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Vol. 6 Nº 3 págs. 569-590. 2008


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                     Lugar de memória .... memórias de um lugar:
                     patrimônio imaterial de Igatu, Andaraí, BA. 1



                                            Cyntia Andrade ii
                                                       (Brasil)


Resumo: Igatu é um pequeno distrito do município de Andaraí – BA, com cerca de 400 habitantes, que
como a maioria das cidades da Chapada Diamantina, foi construída com a exploração do garimpo. A
percepção da memória como leitura do espaço torna-se importante instrumento de investigação em busca
de resgatar o patrimônio imaterial da localidade. Visando compreender os estreitos laços entre a memó-
ria e o lugar e o processo de construção da vila, a pesquisa utilizou das narrativas orais dos antigos mo-
radores da época do garimpo para uma leitura fiel da historia local, buscando analisar o uso do legado
cultural como instrumento de suporte para a atividade turística.

Palavras chave: Memória; Turismo; Historia oral; Legado cultural; Patrimônio imaterial.


Abstract: Igatu is a small district of the municipal district of Andaraí - BA, with about 400 inhabitants,
that as most of the cities of Chapada Diamantina, it was built with the exploration of the claim. The
perception of the memory as reading of the space becomes important investigation instrument in search
of rescuing the immaterial patrimony of the place. Seeking to understand the narrow liaisons between the
memory and the place and the process of construction of the villa, the research used of the old inhabi-
tants' of the time of the claim narratives orals for a reading faithful of the local history, looking for to
analyze the use of the cultural legacy as support instrument for the tourist activity.

Keywords: Memory; Tourism; Oral history; Cultural legacy; Immaterial heritage.




ii
 Cyntia Andrade. Universidad de Las Palmas de Gran Canária, ES - Doctorado em Turismo Integral, Interculturali-
dad y Desarrollo Sostenible. E-mail: cyntiand@gmail.com / cyntiand@yahoo.com.br




© PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. ISSN 1695-7121
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Introdução                                                    gar. Gastal (2002: 77) afirma que “conforme
                                                              a cidade acumula memórias, em camadas
   O espaço, como resultado das relações                      que, ao somarem-se vão constituindo um
sociais pré-existentes vinculadas às forças                   perfil único, surge o lugar de memória [...]
econômicas e políticas ora dominantes,                        onde a comunidade vê partes significativas
deixa marcas impressas na paisagem. Um                        do seu passado com imensurável valor
testemunho que sedimenta recordações,                         afetivo”.
registrando informações de tempos passa-                          Como elo de interpretação do passado, a
dos que contam a história do lugar.                           memória é a voz e a imagem do acontecido.
   A apropriação simbólica do espaço acu-                     Com base em Le Goff (1996: 423), o conceito
mulada de sentimentos e pertinência, o                        de memória toma corpo quando ele coloca
particulariza e o transforma em lugar. Nes-                   que “a memória como propriedade de con-
te contexto, o conceito de lugar se apóia na                  servar certas informações remete-nos em
reflexão de Tuan (1983: 6) quando diz que:                    primeiro lugar a um conjunto de informaç-
“o espaço é mais abstrato do que o lugar. O                   ões psíquicas, graças as quais o homem
que começa como espaço indiferenciado                         pode atualizar impressões ou informações
transforma-se em lugar à medida que con-                      passadas, ou que ele representa como pas-
hecemos melhor e o dotamos de valor [...],                    sadas”. As imagens, configurações e repre-
além disso, se pensarmos no espaço como                       sentações do tempo vivido ou imaginado
algo que permite movimento, então lugar é                     pertencem ao campo de memória, poucas
pausa: cada pausa no movimento torna                          vezes exercitados na reconstrução da histó-
possível que a localização se transforme em                   ria do lugar. Freire (1997: 45) elucida
lugar”.                                                       quando diz que: “A memória, compreende-
   O lugar é o redimensionamento do espa-                     mos melhor, elabora-se a partir da ausên-
ço dotado de sensações, afeição e referên-                    cia, e com pé fincado no presente, volta-se
cias da experiência vivida ou, como diria                     para frente. Nesse terreno, as mais aparen-
Carlos (1996: 16) “o lugar guarda em si, não                  temente insignificantes lembranças são
fora dele, o seu significado e as dimensões                   artigos de valor, sendo necessário guardá-
do movimento da história em constituição                      las com cuidado, sabendo do risco que se
enquanto movimento da vida, possível de                       corre com a perda desse que é o nosso mais
ser apreendido pela memória, através dos                      valioso e invisível patrimonio”.
sentidos e do corpo”.                                            Da memória dos contos e dos cantos, do
   As memórias são importantes registros                      real e do imaginário, do individual e do
vividos que partem das lembranças e eter-                     coletivo, renasce o passado. Como nas pa-
nizam lugares como referências e cenários                     lavras de Nora (1993: 9) que diz que “a
para uma constante visita ao passado, tra-                    memória se enraíza no concreto, no espaço,
zendo em si, os mais diversos sentimentos                     no gesto, na imagem, no objeto”. Daí sur-
documentados e aflorados em narrativas,                       gem os lugares de memória que são verda-
sonhos e percepções. Assim, o lugar de                        deiros patrimônios culturais, projetados
memória, segundo Nora (1993: 21) “são                         simbolicamente e podem estar atrelados a
lugares, com efeito, nos três sentidos da                     um passado vivo que ainda marca presença
palavra, material, simbólico, funcional [...].                e reforça os traços identitários do lugar. É
Mesmo um lugar de aparência puramente                         na pertinência das palavras de Gastal
material, como um depósito de arquivos, só                    (2002: 77) que repousa a lucidez, onde: “as
é lugar de memória se sua imaginação o                        diferentes memórias estão presentes no
investe de uma aura simbólica”. São luga-                     tecido urbano, transformando espaços em
res que estendem uma história regada de                       lugares únicos e com forte apelo afetivo
cumplicidade, significações, afetividade,                     para quem neles vive ou para quem os visi-
pertencimento, ou simplesmente de alma.                       ta. Lugares que não apenas tem memória,
   A memória está estratificada no lugar.                     mas que para grupos significativos da so-
As histórias contadas, tempo a tempo, estão                   ciedade, transformam-se em verdadeiros
impregnadas no meio, sedimentadas na                          lugares de memoria” (grifos do autor).
saudade e a procura de registros e sinais da                     Os lugares de memória e as memórias
ausência que descrevem a memória do lu-                       do lugar se conjugam em busca de


PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008                                         ISSN 1695-7121
Cyntia Andrade                                                                                         571




instrumentos de reforço da identidade e da                    importante destino turístico e a necessida-
singularidade local. A população se consti-                   de de manter a identidade garimpeira, o
tui a mais importante ferramenta já que é                     respeito ao patrimônio ambiental e a
depositaria de informações, registros êmi-                    memória local, torna-se vital para a sobre-
cos e sentimentos afetivos, resultado de                      vivência salutar entre o ambiente e a popu-
uma relação com base na topofilia.                            lação envolvida.
   Distrito do município de Andaraí, na                          Em busca de construir um mapa
Chapada Diamantina -BA (Figura 1), Igatu                      representativo da memória local, com os
uma pequena vila de clima tropical semi-                      lugares de memória e as memórias do lugar
úmido e temperatura media de 22º C, é o                       por meio da percepção da memória,
que se pode chamar de lugar agradável,                        narrativa oral, imagem e representação do
cercada não apenas por suas características                   espaço vivido, foram adotado como
geográficas, terrenos irregulares, mas por                    instrumento     metodológico    entrevistas,
paisagens que despertam o imaginário                          relatos e depoimentos dos moradores locais
popular. Memória e paisagem se comuni-                        nativos2,    em    sua    grande    maioria
cam por meio do olhar, resgatados por lem-                    garimpeiros, resultando em uma tentativa
branças de tempos vividos e construídos na                    de recuperação da memória oral, forte
paisagem local. Em Igatu, a memória dos                       instrumento de afirmação da identidade
tempos de construção e soerguimento da                        local. E é por meio da percepção da memó-
vila em torno da extração de diamantes                        ria que o passado se torna presente na ora-
está confinada aos poucos habitantes que                      lidade.
ainda resistem as intempéries e trapaças                         A escolha da amostra não-probabilística
do tempo que teima em passar, correndo o                      por julgamento (Dencker, 1998) se deu por
risco de muito do que aconteceu fosse lega-                   meio de informações locais, em busca dos
do ao esquecimento e a uma história (re)                      antigos moradores, garimpeiros natos, que
inventada. A riqueza do tempo vivido que                      tivessem história para contar sobre a for-
retrata cada pedra sobreposta na construç-                    mação e construção da vila pela atividade
ão da vila, a vida dos ex-garimpeiros sofre o                 do garimpo. Trinta e três foi a soma dos
risco de ser passada a limpo apenas em um                     maiores de 60 anos, considerados melhores

         Figura 1: Mapa de localização de             Igatu. Fonte: Disponível em http://
         www.cidadeshistoricas.art.br Acesso em: 07.jun. 2005.




roteiro de turismo. A vila surge como um                      informantes ou os conhecedores do lugar,

PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008                                  ISSN 1695-7121
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onde em meio as limitações impostas pelo                         A história do lugar contada no lugar da
tempo e a disponibilidade de cada um, de-                     história, tendo como narrador os antigos
zenove     se    fizeram    presentes    na                   moradores, desembaraça nós atados pelo
(re)construção da memória que mesmo pas-                      tempo, aflora nas lembranças as marcas da
sando pela imagem individual é fruto de                       memória em busca de interpretações e até
uma imagem, uma memória coletiva. As                          justificativas das mudanças contempo-
entrevistas semi-estruturadas (Dencker,                       râneas. Thompson (1998: 21) afirma que
1998) foram gravadas em fitas magnéticas                      “por meio da história local, uma aldeia ou
e transcritas in verbatim para não com-                       cidade busca sentido para sua própria na-
prometer a autenticidade das falas. As fo-                    tureza em mudança, e os novos moradores
tografias dispostas representam uma forma                     vindos de fora podem adquirir uma per-
de interpretação e representação imagética                    cepção das raízes pelo conhecimento pesso-
do lugar. Considera-se a amostra satisfató-                   al da história”. Conhecer sua própria histó-
ria já que atendeu aos principais objetivos                   ria, seu caminho percorrido é um exercício
da pesquisa, ressaltando que não é interes-                   de auto-reconhecimento, de integração
se analisar a veracidade dos fatos, mas                       temporal, aonde as imagens do passado
relatar as histórias contadas entendendo                      projetadas são transportadas através do
como um legado de uma história vivida,                        sentimento de pertença, afetividade e de
sentida e referenciada.                                       identidade local. O autor ainda lembra que:
   Das histórias contadas e rememoradas                       “A história oral é uma história construída
renasce a vila de Xique-Xique das décadas                     em torno de pessoas. Ela lança a vida para
de 1940 e 1950. A cartografia da memória                      dentro da própria história e isso alarga seu
resulta em um passeio pelas lembranças da                     campo de ação [...].Traz a história para
cidade habitada em pleno funcionamento                        dentro da comunidade e extrai a história de
remarcada pelo tempo, uma leitura dos                         dentro da comunidade [...] ela pode dar um
antigos moradores sobre o lugar do passa-                     sentimento de pertencer a determinado
do. Os pontos relevantes foram representa-                    lugar e a determinada época” (Thompson,
dos e plotados em mapas esquemáticos,                         1998: 44).
com o auxílio do programa de Sistemas de                         A história oral como metodologia implica
Informações Geográficas Arc View 3.2, bus-                    numa dimensão, além de técnica, teórica
cando uma (re) leitura da antiga Xique-                       (Ferreira & Amado, 2001). A leitura de
Xique de Igatu.                                               depoimentos colhidos com as entrevistas, só
                                                              passará de ser mero desdobramento calçado
Garimpando a história: “os narradores” de                     na memória de atores sociais anônimos,
Igatu                                                         quando interpretado e embasado teorica-
                                                              mente. Lozano (2001: 17) enfatiza que “fa-
   O lugar está cheio de afetividades onde                    zer história oral significa, portanto, produ-
sua própria paisagem se encarrega de                          zir conhecimentos históricos, científicos, e
narrar sua história. As pedras que calçam                     não simplesmente fazer um relato ordenado
as ruas são alicerces dos tempos áureos que                   da vida e da experiência ‘dos outros’”. Vale
por ali passaram e que, passo a passo, tes-                   ressaltar, que se pretende com esse estudo
temunham o acontecer diário da recons-                        buscar junto à população local a história do
trução da vila. As janelas são molduras do                    lugar por meio dos seus registros da memó-
olhar e também instrumentos que se de-                        ria.
bruçam na história vendo a vida passar.                          A utilização de fontes orais numa tenta-
Um lugar que hoje nem de longe lembra a                       tiva de releitura do espaço encontra em
dinâmica Xique-Xique do início do século                      antigos moradores o verdadeiro teste-
passado, guarda em si as lembranças e                         munho. Se o espaço se apresenta como um
memórias de quem tem muito para contar.                       testemunho da história acontecida (Santos,
Lembradas por Bosi (1994: 84), que com                        1990) os antigos moradores testemunham
propriedade questiona: “Por que decaiu a                      com a memória o presente construído. Os
arte de contar histórias? Talvez porque                       materiais colhidos agregam valores e sen-
tenha decaído a arte de trocar experiências.                  timentos sob diversas percepções que tecem
A experiência que passa de boca em boca e                     a singularidade do lugar. Os vários olhares
que o mundo da técnica desorienta”.                           sobre um mesmo espaço gera a diversidade


PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008                                          ISSN 1695-7121
Cyntia Andrade                                                                                        573




necessária para seu enriquecimento cultu-                     como ele próprio intitula, Igatu é o que se
ral.Voldman (2001: 39) adverte de forma                       costuma chamar de lugar pacato. As 16
precisa, “[...] nem todos viveram sua ado-                    ruas, o comércio composto de 03 bares, 01
lescência e sua maturidade nas mesmas                         pizzaria, 02 restaurantes, 01 lojinha, 04
condições sociais e políticas, e os velhos                    pousadas e apenas 70 pessoas que trabal-
tempos, embora tenham igualmente passa-                       ham com o garimpo, constitui o retrato
do, não são os mesmos para todo mundo. Do                     atual de uma vila que nas trilhas do garim-
ponto de vista do que há de ser singular em                   po vê sua história ser passada a limpo como
cada indivíduo, nenhuma testemunha se                         um roteiro turístico.
assemelha a outra [...]”.                                         Atraídos pela prosperidade condicionada
   Geertz (2003: 107) ainda alerta que “En-                   à extração de pedras preciosas, iniciada no
tender a forma e a força da vida interior de                  final do século XIX, mineiros vindos de
nativos – para usar mais uma vez essa pa-                     decadentes tentativas regionais, desbrava-
lavra perigosa – parece-me mais compreen-                     ram o sertão semi-árido da Bahia central
der o sentido de um provérbio, captar uma                     que, acolhidos pela necessidade de vingar
alusão, entender uma piada – ou, [...] inter-                 em terras férteis passaram a ser os princi-
pretar um poema do que conseguir uma                          pais responsáveis pelo nascimento de po-
comunhão de espírito”.                                        voados que hoje constituem cidades como
   A história ainda é viva na memória de                      Mucugê, Andaraí, Palmeiras e Lençóis na
sua gente que conta com graça e saudade e                     Chapada Diamantina, Bahia.
enche os olhos de lembranças arrastadas                           Mucugê, antiga Santa Isabel do Para-
pelo tempo, travando uma luta com a idade                     guaçu Diamantino, surge como a cidade
que confunde datas, mas espelha sabedoria                     mais antiga da chapada, sendo o primeiro
colhida através da experiência vivida. Que                    lugar de exploração de ouro e diamantes.
nas palavras de Nora (1993: 9) diz que: “a                    Em 1844, as margens do rio Mucugê, foram
memória é a vida, sempre carregada por                        encontradas pedras de diamantes no leito
grupos vivos e, nesse sentido, ela está em                    do rio, que desencadeou o processo de
permanente evolução, aberta ‘a dialética da                   exploração e resultou na formação de
lembrança e do esquecimento, inconsciente                     cidades que compõem a rota turística do
de suas deformações sucessivas, vulnerável                    Circuito do Diamante5 . Alguns moradores
a todos os usos e manipulações, susceptível                   antigos afirmam que os portugueses foram
de longas latências e de repentinas revitali-                 os primeiros habitantes, atraídos pelas
zações”.                                                      noticias que corria em cidades como Lavras
   A narrativas rememoradas pelos mora-                       e Grão Mogol, zona de mineração de Minas
dores antigos, traçam o caminho da cons-                      Gerais. A.L.S., de 65 anos, comerciante,
trução do lugar, onde os momentos marcan-                     conta que “os mineiros vieram para Mucugê
tes desenham os mapas calcados na memó-                       e de Mucugê vinheram para cá (...) Mucugê
ria afetiva de cada um. Joutard (2001: 54)                    já tinha extração dos diamantes e descobri-
reforça que “[...] o testemunho oral é o do-                  ram Igatu, eles que descobriram aqui. Co-
cumento mais adaptado por sua ambivalên-                      meçaram e viviam aqui (...) muito diamante
cia. Os defeitos que lhe atribuem, as dis-                    naquela época”. Como enfatiza Misi e Silva
torções ou os esquecimentos tornam-se uma                     (1994: 39): “A principal riqueza mineral da
força e uma matéria histórica”. As lem-                       Chapada Diamantina oriental, o diamante,
branças recolhidas e alinhavadas entre a                      foi responsável pelo crescimento das
memória e o lugar, contam as histórias                        cidades principais e de diversos povoados
contadas, ouvidas e vividas que dão suporte                   da região, a partir de meados do século
ao sentimento de pertença que pereniza o                      passado. Desde 1844, quando se iniciaram
lugar.                                                        as primeiras lavras intensivas no rio Mu-
                                                              cugezinho, em local hoje pertencente ao
Pedra sobre pedra: a formação da vila                         município de Mucugê, a região das lavras
   Seus pouco mais de 300 habitantes, ou                      diamantinas enfrentou períodos de apogeu
melhor, 3733, nas contas de um cidadão                        e declínio, graças ao diamante”.
símbolo da vila, Amarildo dos Santos, que                         Pouco se tem registrado sobre a histo-
anualmente perfaz “Um levantamento                            riografia do lugar. Embora a memória pos-
geral do que temos em Igatu, ano 2004”4 ,                     sa trair a verdade, o tempo contado firma-


PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008                                 ISSN 1695-7121
574                                                                      Lugar de Memória .... Memórias de um lugar...




se sobre a fase quando o diamante ainda                       histórias contadas pelo seu pai: “Primeiro
aflorava na terra seguida pela decadência                     veio à escravidão, veio os escravos que
do lugar, o que marca a época do final da                     deixaram a construção da igreja, tem
década de 1930 até os anos conturbados e                      muitas construções, tem tanques, caminhos
que levara a vila ao completo despovoamen-                    pelas serras, tudo feito pelos escravos. Co-
to por volta da década de 1950. As fases que                  mo meu pai que ainda pegou a época dos
antecedera essa época foram pinceladas                        escravos (...) ele sempre falava pra gente,
mediante a sinalização dos informantes,                       que ele era garimpeiro, ele gostava do ga-
que por hora divagavam por tempos não                         rimpo, eu fui criado na serra e ele mostrava
vividos, mas responsáveis pela sua história.                  as coisas: - Isso aqui foi os escravos quem
   Por volta de 1844 a 18466 o garimpo                        fez. As primeiras trilhas de garimpo foi
teve início em Xique-Xique (Fig. 2) desde a                   criada pelos escravos”.
sua descoberta e construção, passando pela                        Na concepção de Bolle (1984: 12): “Nessa
fase da escravidão e dos coronéis, que                        comunicação de pai para filho temos
traçou todo um território marcado pelas                       literalmente a transmissão de um
explorações,    aberturas   de    garimpos,                   patrimônio, um elo de continuidade de
iniciando um processo de construção do                        geração para geração” (grifo do autor).
lugar.                                                            O curso da história política com a Pro-
    Antes da abolição da escravatura, com a                   clamação da Republica (1889) acompan-
sanção da Lei Áurea em 13 de maio de                          hada da então anunciada libertação dos
1888, os escravos foram responsáveis pelas                    escravos desenhou uma sociedade que se
                                                              destacava com o poder político e econômico,
                                                              mudando as estruturas sociais do lugar.
                                                              Surge o que ficou conhecido como a “epop-
                                                              éia dos coronéis”, que funcionava como o
                                                              poder central da Chapada, independente
                                                              das forças externas.
                                                                  Região marcada por grandes diferenças
                                                              sociais e concentrações de renda, a Chapa-
                                                              da Diamantina foi, da segunda metade do
                                                              século XIX até década de 1930, um barril
                                                              de pólvora comandado por poucos e muito
                                                              poderosos coronéis. As tradicionais famílias
                                                              proprietárias de terra davam abrigo e em-
                                                              prego para os colonos e exploradores a pro-
                                                              cura de riquezas, e em troca conquistavam
                                                              a gratidão e fidelidade dessas pessoas.
                                                              Formaram-se assim verdadeiros exércitos
                                                              de jagunços dispostos a defender com a
Figura 2. Entrada da vila. Fonte: foto da autora,             própria vida os interesses dos patrões
2004.                                                         (D’Andrea, 2004)7 .
                                                                  Era a lei local, traçada pelo poder e obe-
primeiras marcas da história política e                       decida pela submissão. Uma estrutura so-
cultural da vila. Sabe-se que os escravos                     cial e econômica que marcou a história polí-
                                                              tica do nordeste como um todo e que deixou
tiveram participação ativa na mão-de-obra
pesada resultando nas construções de                          sinais ainda hoje sustentados pelos neoco-
símbolos marcantes do lugar. A igreja de                      ronéis da contemporaneidade. Segundo a
                                                              concepção de Leal (1993: 20), “o
São Sebastião construída no século XIX, por
volta de 1854, traz consigo a força de uma                    ‘coronelismo’ é, sobretudo um compromisso,
população que ergueu a fé montada na                          uma troca de proveitos entre o poder
                                                              público, progressivamente fortalecido, e a
ideologia do poder. As trilhas dos primeiros
garimpos, tantos ainda pouco conhecidos,                      decadente influência social dos chefes
                                                              locais, notadamente dos senhores de
tiveram na força negra, mais uma vez a
                                                              terras”.
raiz da história baiana. Como lembra
M.S.M., 68 anos, garimpeiro e lavrador, nas                       O coronel mais famoso da Chapada foi


PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008                                          ISSN 1695-7121
Cyntia Andrade                                                                                           575




Horácio de Matos que liga a sua história a                     rreu e acabou. Não teve mais negócio de
cidade de Mucugê. Igatu tinha o seu poder                      coronel. Acabou coronel!
nas mãos do coronel Aureliano de Britto                           A vila resiste. Xique-Xique de Andaraí
Gondin (Fig. 3), que durante bons anos                         ou simplesmente, Xique-Xique como ainda
ditou as regras na vila. Garimpeiro, de 68
anos, M.S.M. busca na memória as histó-
rias que cresceu escutando:
    Na época dos coronéis, o primeiro coro-
nel daqui foi seu Juca de Carvalho, que não
era daqui. Era descendente do exterior, ta
mais para português [...]. Seu Aureliano foi
depois e era de Riacho de Santana, perto
da lapa de Bom Jesus. Ele veio embora
para aqui, chegou aqui e foi em 1914, mas
não tenho certeza. Aí Seu Aureliano aqui e
Seu Juca gostou dos modos dele e botou ele
como jagunço dele, né? Ele era o capanga
de Seu Juca, de confiança. Então Seu Juca
morreu, na Passagem8 , ai passou a
patente para ele. [...] Quando Seu Juca
morreu passou para Aureliano de Brito
Gondim.
    Complementado a história, M. C. O., 83
anos, aposentada, vasculhando os tempos                       Figura 3: Túmulo do Cel. Aureliano de Britto
de infância relembra:                                         Gondin. Fonte: http://www2.uol.com.br/mochila-
    Conheci Seu Aureliano, que morava on-                     brasil/imagens/ igatu28.jpg.    Acesso    em
de é a pousada. Dizem que ele já morou no                     15.ago.2004.
sobrado, mas eu era menina. Eu ia comprar
folhas ou qualquer coisa na casa dele e ele                    hoje é chamado por muitos moradores do
tava sentado. O povo obedecia, mandava no                      lugar, principalmente o mais antigo, ainda
povo e qualquer coisa tomava as providên-                      mantinha na atividade do garimpo seu
cias dele. Era o dono da cidade, quem co-                      principal personagem geoeconômico. Inse-
mandava era ele [...].                                         rida geograficamente, no sertão baiano,
    A época dos coronéis durou até meados                      caracterizado pela vegetação da caatinga, a
da década de 20, quando as tropas da Colu-                     presença de cactáceas é lugar comum no
na Prestes chegam a Chapada e as forças                        cenário paisagístico do lugar, representado
sertanejas fazem o exercito recuar. M.S.M,                     pelo xique-xique (pilosocereus gouneillei).
68 anos, no auge da sua lucidez reporta a                      Conta-se ainda, que os primeiros explora-
história como se tivesse participado:                          dores, podem ter vindo da região do alto
    Aí veio a Coluna Prestes acabar com os                     São Francisco, da cidade de Xique-Xique no
chefes e com esse espanto que teve aí Seu                      norte da Bahia, tendo apelidado o lugar.
Aureliano morreu. A Coluna que veio des-                       Tal semelhança causava transtornos tanto
armar os coronel. Ele não foi armado, eles                     no envio de mercadorias que vinham de
vieram para desarmar ele aqui, mas ele                         outras regiões e até mesmo de outros pai-
tinha um amigo muito forte em Salvador                         ses, acabava indo para Xique-Xique do São
que era juiz de direito, Arlindo Leoni, que                    Francisco, o que culminou em 1943 com a
livrou ele. Foi quando teve esse desarma-                      mudança do nome da vila para Igatu, que
mento pela Coluna Prestes para desarmar                        em tupi guarani significa “água boa”, o que
os coronéis ele não foi atacado [...] vieram                   fica claro de se entender já que a água bro-
para a atacar, mas o amigo Leoni, morava                       ta no meio da serra. Monteiro (1999: 13)
em Salvador, não era mais juiz, era Sena-                      põe mais uma forma de escrita e possível
dor e aí livrou ele. Aí ele ficou choqueado                    origem do nome da vila, embasado na
com aquilo e ninguém sabe porque sim por-                      relação com os franceses, numa visão mais
que não. [...] O primeiro ataque foi em 1926                   elitista e se esquecendo da geografia do
e quando foi em 1932, em morreu. Ele mo-                       lugar, no qual ele retruca:


PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008                                    ISSN 1695-7121
576                                                                      Lugar de Memória .... Memórias de um lugar...




   Porque Chique-Chique com CH? Este foi                      da identidade, sua ou de seu grupo; ela é
o primeiro nome dado pelos seus desbrava-                     um núcleo de sua personalidade”.
dores, derivado das belezas naturais e fruto                      O sentimento de pertença é aguçado sob
de influencia e domínio da cultura francesa                   forma da apropriação territorial, aonde
na época. Com CH, não só por essa cir-                        resistir ao tempo e a mudança do nome do
cunstância cultural, também para não se                       lugar se revela em uma forma de
confundir com o agressivo ‘xique-xique’,                      resistência a um elo afetivo, uma
cactácea não tão abundante na região, para                    declaração de identidade topofílica, da real
se tornar topônimo. Deixou de ser Chique-                     transformação do espaço em lugar. È
Chique por duas razões: a) não ser permiti-                   quando Hall (2004: 12) diz que “a
da por lei a existência de duas ou mais loca-                 identidade então costura [...] o sujeito à
lidades com o mesmo nome no Estado, pre-                      estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos
valecendo a mais antiga; b) respeitar o                       quanto os mundos culturais que eles habi-
Acordo ortográfico de 1943.                                   tam, tornando ambos reciprocamente mais
   A verdade é que a maioria dos                              unificados e predizíveis”.
moradores antigos chama a vila de Xique-                          A influência dos diamantes trouxe
Xique, justificado na presença viva da                        várias famílias vindas da região e os
vegetação (Fig. 4) que caracteriza o sertão                   primeiros garimpeiros que chegaram foram
brasileiro. O que confirma as palavras de                     povoando, iniciando o processo de
A.L.S. de 65 anos, nascido e criado na vila:                  exploração do lugar. A construção de casas
“Toda vida nós chamava Xique-Xique, [...]                     segue a topografia local, onde se aproveita-
porque quando eles descobriram aqui, tinha                    va a arquitetura natural e tocas iam se
muito esse xique-xique na serra [...]”.                       espalhando, dando um ar de primitiva sin-
   A identidade fala mais alto, como quem                     gularidade. As pedras, tão abundantes e
ainda resiste às mudanças traçadas pelo                       excedentes da garimpagem era a matéria
tempo. Ser de Xique-Xique é ter suas lem-                     prima que começou a erguer a cidade de
branças preservadas, é ser fiel a sua memó-                   pedras.
ria, ao seu chão. É pertencer, ser daqui e                        Das características urbanas, as cons-
não de outro lugar, é ser raiz junto com o                    truções de rochas, ou pedras, saltam os
lugar. Bolle (1984: 14) reduz que a “[...]                    olhos. Material generoso na região, as
                                                              rochas     de   um      modo     geral    são
                                                              sedimentárias, ou seja, formada por
                                                              sedimentos     (areias,    cascalhos9,    etc)
                                                              acumuladas ao longo de milhares de anos e
                                                              que foram sedimentadas, sobrepostas em
                                                              camadas, por agentes exógenos como vento
                                                              e a água resultando na característica
                                                              geológica do lugar.
                                                                  Como excedente no processo de
                                                              garimpagem,      as     pedras,     como     é
                                                              vulgarmente     conhecida,     passaram     a
                                                              representar meio de moradia surgindo em
                                                              grutas naturais encravadas nos lajedos as
                                                              conhecidas locas ou tocas (Fig. 5), habitação
                                                              peculiar do lugar que caracterizava a vida
                                                              do garimpeiro. Essa tipologia habitacional
                                                              se espalhou pela serra abrigando famílias e
                                                              deixando sua marca na paisagem local. A
                                                              população vivia do garimpo e com ele forta-
                                                              lecia a sociedade. Era gente chegando de
Figura 4: Xique-Xique (Pilosocereus gouneillei)
na galeria Arte & Memória. Fonte: foto da                     todos os lugares e a teia das relações so-
autora, 2004.                                                 cioeconômicas crescia junto com as explo-
                                                              rações do diamante.
                                                                  Embaixo de todas essas pedras todas
arma eficiente de resistência é a memória
                                                              morava gente. Tinha uma rua daqui até
afetiva. Dela é que depende a preservação


PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008                                          ISSN 1695-7121
Cyntia Andrade                                                                                   577




depois do campo de futebol, tudo cheio de              rradas...e aí eles trazia tecidos, trazia lou-
gente. Tinha casas atravessando o rio, até             ças, trazia material domestico, né? E ven-
em cima do João Batista. Subindo a cacho-              dia essas coisas aqui e daqui pra lá levava
eira, as ruínas que se vê, tudo era cheio de           diamante. Portugal se enriqueceu com nos-
gente. Até perto dos córregos dos pombos.              so benefício. O diamante daqui foi todo para
                                                                            o estrangeiro, para Por-
                                                                            tugal, Judéia, para Eu-
                                                                            ropa [...] Cada pessoa
                                                                            tinha um estrangeiro
                                                                            que vinha da Europa e
                                                                            trazia as transações
                                                                            daqui para lá.
                                                                               As     pessoas    não
                                                                            precisavam sair da vila.
                                                                            Conta-se que muita
                                                                            gente morreu sem con-
                                                                            hecer Andaraí, o que
                                                                            hoje seria praticamente
                                                                            inviável, dada à de-
                                                                            pendência com o lugar.
                                                                            O garimpo desenhou a
                                                                            configuração territorial
Figura 5: Toca de garimpeiro. Fonte: foto da autora, 2004                   do espaço. Não havia
                                                                            uma única terra que
Conheci tudo cheio de gente. (A. L. S., 65                                  não fosse revirada, um
anos, morador antigo).                                 rio que não fosse enxugado pelas bateias e
   Os dados sobre a população que Igatu                peneiras, cascalhos que não retratassem a
chegou      a     comportar,       ainda      são      imagem do lugar.
contraditórios. Uns falam em 9.000 outros                  Neste sentido, Carlos (2002: 28) coloca
contam 5.000 mil habitantes na vila e mui-             que: “O lugar é produto das relações
tos outros espalhados pela serra. Não se               humanas, entre homens e natureza, tecido
tem uma precisão e os números oscilam de               por relações sociais que se realizam no
acordo com a imaginação e os esforços nas              plano do vivido, o que garante a construção
lembranças de quem um dia já fez parte                 de uma rede de significados e sentidos que
desse dado demográfico. O que se sabe e,               são tecidos pela história e cultura
talvez, o que mais importa, é que a vila era           civilizadora produzindo a identidade. Aí o
intensamente ocupada e que sua história se             homem se reconhece porque aí vive. O
construiu sob o sonho e ambição de muitos,             sujeito pertence ao lugar como este a ele,
que hoje apenas fazem parte da memória                 pois a produção do lugar se liga
que povoou a vila até meados do século XX.             indissociavelmente à produção da vida”.
   O comércio era muito forte. O diamante                  O diamante brotava na flor da terra.
atraia a fortuna e a sociedade se abastecia            Cada dia de trabalho era brindado com as
no lugar. Farmácia, cartório, bar, pensão,             pedras que reluziam acalentando o sonho
casa de sinuca, dentista, lojas de tecidos             de riqueza da população. “Cada boca aber-
vindos da Europa, entre outros. As transaç-            ta, era uma quantidade de diamante encon-
ões internacionais, principalmente com                 trada. Uma porcelana de diamantes gran-
Portugal, eram constantes, já que muita                des, pois os pequenos eram separados (...)
mercadoria era trocada por diamante. O                 com a luz do sol parecia um monte de estre-
que lembra M.S.M., 68 anos, morador anti-              las”, dizia Dona A.C.S., de 70 anos, profes-
go da vila, que pela lembrança de seu pai              sora aposentada, envolvida na saudade que
discorre sobre a história com um sentimen-             a lembrança lhe trazia. Como um mineral
to de pertença, de orgulho de conhecer os              rígido ocupando na escala de Moh’s10 o grau
passos que o trouxera até aqui. Ele dizia:             10, o diamante representa para os
   O comercio era rico. Nesse tempo, dia-              garimpeiros a esperança de acontecer um
mante se achava era aqui, pelos rios, enxu-            “bamburro11” e mudar completamente a sua


PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008                            ISSN 1695-7121
578                                                                         Lugar de Memória .... Memórias de um lugar...




vida e, indiretamente a de toda a                                Nessa época tava chegando toda semana
comunidade. Nessa época, quem não tra-                           copo e mais copo de diamantes.
balhava diretamente com o garimpo, preci-                            Em 1949, as eleições para governador da
sava dele para sustentar seu comércio. Era                       Bahia estavam sendo disputadas por dois
de onde vinha o dinheiro, muito dinheiro                         candidatos: de um lado Regis Pacheco, que
                                                                             substituiu Lauro de Freitas
                                                                             falecido no curso da campanha,
                                                                             e do outro Juracy Magalhães.
                                                                             Em uma jogada inédita, Juracy
                                                                             fora fazer comício na vila de
                                                                             Igatu, o que lhe rendera muitos
                                                                             simpatizantes e garantiram-lhe
                                                                             votos. Enquanto expunha suas
                                                                             idéias, ocorria paralelamente,
                                                                             um ato solidário que agradou a
                                                                             população local. A.L.S., ainda
                                                                             completa que: “Juracy veio e fez
                                                                             um comício aqui em Igatu e
                                                                             nenhum governo nunca tinha
                                                                             vindo aqui com comitiva de 20
Figura 6: O mercado municipal na década de                    1950. Fonte: jipes [...] ai fez um comício na
Arquivo da Família José Gomes da Silva.                                      cidade, no comercio e ai todo
                                                                             mundo falou: - vou votar nesse
                                                                             home! Abriu a casa de negócio
que circulou durante décadas no centro da
                                                                 aqui para dar ao povo o que queria [...] tudo
vila (Fig.6).
                                                                 para o pessoal pegar o que por conta dele
    Como principal atividade econômica o
                                                                 na hora que terminasse o comício ele
garimpo foi se profissionalizando. A organi-
                                                                 pagava...”
zação sócio-espacial que, ora passa a surgir,
                                                                     Igatu viveu momentos de glória, con-
é resultado do processo de garimpagem,
                                                                 heceu a riqueza e viu reluzir nos diamantes
que constitui uma exploração individual e
                                                                 que afloravam da terra, a sua própria de-
nômade, fazendo passar a existir as “lavras
                                                                 cadência. Conhecedor da história do lugar,
diamantinas” que baseado nos estudos de
                                                                 M.S.M de 68 anos, relata com detalhes esse
Machado Neto (1974) refere-se a organizaç-
                                                                 momento político vivido pela vila:
ões criadas em jazidas altamente produti-
                                                                     Igatu começou a decair de política. Foi a
vas criando uma espécie de empresa com
                                                                 política que decaiu, espantou, expulsou a
mão-de-obra, no inicio escrava e homens
                                                                 população. A política quente aqui foi a de
livres, gerando uma visível e necessária
                                                                 Juracy Magalhães, que começou em 49, que
divisão do trabalho.
                                                                 foi com a eleição de 50. Nessa época saiu
    Tal divisão foi reflexo do que mais tarde,
                                                                 daqui 200 famílias, aonde tinha família de
no final da década de 40 e início da década
                                                                 ter 10 pessoas, 12 e saíram porque perde-
de 50, culminou no que seria o desfaleci-
                                                                 ram o candidato (...). A política foi muito
mento da vila. Agregado a desaceleração da
                                                                 forte e as pessoas tinham ligação com o
exploração de garimpos já saturados e me-
                                                                 garimpo, justamente por isso saíram, por-
nos produtivos, desgastados pelo trabalho
                                                                 que o partido que ganhou, era do lado do
manual e carente de equipamentos tecnoló-
                                                                 dono da serra...
gicos, a vila mergulhou na decadência com
                                                                        A política deixou marcas ainda hoje
um ato político. O garimpo cedeu a política
                                                                 visíveis na vila. As casas ruíram junto com
o que seria o capitulo mais decisivo da
                                                                 a tristeza de quem teve de sair, abandonar
história de Igatu. Como relembra A.L.S, 65
                                                                 seu comércio e principalmente o sonho de
anos, enfatizando a real face do despovoa-
                                                                 prosperidade. Com o fim das eleições Regis
mento da vila:
                                                                 Pacheco consagrando-se vencedor, fez os
    A decadência não foi por causa do ga-
                                                                 opositores baterem em retirada, fechando
rimpo e sim da eleição. O garimpo era bom
                                                                 as portas e os sonhos. Quem tinha mais
nessa época, diamante muito...Uma di-
                                                                 condições partiu para outros estados, mas a
amantada doida em 50, na gruta do Brejo.


PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008                                             ISSN 1695-7121
Cyntia Andrade                                                                            579




imensa maioria aportara nas cidades cir-       ficaram desocupadas viraram territórios de
cunvizinhas em busca de nova vida. Os que      escavação, que viam assoalhos sendo des-
permaneceram faziam parte do lado vence-       truídos por picaretas que ainda acalenta-
dor, como ainda conta M.S.M, morador an-       vam sonhos. Salas, quartos, casas inteiras
tigo: “De um lado João Socorro e outro lado    transformadas em garimpo, sucumbindo-se
Jose Messias. O partido deles era o de João    ao desespero ou a ambição de quem ainda
Socorro, que ganhou e era do Partido Tra-      estava por lá. Estarrecido Seu O.B.L. de 82
balhista com Regis Pacheco, que gan-           anos rememora: “[...] o garimpo era farto
hou.Quem era do lado de Juracy Magalhães       todo mundo era garimpeiro, tinha umas
não podia trabalhar na serra. E não tinha      três mil pessoas aqui em Igatu, mas ao
outro meio de vida. Então por ai eles foram    romper dos tempos, o tempo vai lhe mu-
se arribando, se arribando...Zé
Gomes para Mucugê, Auto pra
Mucambo, a família de Agripino
Nogueira (...) que nunca mais
voltou para aqui. Outros foram
para São Paulo e foi as-
sim...Poucos retornaram, a maio-
ria não retornou”.
     Em um dialogo atemporal,
A.L.S., 65 anos reforça as
lembranças de seu conterrâneo:
“Só ficou quem era do contra. O
pessoal da parte de João Socorro,
que foi candidato a prefeito nes-
sa época do lado de Regis Pache-
co e quem ganhou foi Dr. Inocên- Figura 7: O centro da vila em meados de 1960. Fonte: Arquivo
cio do lado dele também. Aí o da Família de José Gomes da Silva.
pessoal foi todo embora, só não
foi mesmo quem não teve condiç-                dando...ai foi caindo, foi caindo tanto que
ão de ir. O garimpo continuou mas era do       isso aqui teve ruim, isso foi em 50, a seca e
contra. Isso deu prejuízo aí foi embora, fez   ’cê sabe, metal sempre falha, né? Aonde se
fila. A família de Guilhermino Nogueira        tira não bota outro né?” (grifo nosso)
foram embora, o pessoal de Telles para              Igatu parecia adormecida. Bairros intei-
Brumado, Zé Gomes da Silva, seu avô, para      ros foram devastados só restando ruínas do
Mucugê , era político honesto na época, era    que teria sido o maior e mais movimentado
um dos grandes daqui do lado de Juracy,        lugar da vila, depois do centro. O bairro
então ele não pode ficar [...] O irmão dele    Luís dos Santos, atualmente o principal
Auto Gomes foi embora para o Mucambo           conjunto de ruínas (Fig.8), chegou a abrigar
[...] Nós também fomos embora para o Mu-       mais de 500 pessoas, o que hoje não perfaz
cambo, também não tinha condições de ir        a população total da vila. Como conta
para longe aí fomos para perto. Quem tive-     M.S.M, 68 anos, que “no Luís dos Santos
ram condições de ir para longe foram para      (...) eu conheci casas ali, casas de negócios,
São Paulo, Rio de Janeiro, outros foram        casa comercial, vendendo bebida, tecido,
para Brumado. Eu sei que fez fila em 60,       carne, toucinho. Tinha carnaval, bloco de
tava uma decadência já grande”.                carnaval (...), tinha muito ourives, trabal-
     A partir da década de 1960 (Fig.7, p.15), hando ouro lá”. E em um suspiro de memó-
alguns moradores retornaram a vila, ao         ria A. L.S., 65 anos, completa que “nas ruí-
garimpo e ao comércio, sem o mesmo brilho      nas do Luís dos Santos, morava umas 500
de antes, mas com a mesma esperança de         pessoas e hoje só tem Marcos...”, referindo-
enriquecimento. O lugar não mais vivia sob     se a um novo morador da vila.
a luz dos diamantes refletidos na rica so-           Embalado nas lembranças dos tempos
ciedade. As pedras já não eram tão abun-       marcantes da vila Seu E.V.C. de 76 anos
dantes num próprio reflexo da degradação       põe a saudade à sua frente e revive a
acentuada nos tempos áureos. As casas que      história:


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   Nessa época no Luís dos Santos tinha             tudo estranho (...) toda qualidade de pes-
mais de mil pessoas. Lá tinha vendada,              soa. Tantas casas surgindo ai...o pessoal
tinha tudo! Fazia festa muito micareme12 e          trata a gente bem, não pode também falar
bonito. Na festa de lá tinha tanta moça que         mal dele, mas sinto falta do tempo que todo
fazia micareme lá e que batia no micareme           mundo tinha suas casinhas e morava....e
da praça. Era separado por política, o pes-         dos parentes da gente tudo junto, como
soal daqui da praça fazia um cordão e pe-           agora que fiquei sozinha aqui...!”
gava campanha com o do Luís dos Santos.                  A.L.S., 65 anos, durante entrevista,
                                                             permanecia na saudade que os tem-
                                                             pos contados lhe trazia. O tempo de
                                                             movimento social e de crescimento
                                                             do lugar, quando rememoriza: “A
                                                             lembrança mais bonita é que tinha
                                                             umas filarmônicas muito bonita
                                                             aqui. Tinha telefone, se queria falar
                                                             com Andaraí rodava o microfonete,
                                                             aquilo é uma lembrança. Queria
                                                             falar com Mucugê, passava para
                                                             Mucugê e tinha também que sempre
                                                             descia de a pé por aí era difícil um
                                                             carro naquela época, tudo era de
                                                             animal, então...”
                                                                A lembrança nunca vem só no
                                                             destino de quem a procura. Ela está
                                                             contextualizada na eterna relação
Figura 8: Ruínas do bairro Luís dos Santos. Fonte: espaço-tempo, que nas palavras de
http://www2.uol.com.br/mochilabrasil/imagens/igatu17.jpg     Carlos (2002, p.173) “implica um
Acesso em 22.out.2004.                                       novo modo de pensar a realidade e
                                                             como o homem vive essas transfor-
Dá tristeza, hoje, porque vai lá e não ver                   mações num cenário sempre cam-
ninguém!                                            biante”, e compõe a paisagem descrita. A
    Os momentos de vida marcantes,                  memória de uma história singular remete-
narrados e registrados a luz da imaginação          se ao coletivo, embora as ações sejam indi-
e da memória resgatada, traz consigo                viduais. Quando questionados sobre suas
fragmentos de um tempo travado nas                  lembranças, os registros trazem consigo
lembranças mais bonitas pertencentes ao             imagens e representações que são comuns a
lugar. É o que relata A.C.S. de 70 anos, que        um território, mas sob a leitura, a visão
lembra da “infância, os colegas dos tempos          cultural de um testemunho. Por mais que a
que brincava de roda, da sociedade, das             história seja pano de fundo coletivo as in-
amigas, da igreja que cantavam um coro              terpretações se fundamentam em experiên-
enorme... várias lembranças e a que toca            cias vividas e estas são individuais (Porte-
mais é a dos meus pais (...) lembrança mais         lli, 2001).
forte e bonita, meus pais aprenderam comi-               A natureza que foi moldada com a explo-
go, não liam...”. A infância também povoa a         ração das pedras, revirada em cascalhos e
saudade de M.C.O. que com 83 anos sente-            sucumbida à degradação criou formas que
se ameaçada pela nova configuração de-              contam a história, (re) significam paisagens
mográfica da vila. O intenso movimento, as          e se colocam no presente para lembrar do
pessoas que entram e saem sem a ligação             passado. A figura 9 (p.17) constitui uma
genealógica típica do interior, retrata um          leitura, uma cartografia da memória dos
momento de insegurança da vila que ambi-            moradores antigos que ao rememorar o
ciona um renascimento. Ela suspira como             passado traz à tona a lembranças dos luga-
quem vê o passado a sua frente: “A lem-             res que marcaram momentos e registraram
brança mais bonita é quando era criança,            a história da vila.
tinha outra liberdade, que não tem hoje, do
passado...ta chegando muita gente, mas


PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008                               ISSN 1695-7121
Cyntia Andrade                                                                                            581




Figura 9: Cartografia da memória – Xique-Xique de Igatu 1940-1950. Fonte: Mapa do centro urbano de
Igatu sem definição de escala, fornecido pelo IPHAN (Lençóis-BA). Elaboração: Prof. Dr.Mauricio
Moreau. (UESC-BA), com dados cedidos pela autora, 2004.




   O tempo de festa, ambição e riqueza
marcaram a paisagem da vila. Bares,
farmácias, clubes de festas, delegacias e
principalmente a área de diversão, os
prostíbulos que tanto esperavam pela co-
memoração dos garimpeiros.

O garimpo e a sorte
   Descoberto em 1844, o diamante passou
a ser a mola propulsora do desenvolvimento                    Figura 10: Diamantes na mão de um comprador.
                                                              Fonte:    http://www2.uol.com.br/mochilabrasil-
da Chapada Diamantina. Cidades nasce-
                                                              /imagens/igatu30.jpg Acesso em 22.out.2004.
ram e decaíram com as pedras diamantífe-
ras (Fig.10). A história do diamante é a
própria história das cidades da Chapada.                         Os locais de mineração conhecidos como
   O garimpo constituiu-se como a princi-                     garimpo, foram acontecendo à medida que
pal atividade econômica da região durante                     os próprios diamantes eram encontrados
décadas. Traçou a história política, econô-                   nos rios, nas rochas, espalhados na serra.
mica e toda a estrutura social narrada na                     Os donos do garimpo, geralmente, trabal-
memória e registrada na paisagem do lu-                       havam com o sistema de meia-praça, que
gar. Como toda atividade produtiva, o ga-                     consistia em um trabalho de parceria aonde
rimpo deixou marcas no cenário local que,                     havia um adiantamento em forma de feira,
sob uma ótica cultural, faz a leitura de um                   alimentação, enquanto o garimpeiro não
passado que não parece muito distante.                        encontrava a pedra. Quando acontecia, o
Ainda hoje muitos moradores estão à pro-                      diamante era levado para o dono do garim-
cura do diamante perdido, aquele que reali-                   po que tinha a “preferência” e dava o preço,
zaria o sonho de riqueza.                                     muitas vezes abaixo do que valia, para pas-
                                                              sar adiante com uma grande margem de

PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008                                     ISSN 1695-7121
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lucro garantida. Como Rocha (1980, p. 50)                     não pagasse ai botava pra fora [...] Não
deixa claro no seu romance Maria Dusá,                        gosto de falar dessas coisas, garimpei a
que se passa na vila de Xique-Xique na                        vida toda, peguei pedras, tudo pros ou-
época de 1860: “Pois é porque ainda tenho                     tros...hoje não tenho nada. Me dá raiva!
coragem de arregaçar a calça e meter no pé                         Há quem conte ainda pelos botequins da
no trabalho, que eu gosto de contar a minha                   vila, que muitos proprietários de garimpo
vida. Eu fui criado no trabalho. Antes da                     ao receber a extração do dia pelos seus tra-
fome, eu tinha minha criaçãozinha, minha                      balhadores, desconfiados, davam óleo de
roça e, como pobre, sustentava a família.                     rícino para que não sobrasse nenhuma
Quando arrojou a seca, vendi tudo para                        dúvida se o que foi entregue era realmente
comer. Quando não pude mais, sai da terra.                    o que se tinha retirado da terra. Como ain-
Como o senhor me viu, andei mendigando,                       da retrata Seu E.V.C., antigo garimpeiro:
até que, por seu parecer vim pr’aqui. E por                   “[...] Tinha o tempo que usava a escravidão,
felicidade o trabalho não faltou. Trabalhei                   e para não dar ele porque judiava, engolia
alugado uns dias, fui vivendo, até que fui                    os diamante e no outro dia ia fazer efeito.
convidado pra trabalhar de meia-praça                         Agora os donos dos garimpos conhecia
num serviço de gruna13, do Bom Será14.                        quem fazia isso pegava e prendia o garim-
Serviço duro, senhor onde eu ia perdendo a                    peiro e dava óleo para o garimpeiro e espe-
vida, por ser inda reculuta. O dono teve                      rava sair...”
pena de mim, foi me adiantando o saco toda                         E por ai as histórias ganham imaginaç-
a feira, porque eu não tinha outro jeito.                     ão nessa relação social que em meio às re-
Depois de um mês de trabalho, em que foi                      ações negativas ainda se faz presente. En-
preciso arrebentar co broca um emburrado                      riquecer famílias era sua sina dada a sua
dos diados, também a gente catou diamante                     sorte. Os dentes de ouro, o luxo, a
que foi um gosto! Como meia-praça, me                         ostentação material e a luxuria eram
coube uns quatro contos, e eu comprei esta                    produtos de quem tirara a sorte grande e
casinha e botei esse negócio, porque no fim                   apurou um uma pedra de qualidade15 ou,
o diamante ficou cumprido”. (grifos do au-                    como diziam: - “fulano bamburrou!”. Já vai
tor)                                                          longe a história de quem se enriqueceu de
    É o que reafirma A.C.S. 70 anos, saindo                   dia e a noite a “carruagem virou abóbora”.
da obra literária para a vida vivida: “Quem                   O período entre estar rico e ficar pobre é
não trabalhava no Brejo ou nas grunas, nos                    tão fugaz que dura o tempo de um jogo ou
garimpos com água ou a seco, por conta ou                     de uma noite bem paga nas casas badala-
para o patrão, os chamados meia-praça,                        das na movimentada noite da vila. Como
vendia para o patrão ou comercializava                        retrata Rocha (1980, p.50): “[...] Garimpo é
para terceiros”. Outro antigo garimpeiro,                     um jogo. Só deve jogar quem não tem muito
E.V.C., de 75 anos, fala com ressentimento                    a perder, e ganhando, deve sair e não vol-
da relação conflituosa e muitas vezes injus-                  tar, enquanto tiver dinheiro. Quer uma
ta que separa os estratos de uma sociedade:                   prova? Olhe, o homem que primeiro me
    [...] trabalhar para pegar o diamante era                 alugou, estava quase rico; pois já gastou
o mais fácil, mais difícil era o que comer                    tudo com o serviço, com o luxo, e está infu-
né? Todo mundo podia garimpar [...] na                        sado que mete dó! Esta semana me veio
época de 60, 1950...dava muito diamante, o                    pedir o saco fiado, e eu não tive jeito senão
comercio tava maravilha ainda do garimpo,                     fiar”.
né? Agora o cativeiro era demais...porque o                        A vida do garimpeiro está entre os
garimpeiro pegava o diamante e quem dava                      cascalhos revirados incansavelmente dia
, quem dava a farinhazinha, fornecia cha-                     após dia, a espera da sorte grande, que
mado fornecimento, dava a farinha com-                        quando      encontrada      segue   um     já
prava o diamante [...] o garimpeiro tinha                     predestinado no meio:
aquela besteirinha de nada e não fazia na-                         Quem trabalha nos garimpos, provavel-
da, nada, nada e hoje tá mio [...] acabou o                   mente por influencia do meio, raro escapa
garimpeiro na serra, não tá tendo quase, tá                   ap mau hábito de tornar-se gastador. Se
tendo pouquinho e uma tal de uma porcen-                      bafejado pela sorte, tem prazer em ostentar
tagem que eles cobravam antigamente,                          prodigalidade: seguindo o exemplo dos
chamada quinto, hoje não tem mais [...]                       companheiros bamburristas, como que se


PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008                                          ISSN 1695-7121
Cyntia Andrade                                                                                         583




sente na obrigação de esbanjar boa parte do                       Seu M.S.M., 68 anos, reforça as lem-
seu ganho, promovendo beberetes e dissi-                      branças em uma leitura poética e com um
pando o dinheiro em outras futilidades.                       novelo de esperança sobre o lugar: "O Co-
(minha vida nos garimpos,1980, p.37)                          usa Boa foi um ponto de muita pedra, tem
    O dialogo entre personagens do romance                    até aquela história de Maria Dusá [...] um
Maria Dusá, é um fiel retrato da realidade                    garimpo muito bom era Bom Será, e o re-
que perdurou na vida de tantos e tantos                       cente o Brejo que deu muita pedra. Não se
garimpeiros. Os diamantes brilharam e                         sabe se ainda tem muita pedra, se tiver lá
ofuscaram os sonhos num eterno processo                       por debaixo do segredo, só Deus sabe.” (gri-
dialético entre o perder e o ganhar. Seu                      fo nosso).
A.S. de 69 anos lembra que “dinheiro de                           Na figura do garimpeiro repousa a in-
garimpo é como dinheiro de jogo, tinha                        quietação, a coragem, o desbravamento e
aquela alegria e quando acabava ia para                       inevitavelmente a esperança. A saída diá-
serra de novo pegar outro”.                                   ria, ainda no raiar do sol, hoje já aliada à
    Em outra passagem pelo romance, Ro-                       outra fonte de renda, não se vive só do ga-
cha (1980, p. 86) escreve:                                    rimpo, discorre a feição de um importante
    Eis por que em todas as minas de di-                      documentário vivo e ativo da sociedade do
amantes, por grandes que sejam suas ri-                       diamante.
quezas, gira com rapidez maior que em                             O genuíno garimpeiro é uma organizaç-
qualquer outra industria, a roda da Fortu-                    ão especial, de educação física e moral algo
na e ninguém sabe ao justo, quando se aba-                    semelhante à dos marinheiros. [...] A dife-
tem os muros e levam-se os monturos,                          rença entre as duas classes está em que o
acontecendo ainda que aquele que se abate                     marinheiro obra disciplinadamente, e o
hoje, levanta-se amanhã, e assim sucessi-                     garimpeiro, por impulso, ambição, entu-
vamente.                                                      siasmo, ou valentia, transfigurando-se, por
    O “Cousa boa” , como o próprio nome su-                   vezes, em mártir ou herói, é sempre o velho
gere, foi um garimpo responsável pela as-                     garimpeiro, o incorrigível sonhador das
censão da então vila de Xique-Xique. A                        bandeiras e entradas de aventureiros, vi-
abundância de diamantes cobriu de pedras                      vendo romanticamente, nutrido moralmen-
a sociedade local. Outros garimpos também                     te por um ideal de riquezas inexauríveis.
tiveram importância como o Bom Será, o                        (Rocha, 1980, p.80).
Criminoso, Califórnia, Angico, Piaba, Luís                        O garimpo contou sob intermináveis
dos Santos, Borrachudos, Bicano, Torres,                      montanhas de cascalhos, as chamadas
Gererê, Caetano Martins, Gameleira, Ra-                       montoeiras17, a história do lugar, onde a
poso, Capão, Verruga e o Brejo (Santos,                       própria geografia local é testemunha. Áreas
2001). Mais recente, o garimpo do Brejo                       reviradas, paisagens modificadas e vidas
marcou época, sendo considerado por mui-                      acalentadas pelo garimpo que ainda é pra-
tos como uma fonte inesgotável de diaman-                     ticado, mesmo sobre as sombras do medo da
tes. Dona A.C.S. de 70 anos, descreve a                       fiscalização. Depois da febre do diamante
relação social existente na época:                            datada até meados dos anos 40, segundo
    O garimpo Cousa Boa, na Passagem,                         informantes, os garimpos continuavam
dava muito diamante, que não alcancei por                     trabalhando, mas agora atendendo a sua
ser menina. A segunda etapa de maior ex-                      população e alguns aventureiros que tei-
ploração foi no Brejo, onde a gruna foi aber-                 mavam em sonhar com a riqueza.
ta e vários grupos de garimpeiros trabal-                         Por volta dos anos 80, a Chapada passa
havam no lugar. Eram abertas portas que                       por uma nova procura diamantífera só que
delimitavam o espaço de exploração das                        dessa vez com maior presença de máquinas
‘sociedades’. O lugar era iluminado antes                     e equipamentos mais potentes do ponto de
por candeeiros e depois por energia elétrica,                 vista ambiental. São as dragas18 que
o que por si só já era uma ‘atração turísti-                  chegaram derrubando tudo que servisse
ca’. [...] Dizem que ainda tem a mesma                        como obstáculo ao seu ideal. Rochas, leitos
quantidade de diamantes, mas já morreu                        de rios, a própria serra se sucumbiu diante
muita gente ali, porque é um trabalho                         de escavações poderosas se reduzindo a
difícil e é preciso fazer as calçadas e os                    cascalho em pouco tempo de ação. As horas
giraus16.                                                     trabalhadas pelos antigos garimpos, agora


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são minutos contados atrás dos diamantes.                        O garimpo que ainda sobrevive se alia a
    O impacto ambiental foi intenso e irre-                   atividades mais segura do ponto de vista
mediável. Não se conhecia mais o lugar, o                     econômico. Hoje, quem é garimpeiro em
posicionamento de muitas pedras que as                        Igatu, também é comerciante, agricultor,
lavadeiras se encontravam para trabalhar e                    funcionário publico, guia de turismo, ou
contar histórias, rios assoreados que vira-                   seja, há a necessidade de uma atividade
vam armadilhas aos banhistas, que muitas                      conjugada. As dragas foram proibidas em
vezes resultou em morte com valas abertas                     1996 pelo IBAMA e CRA19 e outros órgãos
no fundo do seu leito. A história que se con-                 responsáveis, junto a policia federal. O caos
ta não é a história que se quer. Já não se                    aparentemente passou, mas as marcas im-
tem o mesmo brilho da extração anterior-                      pressas na paisagem registram um capítulo
mente contada. A máquina aniquila o poder                     que mancha a história que conta à saga dos
manual. As mãos calejadas e o corpo cansa-                    garimpeiros na região.
do que se arriscava em busca de um sonho,
agora atende aos mandos de uma caixa de                       O Legado Cultural: uma aproximação para
marchas para enriquecimento industriali-                      o turismo
zado, muitas vezes de quem nunca tivera
por ali.                                                         Fazer um a leitura da paisagem consti-
    Funch (1997: 191) narra bem essa                          tui um exercício de interpretação. Partindo
questão, quando diz:                                          da noção de que “a paisagem não é um
    O impacto negativo do garimpo mecani-                     suporte passivo, mas uma entidade ativa,
zado no meio ambiente fora multiplicado                       integrante e testemunha de uma dinâmica
por causa do aumento do numero de pesso-                      cultural que se constrói no tempo e se
as envolvidas nessa atividade e o uso de                      manifesta no espaço” (Oliveira, 2002: 225),
máquinas potentes nos trabalhos: crateras                     as etapas vividas e toda a sua produção
abertas nos leitos dos rios; cursos de água                   cultural são acumuladas na paisagem como
desviados e assoreados; devastação da po-                     uma       representação      contemporânea
pulação ribeirinha; detritos de maquinarias                   produzida em escalas temporais diferentes.
abandonados pela área e lixo acumulado                           A paisagem construída é uma represen-
nos acampamentos; estradas abertas pelos                      tação real dos tempos vividos, um reflexo do
garimpeiros para dar acesso às minas dani-                    modo de apropriação e dos traços culturais
ficaram trechos significativos ao longo dos                   dominantes, podendo ser, portanto, uma
rios da região.                                               revisão literária da história local. Sauer
    Igatu não teve a presença das dragas em                   (1998: 09) esclarece que “a paisagem
sua paisagem, mas muitos garimpeiros                          cultural é modelada a partir de uma
saíram em busca desse trabalho mecânico,                      paisagem natural por um grupo cultural. A
onde o impacto também subiu a serra em                        cultura é o agente, a área natural é meio, a
busca de condutores de uma forma mais                         paisagem cultural o resultado”. Com base
potente de exploração ambiental. É quando                     no binômio, paisagem-cultura, é que as
Nolasco (2000: 12) explica que “as dragas                     relações socioeconômicas desenham o espa-
não chegaram em Igatu. Os garimpos tradi-                     ço habitado.
cionais fizeram da região uma área sem                           O conceito de cultura se constrói à me-
solos, com fraturas reabertas por limpeza                     dida que se escuta as narrativas do local. A
do cascalho que o preenchia”. Mas o sonho                     apreensão dos costumes, símbolos e signifi-
do garimpo ainda vive quando se depara                        cados, verdadeiros instrumentos culturais,
com anseios embevecidos de saudades de                        pelos moradores locais estão condicionadas
Dona A.S. P. de 67 anos, “por isso que o                      ao modo de vida da vila. A cultura do ga-
garimpeiro vive encabulado, o pessoal quer                    rimpo ainda é forte na população após
acabar com o garimpo... mas a gente ainda                     décadas e gerações. Filho de garimpeiro,
pega um cascalho. Eu nunca peguei grosso,                     garimpeiro é! Essa máxima perdeu um
mais eu tinha sorte no garimpo. Ah! Se eu                     pouco a sua força a partir dos anos noventa,
pudesse ainda trabalharia com o garimpo!”,                    por conta da proibição do garimpo, embora
e Dona D.O.S. de 65 anos, “quando o negó-                     tenha sido válida, praticamente uma regra,
cio tá ruim a gente vai para serra. Eles                      nos anos de glória da atividade garimpeira.
querendo ou não, é disso que a gente veve!”.                  Santos (1998: 61) afirma que a “cultura,


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Cyntia Andrade                                                                                          585




forma de comunicação do individuo e do                        feitas de lutas, de cobiças, de ambições des-
grupo com o universo, é uma herança, mas                      temidas e de festas homéricas, como lem-
também um reaprendizado das relações                          bram certos habitantes da região, que ain-
profundas entre o homem e o seu meio, um                      da em memória as histórias contadas por
resultado obtido através do processo de                       antigos garimpeiros da vila, e que excedia
viver”.                                                       todas as expectativas em termos de esplen-
    A cultura é dinâmica, construída no dia                   dor e opulência. [...] Testemunho que deve
a dia, e condiciona o modo de perceber o                      ser urgentemente resgatado do anonimato,
mundo. O garimpeiro sonha em encontrar a                      transformando todo o conjunto arquitetôni-
grande pedra e mesmo que se passe 30                          co das ruínas e das pequenas casas ainda
anos, a sua relação com a terra será de                       existentes em patrimônio histórico e cultu-
eterna esperança, como sinaliza Laraia                        ral nacional (Jornal a Tarde, 12/07/1998,
(2003: 68): “o modo de ver o mundo, as                        p.07).
apreciações de ordem moral e valorativa, os                       O tombamento da vila trouxe aconchego
diferentes comportamentos sociais e mesmo                     frente ao medo de ver Igatu perecer e correr
as posturas corporais são assim produtos de                   o risco de perder sua identidade, estepizar
uma herança cultural, ou seja, o resultado                    sua cultura sob olhares e ações ganancio-
da operação de uma determinada cultura”.                      sas, uma preocupação que também vem de
Neste contexto, Pelto (1967: 111-112) con-                    dentro da população local, como alerta
ceitua cultura sob uma visão antropológica                    V.M.B.D., de 39 anos, nova moradora:
relatando                                                         [...] existe uma preocupação com a es-
    [...] o que freqüentemente, entendemos                    trada que deve ser preservada. Estudar
por cultura não vai além da ‘herança social’                  maneiras de controle de forma que a popu-
de um determinado grupo de individuo. A                       lação junte e se alie a esse processo, porque
herança social não é uma ‘coisa’ que se                       somente a população pode proteger, porque
transmite intacta de geração para geração,                    não tem como colocar um fiscal em cada
como um móvel ou um cofre. Mas consiste                       construção dessas, em cada lugar. Então
nessa abstração complexa que daríamos                         esse é o fator mais preocupante que pode
forma como se não fosse possível fazer a                      vim a preocupar a vila.
síntese de todas as idéias, categorias de                         Essa realização se tornara essencial pa-
significados e ‘normas’ de comportamentos                     ra a perenidade de todo patrimônio cultural
que os indivíduos de uma comunidade pos-                      e natural envolvido. Entendendo-se que
suem. Cada nova geração discerne e trans-                         A palavra patrimônio tem vários signifi-
forma os sistemas ideológicos, os significa-                  cados. O mais comum é conjunto de bens
dos e as normas, nenhuma tradição social é                    que uma pessoa ou entidade possuem. [...]
fixa e nem invariável em uma sociedade.                       O patrimônio pode ser classificado por duas
(tradução nossa).                                             grandes divisões: natureza e cultura. Pa-
    Em 2000 o Instituto do Patrimônio                         trimônio natural são as riquezas que estão
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)                        no solo e no subsolo [...] Quanto ao pa-
realizou o tombamento do centro histórico                     trimônio cultural, esse conceito vem sendo
de Igatu, o conjunto arquitetônico, urbanís-                  ampliado à medida que se revisa o conceito
tico e paisagístico, depois de vários apelos e                de cultura. (Barretto, 2001: 9).
sinais de alerta dos ambientalistas e mora-                       O patrimônio a que se refere não se limi-
dores preocupados com o futuro local. Tor-                    ta apenas ao estrutural, ao estático. Inclui
nar público o descaso do patrimônio nacio-                    essencialmente, os contos, os temperos, os
nal é um dever do cidadão que analisa o                       valores e costumes de uma população que
ambiente de forma macro e sistêmica. In-                      tem no modo de vida a afirmação de sua
conformado com o abandono, o ambientalis-                     identidade. Nesse contexto, as ruínas, as
ta inglês Daniel Bloom revela sob um tom                      trilhas dos garimpos, as histórias narradas
de indignação o descaso com o patrimônio                      de geração a geração, a comida de D. Lita, o
publico brasileiro. Registrado pela impren-                   restaurante da Norma, os trabalhos ma-
sa, ele desabafa:                                             nuais do Amarildo, a casa de Lindaura, as
    Resta-nos hoje o emocionante teste-                       artes e os artesanatos produzidos em cada
munho desta sociedade lavrista, que origi-                    beco, entre outros, constitui o mais rico
nou uma revolução de costumes na Bahia,                       patrimônio herdado pelo lugar, ou melhor,


PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008                                   ISSN 1695-7121
586                                                                      Lugar de Memória .... Memórias de um lugar...




um valioso legado cultural.                                   cas do tempo em sua face. Resquícios de
    A presença abundante da cactácea ins-                     atividades garimpeiras como o Poço do Bre-
pirou o batismo do lugar que mesmo após a                     jo, o Canal da Fumaça, Gruta do Teté e a
mudança do nome, ainda se faz presente na                     antiga mina Brejo/Verruga, podem servir
cultura popular. O Xique-Xique (Pilosoce-                     como objetos de interpretação do seu pa-
reus gounellei) e a Palma (Opuntia fícus-                     trimônio, conciliado com a atividade turísti-
indica) fazem parte da mesa dos moradores                     ca crescente na pequena vila. O retorno às
locais que desperta curiosidade de quem                       suas raízes culturais e manifestações reli-
vem de fora e desconhece tal prática ali-                     giosas esboçarão um traçado de continuida-
mentar comum aos sertanejos de um modo                        de no intuito de manter íntegra a sua de-
geral, como caracteriza Andrade (2002: 54):                   rradeira riqueza.
    Na Chapada Diamantina, “o cortadinho                          As memórias acumuladas historicamen-
de palma” está entre as comidas típicas                       te fazem surgir personagens contados na
mais apreciadas por moradores e turistas                      vida real. Símbolo cultural da cidade, Ama-
da região. Nos municípios de Andaraí, Mu-                     rildo, 41 anos, nascido e criado na vila, tal-
cugê e Lençóis, o picadinho de palma é con-                   vez seja o mais expressivo patrimônio
siderado um dos três pratos típicos que                       humano da história contemporânea de Iga-
caracterizam a região, juntamente com o                       tu. Figura ímpar, de fala firme e confiante,
godó (cortado de banana verde) e com pica-                    ele discorre sobre a história e os anseios do
dinho de mamão verde.                                         lugar como quem fizesse uma leitura de sua
       Todo o legado cultural que se repousa                  própria vida. Aliás, Igatu, que ele conta de
nos temperos locais, usos e costumes são                      forma quase rudimentar, quando se lembra
valores representativos da identidade local,                  que o século XXI já raiou, em páginas ma-
resquícios dos tempos mais difíceis, o con-                   nuais cada passo da vila diariamente como
sumo de cactáceas hoje se configura como                      se fosse provedor dos acontecimentos da
uma marca agregada ao patrimônio local,                       dinâmica do lugar. Há mais de quatro anos,
além de toda a sua história contada e anco-                   escreve sobre a história da cidade no mes-
rada na paisagem.                                             mo ritmo que a vida lhe encaminha.
    O patrimônio cultural – ou seja, o que                        Quem chega, quem sai, aqueles que já se
um conjunto social considera como cultura                     foram... Fazem parte de uma contabilidade
própria, que sustenta sua identidade – não                    precisa e solitária como quem sugere que o
abarca apenas monumentos históricos, o                        patrimônio não é apenas para ser visto,
desenho urbanístico e outros bens físicos; a                  mas para ser ouvido, narrado, sentido, ou
experiência vivida também se condensa em                      melhor, para se fazer uso de todos os senti-
linguagens, conhecimentos, tradições ima-                     dos. O que encontra reforço nas palavras de
teriais, modos de usar os bens e os espaços                   Canclini (1999: 107) quando fala que “a
físicos. (Canclini, 1999: 99).                                ampliação do conceito elitista de cultura e a
     É nas palavras e ações de M. Z., artista                 inclusão das formas artesanais de produção
plástico, 42 anos, morador recente da vila,                   popular foram um avanço”. Uma critica a
idealizador da Galeria Arte & Memória,                        inclusão única e exclusivamente de produ-
que junto com a comunidade local construiu                    tos arquitetônicos como parte interessante
uma representação viva de sua história                        da cultura, quando se olvida dos saberes e
recolhendo objetos em forma de doação                         fazeres que brota do seio da população lo-
para uma exposição permanente de ins-                         cal, os verdadeiros personagens da vida
trumentos que falam sobre o lugar, que                        real. O que se revela em seguida com o de-
também pode ser interpretado todo o legado                    creto presidencial nº 3.551, de 04 de agosto
de um tempo que repousa na memória da                         de 2000, no qual abarca “dos saberes”, “das
vila e deve ser conhecedor de quem se aven-                   celebrações” e “das formas de expressão”,
tura a conhecê-lo. M. Z. sintetiza (2004: 1):                 como patrimônio imaterial de uma popu-
    Ruínas do Bairro Luís dos Santos, as                      lação. Ou como ainda informa Geertz (1989:
áreas do Bambolim, Barriguda, Rua da                          62), aonde “nossas idéias, nossos valores,
Forca, inseridas no seu entorno urbano, são                   nossos atos, até mesmo nossas emoções são,
registros de imenso valor ao seu sensível                     como nosso próprio sistema nervoso, produ-
patrimônio, legado do extrativismo que                        tos culturais [...]”.
traçou o contorno que hoje desenha as mar-                        O patrimônio material representado pe-


PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008                                          ISSN 1695-7121
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Lugar de memoria: Turismo e patrimonio cultural

  • 1. Vol. 6 Nº 3 págs. 569-590. 2008 www.pasosonline.org Lugar de memória .... memórias de um lugar: patrimônio imaterial de Igatu, Andaraí, BA. 1 Cyntia Andrade ii (Brasil) Resumo: Igatu é um pequeno distrito do município de Andaraí – BA, com cerca de 400 habitantes, que como a maioria das cidades da Chapada Diamantina, foi construída com a exploração do garimpo. A percepção da memória como leitura do espaço torna-se importante instrumento de investigação em busca de resgatar o patrimônio imaterial da localidade. Visando compreender os estreitos laços entre a memó- ria e o lugar e o processo de construção da vila, a pesquisa utilizou das narrativas orais dos antigos mo- radores da época do garimpo para uma leitura fiel da historia local, buscando analisar o uso do legado cultural como instrumento de suporte para a atividade turística. Palavras chave: Memória; Turismo; Historia oral; Legado cultural; Patrimônio imaterial. Abstract: Igatu is a small district of the municipal district of Andaraí - BA, with about 400 inhabitants, that as most of the cities of Chapada Diamantina, it was built with the exploration of the claim. The perception of the memory as reading of the space becomes important investigation instrument in search of rescuing the immaterial patrimony of the place. Seeking to understand the narrow liaisons between the memory and the place and the process of construction of the villa, the research used of the old inhabi- tants' of the time of the claim narratives orals for a reading faithful of the local history, looking for to analyze the use of the cultural legacy as support instrument for the tourist activity. Keywords: Memory; Tourism; Oral history; Cultural legacy; Immaterial heritage. ii Cyntia Andrade. Universidad de Las Palmas de Gran Canária, ES - Doctorado em Turismo Integral, Interculturali- dad y Desarrollo Sostenible. E-mail: cyntiand@gmail.com / cyntiand@yahoo.com.br © PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. ISSN 1695-7121
  • 2. 570 Lugar de Memória .... Memórias de um lugar... Introdução gar. Gastal (2002: 77) afirma que “conforme a cidade acumula memórias, em camadas O espaço, como resultado das relações que, ao somarem-se vão constituindo um sociais pré-existentes vinculadas às forças perfil único, surge o lugar de memória [...] econômicas e políticas ora dominantes, onde a comunidade vê partes significativas deixa marcas impressas na paisagem. Um do seu passado com imensurável valor testemunho que sedimenta recordações, afetivo”. registrando informações de tempos passa- Como elo de interpretação do passado, a dos que contam a história do lugar. memória é a voz e a imagem do acontecido. A apropriação simbólica do espaço acu- Com base em Le Goff (1996: 423), o conceito mulada de sentimentos e pertinência, o de memória toma corpo quando ele coloca particulariza e o transforma em lugar. Nes- que “a memória como propriedade de con- te contexto, o conceito de lugar se apóia na servar certas informações remete-nos em reflexão de Tuan (1983: 6) quando diz que: primeiro lugar a um conjunto de informaç- “o espaço é mais abstrato do que o lugar. O ões psíquicas, graças as quais o homem que começa como espaço indiferenciado pode atualizar impressões ou informações transforma-se em lugar à medida que con- passadas, ou que ele representa como pas- hecemos melhor e o dotamos de valor [...], sadas”. As imagens, configurações e repre- além disso, se pensarmos no espaço como sentações do tempo vivido ou imaginado algo que permite movimento, então lugar é pertencem ao campo de memória, poucas pausa: cada pausa no movimento torna vezes exercitados na reconstrução da histó- possível que a localização se transforme em ria do lugar. Freire (1997: 45) elucida lugar”. quando diz que: “A memória, compreende- O lugar é o redimensionamento do espa- mos melhor, elabora-se a partir da ausên- ço dotado de sensações, afeição e referên- cia, e com pé fincado no presente, volta-se cias da experiência vivida ou, como diria para frente. Nesse terreno, as mais aparen- Carlos (1996: 16) “o lugar guarda em si, não temente insignificantes lembranças são fora dele, o seu significado e as dimensões artigos de valor, sendo necessário guardá- do movimento da história em constituição las com cuidado, sabendo do risco que se enquanto movimento da vida, possível de corre com a perda desse que é o nosso mais ser apreendido pela memória, através dos valioso e invisível patrimonio”. sentidos e do corpo”. Da memória dos contos e dos cantos, do As memórias são importantes registros real e do imaginário, do individual e do vividos que partem das lembranças e eter- coletivo, renasce o passado. Como nas pa- nizam lugares como referências e cenários lavras de Nora (1993: 9) que diz que “a para uma constante visita ao passado, tra- memória se enraíza no concreto, no espaço, zendo em si, os mais diversos sentimentos no gesto, na imagem, no objeto”. Daí sur- documentados e aflorados em narrativas, gem os lugares de memória que são verda- sonhos e percepções. Assim, o lugar de deiros patrimônios culturais, projetados memória, segundo Nora (1993: 21) “são simbolicamente e podem estar atrelados a lugares, com efeito, nos três sentidos da um passado vivo que ainda marca presença palavra, material, simbólico, funcional [...]. e reforça os traços identitários do lugar. É Mesmo um lugar de aparência puramente na pertinência das palavras de Gastal material, como um depósito de arquivos, só (2002: 77) que repousa a lucidez, onde: “as é lugar de memória se sua imaginação o diferentes memórias estão presentes no investe de uma aura simbólica”. São luga- tecido urbano, transformando espaços em res que estendem uma história regada de lugares únicos e com forte apelo afetivo cumplicidade, significações, afetividade, para quem neles vive ou para quem os visi- pertencimento, ou simplesmente de alma. ta. Lugares que não apenas tem memória, A memória está estratificada no lugar. mas que para grupos significativos da so- As histórias contadas, tempo a tempo, estão ciedade, transformam-se em verdadeiros impregnadas no meio, sedimentadas na lugares de memoria” (grifos do autor). saudade e a procura de registros e sinais da Os lugares de memória e as memórias ausência que descrevem a memória do lu- do lugar se conjugam em busca de PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121
  • 3. Cyntia Andrade 571 instrumentos de reforço da identidade e da importante destino turístico e a necessida- singularidade local. A população se consti- de de manter a identidade garimpeira, o tui a mais importante ferramenta já que é respeito ao patrimônio ambiental e a depositaria de informações, registros êmi- memória local, torna-se vital para a sobre- cos e sentimentos afetivos, resultado de vivência salutar entre o ambiente e a popu- uma relação com base na topofilia. lação envolvida. Distrito do município de Andaraí, na Em busca de construir um mapa Chapada Diamantina -BA (Figura 1), Igatu representativo da memória local, com os uma pequena vila de clima tropical semi- lugares de memória e as memórias do lugar úmido e temperatura media de 22º C, é o por meio da percepção da memória, que se pode chamar de lugar agradável, narrativa oral, imagem e representação do cercada não apenas por suas características espaço vivido, foram adotado como geográficas, terrenos irregulares, mas por instrumento metodológico entrevistas, paisagens que despertam o imaginário relatos e depoimentos dos moradores locais popular. Memória e paisagem se comuni- nativos2, em sua grande maioria cam por meio do olhar, resgatados por lem- garimpeiros, resultando em uma tentativa branças de tempos vividos e construídos na de recuperação da memória oral, forte paisagem local. Em Igatu, a memória dos instrumento de afirmação da identidade tempos de construção e soerguimento da local. E é por meio da percepção da memó- vila em torno da extração de diamantes ria que o passado se torna presente na ora- está confinada aos poucos habitantes que lidade. ainda resistem as intempéries e trapaças A escolha da amostra não-probabilística do tempo que teima em passar, correndo o por julgamento (Dencker, 1998) se deu por risco de muito do que aconteceu fosse lega- meio de informações locais, em busca dos do ao esquecimento e a uma história (re) antigos moradores, garimpeiros natos, que inventada. A riqueza do tempo vivido que tivessem história para contar sobre a for- retrata cada pedra sobreposta na construç- mação e construção da vila pela atividade ão da vila, a vida dos ex-garimpeiros sofre o do garimpo. Trinta e três foi a soma dos risco de ser passada a limpo apenas em um maiores de 60 anos, considerados melhores Figura 1: Mapa de localização de Igatu. Fonte: Disponível em http:// www.cidadeshistoricas.art.br Acesso em: 07.jun. 2005. roteiro de turismo. A vila surge como um informantes ou os conhecedores do lugar, PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121
  • 4. 572 Lugar de Memória .... Memórias de um lugar... onde em meio as limitações impostas pelo A história do lugar contada no lugar da tempo e a disponibilidade de cada um, de- história, tendo como narrador os antigos zenove se fizeram presentes na moradores, desembaraça nós atados pelo (re)construção da memória que mesmo pas- tempo, aflora nas lembranças as marcas da sando pela imagem individual é fruto de memória em busca de interpretações e até uma imagem, uma memória coletiva. As justificativas das mudanças contempo- entrevistas semi-estruturadas (Dencker, râneas. Thompson (1998: 21) afirma que 1998) foram gravadas em fitas magnéticas “por meio da história local, uma aldeia ou e transcritas in verbatim para não com- cidade busca sentido para sua própria na- prometer a autenticidade das falas. As fo- tureza em mudança, e os novos moradores tografias dispostas representam uma forma vindos de fora podem adquirir uma per- de interpretação e representação imagética cepção das raízes pelo conhecimento pesso- do lugar. Considera-se a amostra satisfató- al da história”. Conhecer sua própria histó- ria já que atendeu aos principais objetivos ria, seu caminho percorrido é um exercício da pesquisa, ressaltando que não é interes- de auto-reconhecimento, de integração se analisar a veracidade dos fatos, mas temporal, aonde as imagens do passado relatar as histórias contadas entendendo projetadas são transportadas através do como um legado de uma história vivida, sentimento de pertença, afetividade e de sentida e referenciada. identidade local. O autor ainda lembra que: Das histórias contadas e rememoradas “A história oral é uma história construída renasce a vila de Xique-Xique das décadas em torno de pessoas. Ela lança a vida para de 1940 e 1950. A cartografia da memória dentro da própria história e isso alarga seu resulta em um passeio pelas lembranças da campo de ação [...].Traz a história para cidade habitada em pleno funcionamento dentro da comunidade e extrai a história de remarcada pelo tempo, uma leitura dos dentro da comunidade [...] ela pode dar um antigos moradores sobre o lugar do passa- sentimento de pertencer a determinado do. Os pontos relevantes foram representa- lugar e a determinada época” (Thompson, dos e plotados em mapas esquemáticos, 1998: 44). com o auxílio do programa de Sistemas de A história oral como metodologia implica Informações Geográficas Arc View 3.2, bus- numa dimensão, além de técnica, teórica cando uma (re) leitura da antiga Xique- (Ferreira & Amado, 2001). A leitura de Xique de Igatu. depoimentos colhidos com as entrevistas, só passará de ser mero desdobramento calçado Garimpando a história: “os narradores” de na memória de atores sociais anônimos, Igatu quando interpretado e embasado teorica- mente. Lozano (2001: 17) enfatiza que “fa- O lugar está cheio de afetividades onde zer história oral significa, portanto, produ- sua própria paisagem se encarrega de zir conhecimentos históricos, científicos, e narrar sua história. As pedras que calçam não simplesmente fazer um relato ordenado as ruas são alicerces dos tempos áureos que da vida e da experiência ‘dos outros’”. Vale por ali passaram e que, passo a passo, tes- ressaltar, que se pretende com esse estudo temunham o acontecer diário da recons- buscar junto à população local a história do trução da vila. As janelas são molduras do lugar por meio dos seus registros da memó- olhar e também instrumentos que se de- ria. bruçam na história vendo a vida passar. A utilização de fontes orais numa tenta- Um lugar que hoje nem de longe lembra a tiva de releitura do espaço encontra em dinâmica Xique-Xique do início do século antigos moradores o verdadeiro teste- passado, guarda em si as lembranças e munho. Se o espaço se apresenta como um memórias de quem tem muito para contar. testemunho da história acontecida (Santos, Lembradas por Bosi (1994: 84), que com 1990) os antigos moradores testemunham propriedade questiona: “Por que decaiu a com a memória o presente construído. Os arte de contar histórias? Talvez porque materiais colhidos agregam valores e sen- tenha decaído a arte de trocar experiências. timentos sob diversas percepções que tecem A experiência que passa de boca em boca e a singularidade do lugar. Os vários olhares que o mundo da técnica desorienta”. sobre um mesmo espaço gera a diversidade PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121
  • 5. Cyntia Andrade 573 necessária para seu enriquecimento cultu- como ele próprio intitula, Igatu é o que se ral.Voldman (2001: 39) adverte de forma costuma chamar de lugar pacato. As 16 precisa, “[...] nem todos viveram sua ado- ruas, o comércio composto de 03 bares, 01 lescência e sua maturidade nas mesmas pizzaria, 02 restaurantes, 01 lojinha, 04 condições sociais e políticas, e os velhos pousadas e apenas 70 pessoas que trabal- tempos, embora tenham igualmente passa- ham com o garimpo, constitui o retrato do, não são os mesmos para todo mundo. Do atual de uma vila que nas trilhas do garim- ponto de vista do que há de ser singular em po vê sua história ser passada a limpo como cada indivíduo, nenhuma testemunha se um roteiro turístico. assemelha a outra [...]”. Atraídos pela prosperidade condicionada Geertz (2003: 107) ainda alerta que “En- à extração de pedras preciosas, iniciada no tender a forma e a força da vida interior de final do século XIX, mineiros vindos de nativos – para usar mais uma vez essa pa- decadentes tentativas regionais, desbrava- lavra perigosa – parece-me mais compreen- ram o sertão semi-árido da Bahia central der o sentido de um provérbio, captar uma que, acolhidos pela necessidade de vingar alusão, entender uma piada – ou, [...] inter- em terras férteis passaram a ser os princi- pretar um poema do que conseguir uma pais responsáveis pelo nascimento de po- comunhão de espírito”. voados que hoje constituem cidades como A história ainda é viva na memória de Mucugê, Andaraí, Palmeiras e Lençóis na sua gente que conta com graça e saudade e Chapada Diamantina, Bahia. enche os olhos de lembranças arrastadas Mucugê, antiga Santa Isabel do Para- pelo tempo, travando uma luta com a idade guaçu Diamantino, surge como a cidade que confunde datas, mas espelha sabedoria mais antiga da chapada, sendo o primeiro colhida através da experiência vivida. Que lugar de exploração de ouro e diamantes. nas palavras de Nora (1993: 9) diz que: “a Em 1844, as margens do rio Mucugê, foram memória é a vida, sempre carregada por encontradas pedras de diamantes no leito grupos vivos e, nesse sentido, ela está em do rio, que desencadeou o processo de permanente evolução, aberta ‘a dialética da exploração e resultou na formação de lembrança e do esquecimento, inconsciente cidades que compõem a rota turística do de suas deformações sucessivas, vulnerável Circuito do Diamante5 . Alguns moradores a todos os usos e manipulações, susceptível antigos afirmam que os portugueses foram de longas latências e de repentinas revitali- os primeiros habitantes, atraídos pelas zações”. noticias que corria em cidades como Lavras A narrativas rememoradas pelos mora- e Grão Mogol, zona de mineração de Minas dores antigos, traçam o caminho da cons- Gerais. A.L.S., de 65 anos, comerciante, trução do lugar, onde os momentos marcan- conta que “os mineiros vieram para Mucugê tes desenham os mapas calcados na memó- e de Mucugê vinheram para cá (...) Mucugê ria afetiva de cada um. Joutard (2001: 54) já tinha extração dos diamantes e descobri- reforça que “[...] o testemunho oral é o do- ram Igatu, eles que descobriram aqui. Co- cumento mais adaptado por sua ambivalên- meçaram e viviam aqui (...) muito diamante cia. Os defeitos que lhe atribuem, as dis- naquela época”. Como enfatiza Misi e Silva torções ou os esquecimentos tornam-se uma (1994: 39): “A principal riqueza mineral da força e uma matéria histórica”. As lem- Chapada Diamantina oriental, o diamante, branças recolhidas e alinhavadas entre a foi responsável pelo crescimento das memória e o lugar, contam as histórias cidades principais e de diversos povoados contadas, ouvidas e vividas que dão suporte da região, a partir de meados do século ao sentimento de pertença que pereniza o passado. Desde 1844, quando se iniciaram lugar. as primeiras lavras intensivas no rio Mu- cugezinho, em local hoje pertencente ao Pedra sobre pedra: a formação da vila município de Mucugê, a região das lavras Seus pouco mais de 300 habitantes, ou diamantinas enfrentou períodos de apogeu melhor, 3733, nas contas de um cidadão e declínio, graças ao diamante”. símbolo da vila, Amarildo dos Santos, que Pouco se tem registrado sobre a histo- anualmente perfaz “Um levantamento riografia do lugar. Embora a memória pos- geral do que temos em Igatu, ano 2004”4 , sa trair a verdade, o tempo contado firma- PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121
  • 6. 574 Lugar de Memória .... Memórias de um lugar... se sobre a fase quando o diamante ainda histórias contadas pelo seu pai: “Primeiro aflorava na terra seguida pela decadência veio à escravidão, veio os escravos que do lugar, o que marca a época do final da deixaram a construção da igreja, tem década de 1930 até os anos conturbados e muitas construções, tem tanques, caminhos que levara a vila ao completo despovoamen- pelas serras, tudo feito pelos escravos. Co- to por volta da década de 1950. As fases que mo meu pai que ainda pegou a época dos antecedera essa época foram pinceladas escravos (...) ele sempre falava pra gente, mediante a sinalização dos informantes, que ele era garimpeiro, ele gostava do ga- que por hora divagavam por tempos não rimpo, eu fui criado na serra e ele mostrava vividos, mas responsáveis pela sua história. as coisas: - Isso aqui foi os escravos quem Por volta de 1844 a 18466 o garimpo fez. As primeiras trilhas de garimpo foi teve início em Xique-Xique (Fig. 2) desde a criada pelos escravos”. sua descoberta e construção, passando pela Na concepção de Bolle (1984: 12): “Nessa fase da escravidão e dos coronéis, que comunicação de pai para filho temos traçou todo um território marcado pelas literalmente a transmissão de um explorações, aberturas de garimpos, patrimônio, um elo de continuidade de iniciando um processo de construção do geração para geração” (grifo do autor). lugar. O curso da história política com a Pro- Antes da abolição da escravatura, com a clamação da Republica (1889) acompan- sanção da Lei Áurea em 13 de maio de hada da então anunciada libertação dos 1888, os escravos foram responsáveis pelas escravos desenhou uma sociedade que se destacava com o poder político e econômico, mudando as estruturas sociais do lugar. Surge o que ficou conhecido como a “epop- éia dos coronéis”, que funcionava como o poder central da Chapada, independente das forças externas. Região marcada por grandes diferenças sociais e concentrações de renda, a Chapa- da Diamantina foi, da segunda metade do século XIX até década de 1930, um barril de pólvora comandado por poucos e muito poderosos coronéis. As tradicionais famílias proprietárias de terra davam abrigo e em- prego para os colonos e exploradores a pro- cura de riquezas, e em troca conquistavam a gratidão e fidelidade dessas pessoas. Formaram-se assim verdadeiros exércitos de jagunços dispostos a defender com a Figura 2. Entrada da vila. Fonte: foto da autora, própria vida os interesses dos patrões 2004. (D’Andrea, 2004)7 . Era a lei local, traçada pelo poder e obe- primeiras marcas da história política e decida pela submissão. Uma estrutura so- cultural da vila. Sabe-se que os escravos cial e econômica que marcou a história polí- tica do nordeste como um todo e que deixou tiveram participação ativa na mão-de-obra pesada resultando nas construções de sinais ainda hoje sustentados pelos neoco- símbolos marcantes do lugar. A igreja de ronéis da contemporaneidade. Segundo a concepção de Leal (1993: 20), “o São Sebastião construída no século XIX, por volta de 1854, traz consigo a força de uma ‘coronelismo’ é, sobretudo um compromisso, população que ergueu a fé montada na uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a ideologia do poder. As trilhas dos primeiros garimpos, tantos ainda pouco conhecidos, decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de tiveram na força negra, mais uma vez a terras”. raiz da história baiana. Como lembra M.S.M., 68 anos, garimpeiro e lavrador, nas O coronel mais famoso da Chapada foi PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121
  • 7. Cyntia Andrade 575 Horácio de Matos que liga a sua história a rreu e acabou. Não teve mais negócio de cidade de Mucugê. Igatu tinha o seu poder coronel. Acabou coronel! nas mãos do coronel Aureliano de Britto A vila resiste. Xique-Xique de Andaraí Gondin (Fig. 3), que durante bons anos ou simplesmente, Xique-Xique como ainda ditou as regras na vila. Garimpeiro, de 68 anos, M.S.M. busca na memória as histó- rias que cresceu escutando: Na época dos coronéis, o primeiro coro- nel daqui foi seu Juca de Carvalho, que não era daqui. Era descendente do exterior, ta mais para português [...]. Seu Aureliano foi depois e era de Riacho de Santana, perto da lapa de Bom Jesus. Ele veio embora para aqui, chegou aqui e foi em 1914, mas não tenho certeza. Aí Seu Aureliano aqui e Seu Juca gostou dos modos dele e botou ele como jagunço dele, né? Ele era o capanga de Seu Juca, de confiança. Então Seu Juca morreu, na Passagem8 , ai passou a patente para ele. [...] Quando Seu Juca morreu passou para Aureliano de Brito Gondim. Complementado a história, M. C. O., 83 anos, aposentada, vasculhando os tempos Figura 3: Túmulo do Cel. Aureliano de Britto de infância relembra: Gondin. Fonte: http://www2.uol.com.br/mochila- Conheci Seu Aureliano, que morava on- brasil/imagens/ igatu28.jpg. Acesso em de é a pousada. Dizem que ele já morou no 15.ago.2004. sobrado, mas eu era menina. Eu ia comprar folhas ou qualquer coisa na casa dele e ele hoje é chamado por muitos moradores do tava sentado. O povo obedecia, mandava no lugar, principalmente o mais antigo, ainda povo e qualquer coisa tomava as providên- mantinha na atividade do garimpo seu cias dele. Era o dono da cidade, quem co- principal personagem geoeconômico. Inse- mandava era ele [...]. rida geograficamente, no sertão baiano, A época dos coronéis durou até meados caracterizado pela vegetação da caatinga, a da década de 20, quando as tropas da Colu- presença de cactáceas é lugar comum no na Prestes chegam a Chapada e as forças cenário paisagístico do lugar, representado sertanejas fazem o exercito recuar. M.S.M, pelo xique-xique (pilosocereus gouneillei). 68 anos, no auge da sua lucidez reporta a Conta-se ainda, que os primeiros explora- história como se tivesse participado: dores, podem ter vindo da região do alto Aí veio a Coluna Prestes acabar com os São Francisco, da cidade de Xique-Xique no chefes e com esse espanto que teve aí Seu norte da Bahia, tendo apelidado o lugar. Aureliano morreu. A Coluna que veio des- Tal semelhança causava transtornos tanto armar os coronel. Ele não foi armado, eles no envio de mercadorias que vinham de vieram para desarmar ele aqui, mas ele outras regiões e até mesmo de outros pai- tinha um amigo muito forte em Salvador ses, acabava indo para Xique-Xique do São que era juiz de direito, Arlindo Leoni, que Francisco, o que culminou em 1943 com a livrou ele. Foi quando teve esse desarma- mudança do nome da vila para Igatu, que mento pela Coluna Prestes para desarmar em tupi guarani significa “água boa”, o que os coronéis ele não foi atacado [...] vieram fica claro de se entender já que a água bro- para a atacar, mas o amigo Leoni, morava ta no meio da serra. Monteiro (1999: 13) em Salvador, não era mais juiz, era Sena- põe mais uma forma de escrita e possível dor e aí livrou ele. Aí ele ficou choqueado origem do nome da vila, embasado na com aquilo e ninguém sabe porque sim por- relação com os franceses, numa visão mais que não. [...] O primeiro ataque foi em 1926 elitista e se esquecendo da geografia do e quando foi em 1932, em morreu. Ele mo- lugar, no qual ele retruca: PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121
  • 8. 576 Lugar de Memória .... Memórias de um lugar... Porque Chique-Chique com CH? Este foi da identidade, sua ou de seu grupo; ela é o primeiro nome dado pelos seus desbrava- um núcleo de sua personalidade”. dores, derivado das belezas naturais e fruto O sentimento de pertença é aguçado sob de influencia e domínio da cultura francesa forma da apropriação territorial, aonde na época. Com CH, não só por essa cir- resistir ao tempo e a mudança do nome do cunstância cultural, também para não se lugar se revela em uma forma de confundir com o agressivo ‘xique-xique’, resistência a um elo afetivo, uma cactácea não tão abundante na região, para declaração de identidade topofílica, da real se tornar topônimo. Deixou de ser Chique- transformação do espaço em lugar. È Chique por duas razões: a) não ser permiti- quando Hall (2004: 12) diz que “a da por lei a existência de duas ou mais loca- identidade então costura [...] o sujeito à lidades com o mesmo nome no Estado, pre- estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos valecendo a mais antiga; b) respeitar o quanto os mundos culturais que eles habi- Acordo ortográfico de 1943. tam, tornando ambos reciprocamente mais A verdade é que a maioria dos unificados e predizíveis”. moradores antigos chama a vila de Xique- A influência dos diamantes trouxe Xique, justificado na presença viva da várias famílias vindas da região e os vegetação (Fig. 4) que caracteriza o sertão primeiros garimpeiros que chegaram foram brasileiro. O que confirma as palavras de povoando, iniciando o processo de A.L.S. de 65 anos, nascido e criado na vila: exploração do lugar. A construção de casas “Toda vida nós chamava Xique-Xique, [...] segue a topografia local, onde se aproveita- porque quando eles descobriram aqui, tinha va a arquitetura natural e tocas iam se muito esse xique-xique na serra [...]”. espalhando, dando um ar de primitiva sin- A identidade fala mais alto, como quem gularidade. As pedras, tão abundantes e ainda resiste às mudanças traçadas pelo excedentes da garimpagem era a matéria tempo. Ser de Xique-Xique é ter suas lem- prima que começou a erguer a cidade de branças preservadas, é ser fiel a sua memó- pedras. ria, ao seu chão. É pertencer, ser daqui e Das características urbanas, as cons- não de outro lugar, é ser raiz junto com o truções de rochas, ou pedras, saltam os lugar. Bolle (1984: 14) reduz que a “[...] olhos. Material generoso na região, as rochas de um modo geral são sedimentárias, ou seja, formada por sedimentos (areias, cascalhos9, etc) acumuladas ao longo de milhares de anos e que foram sedimentadas, sobrepostas em camadas, por agentes exógenos como vento e a água resultando na característica geológica do lugar. Como excedente no processo de garimpagem, as pedras, como é vulgarmente conhecida, passaram a representar meio de moradia surgindo em grutas naturais encravadas nos lajedos as conhecidas locas ou tocas (Fig. 5), habitação peculiar do lugar que caracterizava a vida do garimpeiro. Essa tipologia habitacional se espalhou pela serra abrigando famílias e deixando sua marca na paisagem local. A população vivia do garimpo e com ele forta- lecia a sociedade. Era gente chegando de Figura 4: Xique-Xique (Pilosocereus gouneillei) na galeria Arte & Memória. Fonte: foto da todos os lugares e a teia das relações so- autora, 2004. cioeconômicas crescia junto com as explo- rações do diamante. Embaixo de todas essas pedras todas arma eficiente de resistência é a memória morava gente. Tinha uma rua daqui até afetiva. Dela é que depende a preservação PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121
  • 9. Cyntia Andrade 577 depois do campo de futebol, tudo cheio de rradas...e aí eles trazia tecidos, trazia lou- gente. Tinha casas atravessando o rio, até ças, trazia material domestico, né? E ven- em cima do João Batista. Subindo a cacho- dia essas coisas aqui e daqui pra lá levava eira, as ruínas que se vê, tudo era cheio de diamante. Portugal se enriqueceu com nos- gente. Até perto dos córregos dos pombos. so benefício. O diamante daqui foi todo para o estrangeiro, para Por- tugal, Judéia, para Eu- ropa [...] Cada pessoa tinha um estrangeiro que vinha da Europa e trazia as transações daqui para lá. As pessoas não precisavam sair da vila. Conta-se que muita gente morreu sem con- hecer Andaraí, o que hoje seria praticamente inviável, dada à de- pendência com o lugar. O garimpo desenhou a configuração territorial Figura 5: Toca de garimpeiro. Fonte: foto da autora, 2004 do espaço. Não havia uma única terra que Conheci tudo cheio de gente. (A. L. S., 65 não fosse revirada, um anos, morador antigo). rio que não fosse enxugado pelas bateias e Os dados sobre a população que Igatu peneiras, cascalhos que não retratassem a chegou a comportar, ainda são imagem do lugar. contraditórios. Uns falam em 9.000 outros Neste sentido, Carlos (2002: 28) coloca contam 5.000 mil habitantes na vila e mui- que: “O lugar é produto das relações tos outros espalhados pela serra. Não se humanas, entre homens e natureza, tecido tem uma precisão e os números oscilam de por relações sociais que se realizam no acordo com a imaginação e os esforços nas plano do vivido, o que garante a construção lembranças de quem um dia já fez parte de uma rede de significados e sentidos que desse dado demográfico. O que se sabe e, são tecidos pela história e cultura talvez, o que mais importa, é que a vila era civilizadora produzindo a identidade. Aí o intensamente ocupada e que sua história se homem se reconhece porque aí vive. O construiu sob o sonho e ambição de muitos, sujeito pertence ao lugar como este a ele, que hoje apenas fazem parte da memória pois a produção do lugar se liga que povoou a vila até meados do século XX. indissociavelmente à produção da vida”. O comércio era muito forte. O diamante O diamante brotava na flor da terra. atraia a fortuna e a sociedade se abastecia Cada dia de trabalho era brindado com as no lugar. Farmácia, cartório, bar, pensão, pedras que reluziam acalentando o sonho casa de sinuca, dentista, lojas de tecidos de riqueza da população. “Cada boca aber- vindos da Europa, entre outros. As transaç- ta, era uma quantidade de diamante encon- ões internacionais, principalmente com trada. Uma porcelana de diamantes gran- Portugal, eram constantes, já que muita des, pois os pequenos eram separados (...) mercadoria era trocada por diamante. O com a luz do sol parecia um monte de estre- que lembra M.S.M., 68 anos, morador anti- las”, dizia Dona A.C.S., de 70 anos, profes- go da vila, que pela lembrança de seu pai sora aposentada, envolvida na saudade que discorre sobre a história com um sentimen- a lembrança lhe trazia. Como um mineral to de pertença, de orgulho de conhecer os rígido ocupando na escala de Moh’s10 o grau passos que o trouxera até aqui. Ele dizia: 10, o diamante representa para os O comercio era rico. Nesse tempo, dia- garimpeiros a esperança de acontecer um mante se achava era aqui, pelos rios, enxu- “bamburro11” e mudar completamente a sua PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121
  • 10. 578 Lugar de Memória .... Memórias de um lugar... vida e, indiretamente a de toda a Nessa época tava chegando toda semana comunidade. Nessa época, quem não tra- copo e mais copo de diamantes. balhava diretamente com o garimpo, preci- Em 1949, as eleições para governador da sava dele para sustentar seu comércio. Era Bahia estavam sendo disputadas por dois de onde vinha o dinheiro, muito dinheiro candidatos: de um lado Regis Pacheco, que substituiu Lauro de Freitas falecido no curso da campanha, e do outro Juracy Magalhães. Em uma jogada inédita, Juracy fora fazer comício na vila de Igatu, o que lhe rendera muitos simpatizantes e garantiram-lhe votos. Enquanto expunha suas idéias, ocorria paralelamente, um ato solidário que agradou a população local. A.L.S., ainda completa que: “Juracy veio e fez um comício aqui em Igatu e nenhum governo nunca tinha vindo aqui com comitiva de 20 Figura 6: O mercado municipal na década de 1950. Fonte: jipes [...] ai fez um comício na Arquivo da Família José Gomes da Silva. cidade, no comercio e ai todo mundo falou: - vou votar nesse home! Abriu a casa de negócio que circulou durante décadas no centro da aqui para dar ao povo o que queria [...] tudo vila (Fig.6). para o pessoal pegar o que por conta dele Como principal atividade econômica o na hora que terminasse o comício ele garimpo foi se profissionalizando. A organi- pagava...” zação sócio-espacial que, ora passa a surgir, Igatu viveu momentos de glória, con- é resultado do processo de garimpagem, heceu a riqueza e viu reluzir nos diamantes que constitui uma exploração individual e que afloravam da terra, a sua própria de- nômade, fazendo passar a existir as “lavras cadência. Conhecedor da história do lugar, diamantinas” que baseado nos estudos de M.S.M de 68 anos, relata com detalhes esse Machado Neto (1974) refere-se a organizaç- momento político vivido pela vila: ões criadas em jazidas altamente produti- Igatu começou a decair de política. Foi a vas criando uma espécie de empresa com política que decaiu, espantou, expulsou a mão-de-obra, no inicio escrava e homens população. A política quente aqui foi a de livres, gerando uma visível e necessária Juracy Magalhães, que começou em 49, que divisão do trabalho. foi com a eleição de 50. Nessa época saiu Tal divisão foi reflexo do que mais tarde, daqui 200 famílias, aonde tinha família de no final da década de 40 e início da década ter 10 pessoas, 12 e saíram porque perde- de 50, culminou no que seria o desfaleci- ram o candidato (...). A política foi muito mento da vila. Agregado a desaceleração da forte e as pessoas tinham ligação com o exploração de garimpos já saturados e me- garimpo, justamente por isso saíram, por- nos produtivos, desgastados pelo trabalho que o partido que ganhou, era do lado do manual e carente de equipamentos tecnoló- dono da serra... gicos, a vila mergulhou na decadência com A política deixou marcas ainda hoje um ato político. O garimpo cedeu a política visíveis na vila. As casas ruíram junto com o que seria o capitulo mais decisivo da a tristeza de quem teve de sair, abandonar história de Igatu. Como relembra A.L.S, 65 seu comércio e principalmente o sonho de anos, enfatizando a real face do despovoa- prosperidade. Com o fim das eleições Regis mento da vila: Pacheco consagrando-se vencedor, fez os A decadência não foi por causa do ga- opositores baterem em retirada, fechando rimpo e sim da eleição. O garimpo era bom as portas e os sonhos. Quem tinha mais nessa época, diamante muito...Uma di- condições partiu para outros estados, mas a amantada doida em 50, na gruta do Brejo. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121
  • 11. Cyntia Andrade 579 imensa maioria aportara nas cidades cir- ficaram desocupadas viraram territórios de cunvizinhas em busca de nova vida. Os que escavação, que viam assoalhos sendo des- permaneceram faziam parte do lado vence- truídos por picaretas que ainda acalenta- dor, como ainda conta M.S.M, morador an- vam sonhos. Salas, quartos, casas inteiras tigo: “De um lado João Socorro e outro lado transformadas em garimpo, sucumbindo-se Jose Messias. O partido deles era o de João ao desespero ou a ambição de quem ainda Socorro, que ganhou e era do Partido Tra- estava por lá. Estarrecido Seu O.B.L. de 82 balhista com Regis Pacheco, que gan- anos rememora: “[...] o garimpo era farto hou.Quem era do lado de Juracy Magalhães todo mundo era garimpeiro, tinha umas não podia trabalhar na serra. E não tinha três mil pessoas aqui em Igatu, mas ao outro meio de vida. Então por ai eles foram romper dos tempos, o tempo vai lhe mu- se arribando, se arribando...Zé Gomes para Mucugê, Auto pra Mucambo, a família de Agripino Nogueira (...) que nunca mais voltou para aqui. Outros foram para São Paulo e foi as- sim...Poucos retornaram, a maio- ria não retornou”. Em um dialogo atemporal, A.L.S., 65 anos reforça as lembranças de seu conterrâneo: “Só ficou quem era do contra. O pessoal da parte de João Socorro, que foi candidato a prefeito nes- sa época do lado de Regis Pache- co e quem ganhou foi Dr. Inocên- Figura 7: O centro da vila em meados de 1960. Fonte: Arquivo cio do lado dele também. Aí o da Família de José Gomes da Silva. pessoal foi todo embora, só não foi mesmo quem não teve condiç- dando...ai foi caindo, foi caindo tanto que ão de ir. O garimpo continuou mas era do isso aqui teve ruim, isso foi em 50, a seca e contra. Isso deu prejuízo aí foi embora, fez ’cê sabe, metal sempre falha, né? Aonde se fila. A família de Guilhermino Nogueira tira não bota outro né?” (grifo nosso) foram embora, o pessoal de Telles para Igatu parecia adormecida. Bairros intei- Brumado, Zé Gomes da Silva, seu avô, para ros foram devastados só restando ruínas do Mucugê , era político honesto na época, era que teria sido o maior e mais movimentado um dos grandes daqui do lado de Juracy, lugar da vila, depois do centro. O bairro então ele não pode ficar [...] O irmão dele Luís dos Santos, atualmente o principal Auto Gomes foi embora para o Mucambo conjunto de ruínas (Fig.8), chegou a abrigar [...] Nós também fomos embora para o Mu- mais de 500 pessoas, o que hoje não perfaz cambo, também não tinha condições de ir a população total da vila. Como conta para longe aí fomos para perto. Quem tive- M.S.M, 68 anos, que “no Luís dos Santos ram condições de ir para longe foram para (...) eu conheci casas ali, casas de negócios, São Paulo, Rio de Janeiro, outros foram casa comercial, vendendo bebida, tecido, para Brumado. Eu sei que fez fila em 60, carne, toucinho. Tinha carnaval, bloco de tava uma decadência já grande”. carnaval (...), tinha muito ourives, trabal- A partir da década de 1960 (Fig.7, p.15), hando ouro lá”. E em um suspiro de memó- alguns moradores retornaram a vila, ao ria A. L.S., 65 anos, completa que “nas ruí- garimpo e ao comércio, sem o mesmo brilho nas do Luís dos Santos, morava umas 500 de antes, mas com a mesma esperança de pessoas e hoje só tem Marcos...”, referindo- enriquecimento. O lugar não mais vivia sob se a um novo morador da vila. a luz dos diamantes refletidos na rica so- Embalado nas lembranças dos tempos ciedade. As pedras já não eram tão abun- marcantes da vila Seu E.V.C. de 76 anos dantes num próprio reflexo da degradação põe a saudade à sua frente e revive a acentuada nos tempos áureos. As casas que história: PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121
  • 12. 580 Lugar de Memória .... Memórias de um lugar... Nessa época no Luís dos Santos tinha tudo estranho (...) toda qualidade de pes- mais de mil pessoas. Lá tinha vendada, soa. Tantas casas surgindo ai...o pessoal tinha tudo! Fazia festa muito micareme12 e trata a gente bem, não pode também falar bonito. Na festa de lá tinha tanta moça que mal dele, mas sinto falta do tempo que todo fazia micareme lá e que batia no micareme mundo tinha suas casinhas e morava....e da praça. Era separado por política, o pes- dos parentes da gente tudo junto, como soal daqui da praça fazia um cordão e pe- agora que fiquei sozinha aqui...!” gava campanha com o do Luís dos Santos. A.L.S., 65 anos, durante entrevista, permanecia na saudade que os tem- pos contados lhe trazia. O tempo de movimento social e de crescimento do lugar, quando rememoriza: “A lembrança mais bonita é que tinha umas filarmônicas muito bonita aqui. Tinha telefone, se queria falar com Andaraí rodava o microfonete, aquilo é uma lembrança. Queria falar com Mucugê, passava para Mucugê e tinha também que sempre descia de a pé por aí era difícil um carro naquela época, tudo era de animal, então...” A lembrança nunca vem só no destino de quem a procura. Ela está contextualizada na eterna relação Figura 8: Ruínas do bairro Luís dos Santos. Fonte: espaço-tempo, que nas palavras de http://www2.uol.com.br/mochilabrasil/imagens/igatu17.jpg Carlos (2002, p.173) “implica um Acesso em 22.out.2004. novo modo de pensar a realidade e como o homem vive essas transfor- Dá tristeza, hoje, porque vai lá e não ver mações num cenário sempre cam- ninguém! biante”, e compõe a paisagem descrita. A Os momentos de vida marcantes, memória de uma história singular remete- narrados e registrados a luz da imaginação se ao coletivo, embora as ações sejam indi- e da memória resgatada, traz consigo viduais. Quando questionados sobre suas fragmentos de um tempo travado nas lembranças, os registros trazem consigo lembranças mais bonitas pertencentes ao imagens e representações que são comuns a lugar. É o que relata A.C.S. de 70 anos, que um território, mas sob a leitura, a visão lembra da “infância, os colegas dos tempos cultural de um testemunho. Por mais que a que brincava de roda, da sociedade, das história seja pano de fundo coletivo as in- amigas, da igreja que cantavam um coro terpretações se fundamentam em experiên- enorme... várias lembranças e a que toca cias vividas e estas são individuais (Porte- mais é a dos meus pais (...) lembrança mais lli, 2001). forte e bonita, meus pais aprenderam comi- A natureza que foi moldada com a explo- go, não liam...”. A infância também povoa a ração das pedras, revirada em cascalhos e saudade de M.C.O. que com 83 anos sente- sucumbida à degradação criou formas que se ameaçada pela nova configuração de- contam a história, (re) significam paisagens mográfica da vila. O intenso movimento, as e se colocam no presente para lembrar do pessoas que entram e saem sem a ligação passado. A figura 9 (p.17) constitui uma genealógica típica do interior, retrata um leitura, uma cartografia da memória dos momento de insegurança da vila que ambi- moradores antigos que ao rememorar o ciona um renascimento. Ela suspira como passado traz à tona a lembranças dos luga- quem vê o passado a sua frente: “A lem- res que marcaram momentos e registraram brança mais bonita é quando era criança, a história da vila. tinha outra liberdade, que não tem hoje, do passado...ta chegando muita gente, mas PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121
  • 13. Cyntia Andrade 581 Figura 9: Cartografia da memória – Xique-Xique de Igatu 1940-1950. Fonte: Mapa do centro urbano de Igatu sem definição de escala, fornecido pelo IPHAN (Lençóis-BA). Elaboração: Prof. Dr.Mauricio Moreau. (UESC-BA), com dados cedidos pela autora, 2004. O tempo de festa, ambição e riqueza marcaram a paisagem da vila. Bares, farmácias, clubes de festas, delegacias e principalmente a área de diversão, os prostíbulos que tanto esperavam pela co- memoração dos garimpeiros. O garimpo e a sorte Descoberto em 1844, o diamante passou a ser a mola propulsora do desenvolvimento Figura 10: Diamantes na mão de um comprador. Fonte: http://www2.uol.com.br/mochilabrasil- da Chapada Diamantina. Cidades nasce- /imagens/igatu30.jpg Acesso em 22.out.2004. ram e decaíram com as pedras diamantífe- ras (Fig.10). A história do diamante é a própria história das cidades da Chapada. Os locais de mineração conhecidos como O garimpo constituiu-se como a princi- garimpo, foram acontecendo à medida que pal atividade econômica da região durante os próprios diamantes eram encontrados décadas. Traçou a história política, econô- nos rios, nas rochas, espalhados na serra. mica e toda a estrutura social narrada na Os donos do garimpo, geralmente, trabal- memória e registrada na paisagem do lu- havam com o sistema de meia-praça, que gar. Como toda atividade produtiva, o ga- consistia em um trabalho de parceria aonde rimpo deixou marcas no cenário local que, havia um adiantamento em forma de feira, sob uma ótica cultural, faz a leitura de um alimentação, enquanto o garimpeiro não passado que não parece muito distante. encontrava a pedra. Quando acontecia, o Ainda hoje muitos moradores estão à pro- diamante era levado para o dono do garim- cura do diamante perdido, aquele que reali- po que tinha a “preferência” e dava o preço, zaria o sonho de riqueza. muitas vezes abaixo do que valia, para pas- sar adiante com uma grande margem de PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121
  • 14. 582 Lugar de Memória .... Memórias de um lugar... lucro garantida. Como Rocha (1980, p. 50) não pagasse ai botava pra fora [...] Não deixa claro no seu romance Maria Dusá, gosto de falar dessas coisas, garimpei a que se passa na vila de Xique-Xique na vida toda, peguei pedras, tudo pros ou- época de 1860: “Pois é porque ainda tenho tros...hoje não tenho nada. Me dá raiva! coragem de arregaçar a calça e meter no pé Há quem conte ainda pelos botequins da no trabalho, que eu gosto de contar a minha vila, que muitos proprietários de garimpo vida. Eu fui criado no trabalho. Antes da ao receber a extração do dia pelos seus tra- fome, eu tinha minha criaçãozinha, minha balhadores, desconfiados, davam óleo de roça e, como pobre, sustentava a família. rícino para que não sobrasse nenhuma Quando arrojou a seca, vendi tudo para dúvida se o que foi entregue era realmente comer. Quando não pude mais, sai da terra. o que se tinha retirado da terra. Como ain- Como o senhor me viu, andei mendigando, da retrata Seu E.V.C., antigo garimpeiro: até que, por seu parecer vim pr’aqui. E por “[...] Tinha o tempo que usava a escravidão, felicidade o trabalho não faltou. Trabalhei e para não dar ele porque judiava, engolia alugado uns dias, fui vivendo, até que fui os diamante e no outro dia ia fazer efeito. convidado pra trabalhar de meia-praça Agora os donos dos garimpos conhecia num serviço de gruna13, do Bom Será14. quem fazia isso pegava e prendia o garim- Serviço duro, senhor onde eu ia perdendo a peiro e dava óleo para o garimpeiro e espe- vida, por ser inda reculuta. O dono teve rava sair...” pena de mim, foi me adiantando o saco toda E por ai as histórias ganham imaginaç- a feira, porque eu não tinha outro jeito. ão nessa relação social que em meio às re- Depois de um mês de trabalho, em que foi ações negativas ainda se faz presente. En- preciso arrebentar co broca um emburrado riquecer famílias era sua sina dada a sua dos diados, também a gente catou diamante sorte. Os dentes de ouro, o luxo, a que foi um gosto! Como meia-praça, me ostentação material e a luxuria eram coube uns quatro contos, e eu comprei esta produtos de quem tirara a sorte grande e casinha e botei esse negócio, porque no fim apurou um uma pedra de qualidade15 ou, o diamante ficou cumprido”. (grifos do au- como diziam: - “fulano bamburrou!”. Já vai tor) longe a história de quem se enriqueceu de É o que reafirma A.C.S. 70 anos, saindo dia e a noite a “carruagem virou abóbora”. da obra literária para a vida vivida: “Quem O período entre estar rico e ficar pobre é não trabalhava no Brejo ou nas grunas, nos tão fugaz que dura o tempo de um jogo ou garimpos com água ou a seco, por conta ou de uma noite bem paga nas casas badala- para o patrão, os chamados meia-praça, das na movimentada noite da vila. Como vendia para o patrão ou comercializava retrata Rocha (1980, p.50): “[...] Garimpo é para terceiros”. Outro antigo garimpeiro, um jogo. Só deve jogar quem não tem muito E.V.C., de 75 anos, fala com ressentimento a perder, e ganhando, deve sair e não vol- da relação conflituosa e muitas vezes injus- tar, enquanto tiver dinheiro. Quer uma ta que separa os estratos de uma sociedade: prova? Olhe, o homem que primeiro me [...] trabalhar para pegar o diamante era alugou, estava quase rico; pois já gastou o mais fácil, mais difícil era o que comer tudo com o serviço, com o luxo, e está infu- né? Todo mundo podia garimpar [...] na sado que mete dó! Esta semana me veio época de 60, 1950...dava muito diamante, o pedir o saco fiado, e eu não tive jeito senão comercio tava maravilha ainda do garimpo, fiar”. né? Agora o cativeiro era demais...porque o A vida do garimpeiro está entre os garimpeiro pegava o diamante e quem dava cascalhos revirados incansavelmente dia , quem dava a farinhazinha, fornecia cha- após dia, a espera da sorte grande, que mado fornecimento, dava a farinha com- quando encontrada segue um já prava o diamante [...] o garimpeiro tinha predestinado no meio: aquela besteirinha de nada e não fazia na- Quem trabalha nos garimpos, provavel- da, nada, nada e hoje tá mio [...] acabou o mente por influencia do meio, raro escapa garimpeiro na serra, não tá tendo quase, tá ap mau hábito de tornar-se gastador. Se tendo pouquinho e uma tal de uma porcen- bafejado pela sorte, tem prazer em ostentar tagem que eles cobravam antigamente, prodigalidade: seguindo o exemplo dos chamada quinto, hoje não tem mais [...] companheiros bamburristas, como que se PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121
  • 15. Cyntia Andrade 583 sente na obrigação de esbanjar boa parte do Seu M.S.M., 68 anos, reforça as lem- seu ganho, promovendo beberetes e dissi- branças em uma leitura poética e com um pando o dinheiro em outras futilidades. novelo de esperança sobre o lugar: "O Co- (minha vida nos garimpos,1980, p.37) usa Boa foi um ponto de muita pedra, tem O dialogo entre personagens do romance até aquela história de Maria Dusá [...] um Maria Dusá, é um fiel retrato da realidade garimpo muito bom era Bom Será, e o re- que perdurou na vida de tantos e tantos cente o Brejo que deu muita pedra. Não se garimpeiros. Os diamantes brilharam e sabe se ainda tem muita pedra, se tiver lá ofuscaram os sonhos num eterno processo por debaixo do segredo, só Deus sabe.” (gri- dialético entre o perder e o ganhar. Seu fo nosso). A.S. de 69 anos lembra que “dinheiro de Na figura do garimpeiro repousa a in- garimpo é como dinheiro de jogo, tinha quietação, a coragem, o desbravamento e aquela alegria e quando acabava ia para inevitavelmente a esperança. A saída diá- serra de novo pegar outro”. ria, ainda no raiar do sol, hoje já aliada à Em outra passagem pelo romance, Ro- outra fonte de renda, não se vive só do ga- cha (1980, p. 86) escreve: rimpo, discorre a feição de um importante Eis por que em todas as minas de di- documentário vivo e ativo da sociedade do amantes, por grandes que sejam suas ri- diamante. quezas, gira com rapidez maior que em O genuíno garimpeiro é uma organizaç- qualquer outra industria, a roda da Fortu- ão especial, de educação física e moral algo na e ninguém sabe ao justo, quando se aba- semelhante à dos marinheiros. [...] A dife- tem os muros e levam-se os monturos, rença entre as duas classes está em que o acontecendo ainda que aquele que se abate marinheiro obra disciplinadamente, e o hoje, levanta-se amanhã, e assim sucessi- garimpeiro, por impulso, ambição, entu- vamente. siasmo, ou valentia, transfigurando-se, por O “Cousa boa” , como o próprio nome su- vezes, em mártir ou herói, é sempre o velho gere, foi um garimpo responsável pela as- garimpeiro, o incorrigível sonhador das censão da então vila de Xique-Xique. A bandeiras e entradas de aventureiros, vi- abundância de diamantes cobriu de pedras vendo romanticamente, nutrido moralmen- a sociedade local. Outros garimpos também te por um ideal de riquezas inexauríveis. tiveram importância como o Bom Será, o (Rocha, 1980, p.80). Criminoso, Califórnia, Angico, Piaba, Luís O garimpo contou sob intermináveis dos Santos, Borrachudos, Bicano, Torres, montanhas de cascalhos, as chamadas Gererê, Caetano Martins, Gameleira, Ra- montoeiras17, a história do lugar, onde a poso, Capão, Verruga e o Brejo (Santos, própria geografia local é testemunha. Áreas 2001). Mais recente, o garimpo do Brejo reviradas, paisagens modificadas e vidas marcou época, sendo considerado por mui- acalentadas pelo garimpo que ainda é pra- tos como uma fonte inesgotável de diaman- ticado, mesmo sobre as sombras do medo da tes. Dona A.C.S. de 70 anos, descreve a fiscalização. Depois da febre do diamante relação social existente na época: datada até meados dos anos 40, segundo O garimpo Cousa Boa, na Passagem, informantes, os garimpos continuavam dava muito diamante, que não alcancei por trabalhando, mas agora atendendo a sua ser menina. A segunda etapa de maior ex- população e alguns aventureiros que tei- ploração foi no Brejo, onde a gruna foi aber- mavam em sonhar com a riqueza. ta e vários grupos de garimpeiros trabal- Por volta dos anos 80, a Chapada passa havam no lugar. Eram abertas portas que por uma nova procura diamantífera só que delimitavam o espaço de exploração das dessa vez com maior presença de máquinas ‘sociedades’. O lugar era iluminado antes e equipamentos mais potentes do ponto de por candeeiros e depois por energia elétrica, vista ambiental. São as dragas18 que o que por si só já era uma ‘atração turísti- chegaram derrubando tudo que servisse ca’. [...] Dizem que ainda tem a mesma como obstáculo ao seu ideal. Rochas, leitos quantidade de diamantes, mas já morreu de rios, a própria serra se sucumbiu diante muita gente ali, porque é um trabalho de escavações poderosas se reduzindo a difícil e é preciso fazer as calçadas e os cascalho em pouco tempo de ação. As horas giraus16. trabalhadas pelos antigos garimpos, agora PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121
  • 16. 584 Lugar de Memória .... Memórias de um lugar... são minutos contados atrás dos diamantes. O garimpo que ainda sobrevive se alia a O impacto ambiental foi intenso e irre- atividades mais segura do ponto de vista mediável. Não se conhecia mais o lugar, o econômico. Hoje, quem é garimpeiro em posicionamento de muitas pedras que as Igatu, também é comerciante, agricultor, lavadeiras se encontravam para trabalhar e funcionário publico, guia de turismo, ou contar histórias, rios assoreados que vira- seja, há a necessidade de uma atividade vam armadilhas aos banhistas, que muitas conjugada. As dragas foram proibidas em vezes resultou em morte com valas abertas 1996 pelo IBAMA e CRA19 e outros órgãos no fundo do seu leito. A história que se con- responsáveis, junto a policia federal. O caos ta não é a história que se quer. Já não se aparentemente passou, mas as marcas im- tem o mesmo brilho da extração anterior- pressas na paisagem registram um capítulo mente contada. A máquina aniquila o poder que mancha a história que conta à saga dos manual. As mãos calejadas e o corpo cansa- garimpeiros na região. do que se arriscava em busca de um sonho, agora atende aos mandos de uma caixa de O Legado Cultural: uma aproximação para marchas para enriquecimento industriali- o turismo zado, muitas vezes de quem nunca tivera por ali. Fazer um a leitura da paisagem consti- Funch (1997: 191) narra bem essa tui um exercício de interpretação. Partindo questão, quando diz: da noção de que “a paisagem não é um O impacto negativo do garimpo mecani- suporte passivo, mas uma entidade ativa, zado no meio ambiente fora multiplicado integrante e testemunha de uma dinâmica por causa do aumento do numero de pesso- cultural que se constrói no tempo e se as envolvidas nessa atividade e o uso de manifesta no espaço” (Oliveira, 2002: 225), máquinas potentes nos trabalhos: crateras as etapas vividas e toda a sua produção abertas nos leitos dos rios; cursos de água cultural são acumuladas na paisagem como desviados e assoreados; devastação da po- uma representação contemporânea pulação ribeirinha; detritos de maquinarias produzida em escalas temporais diferentes. abandonados pela área e lixo acumulado A paisagem construída é uma represen- nos acampamentos; estradas abertas pelos tação real dos tempos vividos, um reflexo do garimpeiros para dar acesso às minas dani- modo de apropriação e dos traços culturais ficaram trechos significativos ao longo dos dominantes, podendo ser, portanto, uma rios da região. revisão literária da história local. Sauer Igatu não teve a presença das dragas em (1998: 09) esclarece que “a paisagem sua paisagem, mas muitos garimpeiros cultural é modelada a partir de uma saíram em busca desse trabalho mecânico, paisagem natural por um grupo cultural. A onde o impacto também subiu a serra em cultura é o agente, a área natural é meio, a busca de condutores de uma forma mais paisagem cultural o resultado”. Com base potente de exploração ambiental. É quando no binômio, paisagem-cultura, é que as Nolasco (2000: 12) explica que “as dragas relações socioeconômicas desenham o espa- não chegaram em Igatu. Os garimpos tradi- ço habitado. cionais fizeram da região uma área sem O conceito de cultura se constrói à me- solos, com fraturas reabertas por limpeza dida que se escuta as narrativas do local. A do cascalho que o preenchia”. Mas o sonho apreensão dos costumes, símbolos e signifi- do garimpo ainda vive quando se depara cados, verdadeiros instrumentos culturais, com anseios embevecidos de saudades de pelos moradores locais estão condicionadas Dona A.S. P. de 67 anos, “por isso que o ao modo de vida da vila. A cultura do ga- garimpeiro vive encabulado, o pessoal quer rimpo ainda é forte na população após acabar com o garimpo... mas a gente ainda décadas e gerações. Filho de garimpeiro, pega um cascalho. Eu nunca peguei grosso, garimpeiro é! Essa máxima perdeu um mais eu tinha sorte no garimpo. Ah! Se eu pouco a sua força a partir dos anos noventa, pudesse ainda trabalharia com o garimpo!”, por conta da proibição do garimpo, embora e Dona D.O.S. de 65 anos, “quando o negó- tenha sido válida, praticamente uma regra, cio tá ruim a gente vai para serra. Eles nos anos de glória da atividade garimpeira. querendo ou não, é disso que a gente veve!”. Santos (1998: 61) afirma que a “cultura, PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121
  • 17. Cyntia Andrade 585 forma de comunicação do individuo e do feitas de lutas, de cobiças, de ambições des- grupo com o universo, é uma herança, mas temidas e de festas homéricas, como lem- também um reaprendizado das relações bram certos habitantes da região, que ain- profundas entre o homem e o seu meio, um da em memória as histórias contadas por resultado obtido através do processo de antigos garimpeiros da vila, e que excedia viver”. todas as expectativas em termos de esplen- A cultura é dinâmica, construída no dia dor e opulência. [...] Testemunho que deve a dia, e condiciona o modo de perceber o ser urgentemente resgatado do anonimato, mundo. O garimpeiro sonha em encontrar a transformando todo o conjunto arquitetôni- grande pedra e mesmo que se passe 30 co das ruínas e das pequenas casas ainda anos, a sua relação com a terra será de existentes em patrimônio histórico e cultu- eterna esperança, como sinaliza Laraia ral nacional (Jornal a Tarde, 12/07/1998, (2003: 68): “o modo de ver o mundo, as p.07). apreciações de ordem moral e valorativa, os O tombamento da vila trouxe aconchego diferentes comportamentos sociais e mesmo frente ao medo de ver Igatu perecer e correr as posturas corporais são assim produtos de o risco de perder sua identidade, estepizar uma herança cultural, ou seja, o resultado sua cultura sob olhares e ações ganancio- da operação de uma determinada cultura”. sas, uma preocupação que também vem de Neste contexto, Pelto (1967: 111-112) con- dentro da população local, como alerta ceitua cultura sob uma visão antropológica V.M.B.D., de 39 anos, nova moradora: relatando [...] existe uma preocupação com a es- [...] o que freqüentemente, entendemos trada que deve ser preservada. Estudar por cultura não vai além da ‘herança social’ maneiras de controle de forma que a popu- de um determinado grupo de individuo. A lação junte e se alie a esse processo, porque herança social não é uma ‘coisa’ que se somente a população pode proteger, porque transmite intacta de geração para geração, não tem como colocar um fiscal em cada como um móvel ou um cofre. Mas consiste construção dessas, em cada lugar. Então nessa abstração complexa que daríamos esse é o fator mais preocupante que pode forma como se não fosse possível fazer a vim a preocupar a vila. síntese de todas as idéias, categorias de Essa realização se tornara essencial pa- significados e ‘normas’ de comportamentos ra a perenidade de todo patrimônio cultural que os indivíduos de uma comunidade pos- e natural envolvido. Entendendo-se que suem. Cada nova geração discerne e trans- A palavra patrimônio tem vários signifi- forma os sistemas ideológicos, os significa- cados. O mais comum é conjunto de bens dos e as normas, nenhuma tradição social é que uma pessoa ou entidade possuem. [...] fixa e nem invariável em uma sociedade. O patrimônio pode ser classificado por duas (tradução nossa). grandes divisões: natureza e cultura. Pa- Em 2000 o Instituto do Patrimônio trimônio natural são as riquezas que estão Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) no solo e no subsolo [...] Quanto ao pa- realizou o tombamento do centro histórico trimônio cultural, esse conceito vem sendo de Igatu, o conjunto arquitetônico, urbanís- ampliado à medida que se revisa o conceito tico e paisagístico, depois de vários apelos e de cultura. (Barretto, 2001: 9). sinais de alerta dos ambientalistas e mora- O patrimônio a que se refere não se limi- dores preocupados com o futuro local. Tor- ta apenas ao estrutural, ao estático. Inclui nar público o descaso do patrimônio nacio- essencialmente, os contos, os temperos, os nal é um dever do cidadão que analisa o valores e costumes de uma população que ambiente de forma macro e sistêmica. In- tem no modo de vida a afirmação de sua conformado com o abandono, o ambientalis- identidade. Nesse contexto, as ruínas, as ta inglês Daniel Bloom revela sob um tom trilhas dos garimpos, as histórias narradas de indignação o descaso com o patrimônio de geração a geração, a comida de D. Lita, o publico brasileiro. Registrado pela impren- restaurante da Norma, os trabalhos ma- sa, ele desabafa: nuais do Amarildo, a casa de Lindaura, as Resta-nos hoje o emocionante teste- artes e os artesanatos produzidos em cada munho desta sociedade lavrista, que origi- beco, entre outros, constitui o mais rico nou uma revolução de costumes na Bahia, patrimônio herdado pelo lugar, ou melhor, PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121
  • 18. 586 Lugar de Memória .... Memórias de um lugar... um valioso legado cultural. cas do tempo em sua face. Resquícios de A presença abundante da cactácea ins- atividades garimpeiras como o Poço do Bre- pirou o batismo do lugar que mesmo após a jo, o Canal da Fumaça, Gruta do Teté e a mudança do nome, ainda se faz presente na antiga mina Brejo/Verruga, podem servir cultura popular. O Xique-Xique (Pilosoce- como objetos de interpretação do seu pa- reus gounellei) e a Palma (Opuntia fícus- trimônio, conciliado com a atividade turísti- indica) fazem parte da mesa dos moradores ca crescente na pequena vila. O retorno às locais que desperta curiosidade de quem suas raízes culturais e manifestações reli- vem de fora e desconhece tal prática ali- giosas esboçarão um traçado de continuida- mentar comum aos sertanejos de um modo de no intuito de manter íntegra a sua de- geral, como caracteriza Andrade (2002: 54): rradeira riqueza. Na Chapada Diamantina, “o cortadinho As memórias acumuladas historicamen- de palma” está entre as comidas típicas te fazem surgir personagens contados na mais apreciadas por moradores e turistas vida real. Símbolo cultural da cidade, Ama- da região. Nos municípios de Andaraí, Mu- rildo, 41 anos, nascido e criado na vila, tal- cugê e Lençóis, o picadinho de palma é con- vez seja o mais expressivo patrimônio siderado um dos três pratos típicos que humano da história contemporânea de Iga- caracterizam a região, juntamente com o tu. Figura ímpar, de fala firme e confiante, godó (cortado de banana verde) e com pica- ele discorre sobre a história e os anseios do dinho de mamão verde. lugar como quem fizesse uma leitura de sua Todo o legado cultural que se repousa própria vida. Aliás, Igatu, que ele conta de nos temperos locais, usos e costumes são forma quase rudimentar, quando se lembra valores representativos da identidade local, que o século XXI já raiou, em páginas ma- resquícios dos tempos mais difíceis, o con- nuais cada passo da vila diariamente como sumo de cactáceas hoje se configura como se fosse provedor dos acontecimentos da uma marca agregada ao patrimônio local, dinâmica do lugar. Há mais de quatro anos, além de toda a sua história contada e anco- escreve sobre a história da cidade no mes- rada na paisagem. mo ritmo que a vida lhe encaminha. O patrimônio cultural – ou seja, o que Quem chega, quem sai, aqueles que já se um conjunto social considera como cultura foram... Fazem parte de uma contabilidade própria, que sustenta sua identidade – não precisa e solitária como quem sugere que o abarca apenas monumentos históricos, o patrimônio não é apenas para ser visto, desenho urbanístico e outros bens físicos; a mas para ser ouvido, narrado, sentido, ou experiência vivida também se condensa em melhor, para se fazer uso de todos os senti- linguagens, conhecimentos, tradições ima- dos. O que encontra reforço nas palavras de teriais, modos de usar os bens e os espaços Canclini (1999: 107) quando fala que “a físicos. (Canclini, 1999: 99). ampliação do conceito elitista de cultura e a É nas palavras e ações de M. Z., artista inclusão das formas artesanais de produção plástico, 42 anos, morador recente da vila, popular foram um avanço”. Uma critica a idealizador da Galeria Arte & Memória, inclusão única e exclusivamente de produ- que junto com a comunidade local construiu tos arquitetônicos como parte interessante uma representação viva de sua história da cultura, quando se olvida dos saberes e recolhendo objetos em forma de doação fazeres que brota do seio da população lo- para uma exposição permanente de ins- cal, os verdadeiros personagens da vida trumentos que falam sobre o lugar, que real. O que se revela em seguida com o de- também pode ser interpretado todo o legado creto presidencial nº 3.551, de 04 de agosto de um tempo que repousa na memória da de 2000, no qual abarca “dos saberes”, “das vila e deve ser conhecedor de quem se aven- celebrações” e “das formas de expressão”, tura a conhecê-lo. M. Z. sintetiza (2004: 1): como patrimônio imaterial de uma popu- Ruínas do Bairro Luís dos Santos, as lação. Ou como ainda informa Geertz (1989: áreas do Bambolim, Barriguda, Rua da 62), aonde “nossas idéias, nossos valores, Forca, inseridas no seu entorno urbano, são nossos atos, até mesmo nossas emoções são, registros de imenso valor ao seu sensível como nosso próprio sistema nervoso, produ- patrimônio, legado do extrativismo que tos culturais [...]”. traçou o contorno que hoje desenha as mar- O patrimônio material representado pe- PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121