Este documento apresenta uma dissertação de mestrado em Antropologia Social defendida por Zoy Anastassakis no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ em 2007. A dissertação analisa a experiência do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), órgão autônomo que funcionou entre 1975 e 1979 sob a coordenação de Aloísio Magalhães. O CNRC propunha uma abordagem inovadora da cultura brasileira centrada nos contextos sócio-históricos e na participação popular. A
Dentro e fora da política oficial de preservação do patrimônio cultural no Brasil
1. Universidade Federal do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Museu Nacional
Dentro e fora da política oficial de preservação do patrimônio cultural no Brasil:
Aloísio Magalhães e o Centro Nacional de Referência Cultural
Zoy Anastassakis
2007
2. Dentro e fora da política oficial de preservação do patrimônio cultural no Brasil:
Aloísio Magalhães e o Centro Nacional de Referência Cultural
Zoy Anastassakis
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social,
Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos necessários
à obtenção do título de Mestre em Antropologia
Social.
Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte
Rio de Janeiro
Janeiro de 2007
3. Dentro e fora da política oficial de preservação do patrimônio cultural no Brasil:
Aloísio Magalhães e o Centro Nacional de Referência Cultural
Zoy Anastassakis
Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.
Aprovada por:
_________________________________________
Presidente, Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte
_________________________________________
Prof. Dr. Gilberto Cardoso Alves Velho
_________________________________________
Prof. Dra. Regina Maria do Rego Monteiro Abreu
Rio de Janeiro
Janeiro de 2007
4. Anastassakis, Zoy.
Dentro e fora da política oficial de preservação do patrimônio cultural no
Brasil: Aloísio Magalhães e o Centro Nacional de Referência Cultural / Zoy
Anastassakis. – Rio de Janeiro: UFRJ, Museu Nacional, PPGAS, 2007.
xiv, 156f.
Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte
Dissertação (Mestrado) – UFRJ/Museu Nacional/Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social, 2007.
Referências Bibliográficas: f. 144-156.
1. Centro Nacional de Referência Cultural 2. Aloísio Magalhães
3. patrimônio cultural. 4. anos 1970.
(Mestre, UFRJ/PPGAS)
1. Título.
5. À memória das minhas avós
Zoy Tinika e Jovelina de Jesus Malheiros,
que não estando e estando
tão presentes
sempre foram.
Ao futuro, que é todo da Mina.
6. Resumo
Na presente dissertação, proponho uma revisão do lugar atribuído pela
literatura que trata do patrimônio cultural ao Centro Nacional de Referência Cultural. Se
tais estudos inserem o CNRC dentro da trajetória das políticas oficiais de preservação do
patrimônio cultural no Brasil, sugiro que uma leitura articulada dos textos que analisam o
Centro com os documentos produzidos pelo órgão a fim de definir sua proposta apontam
para a necessidade de compreendermos a experiência do CNRC – que funcionou de
maneira autônoma entre 1975 e 1979 – no contexto mais amplo dos anos 1970. Assim,
como dispositivo analítico, proponho o deslocamento do Centro do âmbito restrito do
‘patrimônio cultural’, através de uma análise das categorias que informavam a sua proposta.
Acredito que tais categorias iluminem melhor o entendimento do que tenha sido a
experiência do Centro Nacional de Referência Cultural.
Palavras-chave: Centro Nacional de Referência Cultural, Aloísio Magalhães, patrimônio
cultural, anos 1970.
7. Abstract
In the present essay I propose a revision of the place Brazilian literature on ‘cultural
heritage’ attributes to the National Centre for Cultural Reference (Centro Nacional de
Referência Cultural/CNRC). These studies analyze the CNRC as a part of the official
policies on the conservation of Brazilian ‘cultural heritage’. I suggest, rather, that a
comparison between the texts that analyze the Centre and the documents which were
produced by the institution with the aim of defining its identity point to the necessity of
understanding the experience of the CNRC – which functioned autonomously between
1975 and 1979 – in the broader context of the 1970’s. Therefore, as an analytical device, I
propose to displace the Centre from the ‘cultural heritage’ label and to analyze the very
categories which informed its institutional program. The analysis of these categories throw
a new light upon the experience and the role of the National Centre for Cultural Reference.
Keywords: Centro Nacional de Referência Cultural, Aloísio Magalhães, cultural heritage,
1970’s.
8. Agradecimentos
Ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ, pela
acolhida, e por tudo o que aprendi nos cursos de Teoria Antropológia I e II (Prof. Federico
Neiburg e Prof. Antonádia Borges), Antropologia das Sociedades Complexas (Prof.
Gilberto Velho), Antropologia dos Rituais (Prof. Antonádia Borges), Antropologia do
Corpo (Prof. Aparecida Vilaça), Pensamento Social Brasileiro (Prof. Giralda Seyferth),
Minicurso “Nós e as coisas” (Prof. Joaquim Pais de Brito) e no Grupo de Estudo sobre
Religiões Africanas (Prof. Marcio Goldman).
Ao Professor orientador desta tese, Luiz Fernando Dias Duarte, que sempre acreditou no
trabalho.
À Professora Silvia Steinberg, da ESDI-UERJ, minha orientadora na graduação, e na vida,
agradeço por tudo e, ainda mais, por ela ter me indicado o PPGAS.
Ao Professor Gilberto Velho, que com suas aulas mostrou que a Antropologia era algo
possível para mim.
Aos Professores Eduardo Viveiros de Castro e Carlos Fausto, que me honraram com o
convite para desenvolver o logotipo e o site do Nuti, trabalho que antecipou minha
convivência com o Programa.
À Prof. Giralda Seyferth, pelo que pude aprender sobre o pensamento social brasileiro.
Às Professoras Aparecida Vilaça e Antonádia Borges, pela amizade, pela atenção, pelo
incentivo constante e pelas aulas maravilhosas.
Ao Professor Marcio Goldman, minha admiração.
Ao Professor Joaquim Pais de Brito, que me mostrou um caminho em Antropologia.
A João de Souza Leite, que me sugeriu o CNRC.
A Maria Cecília Londres Fonseca, autora do livro que me fez querer pesquisar sobre este
tema, e que esteve presente todo o tempo durante o desenvolvimento deste trabalho.
A Henrique Oswald de Andrade, pela ajuda internética.
Aos Profs. Regina Abreu (UNIRIO) e Manuel Ferreira Lima Filho (UCG), que organizaram
o Colóquio “Patrimônio, Cidadania e Direitos Culturais”, em Goiás Velho, onde foram
discutidas muitas das questões que informam esta pesquisa.
9. A Teresa Sá, Barrão, Kiti Duarte e Elianne Jobim, mestres que, com sutileza e inteligência,
contribuíram imensamente para minha formação profissional.
A todos os professores da ESDI, e também a Szymon Bojko e Fayga Ostrower.
Ao DEMU do IPHAN, pela “Semana de Museus”, onde pude aprender mais um pouco
sobre o patrimônio.
A Letícia Carvalho, pela presença tão estimulante e encantadora, e, além de tudo isso, pela
paciência e pela leitura.
A Clara Flaksman, pela amizade que tanto prezo, e por que ela me trouxe para o PPGAS.
A Marina Vanzolini, pela dissertação, e pela defesa de sua dissertação, com as quais eu
aprendi muito.
A Soledad Castro, pela acolhida em Brasília, e pelas conversas divertidíssimas.
A todos os colegas do Programa, pessoas incríveis que me mostraram um mundo novo.
A Monica Neves, que ajudou a fazer de 2006 um ano possível.
A Marina Sartier, que me disse que ia dar tudo certo.
Aos meus pais, que sempre me incentivaram a fazer o que eu acreditava.
A minha mãe, especialmente, pela paciência em ler e revisar meus textos.
Aos meus irmãos, à Ana Paula (também pela tradução), ao Waguinho e à Luana.
Ao Ivor e à Marcia, por terem sido sempre tão presentes. Ao Alvinho e ao João.
Ao Domenico e à Mina, pelo amor, pela casa, pelo estímulo, pela paciência e pelo
investimento conjunto.
Ao IPHAN, ao COPEDOC e à Sheila (chefe do setor), pela disponibilidade que
demonstraram em viabilizar minha pesquisa nos arquivos.
Aos funcionários do PPGAS: Tania e Beth, da Secretaria; Carla e todas as funcionárias da
Biblioteca.
À CAPES e à FAPERJ, que me concederam bolsas, sem as quais teria sido impossível
desenvolver esta pesquisa.
10. Índice
Introdução .......................................................................................................................... 01
Capítulo 1: Da biblioteca .................................................................................................. 12
1.1 Breve apresentação dos textos relacionados............................................................ 16
1.2 O Centro Nacional de Referência Cultural .............................................................. 27
1.2.1 Projeto pessoal ou o resultado de um encontro ....................................................... 27
1.2.2 Uma experiência pioneira e ambiciosa ................................................................... 30
1.2.3 Trabalhando com os contextos ................................................................................ 32
1.2.4 O conceito de ‘referência cultural’ .......................................................................... 33
1.3 Cultura, antropologia e desenvolvimento ............................................................... 35
1.3.1 Politizando uma concepção antropológica de cultura e sociedade ......................... 35
1.3.2 Conceito de cultura ................................................................................................. 36
1.3.3 Outras matrizes de racionalidade ............................................................................ 38
1.3.4 Antropologia por não-antropólogos......................................................................... 39
1.3.5 Cultura e desenvolvimento....................................................................................... 40
1.4 CNRC, Iphan, MEC, Governo Geisel ..................................................................... 42
1.4.1 Antecedentes: uma dupla crise de legitimidade ...................................................... 42
1.4.2 O CNRC como alternativa ao Iphan ....................................................................... 45
1.4.3 Organismo autônomo .............................................................................................. 46
1.4.4 O lugar do MEC no Governo Geisel ...................................................................... 48
1.5 Aloísio Magalhães, o design e a cultura .................................................................. 50
1.5.1 Um líder diferente: a contribuição pessoal de Aloísio Magalhães........................... 50
1.5.2 Em Brasília, encontro com o projeto ....................................................................... 55
1.5.3 O papel do Design ................................................................................................... 57
1.6 Entre o ‘heróico’ e o ‘moderno’: tecendo algumas comparações............................ 59
1.6.1 Aloísio x Rodrigo .................................................................................................... 59
1.6.2 Quem usa e quem é usado: Rodrigo e Aloísio em meio a regimes militares de
governo ................................................................................................................... 60
1.7 Os legados do CNRC .............................................................................................. 62
11. Capítulo 2: Do arquivo ..................................................................................................... 63
2.1 Quatro anos de trabalho ........................................................................................... 69
2.2 Princípios ................................................................................................................ 75
2.2.1 A cultura brasileira e o achatamento do mundo ...................................................... 76
2.2.2 O relacionamento entre cultura e desenvolvimento ................................................ 78
2.2.3 Dinâmica cultural e tecnologia patrimonial ............................................................ 82
2.2.4 A cultura e seu contexto .......................................................................................... 83
2.2.5 Ciência e Trópico .................................................................................................... 85
2.2.6 O design como responsabilidade social .................................................................. 87
2.2.7 Por que Brasília? ..................................................................................................... 89
2.3 Metodologia ............................................................................................................ 90
2.3.1 Pesquisa + ação = participação ............................................................................... 92
2.3.2 O CNRC como um sistema de informações ........................................................... 93
2.3.3 Inteligência artificial ............................................................................................... 94
2.3.4 Aplicações da Antropologia .................................................................................... 96
2.4 Quadro sinótico dos projetos ................................................................................... 97
2.4.1 Mapeamento do artesanato brasileiro .................................................................... 100
2.4.2 Levantamentos sócio-culturais .............................................................................. 104
2.4.3 História da tecnologia e da ciência no Brasil ........................................................ 107
2.4.4 Levantamentos de documentação sobre o Brasil .................................................. 109
Capítulo 3: Do contexto .................................................................................................. 113
3.1 Política .................................................................................................................. 115
3.1.1 O contexto sócio-político brasileiro da segunda metade do século 20 ................. 115
3.1.2 O Governo Geisel (1974-1979) ............................................................................ 120
3.1.3 A política nacional de cultura e o ano de 1975 ..................................................... 123
3.2 Arte e cultura sob a tempestade dos anos setenta ................................................. 125
3.3 Caminhos e descaminhos da Antropologia ........................................................... 129
3.3.1 Aloísio Magalhães e Claude Lévi-Strauss através do espelho............................... 134
Considerações finais ........................................................................................................ 139
Referências Bibliográficas .............................................................................................. 144
Anexos .............................................................................................................................. 157
12. Lista de Siglas
CFC – Conselho Federal de Cultura
CNRC – Centro Nacional de Referência Cultural
CONDEPE - Instituto de Desenvolvimento de Pernambuco
COPEDOC – Coordenação de Pesquisa e Documentação
CPDOC/FGV - Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas
EMPETUR - Empresa Pernambucana de Turismo
ESDI – Escola Superior de Desenho Industrial
FCB – Fundação Cinemateca Brasileira
FIAM - Fundação do Interior de Pernambuco
FUNARTE – Fundação Nacional de Arte
FUNDARPE - Fundação do Patrimônio Histórico de Pernambuco
GT – Grupo de Trabalho
IDESP - Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo
IJNPS - Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais
INIDEF - Instituto Interamericano de Etnomuseologia y Folclore
IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
MEC – Ministério da Educação e Cultura
MIC – Ministério da Indústria e Comércio
PAC – Plano de Ação Cultural
PCH - Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas
PNC – Política Nacional de Cultura
SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
SEPLAN – Secretaria de Planejamento da Presidência da República
SEPLAN/AL – Secretaria de Planejamento de Alagoas
SEPLAN/PE – Secretaria de Planejamento de Pernambuco
SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
SPHAN/PRO-MEMÓRIA – Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional/Fundação Pró-Memória
STAS/PE - Secretaria de Trabalho e Ação Social de Pernambuco
13. SUDENE - Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste
UA – unidades de arquivo
UnB – Universidade de Brasília
UNESCO – United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (Organização
das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura)
URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
14. Se tomamos como exemplo o intestino verificamos que, segundo os
processos de distribuição topológicos, o interior do intestino é, de fato,
exterior ao organismo. Trata-se de um espaço exterior anexado, fruto de
um longo processo de dobras do organismo. Mas de um outro modo, as
cavidades digestivas são exteriores ao sangue, que por sua vez é exterior
às glândulas que nele fazem jorrar suas secreções. O que temos, então, é
esta atividade transdutiva que faz propagar níveis relativos de interior e
exterior.
Topologia e Memória, Rogério da Costa.
15. Todo caso vem do acaso e se repete
E a verdade sempre tem os dois lados da gilete!!!
Jorge Mautner
Introdução
As políticas públicas de preservação do patrimônio cultural têm sido
objeto de diversos estudos no âmbito das Ciências Sociais, durante as últimas décadas. No
Brasil, assim como em todo o mundo, há uma proliferação de teses, dissertações e artigos
que tratam do tema. Sem dúvida, é possível afirmar que o patrimônio configura-se hoje
como um campo específico dentro das Ciências Sociais. Interessada em articular, no âmbito
da minha pesquisa para a dissertação de mestrado, questões vinculadas à Antropologia com
a área do design, onde iniciei minha formação profissional, encontrei no campo do
patrimônio uma via possível de diálogo entre as duas disciplinas – o Design e a
Antropologia.
No Brasil, desde a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN), em 1937, a preservação do patrimônio cultural é uma prática
institucionalizada pelo poder público. Com a abertura desse campo de ação, surge a figura
dos agentes oficiais de preservação. Esses agentes são intelectuais, pessoas ligadas às Artes,
à Arquitetura, à História, e, mais tarde, ao Design e à Antropologia - muitos deles
vinculados à Academia. Assim, a partir do momento em que o patrimônio surge como um
campo de ação no âmbito das políticas públicas, ele sugere também um campo de estudos
para as disciplinas das quais ele se aproxima. Dessa forma, a partir dos anos 30 do século
20, o patrimônio, se configura, no Brasil, tanto como uma forma de ação quanto como um
campo de reflexão.
1
16. Dentre aqueles que refletiram sobre as questões pertinentes ao
patrimônio, os antropólogos têm destaque1, “na medida em que se interessam pelos
processos de construção de identidades culturais diferenciadas” (Fonseca, 2005: 27). Nesse
sentido, podemos citar os trabalhos de Abreu (1996), Cavalcanti (1995), Garcia (2004),
Gonçalves (2002), Rubino (1991), Santos (1992), entre outros. Vale destacar que o campo
do patrimônio também suscitou debates inter-disciplinares, gerando algumas coletâneas
organizadas por autores vinculados às diversas disciplinas dentro das chamadas Ciências
Sociais. Nesse grupo, destacam-se Abreu e Chagas (orgs.) (2003), Arantes (org.) (1984),
IBPC (1991), Chuva (org.) (1995), Revista Tempo Brasileiro (2001).
Contudo, o patrimônio não se basta como um campo de produção
intelectual e de ação governamental. Principalmente a partir da segunda metade do século
20, ele se configura, também, como uma importante arena de debate e de ação para a
sociedade civil, na medida em que os sujeitos ligados aos bens culturais considerados (ou
desconsiderados) como dignos de preservação apropriam-se de sua construção, assim como
já haviam feito o governo e alguns intelectuais. Nesse sentido, é fundamental a
compreensão do contexto dos anos 70 do século passado, pois foi a partir da segunda
metade dessa década, momento em que se ‘distendia’ o regime militar, e que a sociedade
1
Gonçalves (2003) propõe o estudo do patrimônio como uma categoria de pensamento. Para o autor, o estudo
das categorias de pensamento, que é uma ‘contribuição original da tradição antropológica’ (Gonçalves, 2003:
21), encontra no patrimônio uma categoria “não exótica, mas bastante familiar ao moderno pensamento
ocidental” (2003: idem). Gonçalves complementa essa colocação, lembrando que Marcel Mauss (1974: 205)
dirigia aos antropólogos a famosa recomendação:
“antes de tudo, [é necessário] formar o maior catálogo possível de categorias, é preciso partir de
todas aquelas das quais é possível saber que os homens se serviram. Ver-se-á então que ainda
existem muitas luas mortas, ou pálidas, ou obscuras no firmamento da razão”. Estamos certamente
diante de uma dessas categorias (2003, 28) [...] O que estou argumentando é que estamos diante de
uma categoria de pensamento extremamente importante para a vida social e mental de qualquer
coletividade humana (2003: 22).
Ainda no que tange a relações possíveis entre a disciplina antropológica e o campo do patrimônio, Gilberto
Velho (1984) entende que “existe uma perspectiva relativizadora, característica do pensamento
antropológico, que talvez ajude a pensar algumas questões que, se não são novas, pelo menos têm se
apresentado com maior agudeza” (Velho, 1984: 37-38).
2
17. civil reinvindicava seu papel na definição dos rumos a serem tomados pelo país, que o
patrimônio surge como uma possibilidade de contestação e de afirmação política para os
grupos que se consideravam excluídos dos processos decisórios nacionais. Em tal contexto,
o Centro Nacional de Referência Cultural merece destaque, na medida em que foi a
experiência embrionária a partir da qual se propôs, em 1979, a ampliação do conceito de
patrimônio cultural, o que, efetivamente foi ensaiado, em âmbito oficial, no momento em
que o órgão foi fundido ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
As primeiras referências que encontrei sobre o CNRC constavam em
livros e documentos que tratam da trajetória das políticas públicas de preservação no Brasil
(Fonseca, 2005), em estudos sobre os discursos vinculados a tais políticas (Gonçalves,
2002) e em documentos produzidos pelo órgão federal de preservação (MEC/SPHAN/Pró-
Memória, 1980; Andrade, 1997). Os estudos sobre o patrimônio cultural nacional, tanto os
constituídos em meio acadêmico quanto aqueles produzidos dentro do órgão federal de
preservação (Iphan), são unânimes em dividir a trajetória da política oficial de preservação
do patrimônio em duas fases. A primeira seria a ‘fase heróica’, que se inicia em 1937, com
a criação do Sphan (depois Iphan) e termina em 1967, com a aposentadoria de Rodrigo de
Mello Franco de Andrade. A segunda seria a ‘fase moderna’, que se inicia em paralelo à
gestão de Aloísio Magalhães, no ano de 1979.
A ‘fase heróica’ ou de ‘pedra e cal’ caracterizar-se-ia pela hegemonia do
pensamento associado ao Movimento Modernista de 1922 e à arquitetura vinculada aos
nomes de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Além deles e de Rodrigo, Carlos Drummond de
Andrade e Mário de Andrade também tiveram ligação direta com o Sphan. Entre as gestões
de Rodrigo e Aloísio houve a de Renato Soeiro, que, para alguns, é considerada como uma
3
18. fase intermediária entre as duas. Apesar de Soeiro ser um discípulo de Rodrigo, alguns
estudos apontam para o fato de que, durante a sua gestão, o novo contexto político-cultural
e as diretrizes da Unesco para as políticas de patrimônio explicitadas pelas Normas de
Quito, em 1967, fizeram com que o modelo praticado até então se encontrasse
enfraquecido. Assim, a situação do órgão oficial de preservação só se modificou, de fato,
após a saída de Renato Soeiro. Em 1979, com a nomeação de Aloísio Magalhães para a
presidência do Iphan, tem início a ‘fase moderna’. Nessa gestão, realiza-se a reforma
institucional do Instituto. O Iphan funde-se ao PCH (Programa Integrado de Reconstrução
das Cidades Históricas) e ao CNRC (Centro Nacional de Referência Cultural),
desdobrando-se em duas instituições, a Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Sphan) e a Fundação Pró-Memória, que passam a operar sob a sigla de
Sphan/Pro-Memória.
Dentre as narrativas sobre a trajetória das políticas de preservação no
Brasil, se destaca o ano de 1979. Afinal, esse foi um ano de ruptura. Nele se inaugurou a
segunda fase do órgão federal de patrimônio, com a nomeação de Aloísio Magalhães para a
presidência do Iphan. José Reginaldo Gonçalves comenta que entre seus informantes
identificados com o discurso de Aloísio Magalhães há a unanimidade de que a partir de
1979 – ano em que ele assume o cargo no Instituto – “a política de patrimônio cultural no
Brasil sofre ‘profundas mudanças’” (Gonçalves, 2002: 71). Segundo este autor, tais pessoas
consideram a entrada de Aloísio no Iphan um ‘marco’ decisivo para a trajetória das
políticas públicas de patrimônio no Brasil.
Entretanto, apesar de só ter ingressado oficialmente na política de
preservação em 1979, o nome de Aloísio Magalhães aparece nas narrativas sobre o
4
19. patrimônio no Brasil um pouco antes, em 1975. Nesse ano é criado o Centro Nacional de
Referência Cultural (CNRC), considerado, por alguns autores, como o ‘tubo de ensaio’ em
que Aloísio teria experimentado as idéias que veio a propor como políticas públicas de
preservação patrimonial, a partir de 1979. Todavia, apesar de o órgão estar vinculado à
trajetória das políticas públicas de preservação – na medida em que a partir de um certo
momento foi assimilado pela estrutura governamental, enquanto funcionava – de 1975 a
1979 - o CNRC não se definia como um órgão ligado ao patrimônio. Ele tampouco estava
vinculado ao Ministério da Educação e Cultura (MEC), do qual o Iphan fazia parte. O
CNRC teve seu funcionamento viabilizado por um convênio multi-institucional, organizado
em torno do Ministério da Indústria e Comércio (MIC). O objetivo do Centro, como
definido por seus integrantes, era “traçar um sistema referencial básico para a descrição e
análise da dinâmica cultural brasileira, tal como é caracterizada na prática das diversas
artes, ciências e tecnologias” (Magalhães, 1997: 42).
Não obstante, o CNRC é inserido na bibliografia sobre o patrimônio no
Brasil, na medida em que, a posteriori, se compreendeu a importância de suas propostas
para as políticas oficiais a partir dos anos 1980. No entanto, como já disse, essa é uma visão
retrospectiva, que olha para o Centro com olhos que olham o passado - o que já aconteceu,
o que já frutificou (ou não). Claro que não é sem razão o fato de tantos autores inserirem o
CNRC na trajetória das políticas públicas de preservação do patrimônio cultural, pois, de
fato, a partir de 1979, sua equipe e seus projetos foram assimilados pelo Iphan. Mas isso
aconteceu em 1979. Em 1975, quando surgiu a idéia de um centro que pesquisasse sobre a
natureza do bem cultural brasileiro, não se falava em patrimônio e em preservação, nem
tampouco em políticas públicas. As categorias e os conceitos que balizavam a proposta do
5
20. Centro tinham outras afiliações, que não eram necessariamante as correntes no campo do
patrimônio.
Assim, nesta dissertação, proponho um exercício de estranhamento, em
que se desnaturalize o lugar ‘oficial’ conferido pela literatura existente à experiência do
CNRC. Nesse sentido, ensaio uma revisão da versão consagrada. Na tentativa de
compreender quais eram os conceitos e as categorias que sedimentavam a proposta do
Centro, confronto-os com o quadro contextual no qual ele se inseria, e dialogo com a
bibliografia que o insere na trajetória das políticas de patrimônio no país.
Se, como afirmam alguns autores, houve uma mudança de paradigmas
nas políticas públicas de patrimônio no Brasil a partir da entrada de Aloísio Magalhães em
campo, e se essa mudança foi conceituada e experimentada pelo CNRC, no período entre
1975 e 1979, então, acredito que o CNRC seja ‘bom para pensar’ sobre o contexto
brasileiro nos anos 70 do século 20, sobre as mudanças apontadas acima, sobre o campo do
patrimônio, e, ainda, sobre as possíveis articulações entre Design e Antropologia.
Fui levada à Antropologia pela pesquisa desenvolvida para o projeto de
graduação, realizado na ESDI/UERJ. Naquela pesquisa, buscava recriar graficamente
imagens da memória dos primeiros momentos passados na cidade do Rio de Janeiro por
estrangeiros que haviam chegado, tendo utilizado o navio como meio de transporte. Através
das imagens encontradas nos depoimentos colhidos, contava reconstituir uma cidade vista
por um primeiríssimo olhar - o olhar estrangeiro: um outro modo de ver e andar pelo Rio de
Janeiro. No âmbito de tal pesquisa, entrevistei alguns imigrantes, além de ter utilizado os
depoimentos recolhidos pela Prof. Suzanne Worcman, da ECO-UFRJ, durante pesquisa
feita por ela com as comunidades judias e árabes nessa cidade.
6
21. Buscando aprofundar a pesquisa com os imigrantes, iniciada naquela
época, me decidi pelo Mestrado em Antropologia Social. Acreditava no âmbito de um
Programa de Antropologia, pudesse desenvolver questões que foram esboçadas em meu
projeto de graduação. Retomei o tema em um trabalho de conclusão de curso, no primeiro
semestre de 2005, mas ao travar contato com a literatura que se refere ao patrimônio,
concluí que este seria um campo mais profícuo para a articulação de meus diferentes
interesses de pesquisa.
Foi lendo sobre Lúcio Costa [Cavalcanti, 1995a e 1995b; Wisnik (org.),
2003], que reencontrei Aloísio Magalhães. Eu já havia lido o livro “E Triunfo?”
[Magalhães, 1997 (1985)], em um curso ministrado pelo Prof. João de Souza Leite, na
ESDI, mas tinha deixado o assunto de lado. A partir do interesse surgido pela ligação do
arquiteto Lúcio Costa com as políticas públicas de patrimônio, iniciei uma série de leituras
que progressivamente descortinaram um vasto campo de estudos em torno do tema da
preservação do patrimônio cultural. A partir de tais leituras, ressurgiu o interesse pela
figura de Aloísio Magalhães, um designer de fundamental importância para a consolidação
de sua profissão como campo específico de trabalho no Brasil2. Uma pesquisa em torno da
figura de Aloísio me pareceu uma possibilidade interessante, no sentido de que
proporcionaria trazer para o campo das reflexões antropológicas questões que se vinculam
ao design, minha profissão de formação.
Uma questão se colocou, então: em que implicaria desenvolver uma
pesquisa antropológica sobre um ‘objeto’ tão próximo? Conseguiria eu, designer, me
transformar em antropóloga, me aventurando em uma investigação sobre um designer que
2
“Aloísio Magalhães foi um dentre cinco ou seis indivíduos que, ao final dos anos 1950 e início dos anos
1960, contribuíram decisivamente para a institucionalização do design moderno no Brasil” (Leite, 2006: 29).
7
22. em um dado momento se ‘converte’ em ‘homem de cultura’? Encontro alento em alguns
autores que esclarecem os desafios de uma tal proposta, me preparando para as possíveis
dificuldades, mas, também, confirmando sua viabilidade.
No artigo “Antropologia no Brasil (alteridade contextualizada)”, Mariza
Peirano focaliza a ‘produção da comunidade brasileira de antropólogos’, classificando-a em
função de sua maior ou menor proximidade com a alteridade. Peirano declara que se
inicialmente a Antropologia era definida como a ciência que estuda o exótico distante, hoje
a situação é diferente. Em suas palavras, “a diferença cultural pode assumir, para os
próprios antropólogos, uma pluralidade de noções” (Peirano, 1999: 226). A alteridade não
desapareceu, ela apenas mudou de lugar. Se, de início, encontrava-se longe, ela vem
deslizando, aproximando-se - o que, para a autora, não é só aceitável, quanto desejável
(1999: 225). Nesse sentido, Peirano identifica quatro distâncias que definem eixos
temáticos existentes, no Brasil, entre os antropólogos e a alteridade por eles estudada:
‘alteridade radical’, ‘contato com a alteridade’, ‘alteridade próxima’ e ‘alteridade mínima’.
No primeiro eixo, estuda-se o distante em termos geográficos ou ideológicos (estudos das
populações indígenas e estudos que ultrapassem os limites territoriais do país); em segundo
lugar, estariam os estudos que têm como foco o contato entre os grupos indígenas e a
sociedade nacional; em terceiro, encontram-se as pesquisas feitas em grandes cidades; e por
fim, estudos sobre as Ciências Sociais no país.
A questão dos múltiplos sentidos que a alteridade assume frente aos
antropólogos já havia sido discutida por Gilberto Velho, no artigo “Observando o familiar.”
Nesse texto, Velho examina as categorias ‘familiar’ e ‘exótico’, afirmando que, nos dias de
8
23. hoje, faz-se necessária a reconsideração dessas noções, não no sentido de sua negação, mas
com o propósito de tornar consciente o seu caráter ‘fabricado’. Assim,
o familiar, com todas essas necessárias relativizações, é cada vez mais
objeto relevante de investigação para uma Antropologia preocupada em
perceber a mudança social não apenas a nível das grandes transformações
históricas mas como resultado acumulado e progressivo de decisões e
interações cotidianas (Velho, 2004: 132).
Pesquisando sobre Aloísio Magalhães, reencontrei o designer João Leite,
meu professor na graduação. João terminava uma tese em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ)
que versa sobre a trajetória de Aloísio enquanto designer. A partir de nossas conversas e
das leituras que vinha fazendo, vislumbrei a possibilidade de pesquisar, mais
especificamente, sobre o Centro Nacional de Referência Cultural, experiência que marcou a
derradeira transformação profissional porque passou a trajetória de Aloísio Magalhães.
Através do orientador desta dissertação, travei contato com Maria Cecília Londres Fonseca,
autora de “Patrimônio em processo” (2005), estudo que trata com profundidade a
experiência do Centro Nacional de Referência Cultural. Cecília, que trabalhou com Aloísio
Magalhães, de 1976 até a sua morte, e permaneceu ainda por muito tempo ligada ao Iphan,
tendo se tornado a principal especialista sobre o CNRC no país, foi uma interlocutora
presente e atenta ao desenvolvimento desta pesquisa. Nos encontramos algumas vezes, e
trocamos e-mails, onde ela esclareceu diversas dúvidas que surgiam, enquanto eu
pesquisava. Henrique Oswaldo de Andrade (que foi coordenador do PCH a partir de 1973)
foi outro interlocutor importante, uma vez que me ajudou a localizar os ex-integrantes do
CNRC, além de disponibilizar as transcrições do Simpósio Aloísio Magalhães sobre
Política Cultural, organizado por ele, em 2002.
A partir do trajeto de pesquisa supra-citado, decidi lançar um olhar sobre
a experiência do Centro Nacional de Referência Cultural. Assim, esta dissertação se
constrói através de uma leitura crítica da bibliografia que comenta ou cita a experiência do
CNRC, e dos documentos produzidos pelo Centro. Como dispositivo analítico, proponho
9
24. retirar o CNRC da trajetória das políticas públicas de patrimônio no Brasil e observá-lo
enquanto uma experiência em si. Entretanto, este estudo não pretende dar conta de toda a
história do órgão, nem tampouco de todas as questões que a observação de sua história
levanta. No âmbito de uma dissertação de mestrado, acredito que isso seria por demais
pretensioso. Basicamente, reúno a bibliografia sobre o tema, e realizo uma leitura inicial
dos documentos produzidos pelo CNRC, articulando os discursos sobre o Centro e o
discurso produzido pelo órgão. Nesse sentido, não se trata de um estudo sobre o CNRC,
mas sobre o que se fala sobre ele, e sobre o que o Centro utiliza como discurso definidor de
seu projeto.
O primeiro capítulo, resultado da pesquisa realizada em bibliotecas e
afins, trata dos discursos de fora. Nele, analiso a bibliografia que menciona ou comenta o
Centro Nacional de Referência Cultural - estudos acadêmicos, textos produzidos dentro do
Iphan e artigos publicados em revistas e livros especializados - buscando compreender
como o CNRC é visto por aqueles que refletem sobre o patrimônio cultural no Brasil.
O segundo capítulo da dissertação trata do discurso produzido de dentro.
Nele, a partir da pesquisa realizada nos arquivos do Iphan, realizo uma leitura dos
documentos produzidos pelo órgão. Tive acesso a esse material em duas visitas que fiz à
sede do Instituto do Patrimônio, em Brasília - mais especificamente ao COPEDOC, setor
responsável pelos arquivos do Instituto. A partir da leitura de tais documentos, busco
avaliar quais conceitos sedimentavam a proposta do Centro Nacional de Referência
Cultural.
A dissertação conta ainda com um terceiro capítulo, que trata do contexto
em que o CNRC se inseriu. Nesse capítulo, esboço montar um breve quadro histórico do
10
25. momento em que surge o órgão. Dentro de tal quadro, discuto alguns caminhos porque
passou a disciplina antropológica na década de 70 do século 20, associando-os à proposta
do Centro.
***
Concluindo, se vejo o CNRC como um organismo que esteve dentro e
fora da política oficial de patrimônio cultural no Brasil, organizo a dissertação utilizando-
me das mesmas categorias. No primeiro capítulo, analiso o discurso sobre o CNRC
produzido de fora, seja por intelectuais desvinculados da experiência do órgão, seja por
membros de sua equipe que posteriormente refletiram sobre as questões levantadas pelo
trabalho do Centro. No segundo capítulo, analiso o discurso formulador das propostas do
CNRC, ou seja, aquele produzido de dentro. Por fim, no terceiro capítulo, esboço um breve
quadro do contexto em que o Centro se inseria. Assim, propondo uma “estratégica
desnaturalização perceptiva produzida pela contextualização e pelo senso de historicidade”,
tal como sugere Luiz Fernando Dias Duarte (1999: 56), em vez de contrastar o CNRC
apenas com a trajetória das políticas oficiais de patrimônio, escolho confrontá-lo, também,
e ainda, com o quadro sócio-político-cultural da época em que ele funcionou - a segunda
metade dos anos 1970. Dessa forma, ensaiando retirar o Centro do campo do patrimônio,
arrisco colocá-lo no mundo.
11
26. Capítulo 1: Da biblioteca
quem fala que sou esquisito hermético
é porque não dou sopa estou sempre elétrico
nada que se aproxima nada me é estranho
fulando sicrano beltrano
seja pedra seja planta seja bicho seja humano
quando quero saber o que ocorre à minha volta
ligo a tomada abro a janela escancaro a porta
experimento invento tudo nunca jamais me iludo
quero crer no que vem por aí beco escuro
me iludo passado presente futuro
urro arre i uuro
viro balanço reviro na palma da mão o dado
futuro presente passado
tudo sentir total é chave de ouro do meu jogo
é fósforo que acende o fogo da minha mais alta
[razão
e na sequência de diferentes naipes
quem fala de mim tem paixão
Olho de Lince, Wally Salomão.
Neste capítulo, analiso a bibliografia que menciona ou comenta o Centro
Nacional de Referência Cultural: estudos acadêmicos, textos produzidos dentro do Iphan e
artigos publicados em revistas e livros especializados. Trata-se de discursos de fora,
construídos posteriormente à experiência do CNRC. Alguns dos textos comentados neste
capítulo mencionam diretamente o Centro, outros citam exclusivamente a pessoa de Aloísio
Magalhães. Dentre esse último grupo, considero alguns que mesmo não tratando da
experiência do CNRC, citam a figura de Aloísio, pois acredito que eles contribuem para o
debate. De fato, uma das primeiras coisas que percebi durante a pesquisa é que o Centro
está intimamente vinculado à pessoa de seu criador e coordenador. Muitos textos,
confundindo o ‘personagem’ com a ‘obra’, tratam do CNRC como sendo Aloísio, e de
Aloísio como sendo o CNRC.
Nem todos os textos analisados foram produzidos em contexto
acadêmico, mas, devido a uma característica do próprio campo do patrimônio, de ser ao
12
27. mesmo tempo lócus de práticas políticas e campo para a reflexão acadêmica, onde, muitas
vezes, aqueles que ‘pensam’ são também aqueles que ‘agem’, acredito que todos os textos
encontrados devem ser igualmente considerados. Afinal, nesse campo, as fronteiras entre a
prática e a reflexão são tênues, e esse parece ser um dos pontos cruciais para o interesse que
o patrimônio pode despertar: sua ambivalência enquanto campo de prática e de reflexão.
Desse modo, o patrimônio, além de se configurar como um objeto para os cientistas sociais,
torna-se também um seu campo de trabalho, na medida em que precisa de especialistas que
‘pensem’ e ‘formulem’ as práticas a serem adotadas.
Inicialmente, percebo duas categorias de textos existentes na bibliografia
analisada, categorias que me servem como dispositivo analítico. A primeira categoria seria
a de textos produzidos por pessoas que em algum momento de sua trajetória profissional
estiveram vinculadas a Aloísio Magalhães, trabalhando com ele em seu escritório, no
CNRC, no Sphan/Pró-Memória ou na Secretaria de Cultura do MEC. Esses autores se
identificam com o discurso e as práticas de Aloísio. A segunda categoria é a de textos
acadêmicos produzidos por cientistas sociais que não tiveram ligação profissional com o
Centro, ou com seu coordenador-geral. Apesar de esses autores não formarem um grupo
entre si, por oposição à primeira categoria de textos, eles esboçam um conjunto.
Nesse sentido, foi possível perceber, durante o desenvolvimento deste
trabalho, que as fronteiras entre os que fizeram parte da experiência do CNRC e os que
refletiram (a posteriori) sobre essa experiência são quase inexistentes. Portanto, neste
estudo, praticamente não há distinção entre as categorias observador (capítulo 1) e
observado (capítulo 2). Muitos dos autores que constam do primeiro capítulo discutindo,
13
28. inclusive em âmbito acadêmico, a experiência do Centro, figuram no capítulo seguinte
como ‘personagens’ do órgão.
A propósito, no artigo “O antropólogo como cidadão”, Mariza Peirano
analisa os caminhos pelos quais se desenvolveram as Ciências Sociais no Brasil, colocando
a questão de que, no país, o antropólogo – e, por similaridade, todo cientista social – estuda
um “‘outro’ que não é só próximo, mas parte do nós, que é, claramente, o país como
Estado-nação” (Peirano, 1991: 99). Nesse sentido, Peirano propõe discutirmos os sentidos
sociais e históricos de certas categorias que usualmente tomamos por universais, tais como
‘nação’, ‘antropologia’, ‘cientista social’, ‘intelectual’. Comparando o caso brasileiro com o
dos cientistas sociais franceses, a autora sugere que o intelectual brasileiro está sempre
dividido entre o ‘universalismo da ciência’ e o ‘holismo da cidadania’, e mais, que “no
Brasil, a definição de ‘intelectual’ já inclui um compromisso com problemas políticos”
(1991: 95).
O que pretendo colocar, com essa discussão, é que, como sugere Peirano,
“o ‘nativo’ perdeu o seu caráter passivo” (1991: 85). Neste estudo, o ‘nativo’ e o cientista
social são, por muitas vezes, a mesma pessoa. Esse é o caso dos autores que incluio na
categoria de dentro, aqueles que tendo estado vinculados a Aloísio Magalhães e ao CNRC,
foram, eles mesmos, os criadores da maior parte da massa crítica de textos produzidos
sobre o Centro, posteriormente.
Concluindo, o que se coloca neste estudo é que as categorias que separam
os comentadores e os observados não são de fácil definição, assim como a minha própria
posição pode ser tomada como similar à de alguns autores (Leite, Campos), que a partir de
14
29. uma prática na área do design1 voltam-se para a pesquisa no campo das Ciências Sociais,
como o intuito de conjugar reflexões das duas áreas.
Outra diferenciação existente entre os textos analisados neste capítulo diz
respeito à sua vinculação com a disciplina antropológica. Os únicos três autores que
declaram explicitamente estarem fazendo ‘antropologia’ [(Garcia, 2004), (Gonçalves, 2002:
08) (Ortiz, 1985: 09)] diferenciam-se dos demais em algo que defino como sua ‘crença na
invenção’. Ortiz afirma: “Creio que é o momento de reconhecermos que toda identidade é
uma construção simbólica” (Ortiz, 1985: 08). Gonçalves, por sua vez, declara:
Em filosofia, em história da ciência, assim como em antropologia, e em
outras disciplinas, o ‘objeto’ científico é cada vez mais entendido como
um artefato ou ‘invenção’ (para usar a metáfora sugerida por Wagner para
o objeto privilegiado dos antropólogos: a cultura), em vez de uma
entidade existente em si mesma (Gonçalves, 2002: 16).
Ortiz procura ler a ‘cultura brasileira’ e a ‘identidade nacional’ como
Lévi-Strauss leu os mitos primitivos (Ortiz, 1985: 09). Para Gonçalves, “as narrativas
nacionais estão sendo sempre contadas e re-contadas, assim como ocorre com os mitos”
(Gonçalves, 2002: 21). Desse modo, se os demais autores parecem tomar a realidade como
fato, Garcia, Gonçalves e Ortiz assumem uma posição diferente, na medida em que
discutem o que é dado como ‘real’ ou ‘histórico’. Em Garcia e em Gonçalves, essa
assunção está diretamente vinculada à leitura de “The invention of culture”, de Roy Wagner
[1981 (1975)], que, ao renunciar à idéia de cultura como um todo, sugere que ela deve ser
considerada como invenção. Para este autor, a cultura não existe em si mesma, ela é uma
1
“Design é uma palavra inglesa originária de designo (as-are-av-atum), que em latim significa designar,
indicar, representar, marcar, ordenar. O sentido de design lembra o mesmo que, em português, tem desígnio:
projeto, plano, propósito (Hollanda, 1975) – com a diferença de que desígnio denota uma intenção, enquanto
design faz uma aproximação maior com a noção de uma configuração palpável (ou seja, projeto). Há, assim,
uma diferença entre design e o também inglês drawing – este, sim, o correspondente ao sentido que tem o
termo desenho (Villas-Boas, 1997: 45).
15
30. ‘construção explanatória’ ou um ‘suporte’ que viabiliza a percepção das diferenças e a
comparação.
Cumpre ressaltar que esta pesquisa não localizou nenhum estudo
dedicado integralmente ao CNRC, o que foi confirmado por pesquisadores ligados ao tema,
com quem tive contato (Leite, Fonseca). Alguns autores tratam do assunto com maior
profundidade, mas somente enquanto parte de uma questão mais ampla (Fonseca,
Gonçalves, Leite, Lopes, Souza), alguns outros fazem breves comentários sobre o CNRC
(Falcão, Garcia, Miceli), alguns citam apenas Aloísio Magalhães. (Campos, Ortiz). De
qualquer modo, em todos os textos o CNRC é considerado como uma parte de algo maior,
seja a história do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, seja o quadro das
políticas culturais dos anos 1970, seja a trajetória profissional de Aloísio Magalhães.
Aceitando o desafio lançado por Gilberto Velho, de que “o processo de
estranhar o familiar torna-se possível quando somos capazes de confrontar
intelectualmente, e mesmo emocionalmente, diferentes versões e interpretações existentes a
respeito dos fatos e situações” (Velho, 2004: 131), passo agora à análise contrastiva dos
textos que se referem ao Centro Nacional de Referência Cultural.
1.1 Breve apresentação dos textos relacionados
Há toda sorte de textos sendo tratados neste capítulo – desde artigos, até
teses de doutorado. Nenhum deles, entretanto, trata exclusivamente do CNRC. Como
comentei anteriormente, o Centro é citado sempre como parte de algo maior. O que
distingue tais textos é tanto sua orientação disciplinar e teórica, quanto o tipo de relação que
16
31. os autores mantiveram com o órgão e/ou com seu criador (proximidade, crítica ou
neutralidade), uma vez que, entre os autores que constam deste capítulo, alguns nutriram
estreitas relações de trabalho e/ou amizade com Aloísio Magalhães (Botelho, Campos,
Duarte, Falcão, Fonseca, Leite, Melo, Quintas, Souza).
***
Entre os documentos que o Iphan produziu no sentido de dar conta de sua
trajetória, há dois que mencionam a experiência do CNRC. Em 1980, a então Sphan/Pró-
Memória edita o documento “Proteção e revitalização do patrimônio cultural no Brasil:
uma trajetória.” Naquele momento, Aloísio e a equipe do Centro estavam à frente do
complexo Sphan/Pró-Memória. Assim, esse é um documento escrito por antigos
pesquisadores do CNRC. Seu texto reproduz vários trechos de documentos produzidos pelo
órgão. Logo, trata-se da ‘história oficial’ do Iphan contada a partir do ponto de vista dos
criadores do Centro. Dessa forma, pode ser considerado um documento de transição entre
aqueles que discutirei no segundo capítulo e os que relaciono na primeira parte do trabalho.
O texto “História do Iphan”, escrito em 1997 por um arquiteto do
Instituto, comenta rapidamente o CNRC. Nesse documento, Antônio Luiz Dias de Andrade
define o órgão como um ‘programa’ a partir de onde Aloísio Magalhães retirou a
experiência que veio a caracterizar a nova fase da trajetória do Iphan, iniciada com a gestão
do designer, a partir de 1979.
Em âmbito acadêmico, há três teses (Gonçalves, Fonseca, Leite), uma
dissertação (Garcia) e uma monografia (Lopes), que tratam mais ou menos diretamente do
CNRC. A primeira das três teses foi escrita por Maria Cecília Londres Fonseca, e publicada
em 1997. O trabalho de Fonseca é o que mais detalhadamente se concentra no Centro.
17
32. “Patrimônio em processo” teve sua origem como tese de doutorado em Sociologia
apresentada pela autora na Universidade de Brasília. No livro, Fonseca discorre sobre a
trajetória da política federal de preservação no Brasil, ou seja, sobre “o processo de
construção do patrimônio histórico e artístico no Brasil, considerado enquanto uma prática
social produtiva, criadora de valor em diferentes direções” [Fonseca, 2005 (1997): 27].
Apesar de abranger a trajetória das políticas públicas de patrimônio no Brasil desde a
criação do Sphan até a fase moderna, o trabalho privilegia os anos 1970 e 1980. Analisando
o reposicionamento ideológico-administrativo ocorrido dentro do Iphan no decorrer dessas
duas décadas, reconstrói também a história do Centro Nacional de Referência Cultural,
fundado em 1975, e analisa o discurso de Aloísio Magalhães, coordenador do Centro (e,
posteriormente, diretor do Iphan e Secretário de Cultura do MEC).
A experiência do CNRC é inserida pela autora no contexto oficial do
patrimônio e da preservação, vista como um ‘tubo de ensaio’ para a futura prática
institucional de Aloísio e de seu grupo de colaboradores. Dessa forma, o Centro é analisado
na medida em que serve como base de explicação para as premissas que teriam orientado as
modificações administrativas e conceituais ocorridas no Iphan a partir da gestão de Aloísio
Magalhães. O novo modo como se organizaram as estruturas e o funcionamento da política
de preservação na década de 70 do século 20 é explicado por Fonseca a partir da
aposentadoria de Rodrigo de Mello Franco de Andrade. Ao lado do PCH, o CNRC teria
surgido como alternativa ao Iphan, que desde a saída de Rodrigo, em 1967, encontrava-se
enfraquecido e desgastado. Para a autora, esse desgaste, as novas propostas apresentadas
por Aloísio Magalhães no Centro, e o quadro de abertura política do regime militar teriam
18
33. propiciado a ascensão de Aloísio à direção do órgão oficial de preservação e sua posterior
nomeação como Secretário de Cultura do MEC.
A segunda tese analisada neste capítulo originou o livro “Retórica da perda”, de
José Reginaldo Gonçalves [2002 (1996)]. Nele, o autor faz um estudo sobre os discursos do
patrimônio cultural no Brasil, interpretando-os como ‘narrativas nacionais’. Em sua análise,
Gonçalves identifica duas importantes narrativas que guiaram as políticas públicas de
preservação no país. A primeira associa-se a Rodrigo de Mello Franco de Andrade, que
presidiu o Sphan (depois Iphan) desde a sua criação até 1967; a segunda está associada a
Aloísio Magalhães, que na segunda metade da década de 1970, liderou a renovação
ideológica e institucional por que passou o órgão federal de preservação.
Nesse estudo, o patrimônio não é tratado como um dado histórico ou cultural, mas
como uma ‘categoria de pensamento’. Os discursos dos intelectuais ligados às políticas
oficiais de patrimônio são analisados por Gonçalves como ‘narrativas nacionais’, ou seja,
modalidades de invenção discursiva que visam a construir uma identidade e uma memória
para o país. Essas narrativas seriam ‘estórias de apropriação’, formuladas a fim de dar cabo
a situações de perda, com o objetivo constante de re-construir a nação. “Nesse sentido, a
nação, ou seu patrimônio cultural, é construída por oposição a seu próprio processo de
destruição” (Gonçalves, 2002: 31). Assim, a nação, que nessas narrativas estaria em
constante ameaça de dissolução, deve ser redimida pela proteção e preservação de seu
patrimônio. Para garantir a sua sobrevivência, a nação teria que identificar e apropriar-se do
que já é seu – o patrimônio cultural. Para Gonçalves, segundo essa lógica, preservar o
patrimônio seria o equivalente a preservar a nação. Nesse processo, os “intelectuais, por
meio de narrativas diversas, inventam o patrimônio cultural, a nação brasileira e a eles
próprios, como guardiões desse patrimônio” (2002: 33).
A terceira tese que comento é a de João de Souza Leite, designer que
iniciou sua carreira como estagiário no escritório de Aloísio Magalhães. A tese, intitulada
19
34. “Aloísio Magalhães, aventura paradoxal no design brasileiro. Ou o design como
instrumento civilizador?”, associa o design a uma dimensão sociológica, na medida em que
percorre a trajetória profissional de Aloísio Magalhães enquanto designer2, discutindo,
através dela, o cenário e as condições em que a profissão se instaurou no Brasil. Assim, em
sua tese, João Leite utiliza a trajetória profissional de Aloísio como um eixo sobre o qual
ele articula idéias específicas do campo do design com questões da sociedade brasileira.
Tendo o trabalho de Norbert Elias como referência, Leite propõe uma sociologia em torno
do personagem Aloísio Magalhães (Leite, 2006: 15). Para o autor, essa escolha implica em
discutir, por conseqüência, sobre a consolidação do campo profissional do design no Brasil.
Dessa forma, ele desenvolve a proposta de relacionar fatos diversos que contribuam para a
compreensão “de que o design no Brasil integra uma vertente do moderno que se estabelece
como tradição brasileira” (2006: 22).
Leite parte da constatação de um paradoxo: Aloísio Magalhães é um
grande mito do design brasileiro, mas um mito ‘estranho’ ao campo em que ele se inseria,
que se contrapunha aos cânones estabelecidos pela profissão no país. Na pesquisa, o autor
buscou compreender em que termos teria se estabelecido tal ‘paradoxo’ – assim, entre as
perguntas fundamentais que a tese coloca destaca-se a seguinte: em que e por que Aloísio
Magalhães é estranho ao mundo do design brasileiro? As respostas, Leite encontra na
formação pessoal ‘peculiar’ de Aloísio, formação essa que, para ele, teria alcançado um
momento de síntese quando o então artista-plástico conhece Brasília. A partir da visita à
capital-federal, Aloísio teria compreendido que o design lhe permitiria conciliar ‘projeto’,
artes e cultura brasileira. Nesse momento, então, ele teria se decidido pela profissão de
2
Antes de decidir-se pela profissão, Aloísio estabeleceu ligacões com diversas áreas de trabalho: graduou-
sem em Direito, trabalho em teatro, foi artista plástico, e participou, como gravurista, de um atelier
experimental de edição de livros.
20
35. designer. No entanto, algum tempo depois de ter se estabelecido como um designer de
renome, Aloísio ‘transitou’ para a área de cultura. Para o autor, nesse segundo momento, o
designer explicitou que seu objetivo de vida não era o design, mas, sim, a ‘atividade
projetiva’, que podia ser aplicada também a projetos de cultura, o que ele realizou com a
criação do CNRC.
Em sua Dissertação de Mestrado em Antropologia, Marcus Vinícius
Carvalho Garcia (2004) realiza uma investigação sobre a ‘nova vertente’ pela qual o campo
do patrimônio tem se expandido - o chamado patrimônio imaterial. Nesse sentido, o autor
discute a influência que a noção antropológica de cultura vem exercendo sobre o campo do
patrimônio cultural, analisando de que modo essa influência ressoou na sociedade
brasileira, na medida em que ela teria inspirado a implantação da nova modalidade de
classificação e preservação do patrimônio – a vertente imaterial. Nesse âmbito, Garcia
comenta as propostas do CNRC e de Aloísio Magalhães, destacando a influência que
exerceram no designer as figuras de Mário de Andrade e Gilberto Freyre.
Na monografia apresentada ao Programa de Pós-Graduação lato sensu em
História da Arte e da Arquitetura no Brasil (PUC-RJ, 2003), a designer - formada pela
ESDI - Ana Luiza Silveira Lopes estuda as relações de Aloísio Magalhães com o design
nacional, observando a mútua influência estabelecida entre as atividades de Aloísio
Magalhães no campo do design e no campo das ‘políticas culturais’.
Além de tais trabalhos, neste capítulo, me sirvo também de alguns artigos
do livro “Estado e cultura no Brasil”, organizado por Sérgio Miceli, em 1984. Dentre eles,
alguns citam diretamente Aloísio Magalhães e o CNRC, outros tratam mais amplamente
das relações Estado-cultura nos anos 1970.
21
36. No artigo “Notas sobre política cultural no Brasil”. Mario Brockmann
Machado discute alguns dos problemas que, em sua opinião, se apresentam à política
cultural no início dos anos 1980. Inicialmente, o autor questiona a própria existência de
uma política cultural no país. Para ele, a situação seria melhor definida com a utilização do
plural – políticas culturais. Não obstante, Machado afirma que negar a existência de uma
política cultural substantiva não é o mesmo que afirmar a inexistência de tentativas nesse
sentido. Simplesmente é constatar que se elas existiram, não chegaram a se consolidar no
tempo. O autor destaca, como a mais importante dessas tentativas, a política de preservação
do patrimônio histórico e artístico nacional. Nesse campo, Machado acredita que tenham
acontecido algumas medidas de ‘renovação’ e ‘arejamento’ durante o período em que
Aloísio Magalhães esteve à frente da Secretaria de Cultura do MEC.
Em “Política cultural e democracia: a preservação do patrimônio histórico
e artístico nacional”, Joaquim Falcão trata das relações entre política cultural e democracia
no Brasil. Assim como Machado, Falcão não acredita ser possível afirmar a existência de
uma política cultural desenvolvida pelo Estado brasileiro. A exceção estaria justamente no
campo da preservação histórica e artística, uma vez que, já em 1937, o Iphan estaria
inserido em um “processo de legalização, institucionalização e sistematização da presença
do Estado na vida política e cultural do país” (Falcão, 1984a: 26). O autor demonstra como
surgiram, no início dos anos 1970, novas possibilidades de políticas culturais. Para Falcão,
a consideração desse contexto é fundamental para que se compreenda a experiência do
CNRC, que é definido por ele como “o embrião da nova política de preservação cultural do
Estado” (1984a: 31). Este autor acredita que somente a partir do contexto político da época
seria possível entendermos o fato de o CNRC ter nascido fora da burocracia estatal.
22
37. No artigo “O processo de construção institucional na área de cultura
federal (anos 70)”, Sérgio Miceli trata do arranjo institucional que se configurou durante a
gestão Ney Braga no Ministério de Educação e Cultura (Governo Geisel). Nessa gestão, foi
formalizado o primeiro plano oficial para a área de cultura, a “Política Nacional de
Cultura”. Para o autor, essa política foi importante no sentido em que conseguiu vincular a
cultura às metas da política de desenvolvimento social. Dentro da cronologia dessa política
cultural oficial, Miceli insere o CNRC, assinalando que o órgão contribuiu ativamente para
apressar as transformações por que passou a vertente patrimonial das políticas públicas na
área de cultura nos anos 1970. Segundo Miceli, os ministros Severo Gomes e Golbery do
Couto e Silva foram agentes ativos na transformação sofrida por essa vertente: Severo
viabilizou a criação do Centro, “dando assim alento às pretensões de reforma da vertente
patrimonial em seguida formuladas pelo CNRC” (Miceli, 1984: 67); Golbery, sendo
simpático ao projeto de Aloísio Magalhães, teria colaborado em sua indicação para a
presidência do Iphan.
O livro “Herança do olhar”, organizado por João de Souza Leite, contém
artigos sobre o período em que Aloísio Magalhães esteve ligado ao CNRC e ao Iphan. Em
“A cultura e o caráter do desenvolvimento econômico”, Paulo Sergio Duarte discorre sobre
alguns conceitos que teriam balizado a atuação político-cultural de Aloísio, que, em seu
ver, foi o “articulador da mais consistente e abrangente política cultural até agora formulada
no Brasil” (Duarte, 2003: 222). Para Duarte, Aloísio teria questionado, em sua proposta
política, as variáveis quantitativas que serviam à elaboração de modelos de
desenvolvimento, propondo sua substituição por uma ‘visão antropológica e moderna’ de
cultura, que abarcaria um número muito mais vasto de manifestações culturais que as
23
38. consideradas pelo Iphan desde a sua criação. Para o autor, essa nova visão do patrimônio,
mais ampliada, teria sido resgatada e aprofundada por Aloísio a partir do anteprojeto de
Mário de Andrade para a criação do Sphan.
Maria Cecília Londres Fonseca é a autora de “O Centro Nacional de
Referência Cultural: a contemporaneidade do pensamento de Aloísio Magalhães”, artigo
em que ela revê e complementa alguns temas abordados em sua tese de doutorado. Fonseca
aponta, assim como fez João Leite, para o que ela considera ser a base de conduta de
Aloísio como homem público: a liminaridade da ligação de Aloísio Magalhães com a
produção cultural. Algo que faria parte da identidade pernambucana de Aloísio, que, como
tal, esteve desde sempre em contato com as culturas populares de Pernambuco. Tal ligação
só teria se adensado com sua passagem pelo Teatro, pelas Artes Plásticas, pelas Artes
Gráficas e pelo Design. Assim, o ‘contato profundo e variado’ com a questão cultural teria
informado o modo inovador com que Aloísio cuidou da cultura, e também o ‘sentido de
compromisso com o desenvolvimento’ que guardariam as suas propostas para a área
cultural. Propostas essas que tinham como diferencial a compreensão da cultura como fator
decisivo para o desenvolvimento. Para a autora, Aloísio se destaca pelo fato de ele ter, antes
de todos, percebido o potencial brasileiro de gerar alternativas ao modelo de
desenvolvimento hegemônico dos Estados Unidos.
Ao final desse artigo, Fonseca comenta a experiência de ter trabalhado no
CNRC, algo que ela não faz diretamente em sua tese de doutorado, assumindo também a
permanente ligação do grupo que fez parte do CNRC com as propostas experimentadas
então. Nesse sentido, a autora menciona a marca que a experiência no Centro teria deixado
24
39. nas pessoas ligadas que formaram a equipe do órgão. Esse grupo teria continuado crédulo à
validade daquelas propostas, participando de projetos de interesse público.
Em “Um líder e seu projeto”, Joaquim Falcão avalia os antecedentes, o
conteúdo e as conseqüências das propostas de Aloísio Magalhães para a área cultural.
Segundo o autor, havia um ‘problema gerador’ que Aloísio tomou como desafio pessoal.
Esse problema consistia em que, em função das mudanças porque passava o país, com o
desgaste do modelo implementado pelo regime militar e a re-mobilização da sociedade
civil, mudavam também as necessidades do campo do patrimônio. Aloísio teria captado
esse clima de mudança e a partir do que ele demandava, formulou um projeto para
concretizar as mudanças necessárias. Nas palavras de Falcão, “seu projeto foi moldado por
uma compreensão sistêmica de cultura, aberta e não dogmática, capaz de integrar, somar,
incorporar sem eliminar divergências, conservar mudando” (Falcão, 2003: 259).
Em “Aloísio Magalhães: uma idéia viva”, Joaquim Redig de Campos -
designer que também trabalhou no escritório de Aloísio - comenta algumas características
da personalidade e da trajetória de Aloísio Magalhães. Para Campos, na vida de Aloísio,
seriam identificáveis dois grandes estágios: um plástico e um político. Cada um desses
estágios estaria ligado a um tempo definido; o primeiro iria desde o início de sua
experiência com a pintura e a gravura até a sua prática como designer. O CNRC e a política
cultural no MEC constituiriam o segundo estágio.
As colocações de Redig são bastante similares às de João Leite. Assim
como este, Redig entende o CNRC como uma conseqüência da prática do design, na
trajetória de Aloísio. Todo o potencial desenvolvido por Aloísio a partir da criação do
25
40. CNRC estaria esboçado primeiramente em sua atuação no campo do design, pois, segundo
Redig, para Aloísio tudo era uma coisa só.
No livro “Esdi: biografia de uma idéia”, o designer Pedro Luiz Pereira de
Souza levanta a história da Escola Superior de Desenho Industrial, onde se graduou e é
professor. Apesar de recriar minuciosamente a trajetória da escola, mais do que se
preocupar com a sucessão dos fatos, o autor discute as idéias e concepções que guiaram as
atividades da ESDI, a partir de 1963. Aloísio Magalhães esteve presente na escola desde a
sua fundação, ocupando lugar de destaque entre os professores, uma vez que, devido ao seu
posicionamento atípico no quadro docente – “mais próximo a uma tendência empírica e
formal, ele foi, na verdade, uma escola fora da ESDI” (Souza, 1996: 154). Para este autor, o
que veio a se tornar o Centro Nacional de Referência Cultural era, na verdade, um projeto
de design nacional, cultivado por Aloísio ao longo dos anos de sua prática profissional.
Neste capítulo, analiso, ainda, o conjunto de depoimentos gravados (ainda
não editados) durante o “Simpósio Aloísio Magalhães sobre política cultural”, realizado em
Brasília no ano de 2002. Por ocasião do aniversário de vinte anos de morte de Aloísio
Magalhães, reuniram-se, em sua homenagem, pessoas que trabalharam com ele durante a
fase de sua vida dedicada às políticas culturais. Entre os palestrantes estavam: Octavio
Elísio Alves de Brito (representando o Ministro da Cultura), João de Souza Leite, Roberto
Cavalcanti de Albuquerque, Antonio Augusto Arantes, Jurema de Souza Machado, Roberto
Sabato Moreira, José Silva Quintas, Carlos Rodrigues Brandão, Luiz Felipe Perret Serpa,
Lauro Cavalcanti, Bárbara Freitag Rouanet, Briane Bicca, Joel Rufino dos Santos, Olympio
Serra, José Carlos Levinho, Maria Cecília Londres Fonseca, Augusto Carlos da Silva
26
41. Telles, Henrique Oswaldo de Andrade, José Reginaldo Gonçalves, Célia Corsino, Isaura
Botelho, Paulo Sérgio Duarte e Tereza Carolina Abreu.
A pesquisa localizou também alguns textos esparsos que fazem referência
ao CNRC. Tanto de pessoas ligadas a Aloísio, tais como Italo Campofiorito, Paulo Sergio
Duarte, Joaquim Falcão, José Laurêncio de Melo, José Silva Quintas, quanto de autores que
não tiveram vinculação direta com ele, como, por exemplo, Renato Ortiz.
Além disso, vale destacar a influência que exercem os trabalhos de
Fonseca (2005) e Gonçalves (2002) sobre a compreensão geral do que tenha sido o CNRC.
A maioria dos textos produzidos posteriormente a essas publicações, assume e repete o
modo como o CNRC e o discurso de Aloísio Magalhães foram entendidos por esses
autores. Não é sem motivo: Fonseca e Gonçalves realizaram trabalhos importantíssimos,
que aprofundam as discussões sobre o segundo momento da trajetória das políticas públicas
de patrimônio no Brasil, o que até então não havia sido feito. Seguindo seus passos, já
foram realizados alguns trabalhos. Entre eles, cumpre destacar as dissertações de Garcia
(2004) e Mariani (1996).
1.2 O Centro Nacional de Referência Cultural
1.2.1 Projeto pessoal ou o resultado de um encontro
Os autores se dividem quando se trata de explicar a criação do Centro
Nacional de Referência Cultural. Para uns, o CNRC era um projeto pessoal que Aloísio
Magalhães vinha elaborando há muito tempo, em função da experiência acumulada em sua
27
42. prática no campo do design; para outros, é do encontro entre Aloísio Magalhães, Severo
Gomes e Vladimir Murtinho que nasce o projeto de um centro que associasse a pesquisa em
cultura a uma proposta de desenvolvimento para o país.
João de Souza Leite é um dos que acreditam que o projeto do CNRC foi
moldado gradativamente na cabeça de Aloísio Magalhães, a partir do momento em que ele
se decide pelo design enquanto profissão. Para Leite, essa decisão teria se dado em função
do encontro de Aloísio com a ‘idéia de projeto’3, uma decorrência de sua visita à Brasília.
A nova capital federal, que, para Leite, seria a concretização da atitude projetual no país,
teria despertado Aloísio para a possibilidade de atuação no campo do design. Segundo este
autor, depois da visita a Brasília, Aloísio se decidiu efetivamente pela profissão que veio a
exercer nos vinte anos seguintes. Nesse mesmo momento, teria surgido em Aloísio o
interesse pelas questões culturais. A partir de tal perspectiva, o CNRC seria apenas um
desdobramento (quase como uma conseqüência) na área cultural de posicionamentos
assumidos por Aloísio enquanto designer.
Pedro Luiz Pereira de Souza cita um depoimento de Aloísio, em que ele
propõe algo que poderia ser caracterizado como um pré-projeto do CNRC, e onde ele
também sugere que ‘designers’ e ‘sociólogos’ deveriam se unir na busca pela viabilização
de um produto industrial com características nacionais. Nas palavras de Souza,
3
“A noção de projeto é uma das mais caras ao conceito de design – palavra inglesa cuja melhor definição
seria, justamente, projeto (e não desenho). O Conselho Federal de Educação, no parecer 62/87, de 29 de
janeiro de 1987, prioriza a atividade projetual na própria definição de desenhista industrial: “O desenhista
industrial é o profissional que participa de projetos de processos industriais, atuando nas fases de definição de
necessidades, concepção e desenvolvimento do projeto, objetivando a adequação destes às necessidades do
usuário e às possibilidades de produção” (Villas-Boas, 1997: 20). Segundo o designer André Villas-Boas,
para que se exerça o design, é necessário que haja projeto. Em suas palavras, “É através da atividade projetual
que “o desenhista industrial coteja requisitos e restrições, gera e seleciona alternativas, define e hierarquiza
critérios de avaliação e engendra um produto que é a materialização da satisfação de necessidades humanas,
através de uma configuração e de uma conformação palpável” (Moraes, 1993)” (1997: idem).
28
43. em 31 de março de 1973, no Jornal do Brasil ele declarou: “Eu sugiro a
criação de um grupo independente de política e de grupos econômicos para
pesquisa de produtos novos e levantamentos de viabilidades de mercado.
Esse grupo teria elementos governamentais e designers também, deveria
contar com pessoas ligadas aos aspectos sócio-econômicos e culturais do
país, como sociólogos, por exemplo. Essa associação me parece
imprescindível se vai-se querer criar produtos com características nacionais
e uma política nacional de design (Souza, 1996: 272).
Assim como Leite e Souza, Octavio Elísio Alves de Brito (2002) acredita
que o interesse de Aloísio Magalhães pela política cultural nasce em função de uma
indagação feita a partir de sua perspectiva profissional. A preocupação com a fragilidade do
produto brasileiro teria levado Aloísio a criar o CNRC.
Deixando o design, e vinculando o Centro ao campo das políticas
públicas de patrimônio, José Reginaldo Gonçalves vincula a criação do CNRC ao desejo
particular de Aloísio Magalhães de “estudar e propor uma política alternativa de patrimônio
cultural que o novo contexto histórico por que passava a sociedade brasileira estava a
exigir” (Gonçalves, 2002: 74).
Se para Brito, Leite e Souza, o CNRC era uma idéia que Aloísio já trazia
em mente quando encontra Severo e Murtinho em 1975, para Maria Cecília Londres
Fonseca, assim como para Sérgio Miceli, o CNRC surge a partir do encontro de Aloísio
Magalhães com Severo Gomes e Vladimir Murtinho. Para Miceli, o Ministro Severo teria
se mostrado sensível ao projeto de Aloísio de realizar essa “espécie de levantamento
arqueológico multidisciplinar, visando o resgate dos traços e raízes culturais a serem
utilizados como matéria-prima de um desenho caracteristicamente ‘nacional’ dos produtos
industriais” (Miceli, 1984: 79). Fonseca acredita que O CNRC teria surgido a partir de
conversas entre Aloísio – designer e artista plástico, Severo – então Ministro da Indústria e
Comércio, e Vladimir – diplomata e Secretário de Educação e Cultura do DF. Situado em
Brasília, o grupo debatia sobre o produto brasileiro, questionando porque esse produto não
havia ainda encontrado uma fisionomia própria.
29
44. Ana Luiza Silveira Lopes assinala que
Joaquim Reidg (que trabalhava com Aloísio na época) narra um episódio
que ilustra bem essa passagem (em que Aloísio começa a se desvincular de
sua atividade como designer e passa a se dedicar cada vez mais a uma
atividade no âmbito cultural). Segundo o depoimento de Redig, por volta
de 1972, alguns anos antes de Aloísio Magalhães assumir publicamente sua
atividade na política cultural, ele foi convocado pelo Ministro da Indústria
e Comércio e seu amigo pessoal, Severo Gomes, para uma consultoria
sobre o produto brasileiro de exportação. Teria sido nessa reunião que, ao
se deparar com o problema da definição de um produto brasileiro (ou a
falta dela), Aloísio Magalhães teria colocado a questão de que para definir,
conhecer e criar o produto brasileiro seria preciso antes conhecer a cultura
brasileira (Lopes, 2003: 33).
1.2.2 Uma experiência pioneira e ambiciosa
O Centro Nacional de Referência Cultural é definido pelos autores como
uma ‘atividade’ (Falcão, 1984), uma ‘experiência pioneira’ (Arantes, 2002), uma ‘base
experimental’ (Gonçalves, 2002), um ‘espaço de experimentação’ e um ‘celeiro de idéias e
experiências’ (Fonseca, 2002), um ‘berço’ (Leite, 2002), uma ‘espécie de levantamento
arqueológico multidisciplinar’ (Miceli, 1984). Essas definições denotam a ênfase dada por
esses autores ao caráter experimental e embrionário do trabalho desenvolvido pelo CNRC,
que é visto pela maioria deles como a base de onde teriam se desenvolvido as idéias que
nortearam as políticas públicas de preservação de patrimônio a partir de 1979, quando
Aloísio Magalhães foi nomeado presidente do Iphan.
João de Souza Leite acredita que o CNRC teria sido “o berço das ações que Aloísio
Magalhães viria a traçar no quadro institucional, no âmbito federal, no trato dos bens
culturais” (Leite, 2002: 04). Joaquim Falcão define o CNRC como “o embrião da nova
política de preservação cultural do Estado” (Falcão, 1984a: 31). Para este autor, o CNRC
nem chega a se concretizar como uma instituição, ele seria simplesmente “uma atividade
apoiada por um convênio” (Falcão, 1984a: 32). Maria Cecília Londres Fonseca (2002)
reforça o argumento de Falcão, afirmando que, ao contrário do que pode parecer, o CNRC
30
45. não era uma instituição de pesquisa, mas, sim, um espaço de experimentação, um celeiro de
idéias e experiências onde se adotava uma perspectiva interdisciplinar, caracterizada por
uma prática plástica e informal. Assim como Fonseca e Brito, José Reginaldo Gonçalves
define o CNRC como a ‘base experimental’ para a nova política oficial de patrimônio
implementada em 1979. Em suas palavras, o Centro era um “programa interministerial de
trabalho que desenvolveu diversos projetos culturais que exemplificavam a nova concepção
de ‘patrimônio cultural’ defendida por Aloísio Magalhães” (Gonçalves, 2002: 74).
Indo além, Octavio Elísio Alves de Brito define o CNRC como “um laboratório de
experiências e projetos culturais que levaram a questionamentos sobre a cultura brasileira,
que se ampliavam, em muito, ao alcance das políticas culturais” (Brito, 2002: 02).
Gonçalves e Fonseca destacam o caráter ambicioso da proposta do
CNRC. Para Gonçalves, os projetos do Centro não teriam por objetivo a simples
identificação e preservação dos ‘bens culturais’, mas, mais do que disso, estariam
preocupados com o retorno dos resultados às populações ligadas aos bens culturais
pesquisados. Fonseca divide as atividades do CNRC em duas fases, a primeira, com uma
proposta mais restrita, e a segunda, com objetivos mais ‘ambiciosos’. A autora afirma que,
a princípio, o Centro se propunha a criar um banco de dados sobre a cultura brasileira, que
tinha por fim gerar referências que fossem úteis ao planejamento social e econômico do
país. Referenciando e identificando os produtos culturais brasileiros, o grupo do CNRC
acreditava ser possível viabilizar um maior acesso aos produtos, que, até então,
encontravam-se desconhecidos da sociedade e privados, assim, de contribuir para o
desenvolvimento nacional. Segundo Fonseca, com o passar do tempo, essa concepção teria
sido re-elaborada a ampliada, e o projeto do Centro teria tomado um vulto mais ambicioso,
buscando não só reunir indicadores para a elaboração de um modelo de desenvolvimento
31
46. que se encaixasse nas necessidades brasileiras, mas, também, considerar as questões de
responsabilidade social para com os interesses dos grupos pesquisados.
1.2.3 Trabalhando com os contextos
Para Gonçalves, a proposta do CNRC seria elaborar um novo modo de
tratar os bens culturais enquanto patrimônio: um modo que considerasse os contextos em
que vivem as populações associadas a um dado ‘bem cultural’, que levasse em conta as
peculiaridades de cada cultura. Nesse discurso, autonomia se associa a diversidade, pois,
como afirma o autor, para Aloísio Magalhães a diversidade cultural da sociedade brasileira
seria o elemento definidor de sua singularidade, tanto a nível nacional quanto internacional.
Para Aloísio, os ‘bens culturais’ seriam ‘indicadores’ de um ‘caráter’ brasileiro, e esse
‘caráter’ somente se revelaria através do estudo das trajetórias dos ‘bens culturais’. Isso só
seria possível se a pesquisa acessasse o ‘ponto de vista nativo’. Logo, o conjunto
heterogêneo de ‘bens culturais’ que caracterizaria a cultura brasileira só faria sentido se
cotejado com o contexto ao qual se vinculava. Para Gonçalves, esse “discurso ecoa uma
visão antropológica ou etnográfica da cultura, incluindo como ‘patrimônio’ diversas
espécies de objetos e práticas que integram o cotidiano de diferentes segmentos sociais”
(Gonçalves, 2002: 82).
José da Silva Quintas concorda que a proposta inicial do Centro seria
trabalhar com os contextos culturais, não partindo de modelos, mas travando contato com
os indivíduos ligados aos processos culturais observados – os ‘produtores da cultura’. Para
Quintas, o contato com os diversos contextos culturais teria levado o CNRC à compreensão
de que existem no país diversas visões de mundo e inúmeras explicações para a realidade.
32
47. Desse modo, o Centro teria optado por trabalhar “mais a cultura enquanto processo do que
enquanto produto” (Quintas, 2004: 08).
Indo na mesma direção, Antonio Augusto Arantes (2002), afirma que a
grande preocupação do CNRC seria reintegrar no universo de sua produção as referências
produzidas pelas pesquisas. O referenciamento deveria contribuir para o fortalecimento das
experiências pesquisadas, a nível local, mas também, em um âmbito mais geral, para o
desenvolvimento do país a nível global.
1.2.4 O conceito de ‘referência cultural’
No “Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho
Patrimônio Imaterial”, de 2000, Maria Cecília Londres Fonseca assina um artigo intitulado
“Referências culturais: base para novas políticas de patrimônio”. Nesse texto, Fonseca
retoma a história do CNRC, revisando a noção de ‘referência cultural’, que naquele
momento, era a base para as considerações sobre a criação de um novo instrumento legal de
preservação, no que tange ao patrimônio de natureza imaterial. A autora esclarece que essa
noção entrou em cena no campo do patrimônio através do Centro. O termo ‘referência’,
estrategicamente escolhido, evidenciava uma crítica dos pesquisadores ligados ao órgão às
tradicionais noções utilizadas no campo da preservação.
A expressão ‘referência cultural’ estaria, mesmo que de modo indireto,
vinculada a uma concepção antropológica de cultura. Algo que para Fonseca, se
caracterizaria por uma perspectiva plural que descentraliza os critérios tidos como
objetivos, enfatizando a “diversidade não só da produção material, como também nos
sentidos e valores atribuídos pelos diferentes sujeitos a bens e práticas sociais.” (Fonseca,
33
48. 2000: 62) Assim, falar em ‘referências culturais’ seria chamar a atenção para a questão da
identidade dos grupos ligados a um dado bem cultural. Portanto, apreender ‘referências’
implicaria em lidar não só com as representações simbólicas, mas, também com as relações
existentes entre elas.
Orientar um trabalho de preservação a partir da noção de ‘referência
cultural’ significa buscar formas de se aproximar do ponto-de-vista dos
sujeitos diretamente envolvidos com a dinâmica da produção, circulação e
consumo dos bens culturais (2000: 68).
Segundo Fonseca, nos termos do trabalho desenvolvido pelo CNRC, os
sujeitos ligados a um dado contexto cultural deixam de ser meros informantes, para se
transformarem em intérpretes de seu patrimônio cultural. E assim “o eixo do problema da
preservação se desloca de uma esfera eminentemente técnica para um campo em que a
negociação política tem reconhecido o seu papel” (2000: 64). Dessa forma, transferindo a
atenção dos objetos para os sujeitos, o CNRC teria contribuído para a desmaterialização e
politização da preservação.
A autora acredita que os instrumentos encontrados pelo Centro para
realizar tal tarefa foram tomados emprestados do ‘saber consolidado pelas Ciências Sociais,
que estariam disseminando a idéia de ‘bem-cultural’. Joel Rufino dos Santos acrescenta que
a idéia de bem-cultural já ‘andava no ar há tempo’. Para este autor, o mérito de Aloísio
Magalhães foi “convertê-la em diretriz política e ‘vendê-la’ com sucesso ao último governo
militar, conseguindo dele os meios institucionais que o viabilizaram” (Santos, 2002: 64).
34
49. 1.3 Cultura, antropologia e desenvolvimento
1.3.1 Politizando uma concepção antropológica de cultura e sociedade
Muitos dos autores (Botelho, Duarte, Fonseca, Garcia, Gonçalves)
associam o trabalho do CNRC a uma inspiração antropológica. Para eles, o Centro teria
operado com um conceito de cultura diferente do que até então fundamentava a prática do
Instituto do Patrimônio. Fonseca (2005) afirma que a nova concepção de cultura utilizada
pelo CNRC estaria em consonância tanto com as diretrizes da Unesco, quanto com
mudanças por que passavam as próprias Ciências Sociais. José Reginaldo Gonçalves afirma
que a narrativa de Aloísio Magalhães estaria vinculada a uma visão projetiva da história, ou
melhor, a uma concepção antropológica de cultura e sociedade. Esse autor associa o
discurso de Aloísio Magalhães a uma
tendência ideológica manifesta em parte da literatura etnográfica do
século XX, onde ganha destaque uma visão das chamadas ‘culturas
primitivas’, ou das ‘culturas populares’, que aparecem sob o impacto
irreversível de um processo global de homogeneização, descaracterização
e perda (Gonçalves, 2002: 100).
Para Gonçalves, a narrativa de Aloísio Magalhães reeditaria antigas estratégias
utilizadas pela História e pela Antropologia, “onde a história é concebida como um
processo ininterrupto de destruição, e onde os valores associados a determinada ‘cultura’, a
determinada ‘tradição’ ou ‘identidade’ tendem a ser irremediavelmente perdidos”
(Gonçalves, 1991: 73). A diferença entre o discurso de Aloísio Magalhães e essa literatura
antropológica estaria em seus propósitos: o discurso de Aloísio não se limitava à descrição
e à análise de culturas - além disso, ele tinha objetivos políticos e ideológicos.
A politização da questão cultural surge, nesses textos, como uma
conseqüência da ‘antropologização’ da cultura. Segundo Maria Cecília Londres Fonseca, a
35
50. partir da experiência do CNRC a preservação passaria a assumir novas funções para além
da estritamente cultural, politizando-se. Roberto Sábato Moreira afirma que Aloísio
Magalhães teria superado “uma idéia predominante na ação do Estado quando se tratava de
política cultural” (Moreira, 2002: 26), aquela que entendia cultura como arte, para substituí-
la por um conceito de cultura “que incorporava a esfera do simbólico, dos valores, do saber,
do conhecimento, da expressão, dos fazeres cotidianos” (2002: idem).
1.3.2 Conceito de cultura
Isaura Botelho discute a adoção, por Aloísio Magalhães, do que ela
denomina de ‘conceito antropológico de cultura’, algo que, segundo a autora, a Unesco
vinha pregando desde o início dos anos 1970. Botelho afirma que a questão do conceito de
cultura foi fundamental na época. Para ela, “é o grau de abrangência dos termos da
definição de cultura que estabelece parâmetros para a determinação das estratégias
possíveis tendo em vista os objetivos de uma política cultural” (Botelho, 2002: 98). A
autora aponta para as diferenças existentes entre uma dimensão antropológica e uma
dimensão sociológica da cultura. Segundo ela, Aloísio teria adotado a primeira perspectiva,
a da Antropologia. Nesse plano, Botelho define cultura como sendo o fruto da interação
social dos indivíduos, ou como sendo o lugar onde esses indivíduos elaborariam seus
valores e construiriam suas identidades.
Logo, segundo essa visão, para que uma política atinja a cultura tomada
sob tal perspectiva, seria necessário que ela incluísse em seu projeto a reorganização das
estruturas sociais e a redistribuição dos recursos econômicos. Ou seja, tomar a cultura nesse
sentido implicaria, no nível das políticas públicas, em mudanças radicais na organização de
36
51. uma sociedade. “Assim sendo, a adoção de um conceito antropológico de cultura exige a
participação de todas as áreas da gestão pública devendo, portanto, ser assumido como um
pressuposto geral de governo e não exclusivo do setor de cultura” (2002: 99). Desse modo,
“o problema, ao se assumir uma perspectiva antropológica de cultura, não é expandir a área
da cultura, mas sim expandir a cultura para as outras áreas do governo” (2002: 100).
Para Botelho, Aloísio Magalhães tinha consciência da necessidade de
articulação política entre os vários setores do governo quando criou o CNRC como um
órgão multi-institucional, pois, com a criação do Centro, ele não só retirou a cultura do
ambiente restrito onde ela era habitualmente tratada (o MEC), como conclamou outros
setores do governo a incluírem as questões culturais entre as suas preocupações, realizando,
assim, um trabalho de alargamento do espectro de possibilidades para o trato da questão
cultural dentro e fora do governo.
Para Paulo Sergio Duarte (2003), Aloísio Magalhães teria questionado,
em sua proposta política, as variáveis quantitativas que serviam à elaboração de modelos de
desenvolvimento, propondo sua substituição por uma ‘visão antropológica e moderna’, que
abarcaria um número muito mais vasto de manifestações culturais que as consideradas pelo
Iphan desde a sua criação. Dessa forma, o CNRC associava a cultura a novas áreas dentro
do governo, áreas mais fortes que aquelas às quais ela era usualmente identificada. Antonio
Augusto Arantes chega a afirmar que essa foi a principal contribuição de Aloísio para o
campo do patrimônio: a inserção da cultura no âmbito das políticas sociais.
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