
nenhum problema em particular para as crianças autistas, desde que forneça
uma sequência inalterável. No entanto, como nas outras sequências, estas
crianças sentem dificuldades em prever a partir do pré-definido. Mudanças na
rotina tornam-se assustadoras e imprevisíveis e provocam, normalmente uma
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3. certa resistência; não é a mudança em si que provoca desconforto, mas a
mudança na sequência daquilo que vai ter de realizar.
Os défices comuns na sequenciação são:
Dificuldade em pensar antecipadamente e numa sequência, uma tarefa, tal
como completar um puzzle ou um outro jogo com sequência;
Dificuldade em planear, escolher e retirar apenas um item de cada vez, em vez
de retirar tudo de uma só vez ou de forma desorganizada;
Dificuldade em perceber a totalidade dos itens usados, mantendo-se muito
distraído, por vezes, face a pequenos detalhes ou preservando apenas num
pormenor ou detalhe.
PROCESSAMENTO SENSORIAL
Uma das características mais paradoxais da crianças com autismo é a
inconsistência da sua reacção face aos estímulos perceptivos, o que perturba
todo o seu processo de aprendizagem.
Podemos considerar os estímulos tácteis, visuais e auditivos, como aqueles que
se encontram directamente implicados nesse processo. Com efeito, este
processo tem em conta a capacidade que a criança possui para integrar duas
modalidades sensoriais ao mesmo tempo e, o tempo necessário para processar e
organizar a informação.
Possuem uma falha no processamento complexo da informação (Minshew, 1992)
e não um défice de atenção e aquisição de informação.
Paralelamente aos problemas relacionados com a integração de duas
percepções, apresentam uma grande variação no tempo necessário para o
processamento.
Estas reacções traduzem-se por vezes em fobias de natureza vária ou em
comportamentos de auto-estimulação e auto-mutilação.
Os técnicos, tal como os pais e educadores, que ser sensíveis a esta variação e
dar à criança tempo suficiente, para a compreensão da tarefa, antes de
pressupor que ela não compreendeu ou que não sabe a resposta adequada.
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4. ATENÇÃO
Um dos pontos importantes do processo de desenvolvimento das respostas
sociais é a competência para partilhar e dirigir a atenção com os outros. As
crianças com autismo muito raramente tentam partilhar ou chamar a atenção do
adulto para si ou para os seus brinquedos e raramente apontam para algo que
lhes interessa. Esta característica não tem apenas implicações sociais, mas
também tem graves implicações no processo de aprendizagem.
A duração e organização da atenção dispensada a uma dada actividade varia de
acordo com a idade desenvolvimental da criança e com o tipo de actividade em
causa. No entanto, a criança com autismo pode atender por períodos
relativamente longos de tempo, a uma actividade não estruturada ou fácil, ou
mesmo em actividades que lhe são familiares, mas dar uma atenção muito
reduzida ou diminuta a tarefas mais trabalhosas ou novas.
Existem crianças que se concentram atentamente em tarefas como puzzles ou
desenhos, mas que dão uma atenção muito menor a tarefas de linguagem ou de
jogo intencional.
Apresentam uma “hiper-selecção de estímulos”. Respondem apenas a uma parte
restrita do ambiente; têm como que uma “atenção em túnel”, na qual como que
apenas alguns estímulos se encontram agrupados, enquanto que outros são
ignorados.
MEMÓRIA
A memória é outra das características paradoxais destas crianças. Elas são
muitas vezes referenciadas como tendo uma memória “excepcional”. Podem ser
capazes de retirar um desenho complexo e elaborado de um livro e de o
reproduzir sem ter o original presente. Podem repetir frases ou canções
publicitárias, mas é extremamente complicado conseguirem recontar uma
história que ouviram e, se o fizerem, será como um conjunto de datalhes muito
precisos e não como uma história como um todo. Na maioria dos casos, também
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5. não são capazes de dizer, por exemplo, o que comeram ao pequeno almoço,
responder a simples questões como “Em que dia fazes anos?” ou “Como é que te
chamas?”
Reflectem uma memória armazenada por episódios ou por factos concretos
(memória semântica) e não um corpo de conhecimentos integrado.
Estas crianças têm uma incapacidade em termos de memória pessoal ou relativa
a acontecimentos pessoais, uma vez que desconhecem, na maioria das vezes, a
dimensão pessoal.
Hoje sabe-se, nomeadamente através do relato de alguns autistas, que eles têm
extrema dificuldade em relembrar acções ou recordar acontecimentos que lhe
acontecem a eles próprios.
As memórias podem estar presentes, mas não se encontram sob forma que
permita ao autista a sua busca espontânea, quando por exemplo lhe perguntam
o que almoçou ou como passou o fim de semana.
Isto não quer dizer que eles não tenham sentimentos acerca de si próprios, mas
sim que têm dificuldade em usar esses sentimentos, em reflectir acerca deles e
voltar a eles mais tarde. Têm dificuldades em codificar a informação que se
encontra presente em cada episódio, de forma a que possam usar essa
informação num episódio futuro.
IMITAÇÃO
As crianças com autismo tendem a apresentar competências de imitação pobres.
Tanto no que se refere à duplicação do comportamento como no assumir do
papel do outro.
No entanto, muitos dos autistas que verbalizam aparentemente imitam bem,
produzindo réplicas daquilo que ouvem, incluindo entoações e acentuações com
ar mecânico. Mas a exactidão dessa imitação é que fornece uma pista para a
particularidade dos seus problemas.
Em termos de comunicação, estas crianças tendem a não tomar o papel do outro
no diálogo, mas a repetir exactamente aquilo que ouviram.
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6. Em termos motores, muitas delas têm dificuldades em imitar movimentos, mas
com treino adequado, muitas tendem a desenvolver, embora de uma maneira
desajeitada, essas competências.
PREOCUPAÇÕES, ESTEREOTIPIAS E RITUAIS
Podem ser simples ou complexas.
Podem tomar diferentes formas, nomeadamente questões repetitivas, de
preocupações temáticas, actividades estereotipadas, ou actividades abstractas,
sons ou ladainhas repetitivos e por vezes incompreensíveis ou sem sentido.
Os comportamentos mais frequentemente observados são o saltitar, rodopiar,
brincar com a areia ou pedrinhas por entre os dedos e as mãos, balanceamento
do corpo ou manuseamento das mãos em frente dos espelhos, ou persistir numa
dada tarefa de forma rotineira e obsessiva.
As estereotipias (verbais e não verbais), ocorrem mais frequentemente durante
as tarefas menos estruturadas ou mesmo não estruturadas ou de jogo livre.
Podem ocorrer também durante tarefas estruturadas, concorrendo com a
atenção e concentração da criança.
RESISTÊNCIA À MUDANÇA
Uma das características da criança com autismo é a sua resistência à
mudança. Esta características é observada quando a criança permanece
num dado comportamento ou actividade, recusa deixar o material que está
a utilizar, ou rejeita a mudança de uma determinada área de interesse para
outra.
O desconforto desta transição pode não se relacionar com a preferência da
criança pela actividade que está a realizar, ou com o facto de não gostar da
nova actividade que lhe está a ser proposta, mas simplesmente por exigir
um processo de mudança. Por outro lado também pode ser analisada como
uma recusa a parar uma actividade auto-reforçadora ou auto-motivadora.
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7. A incapacidade da criança em prever ou aceitar a mudança é uma das
maiores causas de alteração de comportamento, com birras ou
comportamentos de auto-agressão ou auto-mutilação.
É importante que, sempre que é didacticamente necessária a útil, a
mudança ocorra de uma forma muito gradual e lenta, para que a criança
não a sinta como aversiva.
RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS
Devido a dificuldades de generalização, estas crianças tendem a não aplicar
futuramente as estratégias aprendidas numa dada situação.
A sua aprendizagem caracteriza-se por situações específicas e apresentam
grandes dificuldades em generalizar para situações novas. Isto quer dizer
que as estratégias aprendidas numa determinada situação, não irão estar
disponíveis numa situação futura semelhante, que se apresente como nova.
Estas crianças falham na abstracção de princípios gerais que guiam a
escolha das estratégias.
LINGUAGEM
As dificuldades de linguagem nos autistas são uma das suas principais
características. Afectam tanto a capacidade comunicativa, como a forma
como elas se comportam, pensam e sentem. Apesar do atraso da aquisição
da linguagem, quando esta emerge faz-se por uma ordem de aquisições de
sons e erros fonológicos sobreponíveis aos das crianças normais.
É importante salientar que as dificuldades de linguagem nos autistas
abrangem mais do que o discurso. A criança com autismo tem dificuldades
em todos os tipos de linguagem não verbal, incluindo a expressão facial,
linguagem corporal e gestual. Têm também problemas quer ao nível da
compreensão, quer ao nível da expressão e a gravidade destas
incapacidades pode variar consideravelmente. Pode mesmo acontecer que
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8. algumas crianças tenham um discurso adequado, mas possuam uma
compreensão muito limitada daquilo que ouvem; o seu discurso é mais
imitativo do que o resultado de uma atribuição de significado. Por outro
lado, crianças com pouco ou nenhum discurso, podem apresentar um grau
de compreensão bem desenvolvido.
Muitas vezes, têm um discurso imitativo e não de transmissão ou troca de
informação.
O défice de compreensão tem maiores implicações em termos de
aprendizagem, mas apresentam também anomalias em termos de uso da
linguagem, que caracterizam o seu desenvolvimento. Entre elas a ausência
completa de linguagem; a ecolália imediata (a repetição imediata das
palavras que acaba de ouvir); a ecolália retardada (a repetição das palavras
ouvidas anteriormente e aplicadas noutro contexto ou situação); o uso
repetitivo, estereotipado e idiossincrático das palavras; a imaturidade da
estrutura gramatical das palavras; confusão semântica; inversão de
pronomes; etc.
As trocas sociais com os outros são, normalmente, limitadas ou ausentes.
JOGO SIMBÓLICO
Uma das características mais notáveis nas crianças com autismo é a
ausência total do jogo simbólico. Isto quer dizer que elas não se envolvem
no jogo ou brincadeira típica do “faz de conta” do tipo “mães e pais”, ou
“médicos e doentes”. Normalmente brincam com os objectos de uma forma
muito peculiar, alinhando cubos todos de seguida por tamanhos ou por
cores, ou colocando repetidamente as bonecas dentro da casinha de
brincar, não manifestando qualquer jogo imaginativo.
A pobreza do jogo simbólico não leva apenas a que a criança perca
oportunidades em termos sociais, como prejudica toda a possibilidade de
aprendizagem daí decorrente, uma vez que a alternância de papeis e de
perspectivas permite o início da compreensão da interacção social. Por
outro lado, em termos comunicativos, este tipo de jogo também beneficia a
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9. sua aprendizagem. Como resultado a sua não existência prejudica vários
aspectos do desenvolvimento.
COGNIÇÃO SOCIAL
Abrange o desenvolvimento social, a consciência de si mesmo, a motivação,
as crenças sociais e envolve a apreciação das emoções.
Apresentam uma incapacidade de criar empatia e posteriormente saber
aquilo que o outro está a sentir, pensar ou acreditar. Esta incapacidade
mantém-se presente em todos os autistas, mesmo nos mais capazes.
Origina as dificuldades que estas crianças apresentam em se relacionar com
os outros, o que provoca um isolamento social característico.
Alguns autores referem que os défices cognitivos podem ser um resultado
aos problemas sociais.
CONSIDERAÇÕES ACERCA DA ESCOLHA DOS OBJECTIVOS
A escolha dos objectivos educativos deve ter sempre em conta critérios bem
definidos, tais como:
O seu realismo em função da criança em causa
A pertinência na escola
As prioridades das necessidades dos pais
REALISMO:
Certas aquisições ou comportamentos aparecem mais rapidamente se
determinados pré-requisitos estiverem presentes.
Escolhidos com base nas capacidades emergentes conhecidas, através quer da
avaliação realizada, quer da entrevista com pais e educadores.
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10. PERTINÊNCIA NA ESCOLA:
Há um certo número de comportamentos que são particularmente úteis à
adaptação escolar da criança com autismo, nomeadamente:
o Tolerar a presença de outras crianças;
o Trabalhar com elas;
o Cooperar e aceitar o quotidiano de uma classe, etc.
PRIORIDADES DAS FAMÍLIAS:
Existem aprendizagens e comportamentos que os pais consideram essenciais
para a vida e harmonia familiar.
Por exemplo comportamentos relacionados com aspectos alimentares, ou
comportamentos em locais públicos, como restaurantes e cafés.
É essencial um trabalho de equipa e coordenado, com base em objectivos
precisos e definidos, que devem ser considerados a três níveis:
o A longo prazo
o A médio prazo (de três meses a um ano)
o Imediatos.
Numa programação desta natureza, existem normalmente dois grandes tipos de
objectivos:
o Os que se referem a conteúdos educativos definidos com base nas
capacidades existentes e emergentes em termos de desenvolvimento;
o Os que se referem à conduta a ter face a comportamentos difíceis ou
estranhos, que interferem com a situação de aprendizagem.
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11. 12 CONSELHOS PRÁTICOS
1) Não tente trabalhar muitos aspectos ao mesmo tempo. Escolha
prioridades.
2) Mantenha-se o mais calmo possível e use uma linguagem clara e precisa.
3) Tente ser consistente quando está a trabalhar um comportamento
particular. Estabeleça rotinas simples.
4) A comunicação entre todos os envolvidos na educação da criança tem de
ser contínua – todos têm de usar as mesmas regras.
5) Sempre que lhe seja possível, tente lidar com os comportamentos
inadequados de uma forma calma e divertida.
6) Quando a intervenção e confrontação de tornar necessária, certifique-se
de que é capaz de o controlar com sucesso.
7) Seja cuidadoso para não reforçar comportamentos indesejáveis. Por
exemplo, gritar e ficar zangado pode constituir uma recompensa se o
resultado for uma maior atenção por parte do Educador.
8) Divida todas as tarefas e comportamentos a serem trabalhados, em
passos muito pequenos (tome nota de que, por vezes, os passos também
têm passos).
9) O comportamento demora a mudar. Seja paciente e persistente.
10) Nunca se sinta sozinho. Peça ajuda, partilhe.
11) Tente ter sempre em conta os aspectos positivos. Pare de olhar só para
os problemas.
12) Não se preocupe com o tempo.
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12. Bibliografia:
ARENDT, L. - Living and Working With Autism: Practical Guidelines. London:
Published by the National Autistic Society. 1992.
JORDAN, R; POWELL, S. – The Special Curricular Needs of Autistic Children:
Learning and Thinking Skills. Published by the Association of Heads and
Teachers of Adults and Children with Autism. 1990.
JORDAN, R; POWELL, S. - Autism and Learning: a Guide for Good Practice.
London: David Fulton Publishers. 1997.
JORDAN, R; POWELL, S. - Understanding and Teaching Children With
Autism. London: John Wiley & Sons. 1995.
SCHOPLER, E.; MESIBOV, G. B. - Learning and Cognition in Autism. New
York: Plenum Press. 1995.
WING, L. - Autistic Spectrum Disorders: an aid to diagnosis. London:
Published by the National Autistic Society. 1995.
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Resumido e adaptado do documento Autismo e Aprendizagem: Linhas Orientadoras para trabalhar com Crianças com
o Espectro Autista, sintetizado e coordenado por Carla Elsa Marques, no âmbito do “Projecto de Intervenção e Apoio a
Crianças com Perturbações do Espectro do Autismo e suas Famílias” do Hospital Pediátrico de Coimbra.
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