1. N.° 62 Abril-Junho 1965
Vol. X X X — R E V I S T A DE HISTÓRIA — Ano XVI
A R T I G O S
H I S T Ó R I A E CIÊNCIAS SOCIAIS.
A longa duração (*).
H á u m a c r i s e g e r a l n a s c i ê n c i a s d o h o m e m : e s t ã o t o d a s elas
e s m a g a d a s p e l o s seus p r ó p r i o s p r o g r e s s o s , isto e m r a z ã o d o
acúmulo de n o v o s c o n h e c i m e n t o s e pela n e c e s s i d a d e de um tra-
b a l h o c o l e t i v o , cuja o r g a n i z a ç ã o i n t e l i g e n t e está a i n d a p o r e s -
t a b e l e c e r ; d i r e t a o u i n d i r e t a m e n t e , t o d a s , das m a i s á g e i s d e n -
tre e l a s , são a t i n g i d a s , q u e r q u e i r a m o u n ã o , p e l o s p r o g r e s s o s ,
mas p e r m a n e c e m , no e n t a n t o , ligadas a um h u m a n i s m o retró¬
g r a d o , i n s i d i o s o , que n ã o l h e s p o d e m a i s s e r v i r d e q u a d r o . To-
d a s , c o m m a i s o u m e n o s l u c i d e z , p r e o c u p a m - s e c o m seu l u g a r
n o c o n j u n t o m o n s t r u o s o das p e s q u i s a s a n t i g a s e n o v a s , cuja
convergência necessária se adivinha atualmente.
Sairão as ciências h u m a n a s destas dificuldades através de
um esforço s u p l e m e n t a r de definição, ou por um a c r é s c i m o de
m a u h u m o r ? T a l v e z t e n h a m essa i l u s ã o , p o r q u e (sob o risco
de v o l t a r a v e l h a s r e p e t i ç õ e s ou a falsos p r o b l e m a s ) ei-las p r e o ¬
c u p a d a s , h o j e m a i s d o que n u n c a , e m d e f i n i r seus o b j e t i v o s ,
s e u s m é t o d o s , suas s u p e r i o r i d a d e s . Ei-las, à porfia, e m p e n h a ¬
das n a s c o n t e n d a s s o b r e a s f r o n t e i r a s que a s s e p a r a m , o u que
n ã o a s s e p a r a m , o u q u e a s s e p a r a m m a l das c i ê n c i a s v i z i n h a s .
P o i s cada u m a delas sonha, de fato, em p e r m a n e c e r o que é, ou
v o l t a r a ser o que e r a . . . A l g u n s s á b i o s i s o l a d o s o r g a n i z a m a p r o -
x i m a ç õ e s : C l a u d e L é v y - S t r a u s s (1) c o n d u z a a n t r o p o l o g i a " e s -
trutural" para os p r o c e s s o s da lingüística, os h o r i z o n t e s da his-
t ó r i a ' " i n c o n s c i e n t e " e o r e c e n t e i m p e r i a l i s m o das m a t e m á t i c a s
''qualitativas". T e n d e êle p a r a u m a c i ê n c i a que l i g a r i a , sob o
n o m e de ciência da c o m u n i c a ç ã o , a a n t r o p o l o g i a , a e c o n o m i a
p o l í t i c a , a l i n g ü í s t i c a . . . M a s q u e m c o n c o r d a r i a c o m estas 1i-
(*). — Tradução de Ana Maria de A l m e i d a Camargo de artigo publicado in
A n n a l e s E. S. C, n.° 4, o u t u b r o - d e z e m b r o de 1958.
( 1 ) . — A n t h r o p o l o g i e s t r u c t u r a l e , P a r i s , P i o n , 1958, passim e especialmente pág.
329.
2. 262
h e r d a d e s de fronteira e c o m estes a g r u p a m e n t o s ? Uns sim, ou-
t r o s n ã o , e c o m isto a p r ó p r i a g e o g r a f i a s e s e p a r a r i a d a h i s t ó r i a !
M a s não sejamos injustos; há um interesse nestas c o n t r o -
v é r s i a s e nestas r e c u s a s . O desejo de afirmar-se c o n t r a as ou-
tras p r o v o c a , i n e v i t a v e l m e n t e , n o v a s c u r i o s i d a d e s : negar ou-
t r e m , já é c o n h e c ê - l o . A l é m d i s s o , sem o q u e r e r e x p l i c i t a m e n -
te, as c i ê n c i a s sociais i m p õ e m - s e u m a s às outras, cada u m a ten-
de a a b r a n g e r c o m p l e t a m e n t e o s o c i a l , em sua " t o t a l i d a d e " ;
c a d a u m a p e n e t r a n a s suas v i z i n h a s , a c r e d i t a n d o p e r m a n e c e r
e m seu p r ó p r i o c a m p o . A e c o n o m i a d e s c o b r e a s o c i o l o g i a que
a c e r c a , a h i s t ó r i a , — t a l v e z a m e n o s e s t r u t u r a d a das c i ê n c i a s
d o h o m e m — a c e i t a t o d a s a s l i ç õ e s d e sua m ú l t i p l a v i z i n h a n ç a
e e s f o r ç a - s e p o r r e p e r c u t i - l a s . A s s i m , a p e s a r das o m i s s õ e s , d a s
o p o s i ç õ e s , das t r a n q ü i l a s i g n o r â n c i a s , e s b o ç a - s e a c o n s t r u ç ã o
de um " m e r c a d o c o m u m " ; valeria a pena e x p e r i m e n t á - l o , nos
p r ó x i m o s a n o s , m e s m o se, m a i s t a r d e , cada c i ê n c i a t i v e s s e v a n -
t a g e m , por u m t e m p o , e m r e t o m a r u m c a m i n h o m a i s estrita¬
mente pessoal.
Mas a aproximação imediata é uma operação urgente. Nos
E s t a d o s U n i d o s , esta r e u n i ã o t o m o u a f o r m a d e p e s q u i s a s c o -
l e t i v a s s o b r e a s á r e a s c u l t u r a i s d o m u n d o a t u a l : s e n d o a s area
studies, a n t e s d e t u d o , o e s t u d o feito p o r u m a e q u i p e d e social
scientists d e s t e s m o n s t r o s p o l í t i c o s d a a t u a l i d a d e : China, Índia,
Rússia, A m é r i c a Latina, Estados U n i d o s . Conhecê-las, proble-
ma vital! É preciso que, quando desta t o m a d a em co¬
m u m de t é c n i c a s e c o n h e c i m e n t o s , cada um dos p a r t i c i p a n t e s
n ã o p e r m a n e ç a l i m i t a d o n o seu t r a b a l h o p a r t i c u l a r , c e g o o u sur¬
d o , c o m o n o p a s s a d o , a o que d i z e m , e s c r e v e m , o u p e n s a m o s ou¬
t r o s ! É a i n d a p r e c i s o que a u n i ã o das c i ê n c i a s s o c i a i s seja c o m ¬
p l e t a , que n ã o s e j a m n e g l i g e n c i a d a s a s m a i s a n t i g a s e m b e n e ¬
f í c i o das m a i s n o v a s , c a p a z e s d e t a n t o p r o m e t e r , q u a n t o d e rea¬
lizar. Por e x e m p l o , o lugar dado à geografia nestas tentativas,
a m e r i c a n a s é p r a t i c a m e n t e n u l o , e e x t r e m a m e n t e p e q u e n o o que
s e c o n c e d e à h i s t ó r i a . E , a l é m d i s s o , d e que h i s t ó r i a s e t r a t a ?
A r e s p e i t o d a c r i s e q u e n o s s a d i s c i p l i n a a t r a v e s s o u n o de¬
curso destes últimos vinte ou trinta anos, as outras ciências
s o c i a i s e s t ã o m u i t o m a l i n f o r m a d a s , e sua t e n d ê n c i a é de d e s ¬
c o n h e c e r , além dos t r a b a l h o s dos h i s t o r i a d o r e s , um a s p e c t o
da r e a l i d a d e s o c i a l em que a h i s t ó r i a é b o a a u x i l i a r , e s e m ¬
pre hábil f o r n e c e d o r a : esta d u r a ç ã o s o c i a l , e s t e s t e m p o s m ú l ¬
t i p l o s e c o n t r a d i t ó r i o s d a v i d a d o s h o m e n s , que n ã o são a p e ¬
n a s a s u b s t â n c i a do p a s s a d o , m a s t a m b é m a b a s e da atual vi¬
da social. Razão suficiente para assinalar com insistência, no
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d e b a t e que s e i n s t a u r a e n t r e todas a s c i ê n c i a s d o h o m e m , a
i m p o r t â n c i a , a u t i l i d a d e da h i s t ó r i a , ou antes, da dialética da
d u r a ç ã o , tal qual ela s e d e s p r e n d e d o t r a b a l h o , d a o b s e r v a -
ção repetida do historiador; nada mais importante, a nosso
v e r , n o c e n t r o d a r e a l i d a d e s o c i a l , d o que esta o p o s i ç ã o v i v a ,
íntima, repetida i n d e f i n i d a m e n t e entre o instante e o t e m p o
lento a escoar-se. Q u e r s e t r a t e d o p a s s a d o , q u e r d a atuali¬
d a d e , u m a c o n s c i ê n c i a n í t i d a d e s t a p l u r a l i d a d e d o t e m p o so¬
cial é i n d i s p e n s á v e l a u m a m e t o d o l o g i a c o m u m das c i ê n c i a s
do h o m e m .
Falarei, portanto, l o n g a m e n t e , da história, do t e m p o da
história. M e n o s para os leitores desta revista, especialistas em
n o s s o s e s t u d o s , d o que p a r a n o s s o s v i z i n h o s das c i ê n c i a s d o
h o m e m : e c o n o m i s t a s , e t n ó g r a f o s , e t n ó l o g o s (ou a n t r o p ó l o g o s ) ,
sociólogos, psicólogos, lingüistas, demógrafos, g e ó g r a f o s , até
m e s m o m a t e m á t i c o s sociais ou estatísticos,— todos os v i z i n h o s
q u e , h á m u i t o s a n o s , t e m o s s e g u i d o e m suas e x p e r i ê n c i a s e
p e s q u i s a s , p o r q u e nos p a r e c i a (e nos p a r e c e ainda) que, c o l o -
c a d a e m sua d e p e n d ê n c i a o u e m seu c o n t a c t o , a h i s t ó r i a a d q u i -
re uma nova luz. Talvez, de nossa parte, tenhamos qualquer
c o i s a a l h e s d a r . D a s e x p e r i ê n c i a s e t e n t a t i v a s r e c e n t e s d a his¬
tória, d e s p r e n d e - s e — c o n s c i e n t e ou n ã o , aceita ou n ã o — u m a
n o ç ã o cada vez mais precisa da m u l t i p l i c i d a d e do t e m p o e do
valor e x c e p c i o n a l do t e m p o l o n g o . Esta última n o ç ã o , mais do
q u e a p r ó p r i a h i s t ó r i a — a h i s t ó r i a de m ú l t i p l a s f a c e s — d e v e -
ria i n t e r e s s a r à s c i ê n c i a s s o c i a i s , n o s s a s v i z i n h a s .
1
HISTÓRIA E DURAÇÕES.
T o d o trabalho histórico d e c o m p õ e o t e m p o passado, esco¬
l h e e n t r e suas r e a l i d a d e s c r o n o l ó g i c a s , d e a c o r d o c o m p r e f e ¬
rências e x c l u s i v a s mais ou m e n o s conscientes. A história
t r a d i c i o n a l , atenta ao t e m p o b r e v e , ao i n d i v í d u o , ao aconte¬
c i m e n t o , h a b i t u o u - n o s , h á m u i t o , a seu r e l a t o p r e c i p i t a d o , dra¬
mático, de fôlego curto.
A n o v a história e c o n ô m i c a e social c o l o c a , no p r i m e i r o
p l a n o de sua p e s q u i s a , a o s c i l a ç ã o c í c l i c a , e r e p o u s a sobre sua
d u r a ç ã o : ela l i g o u - s e à m i r a g e m , e t a m b é m à r e a l i d a d e das
s u b i d a s e d e s c i d a s c í c l i c a s dos p r e ç o s . Há, assim, atualmen¬
te, ao lado do relato (ou do " r e c i t a t i v o " t r a d i c i o n a l ) , um r e -
c i t a t i v o d a c o n j u n t u r a que f o c a l i z a o p a s s a d o e m l a r g o s p e ¬
ríodos: dez, vinte ou cinqüenta anos.
4. 264
Muito para além deste segundo recitativo, situa-se uma
história de fôlego ainda mais lento, desta vez de amplitude
secular: a história de longa, de muito longa duração. A fórmu¬
la, boa ou má, tornou-se-me familiar para designar o inverso
do que François Simiand, um dos primeiros depois de Paul
Lacombe, terá batizado de história événementielle. Pouco im¬
portam estas fórmulas; em todo caso, é de uma a outra, de
um polo a outro do tempo, do instantâneo à longa duração,
que se situará nossa discussão.
Não que estas palavras sejam de uma segurança absoluta,
como ocorre com a palavra acontecimento. De minha parte,
gostaria de fixá-la, aprisioná-la na curta duração: o aconteci¬
mento é explosivo, nouvelle sonnante, como se dizia no século
XVI. Com sua fumaça excessiva, êle enche a consciência dos
contemporâneos, mas não dura muito, mal se vê sua chama.
Os filósofos nos diriam, sem dúvida, que é despojar a pa¬
lavra de uma grande parte de seu sentido. Um acontecimen¬
to, a rigor, pode carregar-se de uma série de significações ou
de relações. Êle testemunha, às vezes, movimentos muito pro¬
fundos, e, pelo jogo factício ou não das "causas" e dos "efei¬
tos", caros aos historiadores de ontem, anexa a si um temp o
muito superior à sua própria duração. Extensivo ao infinito,
êle se liga, livremente ou não, a toda uma cadeia de aconte¬
cimentos, de realidades subjacentes, e impossíveis, parece, de
destacar-se, desde então, umas das outras. Por este jogo de
adições, Benedetto Croce podia pretender que, em todo acon¬
tecimento, a história inteira, o homem inteiro se incorporam
e em seguida se redescobrem à vontade. Com a condição, sem
dúvida, de acrescentar a este fragmento o que êle não conté m
de início e, portanto, de saber o que é justo — ou n ã o — acres¬
centar-lhe. É este jogo inteligente e perigoso que propõem
as recentes reflexões de Jean-Paul Sartre (2).
Então, digamos mais claramente, em lugar de événemen—
tiel: o tempo curto, à dimensão dos indivíduos, da vida quo¬
tidiana, de nossas ilusões, de nossas rápidas tomadas de cons¬
ciência, — o tempo por excelência do cronista, do jornalista.
Ora, façâmo-lo notar, crônica ou j o r n a l dão, ao lado dos gran¬
des acontecimentos, ditos históricos, os medíocres acidentes
da vida quotidiana: um incêndio, uma catástrofe ferroviária,
o preço do trigo, um crime, uma representação teatral, urna
inundação. Todos compreenderão que há, assim, um tempo
(2). —Jean-Paul Sartre, Questions de méthode. Les Temps Modernes, 1957, n.°s
139 e 140.
5. 265
curto de tôdas as formas da vida, e c o n ô m i c a , social, literária,
i n s t i t u c i o n a l , r e l i g i o s a , até g e o g r á f i c a ( u m g o l p e d e v e n t o , u r n a
t e m p e s t a d e ) , assim c o m o p o l í t i c a .
À p r i m e i r a v i s t a , o p a s s a d o é esta m a s s a de p e q u e n o s fa-
tos, uns bem c l a r o s , b e m v i s í v e i s , outros o b s c u r o s e indefini¬
d a m e n t e r e p e t i d o s , e s t e s m e s m o s dos q u a i s a m i c r o s o c i o l o g i a
o u a s o c i o m e t r i a , n a a t u a l i d a d e , f a z e m sua c o l e t a d i á r i a ( h á
também uma m i c r o h i s t ó r i a ) . Mas esta m a s s a n ã o constitui
t o d a a r e a l i d a d e , t o d a a e s p e s s u r a da h i s t ó r i a , s o b r e a qual p o -
de t r a b a l h a r à v o n t a d e a r e f l e x ã o c i e n t í f i c a . A c i ê n c i a s o c i a l
-
t e m quase h o r r o r ao a c o n t e c i m e n t o . N ã o sem r a z ã o o tempo
c u r t o é a m a i s c a p r i c h o s a , a m a i s e n g a n a d o r a das d u r a ç õ e s .
D o n d e , entre alguns de nós, h i s t o r i a d o r e s , uma viva d e s c o n -
f i a n ç a e m r e l a ç ã o a u m a h i s t ó r i a t r a d i c i o n a l , dita é v é n e m e n ¬
t i e l l e , c o n f u n d i n d o - s e este r ó t u l o c o m o da história política,
não sem a l g u m a i n e x a t i d ã o : a h i s t ó r i a p o l í t i c a não é, f o r ç o s a -
m e n t e , événementielle, nem c o n d e n a d a a sê-lo. T o d a v i a , é fa-
to que, salvo os q u a d r o s factícios, quase sem e s p e s s u r a t e m p o -
r a l , d o s q u a i s t i r a v a seus r e l a t o s (3), s a l v o a s e x p l i c a ç õ e s d e
l o n g a d u r a ç ã o , das q u a i s era p r e c i s o d o t á - l a , é fato q u e , n o
seu c o n j u n t o , a h i s t ó r i a d o s ú l t i m o s c e m a n o s , q u a s e s e m p r e
p o l í t i c a , c e n t r a d a n o d r a m a d o s " g r a n d e s a c o n t e c i m e n t o s " , tra-
b a l h o u n o t e m p o c u r t o e s o b r e o t e m p o c u r t o . E s t e foi, t a l v e z ,
o p r e ç o d o s p r o g r e s s o s a l c a n ç a d o s , d u r a n t e esse m e s m o p e r í o d o ,
na c o n q u i s t a científica de i n s t r u m e n t o s de t r a b a l h o e de m é t o ¬
d o s r i g o r o s o s . A d e s c o b e r t a m a c i ç a d o d o c u m e n t o l e v o u o his¬
t o r i a d o r a c r e r que na a u t e n t i c i d a d e d o c u m e n t á r i a e s t a v a a ver¬
dade total. "Basta — e s c r e v i a ainda o n t e m L o u i s H a l p h e n (4)
— deixar-se, de qualquer m o d o , levar pelos d o c u m e n t o s , lidos
u m a p ó s o o u t r o , tal c o m o s e n o s o f e r e c e m , p a r a v e r m o s a ca¬
d e i a d o s fatos r e c o n s t i t u i r - s e q u a s e que a u t o m a t i c a m e n t e " . Ês-
t e i d e a l , " a h i s t ó r i a e m e s t a d o n a s c e n t e " , c h e g a , n o s fins d o sé¬
c u l o X I X , a u m a c r ô n i c a d e u m n o v o e s t i l o q u e , n a sua a m b i ¬
ção de e x a t i d ã o , s e g u e p a s s o a p a s s o a i s t ó r i a événementielle,
tal qual ela s e d e s p r e n d e d e c o r r e s p o n d ê n c i a s d e e m b a i x a d o r e s
ou de debates p a r l a m e n t a r e s . Os historiadores do século X V I I I
e do início do X I X estiveram, pelo c o n t r á r i o , atentos às pers¬
p e c t i v a s d a l o n g a d u r a ç ã o , que, sós, m a i s t a r d e , g r a n d e s espí¬
ritos c o m o um M i c h e l e t , um R a n k e , um Jacob B u r c k h a r d t , um
Fustel, souberam redescobrir. Se a c e i t a r m o s o fato de que o
(3). — "A Europa em 1500", "O Mundo em 1880", "A Alemanha no limiar da
Reforma"...
(4). — Louis Halphen, Introduction à l'Histoire, Paris, P. U. F., 1946, pág. 50.
6. 266
ir além do tempo curto foi o bem mais precioso, poique o mais
raro, da historiografía dos cem últimos anos, compreerderemos
o papel eminente da historia das instituições, das religiões, das
civilizações, e, graças à arqueologia, à qual são n e c e s s á r i o s vas-
tos espaços cronológicos, o papel de v a n g u a r d a dos estudos con-
sagrados à Antigüidade clássica. Ontem ainda, eles salvaram
nosso mister.
A recente ruptura com as formas tradicionais da história
do século XIX não foi uma ruptura total com o tempo curto.
Ela agiu, sabêmo-lo, em benefício da história econômica e so-
cial, em detrimento da história política. De onde uma revira-
volta e uma inegável renovação; de onde, inevitavelmente, mu¬
danças de método, deslocamentos de centros de interesses com
a entrada em cena de uma história quantitativa que, certamen¬
te, ainda não disse a última palavra.
Mas. sobretudo, houve alteração do tempo histórico tradi-
cional. Um dia, um ano podiam parecer boas medidas a um
historiador político, antigamente. O tempo era uma soma de
dias. Mas uma curva de preços, um aumento demográfico, o
movimento dos salários, as variações da taxa de juros, o es-
tudo (mais sonhado que realizado) da produção, uma análise
severa da circulação reclamam medidas muito mais largas.
Uma nova forma de relato histórico aparece, chamêmo-lo
o "recitativo" da conjuntura, do ciclo, até mesmo do "interci-
clo", que propõe à nossa escolha uma dezena de anos, um quar¬
to de século e, no extremo limite, o meio-século do ciclo clás¬
sico de Kondratieff. Por exemplo, sem considerar acidentes
breves e superficiais, os preços se elevam, na Europa, de 1791
a 1817; b a i x a m de 1817 a 1852: este duplo e lento movimento de
elevação e recuo representa um interciclo completo, com re¬
lação à Europa e, pouco mais ou menos, com relação ao mundo
inteiro. Sem dúvida, estes períodos cronológicos não têm um
valor absoluto. Com outros barómetros, como o do crescimen-
to econômico e da renda ou do produto nacional, François Per-
roux (5) oferecer-nos-ia outros limites, talvez mais válidos.
Mas pouco importam estas discussões em curso! O historiador
(5). — Cf. sua Théorie générale du progrès économique, Cahiers de l´I. S. E. A.,
1957.
7. 267
d i s p õ e , s e g u r a m e n t e , de um t e m p o novo, elevado à altura de
u m a e x p l i c a ç ã o em que a h i s t ó r i a p o d e t e n t a r se inserir, re-
t a l h a n d o - s e c o n f o r m e sinais i n é d i t o s , c o n f o r m e estas c u r v a s e
seu p r ó p r i o r i t m o .
É assim que E r n e s t L a b r o u s s e e seus d i s c í p u l o s i n i c i a r a m ,
d e s d e seu m a n i f e s t o d o ú l t i m o C o n g r e s s o h i s t ó r i c o d e R o m a
( 1 9 5 5 ) , u m a v a s t a p e s q u i s a d e h i s t ó r i a s o c i a l , sob o s i g n o d a
q u a n t i f i c a ç ã o . N ã o c r e i o t r a i r seu o b j e t i v o a o d i z e r q u e e s t a
pesquisa levará, f o r ç o s a m e n t e , à d e t e r m i n a ç ã o de conjunturas
(até m e s m o de e s t r u t u r a s ) s o c i a i s , sem que n a d a nos a s s e g u r e ,
d e a n t e m ã o , q u e esta c o n j u n t u r a t e r á a m e s m a r a p i d e z o u a
m e s m a l e n t i d ã o que a e c o n ô m i c a . A l é m d i s s o , e s t a s d u a s g r a n ¬
des p e r s o n a g e n s , c o n j u n t u r a e c o n ô m i c a e c o n j u n t u r a s o c i a l , n ã o
n o s d e v e m f a z e r p e r d e r d e v i s t a o u t r o s a t o r e s , cuja m a r c h a se¬
r á d i f í c i l d e t e r m i n a r , e t a l v e z seja i n d e t e r m i n á v e l , n a falta d e
m e d i d a s p r e c i s a s . As c i ê n c i a s , as t é c n i c a s , as instituições po¬
l í t i c a s , as " u t e n s i l a g e n s " m e n t a i s , as c i v i l i z a ç õ e s (para e m p r e ¬
g a r esta p a l a v r a c ô m o d a ) t ê m i g u a l m e n t e seu r i t m o d e v i d a e
de c r e s c i m e n t o , e a n o v a h i s t ó r i a c o n j u n t u r a l só se r e a l i z a r á
p l e n a m e n t e q u a n d o t i v e r c o m p l e t a d o seu c o n j u n t o .
L o g i c a m e n t e , este r e c i t a t i v o d e v e r i a , p o r sua p r ó p r i a t r a n s ¬
p o s i ç ã o , c o n d u z i r à l o n g a d u r a ç ã o . M a s , p o r mil r a z õ e s , a trans¬
p o s i ç ã o n ã o foi a r e g r a e r e a l i z o u - s e , sob n o s s o s o l h o s , u m re¬
torno ao t e m p o curto; talvez p o r q u e pareça mais necessário (ou
m a i s u r g e n t e ) j u n t a r a h i s t ó r i a " c í c l i c a " à h i s t ó r i a c u r t a tra¬
d i c i o n a l , do que p r o s s e g u i r p a r a o d e s c o n h e c i d o . Em t e r m o s mi¬
litares, tratar-se-ia, neste caso, de consolidar posições adquiri¬
das. O p r i m e i r o g r a n d e livro de Ernest L a b r o u s s e , em 1933,
e s t u d a v a , a s s i m , o m o v i m e n t o geral dos p r e ç o s na F r a n ç a no
s é c u l o X V I I I ( 6 ) , m o v i m e n t o este s e c u l a r . E m 1 9 4 3 , n o m a i o r
livro de história aparecido na França nestes últimos 25 anos,
o p r ó p r i o Ernest L a b r o u s s e cedia a essa n e c e s s i d a d e de v o l t a
a um t e m p o m e n o s c o m p l i c a d o , q u a n d o , apesar da depressão de
1774 a 1 7 9 1 , êle a s s i n a l a v a u m a d a s v i g o r o s a s o r i g e n s d a R e v o ¬
l u ç ã o F r a n c e s a , u m a das s u a s r a m p a s d e l a n ç a m e n t o . Conside¬
rava êle, ainda, um meio interciclo, larga m e d i d a . Sua comu¬
n i c a ç ã o a o C o n g r e s s o I n t e r n a c i o n a l d e P a r i s , e m 1948, C o r n m e n t
n a i s s e n t les r é v o l u t i o n s ? e s f o r ç a - s e p o r l i g a r , d e s t a v e z , u m a c o ¬
m o ç ã o e c o n ô m i c a de curta duração (novo e s t i l o ) , a uma c o m o ¬
ção p o l í t i c a (estilo m u i t o v e l h o ) , a dos dias r e v o l u c i o n á r i o s .
Ei-nos, de n o v o , no tempo curto, e c o m p l e t a m e n t e . Bem enten-
(6). — Esquisse du m o u v e m e n t des prix et des revenus en France au XVille,
siècle, 2 vol., P a r i s , D a l l o z , 1933.
8. 268
d i d o , a o p e r a ç ã o é lícita, útil, m a s q u ã o s i n t o m á t i c a ela é! O h i s -
toriador é, de boa vontade, um e n c e n a d o r . Como renunciaria
ê l e a o d r a m a d o t e m p o b r e v e , aos m e l h o r e s m e c a n i s m o s d e u m
velhíssimo mister?
P a r a além dos c i c l o s e i n t e r c i c l o s , existe o que os e c o n o ¬
mistas c h a m a m , sem, c o n t u d o , estudá-la, a t e n d ê n c i a secular.
M a s ela s ó i n t e r e s s a , p o r e n q u a n t o , a r a r o s e c o n o m i s t a s , e suas
c o n s i d e r a ç õ e s sobre as crises e s t r u t u r a i s , não t e n d o p a s s a d o pe¬
l a p r o v a das v e r i f i c a ç õ e s h i s t ó r i c a s , a p r e s e n t a m - s e c o m o es¬
b o ç o s o u h i p ó t e s e s , a p e n a s e n t e r r a d a s n o p a s s a d o r e c e n t e , até
1929, q u a n d o m u i t o até o s a n o s d e 1870 ( 7 ) . O f e r e c e m , t o d a ¬
v i a , u m a útil i n t r o d u ç ã o à h i s t ó r i a d e l o n g a d u r a ç ã o . Elas
são c o m o q u e u m a p r i m e i r a c h a v e .
A segunda, b e m mais útil, é a p a l a v r a "estrutura". Boa
o u m á , é a que d o m i n a o s p r o b l e m a s d a l o n g a d u r a ç ã o . Por
"estrutura", os o b s e r v a d o r e s do social e n t e n d e m u m a orga¬
n i z a ç ã o , u m a c o e r ê n c i a , r e l a ç õ e s b a s t a n t e fixas entre realida¬
des e m a s s a s s o c i a i s . Para nós, h i s t o r i a d o r e s , uma estrutura
é , sem d ú v i d a , u m c o n j u n t o , u m a a r q u i t e t u r a , m a s é m a i s
ainda u m a r e a l i d a d e que o t e m p o usa mal e v e i c u l a d e m o r a ¬
damente. Certas estruturas, por v i v e r e m muito t e m p o , tor¬
nam-se elementos estáveis de uma infinidade de g e r a ç õ e s :
e m b a r a ç a m a h i s t ó r i a , i n c o m o d a m - n a , e a s s i m c o m a n d a m seu
fluxo. O u t r a s estão m a i s p r o n t a s a s e r e m d e s t r u í d a s . M a s to¬
d a s s ã o , p o r sua v e z , s u s t e n t á c u l o s e o b s t á c u l o s . C o m o obs¬
t á c u l o s , elas s e m a r c a m c o m o l i m i t e s ( e n v o l t ó r i o s , n o s e n t i d o
m a t e m á t i c o ) , dos q u a i s o h o m e m e suas e x p e r i ê n c i a s n ã o p o ¬
dem libertar-se. Pense-se na dificuldade de quebrar certos
q u a d r o s g e o g r á f i c o s , certas r e a l i d a d e s b i o l ó g i c a s , certos limi¬
t e s d a p r o d u t i v i d a d e , até m e s m o c e r t a s s u j e i ç õ e s e s p i r i t u a i s :
o s q u a d r o s m e n t a i s são t a m b é m p r i s õ e s d e l o n g a d u r a ç ã o .
O e x e m p l o mais a c e s s í v e l p a r e c e ainda o da sujeição geo¬
gráfica. O h o m e m é p r i s i o n e i r o , há s é c u l o s , de c l i m a s , v e g e ¬
t a ç õ e s , p o p u l a ç õ e s a n i m a i s , c u l t u r a s , d e u m e q u i l í b r i o lenta¬
m e n t e c o n s t r u í d o , d o qual n ã o p o d e s e a f a s t a r s e m c o r r e r o
risco de tudo r e f o r m u l a r . Veja-se o papel da t r a n s u m â n c i a
na vida m o n t a n h e s a , a p e r m a n ê n c i a de certos setores de vida
(7). — "Mise au p o i n t " em R e n é Clemens, Prolégomènes d'une théorie de la
structure économique, Paris, Domat Montchrestien, 1952; ver também
Johann Akerman, "Cycle et s t r u c t u r e " , Revue E c o n o m i q u e , 1952, n.° 1.
9. 269
m a r í t i m a , e n r a i z a d o s e m c e r t o s p o n t o s p r i v i l e g i a d o s d a s ar-
t i c u l a ç õ e s l i t o r â n e a s , a d u r á v e l i m p l a n t a ç ã o das c i d a d e s , a p e r -
s i s t ê n c i a das r o t a s e t r á f i c o s , a f i x i d e z s u r p r e e n d e n t e do q u a -
dro g e o g r á f i c o das c i v i l i z a ç õ e s .
A s m e s m a s p e r m a n ê n c i a s , o u s o b r e v i v e n c i a s , são v e r i f i c a -
das no i m e n s o d o m í n i o c u l t u r a l . O m a g n í f i c o livro de Ernst
Robert Curtius ( 8 ) , que v a i , enfim, a p a r e c e r n u m a t r a d u ç ã o
francesa, é o e s t u d o de um sistema cultural que p r o l o n g a , d e -
f o r m a n d o - a p o r suas p r e f e r ê n c i a s , a c i v i l i z a ç ã o l a t i n a d o B a i x o
I m p é r i o , ela p r ó p r i a o p r i m i d a p o r u m a p e s a d a h e r a n ç a : até o s
s é c u l o s X I I I e X I V , até o n a s c i m e n t o das l i t e r a t u r a s n a c i o n a i s ,
a c i v i l i z a ç ã o das e l i t e s i n t e l e c t u a i s v i v e u d o s m e s m o s t e m a s ,
das m e s m a s c o m p a r a ç õ e s , dos m e s m o s l u g a r e s c o m u n s e ditos
banais. N u m a linha de p e n s a m e n t o análoga, o estudo do L u c i e n
F e b v r e , Rabelais et le p r o b l è m e de l ´ i n c r o y a n c e au X V I e siècle
( 9 ) , tratou de precisar a " u t e n s i l a g e m " mental do p e n s a m e n t o
f r a n c ê s n a é p o c a d e R a b e l a i s , este c o n j u n t o d e c o n c e p ç õ e s q u e ,
b e m antes de R a b e l a i s e m u i t o t e m p o depois dele, c o m a n d o u
as a r t e s de v i v e r , p e n s a r e c r e r , e l i m i t o u , d u r a m e n t e e c o m
a n t e c i p a ç ã o , a a v e n t u r a i n t e l e c t u a l dos e s p í r i t o s mais l i v r e s .
O t e m a de que trata A l p h o n s e D u p r o n (10) a p r e s e n t a - s e tam¬
b é m c o m o u m das mais n o v a s p e s q u i s a s d a E s c o l a h i s t ó r i c a
francesa. A idéia de c r u z a d a é c o n s i d e r a d a , no O c i d e n t e , além
do s é c u l o X I V , isto é, b e m além da " v e r d a d e i r a " c r u z a d a , na
c o n t i n u i d a d e d e u m a a t i t u d e d e l o n g a d u r a ç ã o q u e , m u i t a s ve¬
zes repetida, atravessa as s o c i e d a d e s , os m u n d o s , os p s i q u i s m o s
mais diversos e toca, com um último reflexo os h o m e n s do
século X I X . N u m d o m í n i o ainda p r ó x i m o , o livro de Pierre
F r a n c a s t e l , P e i n t u r e e t S o c i é t é ( 1 1 ) , a s s i n a l a , a p a r t i r d o iní¬
cio do R e n a s c i m e n t o f l o r e n t i n o , a p e r m a n ê n c i a de um e s p a ç o
p i c t ó r i c o " g e o m é t r i c o " q u e n ã o s e a l t e r a r á e m n a d a até o c u b i s ¬
mo e a p i n t u r a i n t e l e c t u a l d o s i n í c i o s de n o s s o s é c u l o . A h i s ¬
t ó r i a das c i ê n c i a s c o n h e c e , t a m b é m e l a , u n i v e r s o s c o n s t r u í d o s
q u e são o u t r a s t a n t a s e x p l i c a ç õ e s i m p e r f e i t a s , m a s a q u e m sé¬
c u l o s d e d u r a ç ã o são a j u s t a d o s r e g u l a r m e n t e . N ã o são r e j e i ¬
tados senão depois de terem servido por muito t e m p o . O uni¬
v e r s o a r i s t o t é l i c o m a n t é m - s e s e m c o n t e s t a ç ã o , o u q u a s e , até
(8). — Ernst Robert Curtius, Europäische Literatur und lateinisches M i t t e l a l t e r ,
B e r n a , 1948; t r a d u ç ã o f r a n c e s a em p r e p a r a ç ã o , P a r i s , P. U. F.
( 9 ) . — P a r i s , A l b i n M i c h e l , 1943, 2a. e d i ç ã o , 1946.
( 1 0 ) . — Le M y t h e des C r o i s a d e s . Essai de sociologie religieuse, a a p a r e c e r em
1959.
( 1 1 ) . — P i e r r e F r a n c a s t e l , P e i n t u r e e t S o c i é t é . N a i s s a n c e e t d e s t r u c t i o n d'un es-
pace plastique, de la R e n a i s s a n c e au c u b i s m e , L y o n , A u d i n , 1951.
10. 270
Galileu, D e s c a r t e s e N e w t o n ; desfaz-se, então, diante de um
u n i v e r s o p r o f u n d a m e n t e g e o m e t r i z a d o q u e , p o r sua v e z , desa-
bará, m a s m u i t o m a i s t a r d e , diante das r e v o l u ç õ e s einsteinia¬
nas ( 1 2 ) .
A dificuldade, por um p a r a d o x o apenas aparente, é r e v e -
lar a l o n g a d u r a ç ã o no d o m í n i o em q u e a p e s q u i s a h i s t ó r i c a
acaba de obter inegáveis sucessos: o domínio e c o n ô m i c o . Ciclos,
interciclos, crises estruturais e s c o n d e m , aqui, as regularida-
des, as p e r m a n ê n c i a s de s i s t e m a s ou, s e g u n d o a l g u n s , de c i v i -
lizações e c o n ô m i c a s ( 1 3 ) , — isto é, v e l h o s h á b i t o s de p e n s a r
e agir, q u a d r o s r e s i s t e n t e s , difíceis de d e s a p a r e c e r , às v e z e s
contra toda a lógica.
M a s m e d i t e m o s sobre u m e x e m p l o , r a p i d a m e n t e analisa-
do. Eis, perto de nós, no quadro da Europa, um sistema e c o -
n ô m i c o que se c o l o c a d e n t r o de a l g u m a s l i n h a s e r e g r a s ge¬
rais b a s t a n t e nítidas: êle se m a n t é m em função, m a i s ou me¬
nos do século X I V ao X V I I I , digamos, para maior segurança,
até c e r c a d e 1750. H á s é c u l o s , a a t i v i d a d e e c o n ô m i c a d e p e n d e
de p o p u l a ç õ e s d e m o g r a f i c a m e n t e frágeis, como o mostrarão
os g r a n d e s r e f l u x o s de 1350-1450 e, s e m d ú v i d a , de 1630-1730
( 1 4 ) . D u r a n t e s é c u l o s , a c i r c u l a ç ã o vê o triunfo da á g u a e do
n a v i o , t o r n a n d o - s e o b s t á c u l o e s e n d o i n f e r i o r i z a d a t o d a a es¬
pessura continental. Os progressos europeus, salvo as e x c e ç õ e s
que c o n f i r m a m a regra (feiras de C h a m p a g n e , já em d e c l í n i o
n o início d o p e r í o d o , o u feiras d e L e i p z i g n o séc;lo X V I I I ) ,
t o d o s estes p r o g r e s s o s situam-se ao l o n g o do litoral. Outras
c a r a c t e r í s t i c a s d e s t e s i s t e m a : o p r i m a d o d o s n e g o c i a n t e s ; o pa¬
pel e m i n e n t e dos m e t a i s p r e c i o s o s , o u r o , prata e m e s m o c o b r e ,
cujos conflitos i n c e s s a n t e s serão a b r a n d a d o s a p e n a s p e l o de¬
s e n v o l v i m e n t o d e c i s i v o d o c r é d i t o , c o m o fim d o s é c u l o X V I ;
os r e p e t i d o s f l a g e l o s das p e r i ó d i c a s c r i s e s a g r í c o l a s : a fragili¬
dade, digamos, da própria base da vida e c o n ô m i c a ; o papel,
enfim, d e s p r o p o r c i o n a d o , à primeira vista, de um ou dois
grandes tráficos exteriores: o c o m é r c i o do L e v a n t e do século
X I I ao X V I , o c o m é r c i o colonial no século X V I I I .
(12). — Outros argumentos: eu focalizaria, de boa v o n t a d e , os p r o f u n d o s a r t i g o s ,
todos defendendo a mesma tese: O t t o B r u n n e r , s o b r e a história social
da E u r o p a , Historische Zeitschrift, t. 177, n.° 3 ; R . B u l t m a n n , i d e m , t .
176, n . ° 1 , s o b r e o h u m a n i s m o ; G e o r g e s L e f e b v r e , A n n a l e s h i s t o r i q u e s d e
l a R e v o l u t i o n f r a n ç a i s e , 1949, n.° 114; F . H ä r t u n g , H i s t o r i s c h e Z e i t s c h r i f t ,
t. 180, n . ° 1, s o b r e o D e s p o t i s m o e s c l a r e c i d o . . .
(13). — R e n é C o u r t i n , La civilisation économique du Brésil, P a r i s , L i b r a i r i e de
Médicis, 1941.
(14). — No caso francês. Em E s p a n h a , o refluxo d e m o g r á f i c o verifica-se desde
o fim d o s é c u l o X V I .
11. 271
Creio ter definido, ou melhor, evocado, por minha vez,
após alguns outros, os traços mais importantes, para a Euro¬
pa Ocidental, do capitalismo mercantil, etapa de longa dura¬
ção. Apesar de todas as mudanças evidentes que os atraves¬
sam, estes quatro ou cinco séculos de vida econômica tiveram
uma certa coerência, até a reviravolta do século XVIII e da
revolução industrial, da qual ainda não saímos. Alguns traços
lhes são comuns e permanecem imutáveis, enquanto que em
torno deles, entre outras continuidades, mil rupturas e revi¬
ravoltas renovavam o panorama do mundo.
Entre os tempos diferentes da história, a longa duração
apresenta-se, assim, como uma personagem embaraçosa, com¬
plicada, muitas vezes inédita. Admiti-la no coração de nosso
trabalho não será um simples jogo, o habitual alargamento
de estudos e curiosidades. Não se tratará mais da uma esco¬
lha da qual êle será o único beneficiário. Para o historiador,
admiti-lo é prestar-se a uma mudança de estilo, de atitude, a
uma mudança de pensamento, a uma nova concepção do so¬
cial. É familiarizar-se com um tempo mais lento, por vezes
quase no limite do instável. Neste andar, não em outro qual¬
quer, — voltaremos a isso, — é lícito desprender-se do tempo
exigente da história, dele sair, depois voltar, mas com outros
olhos, cheios de outras inquietações, outras perguntas. Em
todo caso, é com relação a estas grandes extensões de histó¬
ria lenta que a totalidade da história pode ser repensada, co¬
mo a partir de uma infra-estrutura. Todos os andares, todos
os milhares de andares, todos os milhares de fragmentos do
tempo da história são compreendidos a partir desta profun¬
didade, desta semi-imobilidade; tudo gira em torno dela.
Nas linhas anteriores, não pretendo ter definido o traba¬
lho do historiador, — mas uma concepção deste trabalho. Fe¬
liz e bem ingênuo seria quem pensasse que, após as crises dos
últimos anos, tínhamos encontrado os verdadeiros princípios,
os limites claros, a boa Escola. De fato, todos os misteres das
ciências sociais não cessam de se transformar em razão de
seus p r ó p r i o s movimentos e do movimento vivo do conjunto. A
história não é exceção. O marasmo não está, pois, à vista, e
a hora dos discípulos ainda não soou. Muita coisa se passou
de Charles Victor Langlois e Charles Seignobos a Mare Bloch.
Mas desde Mare Bloch, a roda não cessou de girar. Para mim,
12. a h i s t ó r i a é a s o m a de t o d a s as h i s t ó r i a s p o s s í v e i s — uma co-
leção de misteres e de p o n t o s de vista, de o n t e m , de hoje, de
amanhã.
O ú n i c o ê r r o , a m e u v e r , seria e s c o l h e r uma destas his¬
t ó r i a s c o m a e x c l u s ã o das o u t r a s . E s t e foi, este seria o erro
h i s t o r i z a n t e . N ã o s e r á c ô m o d o , s a b e m o s , c o n v e n c e r d i s s o to¬
dos os h i s t o r i a d o r e s e, m e n o s ainda, as c i ê n c i a s sociais, obsti¬
n a d a s e m n o s l e v a r à h i s t ó r i a tal c o m o e l a e r a n o p a s s a d o .
Ser-nos-á p r e c i s o m u i t o t e m p o e t r a b a l h o para fazer admitir
t o d a s estas m u d a n ç a s e i n o v a ç õ e s s o b o v e l h o n o m e de his¬
tória. E, no entanto, u m a n o v a " c i ê n c i a " histórica nasceu, e
c o n t i n u a a se i n t e r r o g a r e a se t r a n s f o r m a r . E l a se a n u n c i a ,
e n t r e n ó s , d e s d e 1900, c o m a R e v u e d e S y n t h è s e h i s t o r i q u e
e c o m os A n n a l e s , a p a r t i r de 1929. O h i s t o r i a d o r quis estar
atento a tôdas as c i ê n c i a s do h o m e m . Eis o que deu a n o s s o
trabalho estranhas fronteiras e estranhas c u r i o s i d a d e s . As¬
sim, n ã o i m a g i n a m o s , entre o h i s t o r i a d o r e o o b s e r v a d o r das
ciências sociais, as b a r r e i r a s e as diferenças de a n t i g a m e n t e .
T o d a s as c i ê n c i a s do h o m e m , c o m a h i s t ó r i a c o m p r e e n d i d a , são
contaminadas umas pelas outras. Falam a mesma linguagem
o u p o d e m falá-la.
Q u e r n o s c o l o q u e m o s e m 1558, q u e r n o ano d a g r a ç a d e
1958, t r a t a - s e , p a r a q u e m q u e r a b r a n g e r t u d o , d e d e f i n i r u m a
hierarquia de forças, de correntes, de m o v i m e n t o s particula¬
res, e depois r e t o m a r u m a c o n s t e l a ç ã o de conjunto A cada
instante desta pesquisa, será p r e c i s o distinguir entre movi¬
m e n t o s l o n g o s e b r e v e s í m p e t o s , estes t o m a d o s a partir de
suas fontes i m e d i a t a s , a q u e l e s n o i m p u l s o d e u m t e m p o lon¬
gínquo. O m u n d o de 1558, tão d e s a g r a d á v e l p a r a a s i t u a ç ã o
francesa, n ã o n a s c e u n o início deste a n o , tão p o u c o significa¬
t i v o . E m u i t o m e n o s , s e m p r e no caso f r a n c ê s , esse difícil ano
d e 1958. C a d a " a t u a l i d a d e " r e ú n e m o v i m e n t o s d e o r i g e m , d e
r i t m o d i f e r e n t e : o t e m p o de h o j e data, às v e z e s , de o n t e m , de
ante-ontem, de outrora.
2
A QUERELA DO TEMPO CURTO.
Estas v e r d a d e s são, c e r t a m e n t e , b a n a i s . T o d a v i a , a s ciên¬
cias sociais n ã o são n a d a t e n t a d a s p e l a p e s q u i s a d o t e m p o per¬
d i d o . N ã o q u e s e p o s s a d i r i g i r c o n t r a e l a s u m r e q u i s i t ó r i o fir¬
me e declará-las c u l p a d a s , s e m p r e , de n ã o aceitar a história
ou a d u r a ç ã o c o m o d i m e n s õ e s n e c e s s á r i a s de seus e s t u d o s .
13. 273
Elas nos dão, mesmo aparentemente, bom acolhimento; o
exame " d i a c r ó n i c o " que r e i n t r o d u z a h i s t ó r i a n u n c a está au¬
s e n t e d e suas p r e o c u p a ç õ e s t e ó r i c a s .
No e n t a n t o , q u a n t o a essas a c e i t a ç õ e s e s p a r s a s , é p r e c i s o
c o n v i r que a s c i ê n c i a s s o c i a i s , p o r g o s t o , p o r i n s t i n t o p r o f u n ¬
d o , t a l v e z p o r f o r m a ç ã o , t e n d e m , s e m p r e , a afastar a e x p l i ¬
cação histórica; elas lhe e s c a p a m por duas atitudes quase
o p o s t a s : u m a " é v é n e m e n t i a l i z a " , ou, s e q u e r e m , " a t u a l i z a " p o r
d e m a i s o s e s t u d o s s o c i a i s , g r a ç a s a u m a s o c i o l o g i a e m p í r i c a , que
d e s p r e z a t o d a a h i s t ó r i a , l i m i t a d a aos d a d o s d o t e m p o c u r t o ,
da p e s q u i s a s o b r e o q u e está v i v o ; a o u t r a u l t r a p a s s a , p u r a e
s i m p l e s m e n t e , o t e m p o , i m a g i n a n d o , n o l i m i t e d e u m a "ciên¬
c i a d a c o m u n i c a ç ã o " , u m a f o r m u l a ç ã o m a t e m á t i c a d e estrutu¬
ras q u a s e i n t e m p o r a i s . Esta última atitude, a mais n o v a de
t o d a s , é, e v i d e n t e m e n t e , a única que p o d e nos interessar pro¬
f u n d a m e n t e . M a s o " é v é n e m e n t i e l " t e m a i n d a s u f i c i e n t e s par¬
t i d á r i o s p a r a q u e o s d o i s a s p e c t o s d a q u e s t ã o p o s s a m ser exa¬
m i n a d o s um por um.
F a l a m o s de nossa desconfiança com relação a uma histó¬
ria p u r a m e n t e événementielle. Sejamos justos: se há um pe¬
c a d o é v é n e m e n t i a l i s t e , a h i s t ó r i a , a c u s a d a de o p ç ã o , n ã o é a
única culpada. Todas as ciências sociais p a r t i c i p a m do e r r o .
Economistas, demógrafos, geógrafos estão d i v i d i d o s entre o
p a s s a d o e o p r e s e n t e (mas mal d i v i d i d o s ) ; ser-lhes-ia p r e c i s o ,
p a r a s e r e m s e n s a t o s , m a n t e r a b a l a n ç a i g u a l , o que é fácil e
o b r i g a t ó r i o p a r a o d e m ó g r a f o ; o que é q u a s e e s p o n t â n e o c o m
os geógrafos (particularmente os nossos, nutridos da tradição
d e V i d a l d e L a B l a c h e ) ; o que s ó a c o n t e c e r a r a m e n t e , p o r ou¬
tro lado, c o m os e c o n o m i s t a s , p r i s i o n e i r o s da atualidade mais
c u r t a , e n t r e u m l i m i t e p a s s a d o que n ã o v a i a l é m d e 1945 e u m
p r e s e n t e que o s p l a n o s e p r e v i s õ e s p r o l o n g a m n o f u t u r o i m e ¬
diato de alguns m e s e s , quando muito alguns anos. Sustento
q u e t o d o o p e n s a m e n t o e c o n ô m i c o é l i m i t a d o p o r esta r e s t r i ¬
ção t e m p o r a l . C a b e aos h i s t o r i a d o r e s , d i z e m o s e c o n o m i s t a s ,
i r a l é m d e 1 9 4 5 , à p r o c u r a das a n t i g a s e c o n o m i a s ; m a s , a g i n d o
d e s t a m a n e i r a , eles s e p r i v a m d e u m m a r a v i l h o s o c a m p o d e
o b s e r v a ç ã o , que eles p r ó p r i o s a b a n d o n a r a m , s e m c o n t u d o n e -
gar-lhe o valor. O e c o n o m i s t a a d q u i r i u o h á b i t o de t r a b a ¬
lhar a s e r v i ç o do atual, a s e r v i ç o dos g o v e r n o s .
A p o s i ç ã o dos e t n ó g r a f o s e e t n ó l o g o s não é tão nítida, n e m
tão a l a r m a n t e . A l g u n s d e n t r e eles s u b l i n h a r a m b e m a i m p ô s -
14. 274
s i b i l i d a d e (mas t o d o intelectual a p e g a - s e ao i m p o s s í v e l ) e a
i n u t i l i d a d e d a h i s t ó r i a n o seu t r a b a l h o . Esta recusa autoritária
da h i s t ó r i a n ã o t e r á s e r v i d o a M a l i n o w s k i e a s e u s d i s c í p u l o s .
De fato, c o m o é que a a n t r o p o l o g i a se p o d e r i a d e s i n t e r e s s a r da
história? Ela é a m e s m a a v e n t u r a do e s p í r i t o , c o m o gosta de
dizê-lo Claude L é v y Strauss ( 1 5 ) . N ã o há s o c i e d a d e , por mais
a t r a s a d a q u e seja, q u e n ã o r e v e l e à o b s e r v a ç ã o "as g a r r a s d o
a c o n t e c i m e n t o " , não há t a m b é m sociedade, em que a história
tenha fracassado c o m p l e t a m e n t e . Se assim fosse, não podería¬
mos l a m e n t a r m o - n o s , ou insistir.
Em contrapartida, nossa discussão será b a s t a n t e v i v a n a s
f r o n t e i r a s d o t e m p o c u r t o , c o m r e l a ç ã o à s o c i o l o g i a das p e s ¬
q u i s a s sobre o atual, as p e s q u i s a s em mil d i r e ç õ e s , entre s o c i o ¬
l o g i a , p s i c o l o g i a e e c o n o m i a . E l a s m u l t i p l i c a m - s e e n t r e n ó s , tan¬
to quanto no e s t r a n g e i r o . S ã o , a seu m o d o , u m d e s a f i e s e m p r e
r e p e t i d o s o b r e o v a l o r i n s u b s t i t u í v e l d o t e m p o p r e s e n t e , seu
c a l o r " v u l c â n i c o " , sua c o p i o s a r i q u e z a . P a r a que v o l t a r a o t e m ¬
po da história? E m p o b r e c i d o , s i m p l i f i c a d o , e n v o l t o p e l o si¬
l ê n c i o , r e c o n s t r u í d o , — i n s i s t a m o s b e m : r e c o n s t r u í d o . N a ver¬
d a d e , está êle t ã o m o r t o , t ã o r e c o n s t r u í d o c o m o s e d i z ? S e m dú¬
vida, o h i s t o r i a d o r tem muita facilidade em retirar de u m a
é p o c a r e v o l v i d a o e s s e n c i a l ; p a r a falar c o m o H e n r i P i r e n n e ,
d i s t i n g u e êle, sem d i f i c u l d a d e , o s "acontecimentos importan¬
t e s " , isto é , " a q u e l e s q u e t i v e r a m c o n s e q ü ê n c i a s " . Simplifica¬
ç ã o e v i d e n t e e p e r i g o s a . M a s o que n ã o d a r i a o v i a j a n t e do*
atual p a r a t e r este r e c u o ( o u este a v a n ç o n o t e m p o ) q u e d e s ¬
m a s c a r a r i a e s i m p l i f i c a r i a a v i d a p r e s e n t e , c o n f u s a , p o u c o le¬
gível p o r q u e cheia de gestos e sinais m e n o r e s ' C l a u d e L é v y -
S t r a u s s p r e t e n d e que u m a h o r a d e c o n v e r s a ç ã o c o m u m c o n ¬
t e m p o r â n e o d e P l a t ã o e n s i n á - l o - i a m a i s que n o s s o s c l á s s i c o s dis¬
c u r s o s , sobre a c o e r ê n c i a ou a i n c o e r ê n c i a da c i v i l i z a ç ã o da
G r é c i a antiga ( 1 6 ) . Estou de a c o r d o . Mas é que êle, d u r a n t e
anos, o u v i u cem v o z e s gregas salvas do s i l ê n c i o . O h i s t o r i a d o r
preparou a viagem. U m a h o r a n a G r é c i a d e h o j e n ã o lhe en¬
sinaria nada, ou quase nada, sobre as c o e r ê n c i a s ou i n c o e r ê n ¬
cias a t u a i s .
Mais ainda, o p e s q u i s a d o r do t e m p o presente não chega às
t r a m a s " f i n a s " das e s t r u t u r a s , a n ã o ser sob a c o n d i ç ã o , êle
t a m b é m , de reconstruir, de avançar hipóteses e e x p l i c a ç õ e s ,
de r e c u s a r o real tal c o m o êle se a p r e s e n t a , de t r u n c á - l o , de
u l t r a p a s s á - l o , o p e r a ç õ e s e s s a s que p e r m i t e m e s c a p a r a o d a d o
(15). — Claude Lévi-Strauss, Anthropologie structurale, op. cit., pág. 31.
(16). — "Diogène couché", Les T e m p s M o d e r n e s , n.° 195, pág. 17.
15. 275
p a r a m e l h o r d o m i n á - l o , m a s que são t o d a s r e c o n s t r u ç õ e s . D u -
v i d o q u e a f o t o g r a f i a s o c i o l ó g i c a d o p r e s e n t e seja m a i s "ver-
d a d e i r a " que o q u a d r o h i s t ó r i c o do p a s s a d o , e tanto m e n o s ,
q u a n t o ela se afastará mais do r e c o n s t r u í d o .
P h i l i p p e A r i e s (17) insistiu sobre a i m p o r t â n c i a do alhea-
m e n t o , da surpresa na e x p l i c a ç ã o histórica: a s p i r a - s e , n o sé-
culo X V I , a uma coisa estranha, estranha para nós, h o m e n s
d o s é c u l o X X . P o r que e s t a d i f e r e n ç a ? O p r o b l e m a e s t á p o s -
to. M a s direi que a surpresa, o a l h e a m e n t o , o a f a s t a m e n t o
— e s s e s g r a n d e s m e i o s d e c o n h e c i m e n t o — n ã o são m e n o s n e ¬
c e s s á r i o s p a r a c o m p r e e n d e r o que n o s c e r c a , e d e t ã o p e r t o
que nós não o v e m o s c o m n i t i d e z . Se v i v e r m o s em L o n d r e s
u m a n o , c o n h e c e r e m o s m u i t o mal a I n g l a t e r r a . M a s , por c o m -
p a r a ç ã o , à luz d e n o s s o e s p a n t o , c o m p r e e n d e r e m o s b r u s c a m e n -
t e a l g u n s d o s t r a ç o s m a i s p r o f u n d o s e o r i g i n a i s d a F r a n ç a , es-
t e s que n ã o c o n h e c e m o s à f o r ç a d e c o n h e c ê - l o s . F a c e a o a t u a l ,
o p a s s a d o , êle t a m b é m , é a l h e a m e n t o .
H i s t o r i a d o r e s e social scientists p o d e r i a m , p o i s , e t e r n a m e n ¬
te, lançar mão do d o c u m e n t o m o r t o e do t e s t e m u n h o bastante
vivo, o passado longínquo, a atualidade demasiado p r ó x i m a .
N ã o c r e i o que este p r o b l e m a seja e s s e n c i a l . P r e s e n t e e p a s s a -
d o i l u m i n a m - s e c o m sua luz r e c í p r o c a . E s e o b s e r v a r m o s ex¬
c l u s i v a m e n t e a estreita atualidade, nossa atenção irá p a r a a
q u e s e m o v e r à p i d a m e n t e , g r i l h a c o m r a z ã o o u s e m e l a , o u aca¬
b a d e m u d a r , o u faz b a r u l h o , o u s e r e v e l a s e m d i f i c u l d a d e . T o -
d o u m événtementiel, t ã o f a s t i d i o s o q u a n t o o d a s c i ê n c i a s h i s -
tóricas, surpreende o o b s e r v a d o r apressado, o etnógrafo que
d á a c o l h i d a p o r t r ê s m e s e s a u m a p o v o a ç ã o p o l i n é s i a , o soció-
l o g o i n d u s t r i a l que e x i b e f o t o s d e sua ú l t i m a p e s q u i s a , o u que
p e n s a , c o m q u e s t i o n á r i o s h á b e i s e a s c o m b i n a ç õ e s d a s fichas
p e r f u r a d a s , d o m i n a r p e r f e i t a m e n t e u m m e c a n i s m o s o c i a l . O so¬
cial é u m a presa e n g a n a d o r a .
N a v e r d a d e , que i n t e r e s s e p o d e m o s t i r a r n ó s , d a s c i ê n c i a s
d o h o m e m , d o s d e s l o c a m e n t o s d e que fala u m a v a s t a e b o a p e s -
q u i s a s o b r e a r e g i ã o p a r i s i e n s e ( 1 8 ) , d e u m a j o v e m e n t r e o seu
d o m i c í l i o , n o 16.° b a i r r o , seu p r o f e s s o r d e m ú s i c a e a s C i ê n c i a s -
P o l í t i c a s ? P o d e m o s c o m isto f a z e r u m b o n i t o m a p a . M a s s e ela
t i v e s s e feito e s t u d o s d e a g r o n o m i a o u t i v e s s e p r a t i c a d o o ski
n á u t i c o , t u d o t e r i a m u d a d o n o q u e diz r e s p e i t o à s suas v i a g e n s
(17). — Le temps de l'histoire, P a r i s , Plon, 1954, especialmente págs. 298 e se-
guintes.
(18). — F. C h o m b a r t de L a u w e , Paris et l'agglomération parisienne, Paris, P.
U. F., 1952, t. I, p. 106.
16. 276
triangulares. D i v i r t o - m e , a o v e r n u m m a p a a r e p a r t i ç ã o das
r e s i d ê n c i a s dos e m p r e g a d o s d e u m a g r a n d e e m p r e s a . Mas se
não tiver um m a p a anterior da r e p a r t i ç ã o , se a distância c r o -
n o l ó g i c a e n t r e o s d a d o s n ã o fôr s u f i c i e n t e p a r a p e r m i t i r i n s -
c r e v e r t u d o n u m v e r d a d e i r o m o v i m e n t o , o n d e está o p r o b l e -
m a , s e m o qual um i n q u é r i t o é e s f o r ç o p e r d i d o ? O i n t e r e s s e
d e s t a s p e s q u i s a s p e l a p e s q u i s a é , n a m e l h o r das h i p ó t e s e s , a
a c u m u l a ç ã o d e c o n h e c i m e n t o s ; m a s assim m e s m o não serão eles
t o d o s v á l i d o s , ipso facto, para t r a b a l h o s futuros. Desconfie¬
m o s d a arte p e l a a r t e .
D u v i d o , i g u a l m e n t e , que u m estudo d e c i d a d e , q u a l q u e r
q u e seja e l a , p o s s a ser o b j e t o d e u m a p e s q u i s a s o c i o l ó g i c a , c o -
m o foi o c a s o d e A u x e r r e ( 1 9 ) , o u V i e n n e n o D a u p h i n é ( 2 0 ) ,
sem i n s c r e v e r - s e na d u r a ç ã o h i s t ó r i c a . Toda cidade, s o c i e d a d e
t e n s a c o m suas c r i s e s , suas r u p t u r a s , suas d i f i c u l d a d e s , s e u s
c á l c u l o s n e c e s s á r i o s , d e v e ser c o l o c a d a n o c o m p l e x o d o s c a m ¬
pos p r ó x i m o s que a c e r c a m , e t a m b é m destes a r q u i p é l a g o s de
c i d a d e s v i z i n h a s , de que falou o h i s t o r i a d o r R i c h a r d H a p k e ,
um dos p r i m e i r o s a f a z ê - l o ; e, no m o v i m e n t o , mais ou m e n o s
afastado no t e m p o , f r e q ü e n t e m e n t e m u i t o afastado, que ani-
m a este c o m p l e x o . S e r á i n d i f e r e n t e o u n ã o será, p e l o c o n ¬
t r á r i o , e s s e n c i a l , r e g i s t r a r - s e tal t r o c a c a m p o - c i d a d e ; tal ri¬
v a l i d a d e industrial ou c o m e r c i a l , saber-se que se trata de um
m o v i m e n t o n o v o e m p l e n o i m p u l s o , o u d e u m fim d e c u r s o ,
de um longínquo r e a p a r e c i m e n t o , ou de um m o n ó t o n o reco¬
mêço?
C o n c l u a m o s com uma palavra: Lucien Febvre, durante os
d e z ú l t i m o s a n o s d e sua v i d a , r e p e t i u : "história c i ê n c i a do
p a s s a d o , ciência do p r e s e n t e " . A história, dialética da dura-
ç ã o , n ã o s e r á , à sua m a n e i r a , e x p l i c a ç ã o d o s o c i a l e m t o d a sua
r e a l i d a d e ? e, p o r t a n t o , do atual? Sua lição v a l e n d o , neste d o -
mínio, como uma tomada de posição contra o a c o n t e c i m e n t o :
não pensar, u n i c a m e n t e , no t e m p o c u r t o , não crer que só os
atores que s o b r e s s a e m sejam os mais a u t ê n t i c o s ; há o u t r o s , e
s i l e n c i o s o s , — mas isso não é n o v i d a d e .
(19). — Suzanne Frère e C h a r l e s B e t t e l h e i m , Une Tille française m o y e n n e , Au-
xerre en 1950, P a r i s , A r m a n d Colin, C a h i e r s des Sciences P o l i t i q u e s , n.°
17, 1951.
(20). — Pierre Clément e Nelly Xydias, Vienne-sur-le Rhône. Sociologie d'une
cité française, P a r i s , A r m a n d Colin, C a h i e r s des Sciences P o l i t i q u e s , n.°
7 1 , 1955.
17. 277
3
COMUNICAÇÃO E MATEMÁTICAS SOCIAIS.
T a l v e z t e n h a m o s e r r a d o e m nos d e m o r a r n a f r o n t e i r a agi¬
t a d a do t e m p o c u r t o . O d e b a t e aí se d e s e n r o l a , na v e r d a d e ,
sem g r a n d e i n t e r e s s e , p e l o m e n o s sem s u r p r e s a ú t i l . O deba¬
t e e s s e n c i a l está n o u t r o l a d o , e m c a s a dos n o s s o s v i z i n h o s ar¬
r a s t a d o s p e l a e x p e r i ê n c i a m a i s n o v a das c i ê n c i a s s o c i a i s , sob
o d u p l o s i g n o da " c o m u n i c a ç ã o " e da m a t e m á t i c a .
M a s a q u i o a c e r v o n ã o será fácil de p l e i t e a r , q u e r o d i z e r ,
será p o u c o fácil s i t u a r estas t e n t a t i v a s c o m r e l a ç ã o a o t e m p o
da história, em relação ao qual, a p a r e n t e m e n t e , pelo m e n o s ,
elas e s c a p a m i n t e i r a m e n t e . M a s d e fato, n e n h u m e s t u d o so¬
cial e s c a p a a o t e m p o d a h i s t ó r i a .
N e s t a d i s c u s s ã o , em t o d o caso, o leitor fará b e m , se q u i s e r
nos a c o m p a n h a r ( p a r a n o s a p r o v a r o u s e p a r a r - s e d e n o s s o p o n ¬
to de v i s t a ) , em p e s a r , p o r sua v e z , e um a u m , os t e r m o s de
um v o c a b u l á r i o , não i n t e i r a m e n t e n o v o , c e r t a m e n t e , mas reto¬
m a d o e r e j u v e n e s c i d o e m d i s c u s s õ e s n o v a s e que p r o s s e g u e m
sob n o s s o s o l h o s . N a d a d e n o v o , e v i d e n t e m e n t e , c o m r e l a ç ã o
ao a c o n t e c i m e n t o , ou à longa d u r a ç ã o . N e m grande coisa quan¬
to às estruturas, se b e m que a p a l a v r a — e a c o i s a — n ã o es¬
teja ao a b r i g o das i n c e r t e z a s e das d i s c u s s õ e s ( 2 1 ) . I n ú t i l t a m ¬
b é m insistir muito sobre as p a l a v r a s sincronia e diacronia;
elas p r ó p r i a s s e d e f i n e m , s e b e m que seu p a p e l , n u m e s t u d o
c o n c r e t o do s o c i a l , seja m e n o s fácil de d i s c e r n i r do que pa¬
rece. C o m e f e i t o , n a l i n g u a g e m d a h i s t ó r i a (tal c o m o e u a
i m a g i n o ) , n ã o p o d e h a v e r s i n c r o n i a p e r f e i t a : u m a p a r a d a ins¬
t a n t â n e a , s u s p e n d e n d o todas as d u r a ç õ e s , é q u a s e a b s u r d a , ou,
o que d á n o m e s m o , m u i t o f a c t í c i a ; m e s m o p o r q u e u m a d e s ¬
c i d a s e g u n d o o d e c l i v e d o t e m p o n ã o i m a g i n á v e l , s e n ã o sob a
forma de u m a m u l t i p l i c i d a d e de d e s c i d a s , c o n f o r m e as diver¬
sas e i n ú m e r a s c o r r e n t e s do t e m p o .
Estas b r e v e s c h a m a d a s e t o m a d a s de p o s i ç ã o b a s t a r ã o , de
momento. M a s é p r e c i s o ser m a i s e x p l í c i t o n o que diz res¬
p e i t o à h i s t ó r i a i n c o n s c i e n t e , a o s m o d e l o s , à s matemáticas so¬
ciais. Esses c o m e n t á r i o s n e c e s s á r i o s r e u n e m - s e , ou — espero
— não tardarão a reunir-se, numa problemática comum às
ciências sociais.
(2 1). — Ver o Colóquio sobre as E s t r u t u r a s . VI Secção da École Pratique des
Hautes Études, resumo datilografado, 1958.
18. 278
A h i s t o r i a inconsciente é , b e m e n t e n d i d o , a h i s t ó r i a das
formas i n c o n s c i e n t e s do social. "Os h o m e n s f a z e m a h i s t ó r i a ,
m a s i g n o r a m que a f a z e m " (22). A f ó r m u l a d e M a r x escla¬
r e c e , mas não e x p l i c a o p r o b l e m a . D e f a t o , sob u m n o v o n o ¬
m e , é , u m a v e z m a i s , t o d o o p r o b l e m a d o t e m p o c u r t o , d o "mi¬
c r o - t e m p o " , d o événementiel q u e s e n o s r e c o l o c a . Os ho¬
m e n s s e m p r e t i v e r a m a i m p r e s s ã o , a o v i v e r seu t e m p o , d e sur¬
p r e e n d e r o seu d e s e n r o l a r dia a dia. Esta h i s t ó r i a c o n s c i e n t e ,
c l a r a , s e r i a ela a b u s i v a , c o m o m u i t o s h i s t o r i a d o r e s , h á j á m u i ¬
t o t e m p o , c o n c o r d a m e m p e n s a r ? A l i n g ü í s t i c a a c r e d i t a v a , an¬
t i g a m e n t e , t u d o t i r a r das p a l a v r a s . A h i s t ó r i a t e v e a i l u s ã o , ela
t a m b é m , d e t u d o t i r a r dos a c o n t e c i m e n t o s . M a i s d e u m d e n o s ¬
sos c o n t e m p o r â n e o s a c r e d i t a r i a d e b o a v o n t a d e que t u d o p r o ¬
v e i o dos a c o r d o s d e Y a l t a o u d e P o t s d a m , dos a c i d e n t e s d e D i e n -
B i e n - P h u ou de S a k h i e t - S i d i - Y o u s s e f , ou deste outro a c o n t e c i ¬
m e n t o , m u i t o m a i s i m p o r t a n t e , é v e r d a d e , o l a n ç a m e n t o dos
sputniks. A h i s t ó r i a i n c o n s c i e n t e d e s e n r o l a - s e p a r a a l é m des¬
tas l u z e s , d e seus f l a s h e s . A d m i t a m o s , p o i s , que e x i s t e , a u m a
certa distância, um i n c o n s c i e n t e social. A d m i t a m o s , ainda por
c i m a , e s p e r a n d o o m e l h o r , que este i n c o n s c i e n t e seja c o n s i d e ¬
rado c o m o mais rico, cientificamente, que a s u p e r f í c i e relu¬
z e n t e à qual n o s s o s o l h o s e s t ã o h a b i t u a d o s ; m a i s r i c o cientifi¬
c a m e n t e , isto é, m a i s s i m p l e s , m a i s fácil de e x p l o r a r , — s e n ã o
de d e s c o b r i r . Mas o c a m i n h o e n t r e s u p e r f í c i e c l a r a e p r o f u n ¬
dezas obscuras — entre r u í d o e s i l ê n c i o — é difícil, d u v i d o s o .
A c r e s c e n t e m o s que a h i s t ó r i a " i n c o n s c i e n t e " , d o m í n i o e m par¬
te do t e m p o c o n j u n t u r a l e, por e x c e l ê n c i a , do t e m p o estrutu¬
ral, é m u i t a s v e z e s m a i s n i t i d a m e n t e p e r c e b i d a d o que s e pen¬
sa. C a d a um de n ó s t e m o s e n t i m e n t o , a l é m de sua p r ó p r i a
v i d a , d e u m a h i s t ó r i a d e m a s s a e m que r e c o n h e c e m o s m e l h o r ,
na v e r d a d e , o p o d e r e os i m p u l s o s , do que as leis ou a d i r e ç ã o .
E esta c o n s c i ê n c i a n ã o d a t a s o m e n t e d e o n t e m ( c o m o n o que
diz r e s p e i t o à h i s t ó r i a e c o n ô m i c a ) : ela está, h o j e , c a d a v e z m a i s
v i v a . A r e v o l u ç ã o , pois é u m a r e v o l u ç ã o do espírito, consistiu
em a b o r d a r de frente esta s e m i - o b s c u r i d a d e , em lhe dar um lu¬
gar c a d a v e z m a i o r ao l a d o , e até m e s m o em d e t r i m e n t o , do
événementiel.
N e s t a p r o s p e c ç ã o , em que a h i s t ó r i a n ã o está só ( p e l o con¬
t r á r i o , ela n ã o fêz m a i s do que s e g u i r , n e s t e d o m í n i o , e a d a p t a r
a seu u s o , os p o n t o s de v i s t a das n o v a s c i ê n c i a s s o c i a i s ) , ins¬
t r u m e n t o s n o v o s de c o n h e c i m e n t o e de investigação foram
(22). — Citado por Claude Lévi-Strauss, Anthropologie structurale, op. cit., págs.
30-31.
19. 279
c o n s t r u í d o s : a s s i m , m a i s o u m e n o s a p e r f e i ç o a d o s , à s v e z e s ar-
t e s a n a i s a i n d a , o s modelos. O s m o d e l o s são a p e n a s h i p ó t e s e s ,
sistemas de e x p l i c a ç õ e s s o l i d a m e n t e ligadas s e g u n d o a f o r m a
d a e q u a ç ã o o u d a f u n ç ã o : isto i g u a l a o u d e t e r m i n a a q u i l o . Tal
r e a l i d a d e n ã o a p a r e c e sem que tal o u t r a a a c o m p a n h e e, de
u m a a o u t r a , r e l a ç õ e s e s t r e i t a s e c o n s t a n t e s se r e v e l a m . O
modelo estabelecido com cuidado permitirá, pois, focalizar, fo-
ra do m e i o s o c i a l o b s e r v a d o — a p a r t i r do qual foi, em s u m a ,
criado — outros m e i o s sociais da m e s m a natureza, através do
t e m p o e do e s p a ç o . Seu v a l o r é r e c o r r e n t e .
Estes sistemas de e x p l i c a ç õ e s v a r i a m ao infinito c o n f o r -
me o t e m p e r a m e n t o , o c á l c u l o ou o o b j e t i v o dos u t i l i z a d o r e s :
simples ou c o m p l e x o s , qualitativos ou quantitativos, estáticos
ou d i n â m i c o s , m e c â n i c o s ou estatísticos. T o m o de C. Levy
S t r a u s s esta ú l t i m a d i s t i n ç ã o . O m o d e l o s e r i a m e c â n i c o n a di¬
m e n s ã o m e s m a d a r e a l i d a d e d i r e t a m e n t e o b s e r v a d a , n ã o inte¬
ressando a realidade de pequenas d i m e n s õ e s s e n ã o a gru¬
pos m i n ú s c u l o s de h o m e n s (assim p r o c e d e m os e t n ó l o g o s a
p r o p ó s i t o das s o c i e d a d e s p r i m i t i v a s ) . Para as grandes s o c i e -
d a d e s , em que os g r a n d e s n ú m e r o s i n t e r v ê m , o c á l c u l o das
m é d i a s s e i m p õ e : elas c o n d u z e m aos m o d e l o s e s t a t í s t i c o s . Mas
p o u c o i m p o r t a m estas d e f i n i ç õ e s , à s v e z e s d i s c u t í v e i s !
O e s s e n c i a l , p a r a m i m , é, antes de e s t a b e l e c e r um p r o g r a ¬
ma c o m u m das c i ê n c i a s s o c i a i s , p r e c i s a r o p a p e l e os l i m i t e s
d o m o d e l o , que c e r t a s i n i c i a t i v a s c o r r e m o r i s c o d e a u m e n t a r
abusivamente. D o n d e a n e c e s s i d a d e de confrontar os m o d e -
l o s , t a m b é m eles, c o m a i d é i a d e d u r a ç ã o ; p o r q u e d a d u r a ç ã o
que eles i m p l i c a m d e p e n d e m , m u i t o e s t r e i t a m e n t e , a m e u v e r ,
seu s i g n i f i c a d o e seu v a l o r de e x p l i c a ç ã o .
P a r a ser m a i s c l a r o , t o m e m o s e x e m p l o s e n t r e m o d e l o s his¬
t ó r i c o s ( 2 3 ) , o u seja, f a b r i c a d o s p o r h i s t o r i a d o r e s , m o d e l o s b a s ¬
tante grosseiros, r u d i m e n t a r e s , raramente levados ao rigor de
u m a v e r d a d e i r a r e g r a c i e n t í f i c a e n u n c a p r e o c u p a d o s e m atin¬
gir u m a l i n g u a g e m m a t e m á t i c a r e v o l u c i o n á r i a , — s ã o , t o d a v i a ,
m o d e l o s , a seu m o d o .
I n s i s t i m o s n o c a p i t a l i s m o m e r c a n t i l entre o s é c u l o X I V e
X V I I I : t r a t a - s e d e u m m o d e l o , e n t r e v á r i o s , que s e p o d e d e s -
tacar da obra de M a r x . Não se aplica p l e n a m e n t e senão a u m a
dada f a m í l i a d e s o c i e d a d e s , d u r a n t e u m t e m p o d a d o , deixando
a p o r t a a b e r t a a t o d a s as e x t r a - p o l a ç õ e s .
(23). — Seria tentador dar um lugar aos "modelos" dos economistas que, na
verdade, comandaram a nossa imitação.
20. 280
T u d o se passa de outra m a n e i r a , no m o d e l o que e s b o c e i ,
num livro antigo ( 2 4 ) , de um ciclo de d e s e n v o l v i m e n t o e c o -
n ô m i c o , a p r o p ó s i t o das c i d a d e s i t a l i a n a s e n t r e o s é c u l o X V I
e X V I I I , por vezes mercadoras, "industriais", depois especia-
lizadas no c o m é r c i o b a n c á r i o ; esta ú l t i m a a t i v i d a d e , a m a i s
l e n t a a se d e s e n v o l v e r , a m a i s lenta t a m b é m a d e s a p a r e c e r .
M a i s r e s t r i t o , de fato, que a e s t r u t u r a do c a p i t a l i s m o c o m e r -
c i a l , este e s b o ç o s e r i a , m a i s f a c i l m e n t e q u e a q u e l e , e x t e n s i v o
na d u r a ç ã o e no e s p a ç o . Êle registra um f e n ô m e n o (alguns
diriam uma estrutura dinâmica, mas todas as estruturas da
história são, pelo m e n o s elementarmente, dinâmicas) capaz
de se r e p r o d u z i r n u m n ú m e r o de c i r c u n s t â n c i a s fáceis de se-
r e m e n c o n t r a d a s . A c o n t e c e r i a t a l v e z o m e s m o c o m este m o -
delo, e s b o ç a d o por Frank S p o o n e r e p o r - m i m p r ó p r i o ( 2 5 ) , a
p r o p ó s i t o da história dos metais p r e c i o s o s , antes, durante e
a p ó s o s é c u l o X V I : o u r o , p r a t a , c o b r e — e o c r é d i t o , este s u b s -
t i t u t o ágil d o m e t a l — s ã o , e l e s t a m b é m , j o g a d o r e s ; a " e s t r a -
t é g i a " de um pesa sobre a "estratégia" do o u t r o . N ã o será d i -
fícil t r a n s p o r t a r e s t e m o d e l o f o r a d o século privilegiado e
p a r t i c u l a r m e n t e m o v i m e n t a d o , o X V I , que e s c o l h e m o s para
nossa o b s e r v a ç ã o . Não tentaram economistas, no c a s o par¬
t i c u l a r dos p a í s e s s u b - d e s e n v o l v i d o s de h o j e , v e r i f i c a r a ve¬
l h a t e o r i a q u a n t i t a t i v a d a m o e d a , m o d e l o , t a m b é m e l a , à sua
maneira (26)?
M a s as p o s s i b i l i d a d e s de d u r a ç ã o de t o d o s estes m o d e l o s
são a i n d a b r e v e s , s e a s c o m p a r a m o s à s d o m o d e l o i m a g i n a d o
por um j o v e m historiador sociólogo a m e r i c a n o , Sigmund Dia-
mond (27). T o c a d o pela dupla l i n g u a g e m da classe dominan¬
te dos grandes financistas americanos contemporâneos de
P i e r p o n t M o r g a n , l i n g u a g e m i n t e r i o r à c l a s s e e l i n g u a g e m ex¬
terior (esta última, na v e r d a d e , espécie de j u s t i f i c a ç ã o peran¬
te a o p i n i ã o p ú b l i c a , à qual se r e p r e s e n t a o s u c e s s o do finan¬
c i s t a c o m o o t r i u n f o t í p i c o d o self m a d e m a n , a c o n d i ç ã o d a
f o r t u n a d a p r ó p r i a n a ç ã o ) , t o c a d o p o r esta d u p l a l i n g u a g e m ,
nela vê a r e a ç ã o h a b i t u a l a t o d a classe d o m i n a n t e que sente
seu p r e s t í g i o a t i n g i d o e s e u s p r i v i l é g i o s a m e a ç a d o s ; é-lhe p r e -
( 2 4 ) . — La M é d i t e r r a n é e et le m o n d e m é d i t e r r a n é e n à l ´ é p o q u e de P h i l i p p e II,
P a r i s , A r m a n d Colin, 1949, p á g s . 264 e s e g u i n t e s .
(25). — Fernand Braudel e Frank Spooner, Les métaux monétaires et l'écono-
mie du X V I e . siècle. R a p p o r t s au C o n g r è s I n t e r n a t i o n a l de R o m e , 1955,
vol. I V , p á g s . 233-284.
( 2 6 ) . — A l e x a n d r e C h a b e r , Structure é c o n o m i q u e e t théorie m o n é t a i r e , P a r i s , A r -
mand Colin, P u b l i c a ç õ e s do Centre d'Études Économiques, 1956.
( 2 7 ) . — S i g m u n d D i a m o n d , The Reputation of the A m e r i c a n B u s i n e s s m a n , Cam¬
bridge (Massachusetts), 1955.
21. 281
c i s o , p a r a m a s c a r a r - s e , c o n f u n d i r seu d e s t i n o c o m o d a C i d a d e
o u d a N a ç ã o , seu i n t e r e s s e p a r t i c u l a r c o m o i n t e r e s s e p ú b l i c o .
S. D i a m o n d explicaria de boa v o n t a d e , da m e s m a maneira, a
e v o l u ç ã o da idéia de dinastia ou de i m p é r i o , dinastia inglesa,
I m p é r i o r o m a n o . . . O m o d e l o assim c o n c e b i d o é, e v i d e n t e m e n -
te, capaz de p e r c o r r e r os s é c u l o s . Êle supõe certas c o n d i ç õ e s
s o c i a i s p r e c i s a s , m a s das q u a i s a h i s t ó r i a t e m s i d o p r ó d i g a : é
v á l i d o , e m s e g u i d a , p a r a u m a d u r a ç ã o b e m m a i s l o n g a que o s
m o d e l o s p r e c e d e n t e s , mas ao m e s m o tempo focaliza realidades
mais precisas, mais estreitas.
L e v a d o ao e x t r e m o , como diriam os m a t e m á t i c o s , este tipo
de modelo reuniria os modelos favoritos, quase i n t e m p o r a i s ,
d o s s o c i ó l o g o s m a t e m á t i c o s . Q u a s e i n t e m p o r a i s , isto é , n a ver¬
dade c i r c u l a n d o pelos c a m i n h o s o b s c u r o s e inéditos da m u i t o
longa duração.
A s e x p l i c a ç õ e s p r e c e d e n t e s n ã o são s e n ã o u m a i n s u f i c i e n t e
i n t r o d u ç ã o à c i ê n c i a e à t e o r i a d o s m o d e l o s . E é p r e c i s o que
os historiadores ocupem posições de vanguarda. Seus m o d e l o s
n ã o são m a i s d o que f e i x e s d e e x p l i c a ç õ e s . N o s s o s c o l e g a s são
d e tal m o d o a m b i c i o s o s e a v a n ç a d o s n a p e s q u i s a , que t e n t a m
r e u n i r as teorias e as l i n g u a g e m da i n f o r m a ç ã o , da c o m u n i c a ¬
ç ã o o u das m a t e m á t i c a s q u a l i t a t i v a s . Seu m é r i t o — q u e é g r a n -
de — é o de a c o l h e r em seu d o m í n i o esta l i n g u a g e m s u t i l , as
m a t e m á t i c a s , m a s que c o r r e o r i s c o d e , à m e n o r d e s a t e n ç ã o ,
e s c a p a r a n o s s o c o n t r o l e e l e v a r - n o s sabe D e u s o n d e ! Infor¬
m a ç ã o , c o m u n i c a ç ã o , m a t e m á t i c a s q u a l i t a t i v a s , t u d o s e reú¬
n e m u i t o b e m n o v o c á b u l o , s u f i c i e n t e m e n t e a m p l o , das m a t e ¬
m á t i c a s s o c i a i s . A i n d a é p r e c i s o , n a m e d i d a d o p o s s í v e l , ilu¬
minar nosso caminho.
A s m a t e m á t i c a s sociais (28) c o n s t i t u e m , p e l o m e n o s , três
l i n g u a g e n s e que p o d e m ainda se m i s t u r a r , sem e x c l u i r u m a
c o n t i n u a ç ã o . Os m a t e m á t i c o s não p e r d e r a m a i m a g i n a ç ã o . Em
t o d o c a s o , não há uma m a t e m á t i c a , a m a t e m á t i c a (ou então
trata-se de uma r e i v i n d i c a ç ã o ) .
"Não se deve dizer a álgebra, a geometria, mas uma
álgebra, uma geometria" (Th. Guibaud),
(28). — Ver especialmente Claude Lévi-Strauss, Bulletin International des Scien-
ces sociales, U N E S C O , VI, n.° 5, e de uma maneira geral todo este nu¬
méro que é de um grande interêsse, intitulado Les mathématiques et les
sciences sociales.
22. 282
o que não simplifica nossos problemas, nem os deles. Três lin-
guagens, pois: a dos fatos de necessidade ( u m é dado, o outro
segue), é o domínio das matemáticas tradicionais; a linguagem
dos fatos duvidosos, desde Pascal, — é o domínio do cálculo das
probabilidades; a linguagem, enfim, dos fatos condicionados,
nem determinados, nem duvidosos, mas submetidos a certas
sujeições, a regras de j o g o , no eixo da "estratégia" dos jogos
de Von Neumann e Morgenstern (29), estratégia esta triunfan-
te, e que não se limitou aos únicos princípios e valores de seus
fundadores. A estratégia dos jogos, pela utilização dos con¬
juntos, dos grupos, do próprio cálculo das probabilidades, abre
caminho às matemáticas "qualitativas". Desde então, a passa-
gem da observação à formulação matemática não se faz mais
obrigatoriamente pelo difícil caminho das medidas e dos lon¬
gos cálculos estatísticos. Da análise do social pode-se p a s s a r di¬
retamente a uma formulação matemática, à máquina de cal¬
cular, diremos nós.
Evidentemente, é preciso preparar a tarefa desta máquina,
que não suporta nem tritura todos os alimentos. É, além disso,
em função de verdadeiras máquinas, de suas regras de funcio¬
namento, para as comunicações, no sentido mais material da
palavra, que esboçou-se e desenvolveu-se uma ciência da in¬
formação. O autor deste artigo não é, de modo algum, um
especialista nestes difíceis domínios. As pesquisas em torno da
fabricação de uma máquina de traduzir, que êle seguiu de lon¬
ge, mas que, apesar de tudo, seguiu, atira-o, como quaisquer
outras, para um abismo de reflexões. Todavia, um duplo fato
permanece: primeiro, que tais máquinas, de tais possibilidades
matemáticas, existem; segundo, que é preciso preparar o social
para as matemáticas do social, que não são mais unicamente
nossas velhas matemáticas habituais: curvas de preço, de salá¬
rios, de nascimentos...
Ora, se o novo mecanismo matemático nos escapa tão fre¬
qüentemente, a preparação da realidade social para seu uso,
sua engrenagem, seu acabamento, não podem desviar nossa
atenção. O tratamento prévio, até aqui, tem sido quase sempre
o mesmo: escolher uma unidade restrita de observação, como
uma tribo "primitiva", ou um "isolamento" demográfico, on¬
de se possa examinar quase tudo e tocar diretamente; estabe¬
lecer, em seguida, entre os elementos distintos, todas as rela-
(29). — The Theory of G a m e s and e c o n o m i c B e h a v i o u r , P r i n c e t o n , 1944. Cf. a
b r i l h a n t e r e s e n h a d e J e a n F o u r a s t i é , C r i t i q u e , o u t u b r o d e 1 9 5 1 , n.° 5 1 .