2. Pieter Bruegel, o Velho, A Dança dos
Camponeses, vers 1568, KHM Vienne
Pieter Bruegel, o Velho,
A Feira em Hoboken (1559)
3. Datação do auto
Existe alguma indecisão na datação do auto:
• I. S. Révah — 1526 e 1527;
• Paul Teyssier — data incerta;
• António José Saraiva — 1528;
• Artur Ribeiro Gonçalves — 1528;
• Angelina Vasques Martins — 1527.
4. Crítica ao mercado das
virtudes e dos vícios em
que se tornou o mundo
Natureza e intenção do auto
Auto de moralidade
através
da alegoria da «feira»
Auto da Feira
5. O contexto histórico
1517 — O Papa Leão X publica
a Bula das Indulgências (referente
à possibilidade de um fiel receber uma
indulgência se ajudasse, com esmolas,
a construção da Basílica de São Pedro).
1517 — Em outubro, Martinho Lutero
escreve as 95 Teses contra as
Indulgências, expostas publicamente
na catedral de Wittenberg, na Alemanha.
Opõe-se à noção de que o perdão
do pecado possa ser atribuído por meio
de um pagamento. Este acontecimento
vai desencadear a Reforma Protestante.
Lucas Cranach,
Martinho Lutero (1528).
6. O contexto histórico
1526 — O Papa Clemente VII alia-se
a Francisco I (França) e a Henrique VIII
(Inglaterra) contra o imperador Carlos V.
6 de maio de 1527 — As tropas do
imperador Carlos V invadem Roma,
pilham a cidade e roubam os seus
habitantes. O Papa refugia-se em
Castel Sant’Angelo durante cerca de
sete meses. Carlos V deixa de perseguir
os protestantes nos territórios
germânicos do seu império.
Anthony Van Dyck, Retrato Equestre
do Imperador Carlos V (1620).
7. Johannes Lingelbach, Saque de Roma de 1527 (século XVII).
• Possibilidade de debate de ideias.
• Ambiente geral de hostilidade e crítica ao clero e à Santa Sé.
• Atmosfera de tensão e de discussão teológica.
8. • O mundo é apresentado
como uma feira em que
um Serafim (o Bem) e um
Diabo (o Mal) vendem
virtudes e vícios
• Roma = a corte papal:
deseja comprar a paz
trocando indulgências,
perdões e bens de valor
material
• Chegada de novos
feirantes, que procuram
apenas bens materiais
• Chegada da juventude
do monte, simples
e ingénua, devota da
Virgem Maria
(não desejam comprar
virtudes, pensam que
o Céu é como a Serra)
Peça de teatro
de temática religiosa
A obra
Auto de moralidade Alegoria
Auto da Feira
Farsa
9. Amâncio Vaz
Denis Lourenço
Branca Anes, a brava
Marta Dias, a mansa
Nove moças do monte
Três moços do monte
Vicente
Mateus
Diabo
Serafim
Vv. 511-992
Mercúrio
Tempo
Serafim
Diabo
Roma
Vv. 182-510
Mercúrio
A estrutura da ação
Vv. 1-181
1.ª parte:
Sermão burlesco
2.ª parte:
Auto de moralidade
Sequência de episódios ligados
pelo espaço/situação: feira (o mundo)
3.ª parte:
Farsa
10. Amâncio Vaz
Denis Lourenço
Branca Anes, a brava
Marta Dias, a mansa
Nove moças do monte
Três moços do monte
Vicente
Mateus
Diabo
Serafim
Vv. 511-992
Mercúrio
Tempo
Serafim
Diabo
Roma
Vv. 182-510
Mercúrio
A estrutura da ação
Vv. 1-181
1.ª parte:
Sermão burlesco
2.ª parte:
Auto de moralidade
Sequência de episódios ligados
pelo espaço/situação: feira (o mundo)
3.ª parte:
Farsa
11. 1.ª parte — Sermão burlesco
Intervenção de uma divindade pagã:
• Efeito cómico ou de distanciamento
• Exemplo de influência renascentista
• Capta a atenção dos ouvintes
• Satiriza a confiança na astrologia enquanto fenómeno que antevê ou decifra
os acontecimentos da vida através da intervenção dos astros
• Discorre sobre os deuses e a organização do céu e dos astros
• Menciona a astrologia e os signos do Zodíaco
• Ordena a execução da feira na corte de Portugal no dia de Natal
Devaneio sobre as noções de astrologia
As realidades triviais e banais a que as aplica
Confronto entre
Efeito
cómico
• Deus mensageiro
• Deus do comércio
• Apto para os negócios
Mercúrio
12. 2.ª parte — Moralidade (figuras alegóricas)
Mercúrio
Mercador-mor da feiraTempo
Anjo enviado por Deus a pedido do TempoSerafim
Opõem-se à participação
do Diabo na feira
aos valores da sociedade (sobretudo através das falas do Diabo)
aos comportamentos dos membros da Igreja (através do diálogo
que Roma mantém com os mercadores)
Crítica
Mercador rival, seguro do seu sucesso naquelas ocasiões, sabe que
venderá muito
Diabo
• Cliente principal da feira, símbolo da Igreja e da corte papal
• Preocupada com a agressividade de que é alvo por parte de «três amigos»
que tinha — Alemanha, Inglaterra e França (v. 354)
Roma
13. Troca direta
«chamada das Graças,
à honra da Virgem parida em Belém» (vv. 184-185)
Feira das virtudes
Mercador-mor
da feira
Tempo
Um anjo enviado
por Deus que
convida os que
querem os seus
«produtos»
Serafim
Vendem:
Virtudes Razão Justiça Verdade
Paz Bons conselhos Temor a Deus
Cronos, deus do
Tempo, escultura
em ouro.
O Anjo — pormenor
de Fra Angelico,
Anunciação (século XV).
14. Em troca de jubileus
(indulgências)
Troca direta
«chamada das Graças,
à honra da Virgem parida em Belém» (vv. 184-185)
Feira das virtudes
Mercador-mor
da feira
Tempo
Um anjo enviado
por Deus que
convida os que
querem os seus
«produtos»
Serafim
Vendem:
Virtudes Razão Justiça Verdade
Paz Bons conselhos Temor a Deus
≠
Deseja adquirir:
Paz Verdade Fé
Símbolo
da Igreja
Roma
Vende:
Artes de enganar
Ruindade Falsas
manhas Hipocrisias
Mercador rival
Diabo
15. 3.ª parte — Farsa
Dois lavradores; querem trocar
as esposas, de quem se queixam
Amâncio Vaz
e Denis Lourenço
Vêm comprar bens materiais
e não encontram o que procuram
Branca Anes, a brava,
e Marta Dias, a mansa
Pretende vender
a mulher porque
é violenta, brava e
«muito destemperada»
(v. 524)
Amâncio
Queixa-se do
marido, pois este
só come, dorme, «nam
faz nunca nada»
(v. 638)
Branca
≠
Pretende vender
a mulher porque
é passiva, mansa
«mole e desatada»
(v. 543)
Denis
Pretende
comprar anéis,
sombreiros e burel;
com uma jaculatória,
afasta o Diabo
Marta
≠
Nove moças do monte e Três moços do monte —
devotos da Virgem, vêm divertidos, a cantar, naturalmente bons e simples.
Vicente e Mateus fazem a corte a algumas das moças, sem efeito.
16. Branca indica que o Serafim
fala «per pincéus» (v. 753)
Marta e Branca desejam
tecidos, louça e anéis
Roma oferece rituais, poder
Intenções de quem pretende
negociar
Linguagem do Serafim
Serafim oferece consciência
Serafim pede vida santa
Graças e virtudes morais
da tenda do Serafim
Opõe
Feira
≠
Mundo espiritual Mundo material
≠
≠
≠
17. Durante o dia de Natal
É sempre o mesmo durante
as três partes da peça
Um cofre contendo
um espelho (vv. 485-492)
Tenda para
o Tempo e o Serafim
O espaço e o tempo
Feira das virtudes
montada por Mercúrio
Tenda para
o Diabo
2.ª parte 3.ª parte1.ª parte
Espaço
Tempo
18. As personagens e a sua caracterização
Pieter Bruegel, o Velho, A Dança dos Camponeses (1568) (pormenor).
19. Mercador-mor da Feira
Tempo
Não vende, troca:
Virtudes Remédios contra fortunas
ou adversidades Conselhos sábios
Amor e razão Justiça e verdade Paz
Temor às Chaves dos Céus
Ajudante do Tempo
Serafim
Enviado por Deus
Pertence à esfera mais elevada dos anjos
Apela
Necessita de um ajudante que o proteja
dos maus compradores, habituados
a fazer negócios com o Diabo
Às igrejas, mosteiros,
pastores de almas,
Papas adormecidos
Aos governantes,
aos «Príncipes
altos»
Crítica à
manipulação
dos governantes
• Crítica à vida desregrada
e à hipocrisia do clero
• Apelo a uma religiosidade
mais verdadeira
As figuras alegóricas
Chamada de atenção para
a necessidade de mudança na Igreja
20. Aos membros do clero:
Naipes (baralhos de cartas) (v. 318) — sacerdotes
Falsas manhas de viver (v. 333) — clérigo, leigo ou
frade Hipocrisia (v. 337) — bispos Unguento
«com que voe do convento» (v. 343) — freira
Satisfeito e bem-sucedido,
seguro do seu êxito
Enaltece a sua capacidade
de vender todas
as mercadorias que transporta
No seu diálogo com Roma, é cínico
e irónico, mostrando uma visão
materialista do mundo
Confronto com o Tempo e o Serafim
Afirma não poder ser expulso da feira
por ser «o maior dela» (v. 250), uma vez
que tem sempre clientes que compram
o que traz consigo
Vende
Artes de enganar e coisas para esquecer (vv. 288-
289) Perfumaduras — remédios (v. 313) Virotes
— setas (v. 316)
Cornelius Galle, o Velho,
Lucifer (1595).
Surge em cena como
símbolo da oposição
ao Serafim
Diabo
21. Figura interessada no poder
temporal e nos bens materiais
Representa a corte pontifícia
em que predomina a corrupção
Perturbada com a controvérsia
e agressividade de que é alvo
(saque de Roma por Carlos V)
Sente-se atacada pelos reinos
cristãos (lutas religiosas)
Cliente habitual do Diabo
Entra em cena a cantar
Roma
Deseja mudar de comportamento
«paz, / que me livre da canseira» (vv. 359-360)
«a paz firme e de verdade» (v. 368)
Brasão
da cidade-estado
do Vaticano,
sede da Igreja
Católica.
22. Crítica à corrupção
e desregramento da Igreja
Roma deseja comprar:
• paz
• verdade
• fé
(v. 383)
Brasão
da cidade-estado
do Vaticano,
sede da Igreja
Católica.
O Diabo propõe-lhe:
• ruindade
• mentiras
• enganos
(vv. 397-416)
Antiga colaboração entre
as duas personagens:
«Tudo isso tu vendias,
E tudo isso feirei»
(vv. 417-418)
Diálogo do Diabo
com Roma
23. Espelho = Autoconhecimento
Tomada de consciência
Símbolo de verdade e sinceridade
Crítica concreta
às indulgências conferidas
a quem oferecesse dinheiro
para a construção da
Basílica de São Pedro
Serafim explica-lhe que
pode alcançar a paz:
«a troco de santa vida» (v. 450)
Brasão
da cidade-estado
do Vaticano,
sede da Igreja
Católica.
Oferta de Mercúrio:
«Um espelho […], que foi
da Virgem Sagrada» (vv. 487-488)
Diálogo do Serafim
e de Mercúrio com Roma
Roma tenta ajustar
o que traz para trocar:
• «estações» (v. 457)
• «perdões» (v. 459)
• «o poder na terra» (v. 463)
• «jubileus» (v. 473)
24. Insatisfação e desilusão:
• apresentação dos defeitos
dos esposos
• desejo de troca ou venda
dos esposos
Retrato cómico de um
mundo desconcertado
Branca — símbolo
da desarmonia
Marta — símbolo
da harmonia
Os lavradores e suas
esposas descontentes
com o casamento
Os tipos sociais
25. A alegria da vida simples
A importância do «folgar» ≠ vender
Desconhecem
a linguagem espiritual do Serafim
(diálogo de Gilberto com o anjo)
mas
são verdadeiros devotos da Virgem
(cantiga de louvor entoada no final)
Insatisfação e desilusão:
• apresentação dos defeitos
dos esposos
• desejo de troca ou venda
dos esposos
Retrato cómico de um
mundo desconcertado
Branca — símbolo
da desarmonia
Marta — símbolo
da harmonia
Os lavradores e suas
esposas descontentes
com o casamento
Os tipos sociais
As moças
e os moços
Ideia de bondade redentora:
a Virgem recompensa os bons
sem pedir nada em troca
(vv. 964-968)
26. Os temas
Crítica à superstição
Monólogo de Mercúrio
No seu discurso inicial, Mercúrio satiriza a crença supersticiosa na influência
que os astros teriam na vida humana.
Critica ainda a falsa erudição de quem confunde a ciência astronómica com
a astrologia.
Dissolução dos costumes
Discurso do Diabo
Valorização excessiva do dinheiro.
Mentalidade materialista (dialética entre enriquecer/empobrecer).
Sobrevivência através de estratagemas dissolutos.
Imoralidade do clero.
Questões sociais
da época de Gil Vicente
27. Decadência da Igreja de Roma
Diálogos de Roma com os vendedores
Poder temporal (político e económico) do clero.
Indulgências em troca de valores monetários.
Conflitos bélicos em que a Igreja se envolveu com os países europeus (crise
de 1526-1527).
Casamento
Diálogos dos dois casais
Mundo de opostos: cada casal considera o cônjuge do outro melhor do que o
seu.
Tentativa de venda ou troca dos parceiros reveladora de que os cônjuges
se consideram um bem material e não seres humanos.
Incapacidade de compreender o sacramento matrimonial e a sua
indissolubilidade.
28. Religiosidade pura
Discurso de Roma
Mostra arrependimento face aos erros.
Diálogos das moças e moços do campo
Regresso a uma religiosidade mais simples, mais verdadeira (possível
influência do pensamento de Erasmo de Roterdão).
Verdadeira devoção à Virgem.
Diálogo de Gilberto com o Serafim
Perguntas ingénuas do pastor possibilitadoras de uma aproximação das
esferas divina e terrena.
29. Estilo e linguagem
Presença de arcaísmos medievais e inovações renascentistas
Utilização do latim na primeira parte do auto
Língua em transição
Linguagem de Mercúrio: discurso ambíguo, linguagem cómica e persuasiva
Linguagem cuidada do Tempo, do Serafim e de Roma: introdução de fórmulas
hebraicas no discurso
Registos de língua
variados
Linguagem popular: o registo popular que os lavradores e os moços do campo
partilham
Linguagem corrente do Diabo: dialoga com todos os clientes; utiliza ironia
e estratégias retóricas
Expressões populares, provérbios, interjeições; ironia.Coloquialidade
30. Cómicos
Roma, representante da Igreja, deseja
comprar paz, verdade e fé numa feira
Cómico de situação
Os lavradores pretendem vender
e trocar os cônjuges
Os lavradores têm de se esconder
quando surgem as suas esposas e ouvem
a conversa atrás de uma silveira
Ironia do Diabo quando defende
o seu direito de participar na feira
Cómico de linguagem
Linguagem persuasiva do Diabo,
tentando manipular Roma
Linguagem fluida dos lavradores
e esposas (expressões populares)
Mercúrio, deus pagão, prepara uma feira
em que surgem as figuras da religião
cristã como feirantes e clientes
Linguagem popular do diálogo
de Mateus e Vicente (duplos sentidos)
com as moças