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PROJETO MIRA :
Estudos de uma pesquisa em dança
Maria Eugenia Almeida e Marina Abib
Orientador: Adriano Bechara
São Paulo
2009
"Projeto realizado com o apoio do Governo do Estado de São Paulo,
Secretaria de Estado da Cultura - Programa de Ação Cultural de 2008."
INTRODUÇÃO GERAL
A realização desta monografia foi para nós duas uma maneira de relatar um
trabalho corporal que tem como base as manifestações populares brasileiras. Logo no
inicio da pesquisa, em uma das primeiras conversas que tivemos em uma deliciosa
caminhada, tentamos definir o tema.
Ele surgiu rapidamente. Queríamos falar sobre aquilo que movia o nosso trabalho,
aquilo que dava tanta força às nossas referências de movimentos, de sua estética, de seu
universo simbólico. Queríamos falar sobre o que sentíamos falta, enfim, sobre a
brincadeira. Brincadeiras como aquelas que tínhamos aprendido e que se tornaram tão
presentes em nossas vidas. A partir da dança queríamos experimentar aquilo que os
brincantes chamam de brincadeira. Talvez seja necessário esclarecer o sentido particular
com que a palavra brincadeira é compreendida nessa monografia. Brincadeira é o nome
dado pelos próprios participantes a certas manifestações populares do Brasil onde estão
presentes diversas linguagens artísticas, como a poesia, as artes plásticas, o teatro, a
música e a dança.
O problema não estava em saber o que falar, mas como falar. Queríamos expor de
uma maneira mais identificada com o trabalho que desenvolvemos no dia a dia dos nossos
ensaios. Assim como ocorria neles, buscamos na realização da monografia uma maneira
“brincada” de exprimir nossas idéias. Mais do que uma sucessão de teorias e conceitos,
gostaríamos de narrar as experiências que nos levaram a refletir sobre a importância da
brincadeira. Pensamos então que a melhor e a mais natural forma seria a partir do relato
das nossas experiências. Sentimos, então, necessidade de refazer nossos caminhos para
rever os encontros que tivemos com a dança e com as brincadeiras. Mesmo por caminhos
diferentes, a vivência delas em cada uma nos levou ao mesmo lugar. Uma vez prontos
esses relatos, tivemos uma grande vontade de nos comunicar: ouvir dos outros reflexões
sobre questões que, de uma maneira ou de outra, passavam a nos acompanhar por todo
esse processo de escrita.
Juntas então resolvemos compartilhar nossa pesquisa com outros dançarinos e
incorporar as reflexões que surgiriam a partir das conversas com eles. Foi muito
importante para o desenrolar das idéias conversar com pessoas de visões tanto distintas
quanto próximas às nossas. A partir delas, descobrimos alguns pontos que talvez nem
fossem entrar nesta monografia, mas que depois percebemos que não poderiam ficar de
fora.
Todo esse trajeto foi essencial para chegarmos a uma organização mais clara das
idéias sobre a brincadeira.
Durante o processo, uma questão nos acompanhou continuamente: como podemos
trazer para o nosso trabalho as brincadeiras e como elas atuam como referência para nós.
Em torno desse ponto, dirigimos os nossos esforços a fim de concretizar em palavras o
que pesquisamos na dança.
SUMARIO
1. HISTORIAS...............................................................................
2.CONVERSAS..............................................................................
3.INTRODUÇÃO.................................................................................
4. RELAÇÃO MÚSICA E DANÇA E A CRIAÇÃO DE MOVIMENTOS................
5. O IMPROVISO ................................................................................
6. O “CONTEMPORÂNEO” E O “TRADICIONAL”......................................
7. A TÉCNICA………………………………………………………………
8. BRINCADEIRA..........................................................................
9. INTRODUÇÃO................................................................................
10. REPETIÇÃO.................................................................................
11. CORPO COMUM E PARTICULAR.....................................................
12. O EQUILÍBRIO DENTRO DA BRINCADEIRA E O ESTADO DE
PRONTIDÃO………………………………………………………………
13. AS BRINCADEIRAS E A VIDA..........................................................
14. ARREDONDANDO………………………………………………………
15.BIBLIOGRAFIA......................................................................
UMA HISTORIA
Em 1986, quando meus pais já moravam em São Paulo, eu nasci. Fui o segundo
fruto do encontro de uma paranaense com um pernambucano. Minhas memórias se
iniciam na minha moradia do Butantã. Nossa casa era o local de ensaio de meus pais: no
quintal, a corda bamba; no quarto, um tapete verde e um espelho formavam o espaço em
que meu pai ficava quando dizia estar trabalhando. Uma das extensões da casa era um
clube próximo, onde ao som de “Chorando se foi” minha mãe fazia seus ensaios e criava
seus números. Outra extensão era um circo, local de treino e encontro de meus pais com
seus amigos. Com frequência meus pais iam a espetáculos circenses, não só pela
necessidade do trabalho como por gosto do programa. Ao contrário do que poderia
parecer, eu e meu irmão não éramos os protagonistas do passeio, mas embarcávamos nas
primeiras, de muitas, estripulias de nossos pais. Foi na corda bamba e no clube que minha
mãe criou a primeira peça artística da qual participei com meu irmão. Nos apresentamos
em uma livraria na Vila Madalena em 1991, éramos pequenos assistentes de minha mãe, e
no final fazíamos uma dança a dois. Em parte pela lembrança dos apertos de bochechas e
pelo tom de voz com que o público falava-me, sei muito bem que agradamos mais pelo
encanto da idade do que pelo trabalho artístico.
Em casa, seguia-se assim: horas brincava junto de meu irmão, horas com ele e seus
queridos amigos de rua e horas, muitas delas, como assistente na construção de suas
criativas engenhocas, em seus números de mágicas, em seu laboratório; até que, como
toda caçula, vivi o momento em que o irmão mais velho cresce e tive que aprender a
brincar sozinha. Não é algo do qual eu guarde alguma sensação de solidão, muito pelo
contrário: este foi o momento em que bonecos, bonecas, monstros e objetos eram formas
das minhas primeiras percepções das esquisitices do mundo. Algo que adorava fazer era
dar aos antigos brinquedos de meu irmão roupas que eu própria confeccionava – durante
muitos anos dizia que quando crescesse seria costureira.
Nossa casa já não dava mais conta do trabalho de meus pais, por isso passaram a
alugar galpões e garagens. Porém, diversas vezes entraram em conflito com os
proprietários, que estranhavam a forma de utilização do espaço. Foi então que do outro
lado da ponte, na Vila Madalena, alugaram uma antiga fábrica de lustres com uma grande
ladeira na entrada, que passou a ser local de ensaio e de apresentação de seus espetáculos.
Tínhamos como vizinhos um professor de história e filosofia, sua mulher e duas filhas
com idades próximas à minha, e nos tornamos grandes amigos. Com avós, tios e primos
divididos entre Curitiba e Recife, foram esses amigos que me ofereceram uma relação
familiar pouco conhecida por mim.
Em novembro de 1992, saímos ladeira abaixo entre amigos, instrumentos, carroça e
fantasias em um cortejo pelas ruas da Vila Madalena, para inaugurar o espaço que
passaria a ser o teatro de minha família. Parte dos entulhos do lugar que era reformado
constantemente, sobretudo em razão das insistentes goteiras, foram para a minha casa, que
passava a ser uma extensão daquela nova moradia. No quintal, as tábuas formavam
gangorras, circuitos, muitos circuitos, cabanas e uma balança na ameixeira, convertida à
noite em moradia dos morcegos de quem éramos deliciosos inimigos: os atraíamos com
varas e tentávamos atingi-los com estilingadas. Enquanto isso, nossos brinquedos eram
sequestrados de casa e utilizados na construção da peça teatral que ganhava o mesmo
nome do novo espaço.
Meus pais e o diretor, inspirados por uma estética com base na obra de artistas como
Bispo do Rosário, utilizavam sucatas, tecidos e fitas betumados, e brinquedos — os
nossos, em grande parte das vezes. Lembro-me bem que passei muito tempo sem falar
com o diretor da peça, mas vim a saber a razão posteriormente, quando minha mãe contou
que, em certa ocasião, encontrando um brinquedo meu perto de seu material de trabalho,
fui resgatá-lo e levei uma bronca. Saí aos prantos, minha mãe viu, mas manteve o silêncio
de quem muito se zanga. No dia seguinte, minha mãe o aguardou cedo no portão do
teatro, e a conversa que principiou em briga acabou se transformando em um valioso
diálogo. Hoje tenho uma admiração enorme pelo trabalho desse grande artista por quem
guardo um grande carinho.
Durante o dia, enquanto meus pais ensaiavam a montagem de seus espetáculos, eu
brincava com minhas vizinhas. Com os brinquedos que se mantinham a salvo na casa
delas, inventávamos novas famílias, casas, supermercados e escolas. Em não poucas
ocasiões, a demora de meus pais em telefonar para os vizinhos me fazia deduzir que mais
uma vez eu dormiria lá, pois só ao chegar em casa eles se lembravam comicamente que eu
tinha ficado do outro lado da ponte.
Regularmente íamos a Recife, onde passávamos as férias de dezembro e
emendávamos até o Carnaval. Ficávamos na casa dos pais de meu pai: meu avô, um
médico apaixonado por fotografia, e minha avó, a melhor do mundo, que com sua
impressionante habilidade manual, costurava as roupas mais lindas para mim e meus
bonecos. Certa vez, ela fez um lindo vestido para mim e outro idêntico para minha boneca,
que possuía cabelo semelhante ao meu. Diversas vezes, acompanhando meus pais em
suas viagens, passeamos pelos aeroportos vestidas graciosamente iguais. Durante esses
verões, ficávamos também na praia de Tamandaré, hospedados na casa à beira-mar de
minha tia, acompanhava as caminhadas matinais de meus pais até a praia dos Carneiros,
um lugar inexplorado, repleto de coqueiros e piscinas naturais, atualmente descoberto e
encoberto pelos mais suntuosos “resorts” e hotéis.
Guardo um significativo carinho por dois personagens que fizeram parte de minha
estadia em Tamandaré: um era o Iorque, um cocker spaniel que brincou muito comigo; o
outro o Dino, uma boia dinossauro acompanhante das aventuras marítimas mais
perigosas, com quem troquei importantes diálogos. Talvez por que começassem a
diminuir as brincadeiras que fazia cercada por inúmeros bonecos e já não os tinha mais
como “compreendedores” de mundo, fui ali curiosamente tomada por uma vontade de
dialogar com algo que chamei de Deus: não sabia bem ao certo o que era, mas decorei as
rezas principais e as fazia antes de dormir, sempre acrescentando ao final uma prece
particular.
Após um tempo, as rezas cessaram, porém a curiosidade por um aspecto religioso
permaneceu. Emendado às férias, vinha o Carnaval. Meus pais nos fantasiavam e saíamos
por Olinda com amigos e primos munidos de arminhas d’água, ao passo que em Recife eu
os acompanhava em suas buscas pelas marchas de bloco, pelos caboclinhos e bois. Nessa
época visitávamos regularmente a casa de dois mestres populares: um deles era
responsável por um Cavalo Marinho e o outro pelo Caboclinho Sete Flechas. Não tenho a
lembrança da primeira vez que os vi, mas as mais antigas me mostram a maneira carinhosa
e atenciosa que nos tratavam.
Foi no retorno de uma dessas férias que chegamos em casa e encontramos a árvore
de ameixa podada, a vizinha havia feito “um favor” em nome dos demais vizinhos que se
sentiam incomodados com os morcegos. Não só sofremos a perda de nossos instigantes
inimigos como das frutas, do balanço e da agradável sombra.
A volta para São Paulo passava a significar sobretudo o retorno à escola, o
sentimento que me vinha nessas ocasiões era sempre semelhante àquele de quando me
cortaram a ameixeira. Nesse mesmo período, que era o das chuvas de verão, o teatro
sofria também: não poucas vezes corríamos com baldes e panos tentando dar conta das
goteiras, transformadas às vezes em divertidas “bicas”, e os espetáculos acabavam por
incorporar o indisfarçável cenário. Inicialmente, a plateia foi formada com a ajuda da
“festa da cadeira”: cada amigo e espectador comparecia com uma como “bilhete de
ingresso”. A cada temporada de espetáculos era relatado ao público o destino do dinheiro
dos ingressos: inicialmente para a construção da arquibancada, depois para os tapetinhos
que iriam cobri-la, as almofadinhas, o encosto, depois os cuidados com as goteiras, e por
fim o isolamento acústico. No entanto, antes de concluirmos esta última etapa fizemos
alguns pequenos inimigos em razão do barulho: muitas vezes durante a peça ou em seu
final subia a ladeira um carro de polícia que vinha a pedido dos vizinhos cobrar o silêncio.
Eu ficava extremamente assustada, pois meus pais entravam na brincadeira e numa
encenação diziam aos policiais que podiam prendê-los, minha mãe até chegou a entrar uma
vez dentro do carro da polícia, e eu apavorada chorei e fui tirada de canto pelos amigos e
público que me explicaram que era de mentira...
Meus pais apresentavam-se com regularidade, minhas brincadeiras com as vizinhas
durava até a hora de início da peça, pois ia assisti-los. Lembro-me com nitidez que, em
certo momento da peça, quando a Dona Deusdédite era tomada por uma euforia, dava-se
um tiro para o alto, eu toda vez chorava assustada, os amigos e público mais uma vez
tentavam me acalmar e me explicavam que era de mentira...
No ano de 1994, eu e as vizinhas criamos nossa peça teatral: escrevemos as falas,
fizemos cenário, figurino, ingressos e marcamos a data em que nossos pais e a equipe que
trabalhava no espaço iria sentar para nos assistir. Nessa época, o teatro deixou de acolher
somente as peças de meus pais: músicas, pernas de pau, malabares, mamulengos eram
apresentados por pessoas muito queridas que muitas vezes compartilharam conosco os
apuros das goteiras em nossa casa de espetáculo.
Em 1995, meu pai criou seu primeiro show musical. Eu acompanhei as viagens do
espetáculo e tinha a prazerosa tarefa de vender o programa do show, impresso em um
instrumento (ganzá) que em certa hora do espetáculo era tocado junto com o público. Nas
viagens de férias a Recife, passei a ir com maior frequência a ensaios, treinos e
brincadeiras das manifestações artísticas de lá. Seguimos diversas noites pelas estradas
que entrecortavam os canaviais em busca de cavalos marinhos e sambadas de maracatu
rural.
Embora fosse um universo de adultos, eu me divertia – não só com as muitas
crianças, mas também com a atuação dos mais velhos: aprendi a apreciar a beleza de seus
movimentos vendo a admiração que meus pais tinham por eles. Chamavam especialmente
a minha atenção as mãos daquelas pessoas. Os dias em que para aprender alguns desses
passos eu tinha aulas de cavalo marinhos, maracatu rural e nação, frevo e caboclinho, não
eram momentos de extremo prazer, tampouco poéticos – lembro-me da irritação causada
pela dificuldade de copiar aqueles movimentos, mesmo porque a beleza deles estava
justamente no corpo do dançarino. Conversava com meus pais sobre o “jeitinho” com que
eles faziam, que era só de quem dançava desde muito pequeno. Tentávamos imitar esse
jeitinho, e lembro-me da frase repetida diversas vezes por minha mãe: “Aprender não vai
fazer nenhum mal, se mais tarde não for usar, você joga fora, se precisar, eles estarão aí”.
Em São Paulo eu deixei o piano, comecei a estudar violino, e voltei a fazer ginástica
olímpica. Para essas aulas ia sempre acompanhada pela mesma frase de minha mãe.
Durante a ginástica olímpica, eu procurava guardar alguns dos movimentos que via nas
coreografias das “meninas do treino”, e chegando em casa, no quarto, de portas fechadas,
ao som de Shakira, eu as repetia a meu modo.
Após a criação do show, meu pai iniciava o processo de gravação do CD, isso se
repetiu diversas vezes, no primeiro, meu irmão e eu participávamos, ele tocando e eu
cantando. Finalizado seu primeiro disco, fui escutá-lo junto com nossos amigos vizinhos
para que ouvíssemos juntos minha voz. Rapidamente a identificamos: era a única do coro
fora do tempo e da melodia. Isso foi mais um motivo de boas risadas. Desde pequena fui
vítima dessa mania de meus pais: em grande parte de seus trabalhos artísticos eles davam
um jeito de incorporar eu e meu irmão, inicialmente não por uma necessidade artística,
mas com o passar dos anos essa insistência terminou por provocar algumas dependências;
gostávamos de viajar, gostávamos de nos apresentar, e meus pais gostavam de criar
espetáculos em que pudéssemos desenvolver algum trabalho artístico.
Raramente minha casa era ocupada somente por nós quatro. Era comum a presença
dos amigos dos meus pais, que vinham de outras cidades auxiliar na construção dos
espetáculos. Foi nesse contexto que se iniciava a montagem do segundo show de meu pai,
no qual eu participaria. Meu pai mantinha um cuidado musical e orientava meu irmão, que
tocaria percussão; minha mãe cuidava das danças e ajudava-me a elaborar uma coreografia
de frevo. Eu me responsabilizava pela elaboração e confecção de meu figurino, mas, com
meu corpo, que de tão magrinho beirava a esquisitice, exigia de mim pouca costura.
Estreamos em Brasília em uma Sexta-feira Santa com um frio na barriga que nenhuma
ordem divina podia fazer desaparecer. Ensaiava ainda nas passagens de som do espetáculo
e nas aulas de Recife, no entanto, já começava a ser orientada por meus pais para incluir
em minha rotina um treino particular que tivesse um pouco mais de rigor. Mais tarde,
passei também a tocar violino neste show, e maiores são as recordações do frio da barriga
do que das aparições.
Passei a viajar por diversas cidades, lembro-me que nesse período tive uma enorme
vontade de colecionar algo, não sabia ao certo o quê, mas tinha o desejo de juntar ali
muitos tipos de uma mesma coisa, mais o contexto do que a vontade fizeram-me optar
pela coleção de xampu de hotel, durante anos adorei guardar do mais cafona ao mais lindo
potinho, porém com o passar dos anos por falta de espaço fui obrigada a desapegar-me e
desfazer-me de minha coleção...
As viagens com os shows também me afastavam da escola por longos e deliciosos
períodos, mesmo estando em São Paulo, faltava às aulas para descansar das apresentações
e cresci ouvindo meus pais em tom de compreensão perguntarem a mim e ao meu irmão
se era mesmo importante irmos para a aula no dia seguinte. Para cumprir com o programa
escolar, fui habituada a uma rotina de estudo longe dela. Foi em um desses estudos que
conheci Zezé e Portuga, personagens do maravilhoso romance Meu Pé de Laranja Lima.
Emocionei-me pela primeira vez com um livro, e paralelamente aborrecia-me com a escola
vendo sua maneira de conduzir nossos cotidianos e ensinamentos.
Com o livro, me dava conta de uma nova relação com a arte e o conhecimento.
Futuramente encontrei entre as sábias palavras de Tarkóvski algumas em que identifiquei
algo do que sentia:
Poder-se-ia afirmar que a arte é um símbolo do universo,
estando ligada àquela verdade espiritual absoluta que se oculta
de nós em nossas atividades pragmáticas e utilitárias. Para poder
penetrar em qualquer sistema científico, uma pessoa deve
recorrer a processos lógicos de pensamento, deve chegar a um
entendimento que requer como ponto de partida um tipo
específico de educação. A arte se dirige a todos, na esperança de
criar uma impressão, de ser sobretudo sentida, de ser causa de
um impacto emocional e de ser aceita, de persuadir as pessoas
não através de argumentos racionais irrefutáveis, mas através da
energia espiritual com que o artista impregnou a obra. Além
disso, a disciplina preparatória que ela exige não é uma educação
científica, mas uma lição espiritual específica.
No teatro minha mãe dava origem a um curso chamado “A Arte do Brincante para
Educadores”, era composto por oito módulos, cada um dado por uma pessoa. Frequentei
esse curso durante muitos anos. Os adultos procuravam o curso com o intuito de obter
uma aprendizagem formal e terminavam por brincarem, eu ia ali para brincar e terminava
por aprender, chegávamos todos ao mesmo ponto. Eu acompanhava também os cursos de
dança que passaram a acontecer no espaço, frequentemente meus pais traziam pessoas que
dançavam nas brincadeiras do Recife para darem aulas. Um desses professores passou a
ser um daqueles agregados da nossa casa, ele faria parte também do novo show de meu
pai, do qual participei, pequena de altura e ainda muito magra, dançando levemente frevo,
botando a figura de um pequenino boi e fazendo parte do coro das pastoras. Percorremos
o Brasil, passamos rapidamente por diversos Estados, e fui conhecendo cada cidade
através da forma com que cada público acolhia o espetáculo. Nessa época fiz minha
primeira viagem ao exterior. Fui com minha família à França, junto com nós a “Banda
Pernambucana”, as cantoras e a equipe técnica formaram um grupo de cerca de 20
pessoas. Me divertia com todos aqueles músicos que possuíam seus curiosos códigos e
regras.
Os franceses ficavam perplexos com nossas eufóricas brincadeiras que traduziam a
eles um certo “excesso de intimidade”. Eu ficava perplexa ao observar o público local
dançando ao final dos shows, via uma maneira de se movimentar que parecia pouco
íntima de seu próprio corpo. Além disso, me aborrecia com a maneira de tratarem as
crianças, não compreendia a razão de tanta frieza e indiferença, e justamente por estar
longe de meu país que me identifiquei com aspectos singulares dele, senti uma saudável
saudade.
De volta a São Paulo, mudei de casa e de colégio. Passei um ano nessa nova escola
com o sentimento de ser estrangeira. Meus pais e duas maravilhosas amigas, baianas e
educadoras, ajudavam-me a compreender as incapacidades de um modelo de educação
indiferente às relações humanas que se estabeleciam inclusive na própria escola.
Na nova casa, meu pai dava a mim e a meu irmão aulas de pandeiro. No teatro,
subíamos para uma sala mais isolada e com o violão ele nos ensinava as marchas de
bloco. Eu retornei ao meu antigo colégio e me inscrevi em seu festival de poesia anual.
Tocando pandeiro, declamei um poema de Manuel Bandeira em que falava de sua
admiração pelos repentistas. Passei a me apresentar com o espetáculo de meu pai que
marcava as comemorações dos “500 anos de Brasil”. Fazia de meu novo quarto o lugar de
treinos e experimentos de novas coreografias. Em sua gostosa varanda fazia meus treinos
de monociclo e dentro dele eu dançava de Cavalo Marinho a Fat Family.
As férias de Recife passavam a ser acompanhadas por dois primos curitibanos de
idades próximas à minha e de meu irmão. Eles participavam também do novo espetáculo.
Fazíamos durante o dia regularmente aulas com os dançarinos que à noite víamos
brincando nos cavalos marinhos, sambadas, treinos de caboclinho, etc. Com o espetáculo
pronto, formamos uma nova equipe de viagens e deixei de preferir as belezas e perfeições
dos palcos para divertir-me com seus erros e contextos, as letras de músicas esquecidas
por meu pai, os tombos, os sumiços de figurinos na hora de entrada de cena, as truncadas
comunicações com os estrangeiros, as histórias dos músicos, tudo isso passava a ser mais
interessante que as perfeições coreográficas.
A virada de ano de 2000 para 2001 foi marcada por férias em uma casa na ilha de
Itamaracá com cerca de 17 amigos, e juntos seríamos dirigidos por meus pais em seu
novo espetáculo de música e dança. Em Recife, as aulas eram agora em turmas,
alugávamos vans para ir às sambadas e cavalos marinhos, sem infraestrutura por parte do
Estado para orientar os novos curiosos, íamos trocando entre amigos informações sobre
as brincadeiras. As festas populares passaram a ser local também de encontro entre
pessoas muito queridas que vinham de fora em busca de uma beleza pouco conhecida. Eu
cada vez mais me sentia à vontade para dançar com os amigos o maracatu rural, o
caboclinho e aqueles deliciosos forrós. Mas a época do Carnaval foi ficando menos
prazerosa: as ruas abarrotavam-se de turistas brasileiros e estrangeiros, e nos palcos as
apresentações dos artistas populares cediam lugar a grandes shows com nomes famosos.
Em um desses carnavais, meu pai foi convidado a fazer uma de suas apresentações
no trio elétrico, ele convocou como sempre toda a família e dessa vez centenas de
brincantes que seguiam dançando à frente do carro. Ao término do percurso, já com o
carro parado e todos descansando, saí caminhando pela avenida Boa Viagem e encontrei
um dos brincantes reservadamente inquieto, com lágrimas nos olhos, negro, de
aproximadamente quarenta anos: ele me contou que, andando sozinho tinha sido pego por
um policial, levado para um lugar escondido e recebido algumas pancadas. Essa foi uma
daquelas experiências que condensam em um só pensamento uma infinidade de
indagações.
Em São Paulo, as dificuldades de estrutura para se manter um grupo de 17 jovens
fizeram com que meus pais optassem por encerrá-lo. No mesmo período, eu fui convidada
para participar de um grupo de percussão formado por uma dançarina africana vinda da
Guiné e seu marido percussionista. Nele aprendi complexos ritmos africanos e me deliciei
admirando a “suingada” e a perfeição da dança africana. Continuava dançando e tocando
com os amigos em um grupo que era muito requisitado para festas e eventos. Meu pai
fazia um show em que era acompanhado por meu irmão, e minha mãe montava seu
espetáculo solo, no qual, para não perder o costume do trabalho em família, eu operava a
luz.
Mudamos novamente e dessa vez fomos morar em uma casa que pertencia aos meus
pais, eu mudei de colégio e finalmente conhecia uma escola à qual eu sentia pertencer. No
primeiro ano do ensino médio, fizemos uma viagem de trabalho de campo a Ribeirão
Preto, cada grupo de alunos era responsável por entrevistar moradores de uma
determinada região, a maior parte dos entrevistados eram cortadores de cana. Fui então a
um pequeno bar onde encontrei pessoas com as mesmas mãos daqueles brincantes que
tanto conhecia. Iniciei minhas entrevistas que rapidamente se tornaram uma conversa
sobre suas vidas, com uma clara consciência sobre as situações desumanas que eram
obrigados a viver, me relataram com falas lúcidas suas condições de vida e de trabalho,
contaram desgraças, injustiças e situações inaceitáveis a qualquer ser humano, e me
impressionei com a sensatez que tinham diante da impossibilidade de fazer algo que
pudesse modificar aquela situação.
Nessa época vivi uma agenda com poucas apresentações, no entanto mantinha-me
tocando em festas e eventos com amigos, treinava e fazia aulas no teatro, que passou a não
comportar mais as necessidades dos ensaios de minha família. Os fundos de minha casa
sofreram então uma transformação: foi construída uma sala de dança. Com um grande
espelho, fiz meus pequenos experimentos mais cuidadosos. Lembro-me que um dia meu
pai deixou espalhado pela sala os figurinos de seu primeiro espetáculo de dança. Ao som
de sua trilha sonora, tentei dançar aquelas figuras, fiquei impressionada com o desastre,
tentando experimentar uma movimentação que seguisse a música, senti-me despida de
meu próprio corpo, o que aos meus olhos pareciam movimentos tão simples executados
por meu pai foram naquele momento percebidos por mim como um longo e novo caminho
que me disporia a percorrer. Identifiquei através da ausência aquilo que iria buscar na
nova sala de dança.
No colégio, eu me encantava com as aulas de filosofia, conhecia os professores e
fazia grandes amigos, descobrindo tanto os prazeres da escola quanto os de meus estudos
corporais particulares, que passavam a ser feitos com regularidade, porém não tardou para
que o colégio se tornasse algo que impossibilitava que eu cumprisse com meu ideal de
dedicação corporal.
Inspirada por meu professor de filosofia, escolhi de presente de 15 anos uma viagem
ao Xingu. Acompanhando uns amigos indigenistas que trabalhavam com vídeos nas
aldeias, passei 15 dias na tribo Kuicuru. Durante os primeiros dias, fiquei a maior parte do
tempo na rede, até hoje eles acham que eu adoeci, no entanto sei que experimentei a
entrega a um cansaço cuja dimensão só fui conhecer ali. Naquela estadia, me permiti a
ausência de coisas que já me eram tão habituais, e longe delas passei a perceber e a me dar
conta de uma novidade pela qual guardo muito carinho. Com tudo tão diferente e com
muitas saudades da família, certa noite, fui caminhar e olhando distraída para o céu fui
tomada por algo bom: com calma percebi que a visão do céu me trazia a sensação de
familiaridade, uma visão muito conhecida, isso fez com que me sentisse pela primeira vez
em casa. Porém só muito perto de ir embora é que fui entendendo um pouco dali, com
medo do acúmulo de faltas na escola parti de lá com a sensação de curiosidade de quem
experimenta o suficiente para perceber o quanto ainda se poderia conhecer.
Durante o segundo ano colegial, tive a oportunidade de acompanhar meus pais nas
filmagens de um programa de televisão sobre danças brasileiras. Com a missão de fazer o
registro fotográfico, viajei com eles de norte a sul do país, conhecia novas manifestações e
revia com um olhar mais maduro diversas delas. Mais do que uma aprendizagem de
movimentos, eu fazia da viagem um momento de observação, a câmera fotográfica
aguçava meu olhar e era um modo das pessoas se aproximarem de mim e eu delas.
Por sempre aparentar ser mais nova, onde quer que eu chegasse era recrutada pelas
crianças e me divertia com suas falas e brincadeiras, mas também tinha boas conversas
com os adultos que ali brincavam. Nestas viagens, também fiquei admirada com a forma
de religiosidade que percebia naquelas pessoas: todas as casas de brincantes que
visitávamos tinham um lugar reservado a seus santos e preces, pequenos oratórios, neles
juntavam-se figuras das mais variadas religiões, mas a crença pelo divino não se
encontrava exclusivamente ali, era notável em sua maneira de falar, nos gestos, na dança.
Passando por Juazeiro do Norte, ao visitar Padre Cícero, minha mãe e eu decidimos
que recrutaríamos nossas primeiras imagens religiosas e formaríamos nosso oratório, a
antiga adega de casa transformou-se no canto de inúmeras entidades, de cada viagem
traríamos as lembranças que dariam ouvidos às nossas rezas, lamentos, agradecimentos,
promessas...
No terceiro ano colegial, a escola propunha a realização de uma monografia, quis
aprofundar meu olhar sobre as coisas que vivia e intuía, peguei lindos textos com a
educadora amiga da família, lia e tinha conversas preciosas com uma amiga,
acompanhávamos nossas vivências, olhares e reflexões desde nossos quatro anos de
idade, naquele momento eram conversas de descobertas, falávamos de nós e do mundo,
surgia uma enorme admiração por Fernando Pessoa e Guimarães Rosa, discutíamos muito
sobre nossas indignações com o sistema de educação, este tema sempre foi o preferido
por nós, eram daquelas conversas que mudam os caminhos do pensamento e portanto da
vida. Meu orientador, lendo minha caderneta de anotações, definiu o tema da monografia
como “Os processos simbólicos como instrumento de constituição do indivíduo atuando
socialmente”; para mim, eu falava sobre arte e brincadeira.
Enquanto as faculdades lançavam suas inscrições e provas, um diretor francês vinha
ao Brasil e recrutava bailarinos que iriam compor seu espetáculo. Estávamos todos
trancafiados: meus amigos nos cursinhos e estudos, e eu na sala de dança, montando uma
coreografia para o teste desse trabalho. Todos nós passamos na primeira fase dos testes,
agora diminuía a quantidade de pessoas, mas aumentava o grau de exigência. Alguns
amigos não passaram no pretendido, e os caminhos foram vários: houve quem optasse
por viajar para fora do país, quem se trancafiasse novamente nos cursinhos, quem
quisesse ficar um tempo longe do mundo acadêmico para “descobrir a vida”, e quem fosse
cursar a faculdade na qual havia passado.
Sob a alegação de que me faltava “técnica contemporânea”, fui eliminada no teste. Saí
desconcertada da sala, a tensão de segurar o choro fez eu esquecer de pegar minhas
coisas, e de repente me vi aos prantos no centro de São Paulo sem dinheiro para voltar pra
casa e sem a mínima coragem de voltar à sala, restava-me a boa vontade de
desconhecidos, em uma mistura de cena trágica e cômica, com trajes de exercício,
chorando e totalmente sem jeito pedia uma ajuda às pessoas para comprar a passagem de
metrô, apesar das caras feias não tardou para que uma mulher se dispusesse
generosamente a comprar um bilhete para mim.
Livre da escola, optei por fazer minha grade de atividades. A decisão de não iniciar
uma faculdade deixava-me com tempo livre para me dedicar à dança. No entanto, eu ficava
inquieta por não ter uma rotina de estudos, momentos dedicados à reflexão. Eu e uma
amiga criamos então um evento que faria parte da programação do teatro, nele traríamos
uma vez por mês alguma pessoa para falar de um tema, a ideia era que se formasse um
lugar de boa conversa. Porém, não contava com o efeito colateral do evento: ao invés de
me tranquilizar com relação a meus estudos, mais crescia em mim a ânsia por saber tudo
sobre cada um daqueles temas que eram tratados ali.
Em minha rotina, mesclava minhas práticas individuais a diversas aulas de dança que
ia experimentando. Desde então passei a fazer aulas matinais de balé em um espaço muito
querido com uma professora a quem admiro muito. Paralelamente fiz aulas de consciência
corporal com uma professora maravilhosa que, assim como a professora de balé, possuía
um trabalho baseado na técnica de Klauss Vianna. Pela primeira vez, eu estreitava meu
vínculo com um nome que há muito eu ouvia de meus pais.
Sentindo a necessidade de contrapor-me às linhas e simetrias do clássico, fiz aulas de
dança do ventre com uma professora que curiosamente também havia passado pelas aulas
de Klauss e utilizava em suas ótimas aulas o que havia aprendido. Fiz “contato
improvisação”, dança africana com aqueles mesmo que anteriormente haviam tocado
comigo, dança afro com uma bailarina admirável e grande amiga da família, e voltei à
minha antiga academia de ginástica olímpica onde reencontrei os professores, o enorme
prazer das piruetas e as dores, essas que inevitavelmente me afastaram daquelas aulas.
Voltava também a nadar e a fazer aulas de sanfona.
Durante essa época, procurava incessantemente por aulas, por técnicas corporais,
embora sem conseguir explicar ao certo do que necessitava, sabia quando uma aula me
distanciava e quando me aproximava do que tanto sentia falta. Neste período fiz duas
oficinas, cada uma com duração de uma semana, nas quais senti uma forte proximidade
com a técnica que procurava. Uma delas era com um grupo de teatro de Campinas, através
da qual tive contato com uma nova forma de trabalhar a movimentação corporal. Talvez
tão forte quanto a apreciação dessa técnica foi a descoberta da existência de novas
possibilidades de se trabalhar o corpo. A outra oficina foi com um dançarino de Butô,
para a descrição da importância desse encontro rendo-me a ausência das palavras, pois
não saberia fazê-las darem conta de traduzir a intensidade e a transformação que este
contato causou em mim.
Uma professora muito especial (que também possuía vínculos com a técnica de
Klauss Vianna), me propôs montar um número de dança que iria compor a mostra anual
de dança contemporânea que ela fazia com suas alunas. Na sala eu descobria novos
movimentos que todas aquelas aulas me ofereciam e mesclando-os aos antigos tentava
coreografá-los. Foi uma breve experiência de algo que mal sabia que seria vivenciado
tantas outras vezes. A resposta que tive foi suficiente para me dar ânimo e vontade de
repetir tudo aquilo várias vezes.
Ao final desse primeiro ano sem escola, troquei a ida a Recife e a participação em
uma primeira versão do novo espetáculo de meu pai por uma viagem ao Chile. Há pouco
tempo havia conhecido uma aluna do teatro, minha curiosidade diante da sua facilidade em
aprender os movimentos e o “jeitinho” daquelas danças me aproximou dela. Fazendo um
curso de danças juntas nos conhecemos um pouco mais e acabamos nessa aventurosa
viagem.
Fomos eu e Marina descendo por diversas cidades do sul e ouvíamos em cada uma
delas a mesma fala “tan chicas y solas?!”. Em uma delas, decidimos fazer um passeio de
subida a um vulcão ativo, na neve e sob muito vento, o instrutor explicou que, caso
escorregássemos, deveríamos primeiramente gritar e depois fincar na neve o instrumento
que levávamos à mão, só percebi que seria capaz de fazer tudo aquilo quando, ao primeiro
grande vento, eu, devido meu pouco peso escorreguei e pus tudo aquilo em prática. Foram
seis horas de subida em que senti muito, muito medo, e pensava a todo momento em
voltar, no entanto a chegada no topo e a visão da lava foi algo de uma beleza
esplendorosa, e a descida foi feita por uma espécie de tobogã de neve no qual apenas
sentávamos e íamos descendo velozmente sem perigo e medo algum. Tenho a sensação de
que essa viagem foi de certo modo um pequeno presságio de sensações que
experimentaríamos juntas.
No Brasil voltava às minhas aulas e começava a ensaiar para a segunda versão do
novo trabalho de meu pai, que comemorava os cem anos do frevo. Pensava em criar uma
coreografia que, adotando como base essa dança popular, fosse capaz de incorporar os
movimentos novos que meu corpo havia assimilado. Em minhas férias costumeiras em
Recife na casa de meus avós, me deparei com uma coleção de filmes de Fred Astaire e
Ginger Rogers: assisti com enorme prazer, sem imaginar que mais tarde aquelas histórias
e danças me serviriam de referência.
Durante o processo de elaboração da coreografia, experimentei um enorme prazer em
descobrir, desconstruir e reconstruir movimentos, divertia-me com as possibilidades
corporais que o ritmo e melodia me propunham. Ali, apesar de sozinha, me sentia muito
próxima daquele universo das brincadeiras que tanto havia presenciado. Mas também
condensava ali momentos que vivia em meu cotidiano: desgostos, irritações, alegrias e
euforias eram sentidos com grande intensidade.
Passei a perceber a necessidade que eu tinha daqueles momentos de ensaio e a cuidar
para que não os deixasse de fazer com frequência. Como toda primeira nova experiência,
esse espetáculo me marcou. Ouvi depoimentos que me foram muito preciosos, falavam-
me de coisas que intimamente buscava nos meus ensaios, mas que pensava não serem
visíveis, e com isso senti vontade de aprofundar algo que com gosto ia descobrindo.
A imagem plástica que de criança guardava das obras de Bispo do Rosário aguçava
agora minha curiosidade pela sua figura, e durante as viagens das apresentações li uma
linda biografia sua. A leitura me fez recordar não somente das imagens da infância como
de alguns princípios, revia ali o valor de uma simplicidade constantemente ameaçada pelo
esquecimento, e no entanto a cada aproximação eu tomava novamente consciência da
importância de sua dimensão.
A temporada deste espetáculo finalizou-se com a gravação de um DVD. Mais uma
vez a família aumentava, um grande amigo cineasta e meu pai se juntaram a para criação
de um cenário, ou melhor, de vários, diante dos quais com primos e amigos me
deslumbrei e me diverti muito. Em um encantamento juvenil, via-me rodeada de pessoas
incríveis e percebia a graça da soma de trabalhos. Assim como os outros, exigia de mim
mesma a melhor execução, no porem passei a sentir a saúde diferente, dores de cabeça,
excessivos frios na barriga, queda de pressão, eu com uma certa ingenuidade poética
atribuía tudo isso às emoções daquilo que vivia, só muito tempo depois, já com o fígado
bem ruim, vim a descobrir que em uma das viagens anteriores tinha pego uma verminose
perigosa e que a havia cultivado mais do que deveria...
Não só eu como toda a casa entusiasmava-se com a dança, e meu pai criava seu novo
espetáculo em que eu, minha mãe, meu primo, minha amiga Marina e mais quatro
dançarinos seríamos dirigidos por ele. Meu irmão faria a cenografia. Com uma grande
carga horária de ensaios, convivia muito tempo com pessoas muito queridas e isso me era
muito prazeroso, no entanto angustiava-me com a diminuição de minhas aulas e ensaios
sozinha. Meu pai tinha como intuito nesse trabalho aplicar seus extensos conhecimentos
de dança que há muito pesquisara, e eu sentia um grande anseio em testar tudo aquilo que
ia descobrindo. O processo de criação tornava-se um local de mescla entre seus estudos e
teorias e nossos anseios corporais. Muitas vezes essa união tornou-se difícil e conflituosa,
porém de grande enriquecimento a todos.
Sentia uma grande necessidade de testar e de certa forma sintetizar o que ia pensando
sobre dança. Em um momento bastante oportuno, uma pesquisadora de dança por quem
guardo um enorme carinho me propôs a montagem de um pequeno espetáculo. Optei
então por criar um espaço para apresentar as coreografias que tinha construído até ali.
Durante essa construção, eu, com minuciosa observação, ia destrinchando e limpando
cada gesto, ia revendo e ajustando cada movimento, curiosamente me dei conta de que este
processo se estendia para além de meu trabalho com o corpo e revia-me por completo.
Após a realização das apresentações, algo de muito forte me aconteceu: nossa casa
sofreu um assalto, e eu passava a sentir um grande medo do local em que morava. Tudo
convergia para as famosas faxinas da vida: o trabalho solo me fazia transformar meus
gestos e afazeres, o assalto exigia-me a mudança do solo, do abandono do lugar em que
tudo se originava. Fui então morar em um pequenino apartamento com uma amiga de uma
amiga.
Descobri rapidamente que havia tido uma grande sorte, a deliciosa companhia com
quem havia ido morar me oferecia grandes momentos de ótimas conversas, o tempo com
os cuidados de casa me fizeram descansar de um trabalho que passava a me consumir de
forma excessiva, troquei minhas práticas de danças sozinha por outras mais descontraídas
que aconteciam à noite junto aos amigos.
Após algum tempo, com tudo mais calmo, fui morar novamente na minha antiga casa.
Nessa época, as apresentações do espetáculo de dança encerravam-se, e, curiosamente, ao
seu término, cada um dos oito dançarinos passou a verticalizar um trabalho próprio. Eu
descobria uma enorme afinidade não só de temperamento como de ideias corporais com a
Marina, e decidimos nos juntar em uma cia. de dança. Paralelamente, surgia uma forte
vontade de entrar na faculdade de filosofia. À noite, ia ao cursinho e, de dia, junto com
minha amiga, nos inscrevíamos em inúmeros editais, íamos colocando no papel um pouco
do que sabíamos sobre nossa dança e muito do que desejávamos com ela.
Em uma noite de ansiosas buscas pelos resultados desses editais, recebi o alegre
telefonema de um amigo: ele também tinha tido seu projeto contemplado. Diferente do que
imaginávamos, passamos em um edital que não envolvia diretamente a prática de dança,
mas a experiência da escrita dos projetos nos havia feito perceber quão valioso era o
processo de escrita sobre algo que até então nunca havíamos tentado experimentar por
meio de palavras.
Dar início a um projeto de pesquisa teórica não nos distanciou de nossa pesquisa com
o corpo. Tomamos como ponto de partida aquilo que já vínhamos desenvolvendo com a
dança. O que seria isso exatamente é que fomos descobrir em uma das costumeiras férias
de Recife. Talvez por estarmos tão próximas de nossas referências ou – penso ser mais
provável – pelo descanso da cabeça e do corpo, é que fomos descobrir em uma gostosa
caminhada pela praia que queríamos falar sobre a brincadeira.
Assim como nas nossas práticas de dança, também no processo da escrita muitas
vezes sentimos falta de um “olhar de fora”, de alguém que nos orientasse em nossas
incursões dentro de algo tão pouco explorado. Foi então que a Marina sugeriu como
orientador seu antigo amigo e professor. Passamos a nos encontrar semanalmente, e
aquilo que eu pensava que seriam encontros densos para uma reflexão teórica sobre a
dança começaram a ser momentos que nos enriqueciam de saberes que permeavam a
dança e todos os demais aspectos de minha vida. E desses encontros veio por fim a
clareza de uma vontade de priorizar, também na escrita, aquilo que buscávamos
naturalmente na dança.
Maria Eugenia
UMA HISTORIA
Escrever [e dançar] é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu.
Como conseguirei saber do que nem ao menos sei? assim: como se me
lembrasse. Com um esforço de memória, como se eu nunca tivesse
nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em
carne viva.
Clarice Lispector
Vinte nove de janeiro de 1988 foi o dia em que eu nasci.
Tinha um ano e meio quando comecei a frequentar a escola. Não passei por muitas,
duas na verdade. Sempre me foi um lugar de bom proveito. Inegavelmente a instituição
escola toma grande parte da minha vida até então e nela pude ter a oportunidade de
experimentar brincadeiras, brigas, broncas, autoritarismos, conselhos, reivindicações,
besteiras, injustiças, boas conversas.
Dos primeiros anos de escola pouco me lembro, mas sempre tive notícias de algo
bastante lúdico, muito próximo do viver, muito próximo de mim. A única coisa que eu
realmente me lembro desse primeiro tempo de escola é de um barril de latão que, preso em
suas pontas, rodava se alguém corresse em cima dele – obviamente que para correr tinham
apoios para os dois braços –, e acho que tanta repetição do mesmo me embutiu a imagem
do latão girando embaixo dos meus pés, enlouquecidamente.
Se não na escola, em casa, na rua, na praia, na casa dos avós tudo era brincadeira.
Dentro de casa minha mãe resolveu marcar hora para uma nova atividade. Todos os
dias às quatro horas da tarde ela me tirava para dançar. Passávamos quase uma hora
brincando na sala de casa ao som de Louis Armstrong, que, segundo meus pais, eu
adorava, principalmente quando chegava “What a Wonderful World”. Afastávamos os
móveis para ter mais espaço e pronto, ao som da música, podia começar a dançar. Disso
eu não me lembro, são daquelas lembranças que tomam forma pelo relato alheio, mas
tenho minhas dúvidas de quem gostava mais daqueles momentos, se era eu ou se era ela.
De qualquer forma, vendo meu gosto por aquilo, ela quis me colocar em alguma escola de
dança. A primeira coisa que veio à cabeça foi o balé clássico. E foi assim que fui parar lá.
Tinha três anos.
Aquele lugar era bastante agitado. Lembro-me vagamente das meninas mais velhas
no vestiário aprontando-se para as aulas, todas elegantes com os cabelos impecáveis e as
famosas sapatilhas de ponta. Mais tarde soube que meu horário de entrada coincidia com a
saída não das alunas do estúdio, mas das bailarinas da companhia. Pouco lembro das
aulas, e pouco também da rigidez. Mas foi exatamente esse o motivo que fez minha mãe
desistir de minhas aulas lá, especialmente depois de um “pequeno” acidente. No meio de
uma aula, levei um tombo e cai sentada no chão, bati o cóccix. A professora colocou-me
em um canto da sala e eu fui dispensada de continuar, mas acontece que eu fiquei lá até o
horário terminar sem que ninguém fosse capaz de avisar meus pais. Quando minha mãe
chegou para me buscar, eu reclamei da dor e ela quis se informar com a professora que
apenas confirmou o acidente. Achando tudo aquilo absurdo, principalmente considerando
a minha idade, ela resolveu me tirar do estúdio. Tinham se passado dois anos.
Foi com esse estúdio que fiz minha primeira apresentação, foi a primeira vez que subi
em um palco. No Teatro Sergio Cardoso, fui um dos ratinhos da Cinderela. Lembro do
frio na barriga, lembro que errei alguma coisa na coreografia do queijo e lembro que
ganhei um buquê de flores no final.
Tive a sorte de ter crescido em uma vila. E em muitas conversas pude perceber que
isso afetou e muito os moldes da infância. Em uma cidade como São Paulo, poucos pais
ficariam tranquilos de deixar seus filhos brincarem na rua. Só depois de grande é que fui
perceber que na minha geração isso já não era algo comum. A rua como espaço de
acontecimentos e não apenas como passagem pode ser algo incrível. Ela nos dava tudo o
que era preciso: limites demarcados, portões para subir, muros para se esconder, postes
para se salvar, pedras para rabiscar e pessoas para brincar. Tinha uma menina escandalosa
e seu irmão mais velho; os dois irmãos que vinham passar as férias na casa da avó; a
garota calada da última casa; o menino mais engraçado que já conheci, que durante um ano
morou na casa de sua avó; a japonesinha adorável e muito amiga que morava na casa mais
pro fundo e seus dois irmão mais novos. Com esses e outros que iam e vinham
transformamos a rua no quintal de nossas casas. Lembro que em um grande evento
chegamos a desenhar no chão da rua inteira, com giz e pedra colorimos tudo. No dia
seguinte, a primeira coisa que eu quis fazer foi sair de casa para admirar mais um pouco,
mas o trabalho de um dia inteiro tinha durado só aquela noite.
Eu tinha crescido e o colégio tinha aumentado também. Os espaços eram maiores e os
brinquedos mais ainda, e se desse ou se não desse estava eu lá tentando subir mais alto.
Não sei como não me machuquei muito. Tive poucos acidentes graves e raros acidentes
pequenos. O mais sério deles foi quando cortei o pescoço subindo na traseira de um jipe
para conhecer a maior concha do mundo. Estava no condomínio da praia. Todos os
amigos e conhecidos de férias e feriados estavam lá para ver a maior concha do mundo.
Como para quase todos a janela por onde a veríamos era alta demais, cada um inventou
uma maneira de conseguir aumentar o seu tamanho. E eu inventei de subir no jipe, caí e
não sei em que bati, mas acabei com a brincadeira de todos. Foi uma correria. Meu pai
ouviu os gritos e no meio da minha corrida para casa ele me catou no colo e com seus
conhecimentos de primeiros socorros, devido ao brevê de piloto, ele enfiou o dedo no
corte para estancar o sangue. Minha mãe quis ver, mas quase desmaiou. Durante boa parte
do percurso para o hospital, ia pedindo para o meu pai não me deixar morrer, afinal um
corte no pescoço era definitivamente um sinônimo de morte. Foi a primeira e única vez
que levei pontos.
Até aqui a escola ainda continuava cumprindo seu nobre papel de “tempo livre”.
Tinha muitos amigos meninos, as brincadeiras eram mais dinâmicas, nunca fui das
bonecas. Aliás, como a grande maioria dos brinquedos que tive foram heranças das
gerações mais velhas da família, as bonecas que cheguei a olhar foram dessa leva também,
mais antigas que suas donas anteriores, uma vez que essas já tinham recebido de outras
gerações. Mas não ligava, não gostava de brincar de mãe, ou de amigo imaginário. O
único filho que cheguei a ter foi o cachorro que chegou novinho na casa da minha avó,
mas não durou muito tempo, ele pesava de mais e não parava quieto, desisti de ficar com
ele no colo e passei a correr com ele.
A praia e a casa dos avós no interior foram a outra parcela de sorte para a infância.
Foi nesses lugares que tive a oportunidade de brincar na água, na lama, na terra, no mato,
tomar alguns “caldos”, ficar com olho de peixe, pisar no formigueiro, pegar carrapato,
descer morro de grama, fazer guerra de mamona, construir castelo de areia, furar a lata de
leite condensado e tomar tudo junto com meu avô. E catar pedras. Tudo isso sempre fiz
acompanhada. Não tenho irmãos, mas sempre tive muitos amigos, e eles preencheram
todo o espaço que dizem que um irmão cumpre. Tudo isso menos catar pedras. Isso eu
fazia sozinha e ia guardando nos lugares mais seguros. Muitas vezes dava de presente e
sempre guardava porque as achava muito bonitas. O ápice foi quando meus pais foram
viajar e me trouxeram de presente pedras que quebravam. Era inacreditável. Quebrei uma,
quebrei duas e parei, tinha que guardar aquilo para a eternidade. Imagina, pedras que
quebram!
Saindo do balé, minha mãe soube da tia de um amigo meu que começava a dar aulas
de Laban para criança, e lá fomos nós, eu e mais três amigos, fazer a tal da aula.
Completamente o oposto do que eu havia experimentado no balé, as posturas não existiam
mais e o chão passou a existir não só para os pés. Não tinha certo e errado, a regra era
tentar não se machucar, e serviu para todos nós. Obviamente, nessa época, eu não tinha a
consciência de quem seria Rudolf Laban, talvez eu estivesse servindo de cobaia para
alguém fazer pesquisas, mas tanto fazia, aquele era mais um espaço para o encontro com
novas possibilidades de brincadeiras: um pano azul gigante, várias bolas de plástico e um
túnel de pano, dentre outras coisas que já fugiram da minha memória. Um ano depois, eu
tive de deixar de frequentar as aulas, pois minha mãe havia passado por uma cirurgia no
joelho e teve de ficar imobilizada. Passei todas as minhas férias na casa dos meus avós e
grande parte do tempo só com o meu pai.
Meu pai era meu amigo. Brincava de tudo. Tinha ótimas ideias. Quando aceitava
brincar com toda a turma da rua, era um sucesso, imagina uma pessoa daquele tamanho
correndo atrás de você no “elefantinho colorido”, era de dar medo, deixava tudo mais
emocionante. Eu cresci e ele cansou de correr.
Com meus pais frequentei muitos museus, livrarias e teatros. Mas para gostar de
museus tive um marco. Niki de Saint Phalle. Com nove anos, fui com a escola em uma
exposição da artista plástica na Pinacoteca do Estado, e suas obras abriram-me caminho
para realmente gostar das artes plásticas. Nessa fase, passei a frequentar aulas de desenho
durante alguns períodos de férias, mas foram poucos.
Na escola tinha começado a ter aulas de música. Geralmente essas coisas na escola
não costumam receber muita importância, infelizmente, mas neste caso foi diferente.
Tivemos aula com um maestro que botava a classe inteira para cantar os intervalos. Ele
nos acompanhou durante alguns anos, e depois dele as aulas de música só voltaram no
fim dos anos de colégio.
Na casa de uma das minhas tias avós, tinha um piano, e, como era de costume na
infância delas, quase todas tinham tomado aulas daquele instrumento e ensinaram-me,
uma delas em especial, o pouco que restava em sua memória. Ficava então atormentando
os ouvintes com as mesmas melodias, incansavelmente. Queria porque queria aprender a
tocar piano, mas, quando tive a oportunidade, já mais crescida, de fazer alguma aula
resolvi que queria violão, e o motivo era simples: queria um instrumento que eu pudesse
levar para todo lugar.
Lembro-me que desde muito cedo gostava de fazer “showzinhos”. Chamava a
vizinhança e às vezes até cobrar entrada eu cobrava. Nunca estava sozinha, os amigos
estavam ou apresentando junto ou cuidando de alguma outra coisa necessária para que o
espetáculo pudesse acontecer – fazer o figurino, ligar o som, ascender as luzes, cobrar a
entrada e etc. Tinha música, teatro e dança principalmente. Tudo depois de muito “ensaio”,
que podia durar o dia inteiro e culminar na apresentação. Na verdade, geralmente era
assim. Foram raras as vezes que a brincadeira durou mais do que um dia. O dia seguinte
era muito distante para gente continuar com a mesma vontade de repetir as mesmas coisas
e daí poder apresentar. Era tudo uma brincadeira. O dia seguinte, se fosse o caso, serviria
para aumentar o repertório de apresentações. Mas nem tudo era tão tranquilo. Nos
“ensaios”, muitas brigas aconteciam e a turma se dividia. A brincadeira tomava outros
rumos – o caminho era a discussão, e eu não me incomodava, gostava de umas brigas.
Com o passar do tempo, fui conhecendo o sentimento da vergonha e deixando de
fazer “showzinhos”, mas os ensaios nunca pararam. Junto com as amigas, passava as
tardes arrastando os móveis da sala e preparando coreografias.
Com os meus oito anos, quis fazer ginástica olímpica, hoje chamada de ginástica
artística. Nessa época, algo tinha acontecido na ginástica que a fez ter mais visibilidade na
mídia, minha mãe se informou e descobriu uma academia da qual a dona era uma
brasileira que tinha sido juíza nas competições internacionais. Entrei. Fiz um ano do que
eles chamam de “escolinha” para então entrar despretensiosamente no “treinamento”.
Durante quatro anos, dediquei-me intensamente a isso, minha vida se moldou para eu
conseguir treinar cinco horas por dia, seis vezes por semana. Ao mesmo tempo, inventei
que queria jogar handball na escola, e duas vezes por semana eu ia lá de noite para jogar.
Entre escola e treinos, ainda conseguia ter tempo para as festinhas, tardes com amigos e
algumas viagens. Mas a ginástica continuava sendo minha prioridade.
Por causa dela, tive meu segundo encontro com o balé, mas de uma maneira
completamente diferente. A aula era voltada para os movimentos que acompanhavam as
acrobacias, na trave de equilíbrio ou no solo. Todos os movimentos deveriam ser
executados com perfeição segundo as normas que regiam as competições. O balé servia
então como instrumento para se ter uma ponta de pé mais bonita, uma postura mais
elegante, um corpo alinhado.
De todos os aparelhos, o solo era o que eu mais gostava. Para além das acrobacias,
tinha a dança. Cada ginasta tinha sua música e sua coreografia, e de tempos em tempos
tínhamos que relembrá-la. Quando esse dia chegava, se pudesse, eu ficava fazendo só
aquilo, repetindo mil vezes a mesma coreografia. Como não podia, eu dava um jeito e
sempre fazia o dobro das vezes. Mais tarde, tive certeza de que a Maria Eugenia havia
frequentado a ginástica no mesmo período que eu, quando, em uma conversa sobre essas
lembranças, cantarolei a música que dançava, e seu irmão, que fazia a aula junto, me disse
que voltava da ginástica e ia tocar no piano a mesma música.
Comecei a competir, às vezes, em grandes estádios com público e torcida e às vezes
em pequenos espaços mal-equipados. Eram apresentações quase que sofridas. “Quase”
porque eu gostava, mas “sofridas” porque eram carregadas de nervosismo e ansiedade.
As competições duravam horas, tardes inteiras, mas lá estava a família e as amigas.
Para além do trabalho corporal acrobático, a ginástica exigia precisão, domínio,
concentração e disciplina. Errar era quase sinônimo de se machucar, e desistir era algo
quase inadmissível. Cheguei a levar tombos que assustaram quem viu, mas parece que ou
a gente vai acumulando sorte ou vai aprendendo a cair.
Com 13 anos, larguei a ginástica. Não porque quis. Na verdade, resolvi que tinha que
parar sem querer parar. Tinha descoberto que aquela quantidade de esforço físico,
especialmente quando coincidente com a época do estirão, prejudicava o crescimento. Não
tinha alternativa, mas ao mesmo tempo não queria deixar tudo aquilo. A solução foi
diminuir a quantidade de horas de treino. O que veio com isso foram as pressões externas
nos períodos pré-competições. Eu não queria mais competir, mas não tinha escolha. Até
que chegou o momento em que eu resolvi parar de vez.
Precisava então de algo que suprisse a falta que eu sentia de exercitar meu corpo. Foi
quando a mãe de uma amiga minha conheceu um teatro-escola escondido no fim de uma
rampa, num lugar onde antes parece ter sido uma fábrica de lustres. No começo de 2002,
eu e essa amiga começamos a fazer aulas de dança e percussão.
Paralelamente a isso, em outra escola, quis fazer aulas de violão e algum tempo
depois acabei me deparando com a gaita. No mesmo lugar, pulei de galho e comecei as
aulas do novo instrumento. Meu professor tinha uma ligação muito forte com o choro, o
que acabou me incentivando a conhecer melhor esse universo da música brasileira.
Três anos depois, parei a gaita, mas continuei a fazer as aulas de percussão no teatro-
escola. O professor tinha mudado, e a aula se focou em apenas um instrumento, o
pandeiro.
Comecei a frequentar as aulas desse teatro-escola não com o intuito de me
profissionalizar, mas para me divertir, junto com minha amiga, vendo a mãe dela dançar
de uma maneira muito peculiar. Acabei sendo pega de surpresa. Encantei-me com aquele
universo da cultura popular brasileira. Um universo tão próximo de nós, mas que
frequentemente desconhecemos. Aquela mesma descontração e espontaneidade que
haviam me levado àquele lugar, ali tomavam forma e se expressavam na dança, na música,
na festa, na aula. Ritmos que eu nunca tinha ouvido e passos que eu nunca tinha feito me
foram tão acolhedores que eu tinha vontade de repetir, repetir e repetir de novo. Esse
processo foi me trazendo a familiaridade com aqueles sons e movimentos, e logo eu podia
me divertir com eles.
No colégio, eu começava a ter aulas de capoeira. Nas rodas, com meu pequeno
tamanho, tive que buscar formas para atacar e me defender dos meninos amigos que na
época precisavam exibir suas habilidades botando os “oponentes” no chão. Aprendemos
os repertórios de golpes, toques e letras. Chegamos a ser batizados pelos mestres da
minha professora. Mas, mais do que uma luta, aprendemos a brincar com o outro em um
jogo de desafio e respeito.
As aulas de dança do colégio, nesse mesmo período, começaram, a pedidos e
iniciativas da minha série, a trabalhar as danças populares brasileiras. Como algo ali não
me convencia, ou não me animava a fazer, eu preferi continuar na capoeira pelos três anos
de colegial.
Neste momento, tivemos um professor que nos acompanhou do começo ao fim do
colegial e que ajudou a muitos de nós a fazer da escola o nosso espaço de encontro e de
reflexão. Ele que no primeiro dia de sua aula nos disse que escola significava “tempo
livre”. E o que fazíamos desse tempo? As aulas eram sempre inusitadas: eram filmes,
peças de teatro, gritarias, músicas, discussões, construções. Presentes. Ninguém tinha a
obrigação de ir, sem provas, nem chamadas, mas estávamos sempre em maioria na sala de
aula. Pude presenciar um exemplo do que deveria ser uma aula, de como os alunos
deveriam compartilhar da construção de um aprendizado. Pude presenciar o que seria a
aula de uma possível escola real.
Independente de qualquer coisa, o colégio foi o lugar onde me encontrei com pessoas
maravilhosas. De lá trago amizades que perduram. Com a maioria cresci junto. São
daquelas pessoas que não poderiam deixar de aparecer num texto como este. Pessoas com
as quais já brinquei em hospital, já montei um simulador de coração, já cantei, já discuti, já
pedi desculpas, já viajei, já vi a morte, já ri do tombo do outro, já pedi conselhos, já passei
numa república, já muitas coisas e outras mais que estão por vir. Delas e deles tive sempre
uma acolhida carinhosa.
Durante dois anos virei frequentadora assídua daquele teatro-escola. Fiz aulas,
oficinas, apresentações de fim de ano e fui a todas as festas. Entrei então em um grupo de
formação em danças brasileiras que estava sendo desenvolvido por alunos e amigos de lá
para durante dois anos pesquisar as danças populares e criar um espetáculo que seria
apresentado no próprio teatro. Foi uma ótima experiência na medida em que para além da
dança pude começar a me familiarizar com uma discussão mais abrangente sobre a riqueza
das manifestações populares e o que podemos criar a partir desses saberes. Éramos, no
começo, 25 pessoas, e eu, como na maioria das coisas que fiz na vida, era a caçula. O
curso tinha sido estruturado em módulos referentes a cada dança, como cavalo marinho,
caboclinho, frevo, “afro”, e teria a capoeira como base para o aquecimento e o preparo
físico. Junto a essa estrutura de trabalho corporal, um tempo tinha sido separado para
conversas e filmes sobre a dança e sobre o ser humano. O curso tinha uma intenção que ia
além do corpo e se propunha a reflexão.
Tive a oportunidade de fazer uma oficina que me marcou muito. Na época, não sabia
quem era Klauss Vianna, mas tinha, naqueles dias, experimentado um trabalho com
princípios de sua técnica. Partindo de apoios e pesos, chegamos ao improviso. O começo
foi difícil. Era tudo muito novo. Era preciso calma e concentração para acompanhar e fazer
parte do processo. O que me chamou a atenção foi que todo o trabalho daqueles dias me
acompanhou menos na dança, a principio, mas mais no meu dia a dia. As sensações que
havia experimentado voltavam constantemente à memória do corpo.
Depois daquela experiência fui ler o livro A Dança, escrito pelo próprio Klauss
Vianna, no qual me deparei com a passagem:
Acredito que o meu método de trabalho tenha começado a surgir
no momento em que vi meu filho nascer. Achei tão duro, tão
violento vê-lo nascendo e logo em seguida ser afastado da mãe...
De alguma forma percebi que ali começava a interromper-se o
fluxo natural das coisas, mas, por paradoxal que possa parecer,
era impossível conceber a vida e o próprio nascimento sem
qualquer violência.
Nesse momento, tornou-se claro que o mesmo processo ocorria
em nosso corpo, da superfície da pele até o sistema nervoso, num
movimento em que nascimento, vida e morte confundiam-se
como um jogo de forças ao mesmo tempo opostas e
complementares. Aí deveria residir a essência de qualquer
trabalho que propusesse recuperar a percepção da totalidade do
corpo e tornar consciente gestos até então mecanizados em nossa
prática cotidiana.
Ao acordar, ao sensibilizar uma dada articulação, adquiro mais
um ponto de equilíbrio em meu corpo, e isso acaba agindo sobre
todo o resto, inclusive sobre as coisas que aparentemente nada
têm a ver com músculos e articulações, como a atividade
intelectual (VIANNA, 2005).
No segundo ano do curso, tive meu segundo encontro com Laban. Também em uma
oficina, pude ter um contato rápido com seu método. Era tanta informação que fiquei com
a impressão de que era algo racional demais para mexer com o corpo. Mas ainda tenho
curiosidade para conhecer melhor seu modo de trabalho, penso que esse segundo contato
foi apenas um contato superficial.
Nesse meio tempo, uma cia., da qual uma das professoras do nosso grupo fazia parte,
me convidou para participar de algumas apresentações que fariam no Centro Cultural São
Paulo. Topei na hora. A apresentação era uma aula espetáculo sobre algumas danças
populares brasileiras e principalmente as histórias, características e movimentos dos
orixás. Não sabia nem por onde começava a me maquiar. Aprendi com uma das meninas
que apresentava também. No primeiro dia, ela me maquiou, no segundo ela ia indicando a
ordem dos produtos e deu os retoques finais, no terceiro, eu fiz tudo sozinha. Para quem
nunca havia se maquiado, ter que “pesar a mão” para fazer uma maquiagem para o palco
não foi nada fácil.
A escola, que nessa fase já tinha perdido seu nobre espaço de “tempo livre”, ia nos
enquadrando cada vez mais para os moldes dos famosos vestibulares. E nós queríamos.
Queríamos passar o mais rápido possível em uma faculdade para não precisar passar pelas
aulas de um cursinho. Eu pelo menos não. Mas ao mesmo tempo era incômoda aquela
maneira de ensinar e aprender que tinha ficado tão distante de tudo o que vivíamos. A vida
parecia ter se resumido a fórmulas matemáticas ou fórmulas de análise que nem parecia
mais que falávamos de nós. Foi terminando essa fase que li Guimarães Rosa. E com ele
chorei pela primeira e única vez até agora nas páginas de um livro. Era Miguilim.
A reza não esbarrava. Uma hora o Dito chamou Miguilim, queria
ficar com Miguilim sozinho. Quase que ele não podia mais falar.
“– Miguilim, e você não contou a história da Cuca Pingo-de-
Ouro...” “– Mas eu não posso, Dito, mesmo não posso! Eu gosto
de mais dela, estes dias todos...” Como é que podia inventar a
estória? Miguilim soluçava. “– Faz mal não, Miguilim, mesmo
ceguinha mesmo, ela há de me reconhecer...” “– No Céu, Dito?
No Céu?!” – e Miguilim desengolia da garganta um desespero. “–
Chora não, Miguilim, de quem eu gosto mais, junto com mãe, é
de você...” E o Dito também não conseguia mais falar direito, os
dentes dele teimavam em ficar encostados, a boca mal abria, mas
mesmo assim ele forcejou e disse tudo: “– Miguilim, Miguilim,
vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode
ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que
acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais
alegre, mais alegre, por dentro!...” E o Dito quis rir para
Miguilim. Mas Miguilim chorava aos gritos, sufocava, os outros
vieram, puxaram Miguilim de lá.
Guimarães mudou meu ler. Havia descoberto que palavras no papel podem ser mais
do que isso. Li nele as frases mais bonitas.
As apresentações resultantes dos dois anos do curso de formação coincidiram com a
época que eu deveria decidir a faculdade que gostaria de fazer. Optei por ciências sociais.
Não me interessava pela academia, interessava-me pelo estudo e pelos três pilares do
curso: política, sociologia e antropologia. A dança, nesta época, não estava tão clara para
mim como uma opção que devesse entrar no meio acadêmico, aliás, eu acreditava que as
linguagens artísticas não deveriam estar dentro das universidades, achava pretensioso
demais, ou enganoso de mais, ter um diploma de artista. Mas hoje, terminando minha
faculdade, vejo que enganoso é se considerar formado em qualquer coisa.
Do grupo de formação em danças brasileiras nasceram duas iniciativas. Na qual
resolvi continuar, estava sendo formado um grupo de sete dançarinos, em sua maioria
professores do teatro-escola, que dali a um ano estaria apresentando o espetáculo Passo.
A brincadeira tinha tomado proporções inimagináveis, e eu estava tendo a
oportunidade de seguir em frente com ela.
Foi nesse momento que resolvi mergulhar de vez na dança. E foi aí também que fui
ver, pela primeira vez, como essas danças aconteciam nos seus contextos originários. Em
uma viagem para Pernambuco, tive a oportunidade de ir a ensaios e festas de algumas das
manifestações populares que ocorrem lá. E percebi o tamanho da falta que sentia daquilo...
de ver por mim mesma como acontecia tudo aquilo que eles chamam de brincadeira. Não
tinha vontade de fazer nada, só olhar. Era lindo ver o que aquelas brincadeiras
representavam como uma organização espontânea do coletivo que foi capaz de costurar
gerações e demonstrar a vitalidade de tantas pessoas. Aqueles corpos que atentos em suas
distrações propunham movimentos dos mais inusitados e maravilhosos. Era impossível
ver aquilo fora dali, mas vi que era possível viver aquela energia de forma diferente como
diferente eram nossas vidas e nossas histórias para contar. O “espírito” de festa que vi ali
era o mesmo que havia me encantado nas aulas que eu tinha feito no teatro-escola, o que
mudavam eram os contextos. Para deixar de olhar e aceitar ir embora, era sempre difícil.
Saí sempre com um gostinho de quero mais.
Não desisti da faculdade porque de uma maneira ou de outra ela me completava, e me
completa. Os horários ficaram apertados e a certo momento não conseguia mais dar conta
das leituras como eu gostaria. Agora, me aproximando do fim do curso, sinto falta de tê-lo
aproveitado melhor, mas não me arrependo. Sei que aproveitei o máximo que consegui.
Encontrei-me com textos e discussões que sabendo agora teria sido uma pena não
conhecê-los.
Mas fato é que a dança dominou meus interesses, ao mesmo tempo em que procurei
aprofundar a discussão que havia se iniciado, para mim, no curso de formação.
Antes de iniciar o trabalho, nas férias que separaram o colégio da faculdade, a dança
como passatempo e a dança não apenas como passatempo, fui viajar com uma amiga, a
Maria Eugenia, que um pouco depois se tornou minha parceira no trabalho. Tinha acabado
de fazer 18 anos. Foram 20 dias viajando e conhecendo pessoas maravilhosas. Lá tive
uma das experiências mais bonitas da minha vida; depois de uma caminhada de seis horas
subindo o vulcão Villa Rica, vi lava. A sensação foi daquelas que dizem ser indescritível.
E ainda ganhamos uma descida escorregando vulcão abaixo – sim, detalhe, ele estava
coberto de gelo.
O Passo começou.
Tive então meu terceiro encontro com o balé. No início de alguns dos dias de ensaio,
tínhamos um balé mais preocupado com a consciência corporal do que com o alfabeto
próprio daquele universo. Por ele não nos interessávamos. O que importava era
exatamente as possibilidades estruturais que o balé já tem formalizado e que poderiam nos
auxiliar no trabalho com um outro alfabeto qualquer. Queríamos os princípios e não as
formas.
A base do desenvolvimento coreográfico eram os passos e procedimentos
provenientes das danças populares brasileiras. Dentre sua vastidão trabalhamos com
frevo, cavalo marinho, batuque de umbigada, samba de parelha, coco de zambê, maracatu
rural, capoeira, caboclinho e nos deparamos com várias dificuldades. A maioria
relacionada à metodologia de trabalho.
As primeiras apresentações foram feitas nos CEUs (Centro de Educação Unificada).
Nos deparamos com todo tipo de público, e com um espetáculo que ainda não condizia
com nossos anseios. A estreia tinha sido marcada para dali a poucos meses no Sesc Vila
Mariana. Era março de 2008.
Pouco antes do que viria a ser nossa última apresentação, meu pai passou por sérios
problemas de saúde e teve de ficar internado durante quase um mês. Deparei-me então
com a vida frágil, fácil de se desestruturar. Fiz a última apresentação com dor nas costas,
um frio horrível, um choro constantemente contido e o pensamento sempre apreensivo por
notícias do hospital. Foi a primeira vez que cai em cena.
A coisa mais injusta sobre a vida é como ela termina. Eu acho que o verdadeiro ciclo da
vida está todo de trás para frente. Nós deveríamos morrer primeiro, nos livrar logo
disso. Daí viver num asilo, até ser chutado pra fora de lá por estar muito novo, ganhar
um relógio de ouro e ir trabalhar. Então você trabalha quarenta anos até ficar novo o
bastante para poder aproveitar a sua aposentadoria. Aí curte tudo, bebe bastante álcool,
faz festas e se prepara para a faculdade. Vai para o colégio, tem várias namoradas, vira
criança, não tem nenhuma responsabilidade, se torna um bebezinho de colo, volta pro
útero da mãe, passa seus últimos nove meses de vida flutuando, e termina tudo num
grande orgasmo. Não seria perfeito? (Charles Chaplin).
A vida, por sorte, não tinha terminado. Toda a família teve de recomeçar.
Com aquele Passo, eu e, ouso dizer, os outros, caminhamos individualmente. Para
concordar ou discordar do que fizemos naqueles dois anos, nada foi em vão. De lá todos
saíram com projetos encaminhados.
Foi então que eu e outra dançarina do grupo, Maria Eugenia, decidimos continuar a
caminhar juntas.
Participamos de algumas aulas espetáculos nas quais ouvimos repetidamente um
discurso sobre uma nova dança. Uma dança que, independente do discurso, é a dança que
fazemos, é a brincadeira que compartilhamos.
Pelo mesmo teatro-escola, também tive a oportunidade de participar de um curso de
formação de gestores culturais dado a todas as instituições finalistas e semifinalistas do
Prêmio Cultura Viva, do Ministério da Cultura. Em três encontros, discutimos a cultura, o
governo, os projetos, mas mais do que nas atividades propostas a riqueza dessa
experiência esteve no encontro e nas conversas descompromissadas. Muita gente bacana.
Tudo isso me mobilizou a pensar a arte e o fazer artístico como meio de transformação.
Durante o período de escola, cheguei a participar de alguns projetos sociais, mas
nunca me identifiquei de verdade com nenhum deles. Tenho vontade de criar um projeto
que me permita unir as duas coisas. Sinto dificuldade em enxergar como o meu fazer
poderia modificar diretamente o outro que me assiste ou que compartilha comigo daquele
momento – no caso de uma apresentação.
O canal do sensível pode ser despertado naquele instante, mas para que disso surja
algo efetivo e prático, por pequeno que seja, na vida do outro, penso que é um percurso
muito longo. Por que então não pensar em utilizar no dia a dia de um projeto essa potência
que a arte pode proporcionar, para que a partir disso sejamos capazes de fazer algo para
mudar um status quo que tanto inquieta? Me inquieta. Mas ainda não sei como fazer isso.
Almejando construir um caminho na dança, começamos a desenvolver um projeto
juntas e passamos a nos inscrever em editais. Foi, então, que surgiu esta oportunidade. O
primeiro projeto que ganhamos.
Escrever era o mais novo desafio.
Dar início a um projeto de pesquisa teórica não nos distanciou de nossa pesquisa com
o corpo. Tomamos como ponto de partida aquilo que já vínhamos desenvolvendo com a
dança. O que seria isso exatamente é o que fomos descobrir em uma das costumeiras
férias em Recife. Talvez por estarmos tão próximas de nossas referências, ou, talvez –
penso ser mais provável –, pelo descanso da cabeça e do corpo, é que fomos descobrir em
uma gostosa caminhada pela praia que queríamos falar sobre a brincadeira.
Assim como nas nossas práticas de dança, também no processo da escrita muitas
vezes sentimos falta de um “olhar de fora”, de alguém que nos orientasse em nossas
incursões dentro de algo tão pouco explorado. Foi então que sugeri como orientador meu
antigo amigo e professor. Passamos a nos encontrar semanalmente, e aquilo que eu
pensava que seriam encontros densos para uma reflexão teórica sobre a dança começaram
a ser momentos que nos enriqueciam de saberes que permeavam a dança e todos os
demais aspectos de minha vida. E desses encontros veio por fim a clareza de uma vontade
de priorizar, também na escrita, aquilo que buscávamos naturalmente na dança.
Marina
CONVERSAS
INTRODUÇÃO
Com os dançarinos com os quais conversamos, buscamos refletir sobre as
experiências pessoais, as buscas, os objetivos, as faltas. Elaboramos três perguntas que de
algum modo lidavam com questões muito presentes em nossa pesquisa.
1) Por que a opção pela dança em sua vida e por que acha que ela é a melhor
maneira de transmitir o que deseja?
2) Existe uma inquietação comum, uma busca que se faz presente em todos os
seus trabalhos, ou cada trabalho possui uma inquietação particular?
3) Você, como público, sente falta de alguma coisa nos espetáculos de dança?
Por meio dessas questões esperávamos dar início e nortear as conversas, tentando
trazer, a partir delas, as diversas e muitas vezes inusitadas questões que pudessem
aparecer.
Algumas conversas foram gravadas na boa e velha fita cassete, outras foram feitas
pelo meio virtual. Algumas longas outras curtas.
Daniel Fagundes, Helder Vasconcelos, Julia Rocha e Susana Yamauchi são
aqueles dançarinos que participaram das conversas e aos quais devemos nossos
agradecimentos pela disponibilidade.
Essas conversas, muito prazerosas e enriquecedoras, nos propiciaram novas
reflexões e nos ajudaram a organizar as que já tínhamos. A partir das gravações, tomamos
a liberdade de utilizar as falas e dissertar sobre algumas questões:
- Relação música e dança e a criação de movimentos
- O improviso
- O “contemporâneo” e o “tradicional”
- A técnica
RELAÇÃO MÚSICA E DANÇA E A CRIAÇÃO DE MOVIMENTOS
Um dos dançarinos com quem conversamos e que já possui um longo e
aprofundado trabalho com as danças populares brasileiras chamou a nossa atenção para a
simplicidade com que se dá a relação entre música e dança. Ela acontece da forma mais
“óbvia” e mais interligada possível. Parece que a música se faz para a dança e a dança se
alimenta da música. Muitas vezes a sonoridade percussiva de um passo é idêntica à batida
rítmica de um dos instrumentos.
É comum que o ritmo dite a elaboração dos movimentos, no entanto, essa relação
também pode se dar através da melodia, como acontece com o Frevo. Os instrumentos
melódicos propõem movimentações que envolvem o corpo como um todo. Quanto mais
braços, troncos e pernas seguem os instrumentos, obedecendo às pausas, acelerações e
intensidades, maior é o encanto para quem assiste.
Embora a relação entre som e movimento aconteça de forma evidente, notamos
que, sem deixar de seguir a música, a dança vai se tornando cada vez mais complexa. As
batidas rítmicas dos pés tornam-se velozes e ágeis, os movimentos corporais do Frevo
ganham virtuosismo.
Diferente do que poderíamos pensar, essa “obediência” à cadência da música não
restringe nem limita as possibilidades corporais, muito pelo contrário, o fato de existir
uma ordem à qual o corpo é inicialmente submetido faz com que haja uma “verticalização
dos movimentos”. É como se os passos, justamente por terem que se desenvolver dentro
de certas leis, fossem tornando-se mais complexos. Por exemplo, existem trupés que
acompanham a simples célula rítmica do Cavalo Marinho, mas, conforme a dança foi se
desenvolvendo, essas mesmas trupés passaram a compor movimentos que, embora não
estivessem fora do ritmo, eram executados de forma muito mais complexa e rebuscada.
Associamos isso a uma possível forma de se trabalhar com cada dança popular específica.
Experimentando essa maneira, certa vez, trabalhamos com o “toque de guerra”, um
dos ritmos do Caboclinho. Notamos características comuns a todos os passos:
movimentos que parecem sempre seguir um trajeto reto; direções muito bem-
estabelecidas; e pernas que se desdobram em movimentos ágeis e precisos. A partir da
identificação das especificidades dessa dança, passamos a criar novos movimentos que
obrigatoriamente seguiam esses padrões, explícitos, mais uma vez tanto na dança como na
música. Surgiram então passos que já não faziam parte da dança “tradicional” do
caboclinho. Estes eram movimentos corporais novos que poderiam ser executados em
diferentes músicas e ritmos, e que, no entanto, só surgiram em decorrência de uma
delimitação inicial.
O IMPROVISO
Em uma outra conversa surgiu como tema o estar em cena. Diferente de nós, a
maioria daqueles com quem conversamos trabalham, sobretudo, a partir da improvisação.
Percebemos a partir dos relatos que uma cena improvisada traz como “desafio
sedutor” um estado de permanente atenção. O desafio está em manter o corpo aberto à
“escuta” de uma série de fatores que muda de acordo com a ocasião, as condições físicas,
o som, o estado pessoal dos dançarinos, enfim, diversas interferências que conseguem
impactar de maneiras distintas no corpo de cada dançarino. O que é sedutor são as
novidades corporais que podem surgir como resposta.
Quando trabalhamos na elaboração cênica de uma dança, criamos uma espécie de
partitura coreográfica. Determinamos uma sequência de movimentos que pode inclusive
conter pequenos movimentos improvisados. No entanto, seguimos essa partitura que pode
ser repetida a partir de diferentes pontos.
Ambas, tanto improviso como coreografia, porém possuem o risco de se fixar em
uma comodidade corporal. Uma improvisação pode facilmente repetir um mesmo recurso
em diferentes situações, e o que em um momento surgiu de modo espontâneo e
inesperado pode tornar-se uma saída, uma fuga na repetição. Evidentemente, a reutilização
de um mesmo procedimento retira dele seu principal fundamento: a novidade. Na
coreografia, isso se torna igualmente perigoso. Na medida em que os passos seguintes se
tornam previsíveis, o ato de estabelecer um caminho pode favorecer uma comodidade
corporal e terminar por desvitalizar o corpo.
Curiosamente no mesmo diálogo conversamos sobre a falta de técnica notada nos
espetáculos de dança. Embora compreendêssemos a técnica de maneiras distintas,
percebemos que tanto nós quanto nossos entrevistados sentíamos falta de um mesmo
aspecto.
Dois depoimentos chamaram especialmente nossa atenção: um relacionado a uma
falta de “vitalidade das danças”, e outro referente à dança performada em cena que, em
alguns casos, parece ser menos interessante que a dança fora dela.
Essa falta de vitalidade que é notada em cena, desaparece em uma dança
“descompromissada”, é o mesmo aspecto que tratamos acima como “desvitalizador” tanto
do improviso quanto da coreografia.
Um recurso que usamos para tentar sustentar esse vigor e conservar na ação do
palco uma vitalidade que nos coloque em permanente estado de prontidão consiste em
buscar no ato da criação e em cena tanto prazer quanto concentração e rigor. Percebemos
que as referências que tínhamos desses aspectos resultavam de nossas experiências com
as brincadeiras e do equilíbrio desses fatores que nelas encontramos.
O “CONTEMPORÂNEO” E O “TRADICIONAL”
Ouvimos um depoimento bem interessante sobre a questão do “contemporâneo” e
do “tradicional”, e queríamos relatá-lo.
“A compreensão que eu tenho do fazer contemporâneo é o particular, o que só
você pode dizer, o que só você pode fazer. E que de tão particular chega no geral, no mais
humano” (informação verbal). O contemporâneo como um contexto no qual a expressão
do particular se faz mais presente. Já
"o “tradicional” é algo extremamente coletivo, não existe “Eu
inventei o mestre Ambrosio”, ou “Eu inventei a Velha do
Bambu” (figuras da brincadeira do Cavalo-Marinho). Essa
necessidade não existe no coletivo, quem inventou, que assinatura
é essa, existe uma necessidade que está em um coletivo, embora
atenda muitas necessidades particulares."
Ambos os casos se encontram no mesmo ponto: “Atender as necessidades
humanas. (...) só que em contextos e de formas diferentes”³. E tanto no coletivo como no
particular o ponto comum parece ser revelar o humano de infinitas formas distintas.
Através dessa visão entendemos que os passos, os princípios, os significados e o
simbolismo presentes nas brincadeiras não se restringem a uma forma ou a um contexto
específico, mas podem estar presentes tanto numa construção artística quanto num
trabalho de ordem pedagógica.
A TÉCNICA
Um ponto que surgiu logo na primeira conversa que tivemos foi a questão da
técnica. Ela apareceu, a princípio, como aquilo que os entrevistados sentiam falta nos
espetáculos de dança. Surpreendemo-nos uma vez que a técnica parecia ser, para nós,
aquilo que geralmente saltava aos olhos. Várias vezes saímos de espetáculos com o
seguinte comentário: “Não gostei muito, mas eles têm um domínio técnico incrível dos
movimentos”. O incômodo deles era causado exatamente pela falta desse domínio.
"A produção da dança contemporânea fica nessa coisa de corpo
híbrido, vários treinamentos corporais, aí você olha, a pessoa não
tem domínio não só do corpo, mas de tempo e espaço, não tem
dinâmica, não tem tônus, não tem vigor. (...) aí que entra a técnica
para te auxiliar, ela vai te dando limites, parâmetros, recursos."
Segundo o verbete do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, “Técnica – 1. A
parte material ou o conjunto de processos de uma arte. 2. Maneira, jeito, ou habilidade
especial de executar ou fazer algo”.
Entendendo técnica como um trajeto para o domínio do movimento, acreditamos
que ele envolve um conjunto de processos que vai desde a construção de uma estrutura
corporal até uma metodologia de trabalho que tenha como objetivo o aprimoramento da
movimentação.
Nosso trabalho inicial com as danças populares foi assimilar os movimentos
específicos das brincadeiras, os chamados passos. Fomos percebendo que toda essa
variedade de passos oferecia-nos possibilidades corporais que se estendiam para além da
execução de suas formas. A dança dos Caboclinhos, por exemplo, exige uma grande
atenção às direções; os batuques possibilitam maneiras diferentes de trabalhar com o peso;
o frevo nos mostra inúmeras maneiras de torções, enfim, poderíamos dar diversos
exemplos de como as movimentações dessas danças ampliam nossos recursos corporais e
nos permitem utilizá-las em contextos outros que não os das brincadeiras.
Acreditamos que as possibilidades corporais que exemplificamos acima são
procedimentos e recursos que transcendem os limites das próprias danças populares. Por
isso, uma vertente dos nossos esforços está voltada para a construção de um método de
trabalho que possibilite o desenvolvimento dessas possibilidades independentemente das
formas, dos passos e das danças em que estão inseridos. E, numa via de mão dupla, como
eles podem ser usados para romper com os limites dos passos, ampliando as
possibilidades de movimentações.
Embora esse método esteja ainda em elaboração, notamos que, nos trabalhos de
construção coreográfica, ele já tenta dar conta de processos que eram interpretados
intuitiva e desordenadamente. A construção dessa metodologia seria então uma tentativa
de organizar esses processos de execução dos passos, de trabalho com diversos
procedimentos e de reelaboração das formas buscando assim construir o que seria uma
constante de trabalho para o aprimoramento e o domínio do movimento.
O cuidado estaria na elaboração de uma metodologia que não desperdiçasse esse
estado “brincante” apreendido com as brincadeiras.
BRINCADEIRA
INTRODUÇÃO
Percebemos que, apesar de distintas, todas aquelas questões levantadas em nossos
diálogos remetiam sempre às nossas referências: as brincadeiras.
Seria então inevitável relatarmos mais detalhadamente de que maneira elas se
configuram como aspecto de pesquisa. Para que fiquem mais evidentes os diversos temas
abordados, separamos cada um deles em subtítulos:
- Repetição
- Corpo comum e corpo particular
- O equilíbrio dentro da brincadeira e o estado de prontidão
- As brincadeiras e a vida
- Arredondando...
REPETIÇÃO
Diversas manifestações populares no Brasil são denominadas por seus
participantes de brincadeiras, e eles, por decorrência – ou causa –, de brincantes. As
brincadeiras envolvem diversas linguagens artísticas como poesia, artes plásticas, teatro,
música e dança. E foi por meio da aprendizagem das várias danças que penetramos nesse
universo.
Sempre nos fascinamos pelo contexto que envolve cada uma dessas danças, pelo
comprometimento e pela despretensão, pela seriedade e pela festividade, pela manutenção
de uma estrutura de passos e de uma sequência de cenas e pela novidade criativa trazida na
exibição particular de cada brincante. Essa composição equilibrada de concentração e
divertimento nos parecia algo muito especial, que se refletia no corpo dos brincantes em
uma prontidão e um prazer tão verdadeiros que a dança que faziam seria bonita
independentemente da forma de seus passos. Portanto, assim como as diversas
características das formas nos ofereciam uma referência corporal, a brincadeira e a
maneira do brincante se relacionar com seu corpo e com seu entorno tornaram-se também
uma referência. E é sobre ela que gostaríamos de falar.
Quando dizemos ter como referência principal as brincadeiras populares, estamos
falando também de um processo de aprendizado que se dá pela repetição. Um brincante,
geralmente, aprende a dançar quando criança e, envolvido pelo contexto da festa, é
seduzido não por um imperativo e racional, em virtude da qual a aprendizagem da dança
tenha algum fim pragmático, mas pela simples vontade de participar daquilo que o seduz.
O movimento, embora não inventado por ele, ganha em seu corpo características
particulares.
Não existem o “certo” e o “errado”, existem o diferente e as possibilidades que
permitem a execução de movimentos particulares que correspondem a um ato espontâneo.
Dentro das regras de cada brincadeira, que lida com limites definidos, a criatividade
parece tomar forma.
Tais regras referem-se a um conjunto de características específicas que está
relacionado tanto aos passos como ao ritmo da música e à ordem dos fatos que irão se
encadear do começo ao fim da experiência.
Cada brincadeira possui a mesma estrutura, que, em sua especificidade, se repete.
Passos, música e sequência de acontecimentos sempre irão existir de formas distintas,
criando assim a “personalidade” de cada uma. A repetição mantém essa identidade visível.
O processo de aprendizado dado pela repetição também permite uma assimilação
consistente e uma familiarização com os movimentos, o que nos parece necessário para
possibilitar uma brincadeira com o corpo que leve à recriação daquele alfabeto.
Por recriação entendemos não só modificações propositais feitas nos passos, mas
a maneira particular com que cada brincante os executa. São invenções ou trejeitos que
trazem a novidade.
* * *
Para iniciar esta pesquisa, passamos alguns meses experimentando retomar o
vocabulário que havíamos aprendido com cada brincadeira. Passamos pelo Frevo,
Caboclinho, Batuque de Umbigada, Maracatu Rural, Capoeira, Cavalo Marinho e Samba
de Parelha. Nessa experiência, retomamos o processo de repetição e verificamos, de um
modo prático, a validade da hipótese sobre a sua importância no aprendizado dessas
danças. Retomando e repetindo os passos, fomos nos sentindo cada vez mais confortáveis
e instigadas a acrescentar algo de novo naquelas estruturas. Sem pensar em mecanismos
para essa reelaboração, fomos deixando que a brincadeira do corpo nos sugerisse novas
formas. E dessa brincadeira surgiram ideias que mais tarde nos foram muito úteis em
processos de criação.
Refletindo sobre essa experiência, perguntamo-nos por que nós, quando nos
apropriamos desse alfabeto popular e recriamos em cima dele, dizemos que aquele novo
passo não pertence especificamente a nenhuma das danças, mas quando os brincantes
inovam os antigos passos, esses continuam dentro do vocabulário da manifestação. Uma
possível resposta a isso está ligada ao objetivo final de cada um.
A nossa finalidade não é a de se ater exclusivamente a uma ou outra brincadeira
popular, mas aprender dela um amplo conjunto de movimentos e procedimentos
coreográficos capazes de nos fazer lidar com o corpo e seu entorno, e que nos torne
capazes de expressar o que queremos. Já os brincantes parecem querer ampliar somente o
universo da própria brincadeira na qual estão inseridos.
Outra possibilidade de responder a esta questão é uma observação sobre os
diferentes contextos nos quais acontecem as recriações. A recriação do brincante está
dentro do contexto da própria manifestação popular, a nossa está dentro do contexto da
criação e elaboração de cenas para o palco. Para ambas as hipóteses, é importante enfatizar
que a recriação dos brincantes é o ouro das brincadeiras, é a expressão visível de que as
manifestações populares não são algo fixo e imutável, mas, pelo contrário, são expressões
vivas de um coletivo que é composto por diversos particulares ativos e que se move e se
transforma no tempo.
CORPO COMUM E PARTICULAR
As brincadeiras revelam um universo compartilhado também por crianças, essas
às assistem, deslumbram-se e muitas vezes participam.
"Muito menino brasileiro deve ter tido como primeiro herói não
um doutor branco, um oficial da marinha ou advogado, mas um
acrobata escravo que viu dar piruetas no circo e no bumba-meu-
boi no engenho, ou um trompetista negro ou
flautista." (MURPHY, 2008).
O envolvimento com o contexto da festa as fazem participar de diversas maneiras,
e uma delas é repetindo aquilo que assistem. Não raro vimos nos ensaios de Maracatu
Nação crianças muito pequenas sentadas no chão e nele batendo com dois gravetos
procurando repetir o gesto feito pelos mais velhos no tambor. Isso também ocorre com a
dança, o movimento, ainda que não inventado por ela, ganha em seu corpo características
particulares.
Ao assistir a uma brincadeira, temos muitas vezes a possibilidade de ver um
mesmo passo acontecendo em corpos de diferentes idades, crianças muito pequenas,
adolescentes, adultos e velhos. É possível notar que no momento em que adentram no
universo dessas danças as crianças as percebem de acordo com seu olhar específico. A
maneira como as introjetam corresponde a esse olhar, os movimentos serão executados
buscando um modo confortável e prazeroso de acontecerem em seus corpos. Para tanto,
precisam estar ajustados à sua conformação física particular.
Os trejeitos e as peculiaridades infantis são verticalizados ao longo de seu
desenvolvimento artístico. Isso resulta tanto em uma particularidade exclusiva a cada
brincante quanto em uma permanência de gestos e características de um corpo de criança.
Observamos portanto que tanto a criança ao dançar reproduz em seu corpo gestos que
observamos nos dançarinos mais velhos, quanto na dança dos mais velhos é claramente
notada uma maneira de dançar que foi mantida desde sua infância.
O universo da brincadeira perpetua-se de diferentes formas, pelas diversas
gerações.
São corpos que carregam ao mesmo tempo um aprendizado comum a todos,
como: os passos, as músicas; a cronologia do desenrolar da brincadeira; o suingue, ou
melhor, o sotaque daquela brincadeira, e a novidade que o fazer de cada um traz. É um
corpo coletivo e ao mesmo tempo particular. E, mais do que isso, é um coletivo que
compartilha também suas criações para além de um aprendizado comum, ou seja, não
existem autores. Não se sabe quem criou o passo, a música ou a figura, mas não importa,
são na verdade criações da brincadeira exibidas no particular de cada brincante.
A finalidade do brincar, portanto reside em si mesmo. Sua “ação”, a princípio, não
produz nada em termos materiais, não tem um fim exterior individualista que possa ser
apropriado por outros, mas suas características permitem que o homem desfrute, naquele
momento espontâneo, uma ação prazerosa por si própria.
A nosso ver, esse jogo entre coletivo e particular, um sustentando o outro, explica
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  • 1. PROJETO MIRA : Estudos de uma pesquisa em dança Maria Eugenia Almeida e Marina Abib Orientador: Adriano Bechara São Paulo 2009 "Projeto realizado com o apoio do Governo do Estado de São Paulo, Secretaria de Estado da Cultura - Programa de Ação Cultural de 2008."
  • 2. INTRODUÇÃO GERAL A realização desta monografia foi para nós duas uma maneira de relatar um trabalho corporal que tem como base as manifestações populares brasileiras. Logo no inicio da pesquisa, em uma das primeiras conversas que tivemos em uma deliciosa caminhada, tentamos definir o tema. Ele surgiu rapidamente. Queríamos falar sobre aquilo que movia o nosso trabalho, aquilo que dava tanta força às nossas referências de movimentos, de sua estética, de seu universo simbólico. Queríamos falar sobre o que sentíamos falta, enfim, sobre a brincadeira. Brincadeiras como aquelas que tínhamos aprendido e que se tornaram tão presentes em nossas vidas. A partir da dança queríamos experimentar aquilo que os brincantes chamam de brincadeira. Talvez seja necessário esclarecer o sentido particular com que a palavra brincadeira é compreendida nessa monografia. Brincadeira é o nome dado pelos próprios participantes a certas manifestações populares do Brasil onde estão presentes diversas linguagens artísticas, como a poesia, as artes plásticas, o teatro, a música e a dança. O problema não estava em saber o que falar, mas como falar. Queríamos expor de uma maneira mais identificada com o trabalho que desenvolvemos no dia a dia dos nossos ensaios. Assim como ocorria neles, buscamos na realização da monografia uma maneira “brincada” de exprimir nossas idéias. Mais do que uma sucessão de teorias e conceitos, gostaríamos de narrar as experiências que nos levaram a refletir sobre a importância da brincadeira. Pensamos então que a melhor e a mais natural forma seria a partir do relato das nossas experiências. Sentimos, então, necessidade de refazer nossos caminhos para rever os encontros que tivemos com a dança e com as brincadeiras. Mesmo por caminhos diferentes, a vivência delas em cada uma nos levou ao mesmo lugar. Uma vez prontos esses relatos, tivemos uma grande vontade de nos comunicar: ouvir dos outros reflexões sobre questões que, de uma maneira ou de outra, passavam a nos acompanhar por todo esse processo de escrita. Juntas então resolvemos compartilhar nossa pesquisa com outros dançarinos e incorporar as reflexões que surgiriam a partir das conversas com eles. Foi muito importante para o desenrolar das idéias conversar com pessoas de visões tanto distintas
  • 3. quanto próximas às nossas. A partir delas, descobrimos alguns pontos que talvez nem fossem entrar nesta monografia, mas que depois percebemos que não poderiam ficar de fora. Todo esse trajeto foi essencial para chegarmos a uma organização mais clara das idéias sobre a brincadeira. Durante o processo, uma questão nos acompanhou continuamente: como podemos trazer para o nosso trabalho as brincadeiras e como elas atuam como referência para nós. Em torno desse ponto, dirigimos os nossos esforços a fim de concretizar em palavras o que pesquisamos na dança.
  • 4. SUMARIO 1. HISTORIAS............................................................................... 2.CONVERSAS.............................................................................. 3.INTRODUÇÃO................................................................................. 4. RELAÇÃO MÚSICA E DANÇA E A CRIAÇÃO DE MOVIMENTOS................ 5. O IMPROVISO ................................................................................ 6. O “CONTEMPORÂNEO” E O “TRADICIONAL”...................................... 7. A TÉCNICA……………………………………………………………… 8. BRINCADEIRA.......................................................................... 9. INTRODUÇÃO................................................................................ 10. REPETIÇÃO................................................................................. 11. CORPO COMUM E PARTICULAR..................................................... 12. O EQUILÍBRIO DENTRO DA BRINCADEIRA E O ESTADO DE PRONTIDÃO……………………………………………………………… 13. AS BRINCADEIRAS E A VIDA.......................................................... 14. ARREDONDANDO………………………………………………………
  • 5. 15.BIBLIOGRAFIA...................................................................... UMA HISTORIA Em 1986, quando meus pais já moravam em São Paulo, eu nasci. Fui o segundo fruto do encontro de uma paranaense com um pernambucano. Minhas memórias se iniciam na minha moradia do Butantã. Nossa casa era o local de ensaio de meus pais: no quintal, a corda bamba; no quarto, um tapete verde e um espelho formavam o espaço em que meu pai ficava quando dizia estar trabalhando. Uma das extensões da casa era um clube próximo, onde ao som de “Chorando se foi” minha mãe fazia seus ensaios e criava seus números. Outra extensão era um circo, local de treino e encontro de meus pais com seus amigos. Com frequência meus pais iam a espetáculos circenses, não só pela necessidade do trabalho como por gosto do programa. Ao contrário do que poderia parecer, eu e meu irmão não éramos os protagonistas do passeio, mas embarcávamos nas primeiras, de muitas, estripulias de nossos pais. Foi na corda bamba e no clube que minha mãe criou a primeira peça artística da qual participei com meu irmão. Nos apresentamos em uma livraria na Vila Madalena em 1991, éramos pequenos assistentes de minha mãe, e no final fazíamos uma dança a dois. Em parte pela lembrança dos apertos de bochechas e pelo tom de voz com que o público falava-me, sei muito bem que agradamos mais pelo encanto da idade do que pelo trabalho artístico. Em casa, seguia-se assim: horas brincava junto de meu irmão, horas com ele e seus queridos amigos de rua e horas, muitas delas, como assistente na construção de suas criativas engenhocas, em seus números de mágicas, em seu laboratório; até que, como toda caçula, vivi o momento em que o irmão mais velho cresce e tive que aprender a brincar sozinha. Não é algo do qual eu guarde alguma sensação de solidão, muito pelo contrário: este foi o momento em que bonecos, bonecas, monstros e objetos eram formas
  • 6. das minhas primeiras percepções das esquisitices do mundo. Algo que adorava fazer era dar aos antigos brinquedos de meu irmão roupas que eu própria confeccionava – durante muitos anos dizia que quando crescesse seria costureira. Nossa casa já não dava mais conta do trabalho de meus pais, por isso passaram a alugar galpões e garagens. Porém, diversas vezes entraram em conflito com os proprietários, que estranhavam a forma de utilização do espaço. Foi então que do outro lado da ponte, na Vila Madalena, alugaram uma antiga fábrica de lustres com uma grande ladeira na entrada, que passou a ser local de ensaio e de apresentação de seus espetáculos. Tínhamos como vizinhos um professor de história e filosofia, sua mulher e duas filhas com idades próximas à minha, e nos tornamos grandes amigos. Com avós, tios e primos divididos entre Curitiba e Recife, foram esses amigos que me ofereceram uma relação familiar pouco conhecida por mim. Em novembro de 1992, saímos ladeira abaixo entre amigos, instrumentos, carroça e fantasias em um cortejo pelas ruas da Vila Madalena, para inaugurar o espaço que passaria a ser o teatro de minha família. Parte dos entulhos do lugar que era reformado constantemente, sobretudo em razão das insistentes goteiras, foram para a minha casa, que passava a ser uma extensão daquela nova moradia. No quintal, as tábuas formavam gangorras, circuitos, muitos circuitos, cabanas e uma balança na ameixeira, convertida à noite em moradia dos morcegos de quem éramos deliciosos inimigos: os atraíamos com varas e tentávamos atingi-los com estilingadas. Enquanto isso, nossos brinquedos eram sequestrados de casa e utilizados na construção da peça teatral que ganhava o mesmo nome do novo espaço. Meus pais e o diretor, inspirados por uma estética com base na obra de artistas como Bispo do Rosário, utilizavam sucatas, tecidos e fitas betumados, e brinquedos — os
  • 7. nossos, em grande parte das vezes. Lembro-me bem que passei muito tempo sem falar com o diretor da peça, mas vim a saber a razão posteriormente, quando minha mãe contou que, em certa ocasião, encontrando um brinquedo meu perto de seu material de trabalho, fui resgatá-lo e levei uma bronca. Saí aos prantos, minha mãe viu, mas manteve o silêncio de quem muito se zanga. No dia seguinte, minha mãe o aguardou cedo no portão do teatro, e a conversa que principiou em briga acabou se transformando em um valioso diálogo. Hoje tenho uma admiração enorme pelo trabalho desse grande artista por quem guardo um grande carinho. Durante o dia, enquanto meus pais ensaiavam a montagem de seus espetáculos, eu brincava com minhas vizinhas. Com os brinquedos que se mantinham a salvo na casa delas, inventávamos novas famílias, casas, supermercados e escolas. Em não poucas ocasiões, a demora de meus pais em telefonar para os vizinhos me fazia deduzir que mais uma vez eu dormiria lá, pois só ao chegar em casa eles se lembravam comicamente que eu tinha ficado do outro lado da ponte. Regularmente íamos a Recife, onde passávamos as férias de dezembro e emendávamos até o Carnaval. Ficávamos na casa dos pais de meu pai: meu avô, um médico apaixonado por fotografia, e minha avó, a melhor do mundo, que com sua impressionante habilidade manual, costurava as roupas mais lindas para mim e meus bonecos. Certa vez, ela fez um lindo vestido para mim e outro idêntico para minha boneca, que possuía cabelo semelhante ao meu. Diversas vezes, acompanhando meus pais em suas viagens, passeamos pelos aeroportos vestidas graciosamente iguais. Durante esses verões, ficávamos também na praia de Tamandaré, hospedados na casa à beira-mar de minha tia, acompanhava as caminhadas matinais de meus pais até a praia dos Carneiros, um lugar inexplorado, repleto de coqueiros e piscinas naturais, atualmente descoberto e
  • 8. encoberto pelos mais suntuosos “resorts” e hotéis. Guardo um significativo carinho por dois personagens que fizeram parte de minha estadia em Tamandaré: um era o Iorque, um cocker spaniel que brincou muito comigo; o outro o Dino, uma boia dinossauro acompanhante das aventuras marítimas mais perigosas, com quem troquei importantes diálogos. Talvez por que começassem a diminuir as brincadeiras que fazia cercada por inúmeros bonecos e já não os tinha mais como “compreendedores” de mundo, fui ali curiosamente tomada por uma vontade de dialogar com algo que chamei de Deus: não sabia bem ao certo o que era, mas decorei as rezas principais e as fazia antes de dormir, sempre acrescentando ao final uma prece particular. Após um tempo, as rezas cessaram, porém a curiosidade por um aspecto religioso permaneceu. Emendado às férias, vinha o Carnaval. Meus pais nos fantasiavam e saíamos por Olinda com amigos e primos munidos de arminhas d’água, ao passo que em Recife eu os acompanhava em suas buscas pelas marchas de bloco, pelos caboclinhos e bois. Nessa época visitávamos regularmente a casa de dois mestres populares: um deles era responsável por um Cavalo Marinho e o outro pelo Caboclinho Sete Flechas. Não tenho a lembrança da primeira vez que os vi, mas as mais antigas me mostram a maneira carinhosa e atenciosa que nos tratavam. Foi no retorno de uma dessas férias que chegamos em casa e encontramos a árvore de ameixa podada, a vizinha havia feito “um favor” em nome dos demais vizinhos que se sentiam incomodados com os morcegos. Não só sofremos a perda de nossos instigantes inimigos como das frutas, do balanço e da agradável sombra. A volta para São Paulo passava a significar sobretudo o retorno à escola, o sentimento que me vinha nessas ocasiões era sempre semelhante àquele de quando me
  • 9. cortaram a ameixeira. Nesse mesmo período, que era o das chuvas de verão, o teatro sofria também: não poucas vezes corríamos com baldes e panos tentando dar conta das goteiras, transformadas às vezes em divertidas “bicas”, e os espetáculos acabavam por incorporar o indisfarçável cenário. Inicialmente, a plateia foi formada com a ajuda da “festa da cadeira”: cada amigo e espectador comparecia com uma como “bilhete de ingresso”. A cada temporada de espetáculos era relatado ao público o destino do dinheiro dos ingressos: inicialmente para a construção da arquibancada, depois para os tapetinhos que iriam cobri-la, as almofadinhas, o encosto, depois os cuidados com as goteiras, e por fim o isolamento acústico. No entanto, antes de concluirmos esta última etapa fizemos alguns pequenos inimigos em razão do barulho: muitas vezes durante a peça ou em seu final subia a ladeira um carro de polícia que vinha a pedido dos vizinhos cobrar o silêncio. Eu ficava extremamente assustada, pois meus pais entravam na brincadeira e numa encenação diziam aos policiais que podiam prendê-los, minha mãe até chegou a entrar uma vez dentro do carro da polícia, e eu apavorada chorei e fui tirada de canto pelos amigos e público que me explicaram que era de mentira... Meus pais apresentavam-se com regularidade, minhas brincadeiras com as vizinhas durava até a hora de início da peça, pois ia assisti-los. Lembro-me com nitidez que, em certo momento da peça, quando a Dona Deusdédite era tomada por uma euforia, dava-se um tiro para o alto, eu toda vez chorava assustada, os amigos e público mais uma vez tentavam me acalmar e me explicavam que era de mentira... No ano de 1994, eu e as vizinhas criamos nossa peça teatral: escrevemos as falas, fizemos cenário, figurino, ingressos e marcamos a data em que nossos pais e a equipe que trabalhava no espaço iria sentar para nos assistir. Nessa época, o teatro deixou de acolher somente as peças de meus pais: músicas, pernas de pau, malabares, mamulengos eram
  • 10. apresentados por pessoas muito queridas que muitas vezes compartilharam conosco os apuros das goteiras em nossa casa de espetáculo. Em 1995, meu pai criou seu primeiro show musical. Eu acompanhei as viagens do espetáculo e tinha a prazerosa tarefa de vender o programa do show, impresso em um instrumento (ganzá) que em certa hora do espetáculo era tocado junto com o público. Nas viagens de férias a Recife, passei a ir com maior frequência a ensaios, treinos e brincadeiras das manifestações artísticas de lá. Seguimos diversas noites pelas estradas que entrecortavam os canaviais em busca de cavalos marinhos e sambadas de maracatu rural. Embora fosse um universo de adultos, eu me divertia – não só com as muitas crianças, mas também com a atuação dos mais velhos: aprendi a apreciar a beleza de seus movimentos vendo a admiração que meus pais tinham por eles. Chamavam especialmente a minha atenção as mãos daquelas pessoas. Os dias em que para aprender alguns desses passos eu tinha aulas de cavalo marinhos, maracatu rural e nação, frevo e caboclinho, não eram momentos de extremo prazer, tampouco poéticos – lembro-me da irritação causada pela dificuldade de copiar aqueles movimentos, mesmo porque a beleza deles estava justamente no corpo do dançarino. Conversava com meus pais sobre o “jeitinho” com que eles faziam, que era só de quem dançava desde muito pequeno. Tentávamos imitar esse jeitinho, e lembro-me da frase repetida diversas vezes por minha mãe: “Aprender não vai fazer nenhum mal, se mais tarde não for usar, você joga fora, se precisar, eles estarão aí”. Em São Paulo eu deixei o piano, comecei a estudar violino, e voltei a fazer ginástica olímpica. Para essas aulas ia sempre acompanhada pela mesma frase de minha mãe. Durante a ginástica olímpica, eu procurava guardar alguns dos movimentos que via nas
  • 11. coreografias das “meninas do treino”, e chegando em casa, no quarto, de portas fechadas, ao som de Shakira, eu as repetia a meu modo. Após a criação do show, meu pai iniciava o processo de gravação do CD, isso se repetiu diversas vezes, no primeiro, meu irmão e eu participávamos, ele tocando e eu cantando. Finalizado seu primeiro disco, fui escutá-lo junto com nossos amigos vizinhos para que ouvíssemos juntos minha voz. Rapidamente a identificamos: era a única do coro fora do tempo e da melodia. Isso foi mais um motivo de boas risadas. Desde pequena fui vítima dessa mania de meus pais: em grande parte de seus trabalhos artísticos eles davam um jeito de incorporar eu e meu irmão, inicialmente não por uma necessidade artística, mas com o passar dos anos essa insistência terminou por provocar algumas dependências; gostávamos de viajar, gostávamos de nos apresentar, e meus pais gostavam de criar espetáculos em que pudéssemos desenvolver algum trabalho artístico. Raramente minha casa era ocupada somente por nós quatro. Era comum a presença dos amigos dos meus pais, que vinham de outras cidades auxiliar na construção dos espetáculos. Foi nesse contexto que se iniciava a montagem do segundo show de meu pai, no qual eu participaria. Meu pai mantinha um cuidado musical e orientava meu irmão, que tocaria percussão; minha mãe cuidava das danças e ajudava-me a elaborar uma coreografia de frevo. Eu me responsabilizava pela elaboração e confecção de meu figurino, mas, com meu corpo, que de tão magrinho beirava a esquisitice, exigia de mim pouca costura. Estreamos em Brasília em uma Sexta-feira Santa com um frio na barriga que nenhuma ordem divina podia fazer desaparecer. Ensaiava ainda nas passagens de som do espetáculo e nas aulas de Recife, no entanto, já começava a ser orientada por meus pais para incluir em minha rotina um treino particular que tivesse um pouco mais de rigor. Mais tarde, passei também a tocar violino neste show, e maiores são as recordações do frio da barriga
  • 12. do que das aparições. Passei a viajar por diversas cidades, lembro-me que nesse período tive uma enorme vontade de colecionar algo, não sabia ao certo o quê, mas tinha o desejo de juntar ali muitos tipos de uma mesma coisa, mais o contexto do que a vontade fizeram-me optar pela coleção de xampu de hotel, durante anos adorei guardar do mais cafona ao mais lindo potinho, porém com o passar dos anos por falta de espaço fui obrigada a desapegar-me e desfazer-me de minha coleção... As viagens com os shows também me afastavam da escola por longos e deliciosos períodos, mesmo estando em São Paulo, faltava às aulas para descansar das apresentações e cresci ouvindo meus pais em tom de compreensão perguntarem a mim e ao meu irmão se era mesmo importante irmos para a aula no dia seguinte. Para cumprir com o programa escolar, fui habituada a uma rotina de estudo longe dela. Foi em um desses estudos que conheci Zezé e Portuga, personagens do maravilhoso romance Meu Pé de Laranja Lima. Emocionei-me pela primeira vez com um livro, e paralelamente aborrecia-me com a escola vendo sua maneira de conduzir nossos cotidianos e ensinamentos. Com o livro, me dava conta de uma nova relação com a arte e o conhecimento. Futuramente encontrei entre as sábias palavras de Tarkóvski algumas em que identifiquei algo do que sentia: Poder-se-ia afirmar que a arte é um símbolo do universo, estando ligada àquela verdade espiritual absoluta que se oculta de nós em nossas atividades pragmáticas e utilitárias. Para poder penetrar em qualquer sistema científico, uma pessoa deve recorrer a processos lógicos de pensamento, deve chegar a um entendimento que requer como ponto de partida um tipo
  • 13. específico de educação. A arte se dirige a todos, na esperança de criar uma impressão, de ser sobretudo sentida, de ser causa de um impacto emocional e de ser aceita, de persuadir as pessoas não através de argumentos racionais irrefutáveis, mas através da energia espiritual com que o artista impregnou a obra. Além disso, a disciplina preparatória que ela exige não é uma educação científica, mas uma lição espiritual específica. No teatro minha mãe dava origem a um curso chamado “A Arte do Brincante para Educadores”, era composto por oito módulos, cada um dado por uma pessoa. Frequentei esse curso durante muitos anos. Os adultos procuravam o curso com o intuito de obter uma aprendizagem formal e terminavam por brincarem, eu ia ali para brincar e terminava por aprender, chegávamos todos ao mesmo ponto. Eu acompanhava também os cursos de dança que passaram a acontecer no espaço, frequentemente meus pais traziam pessoas que dançavam nas brincadeiras do Recife para darem aulas. Um desses professores passou a ser um daqueles agregados da nossa casa, ele faria parte também do novo show de meu pai, do qual participei, pequena de altura e ainda muito magra, dançando levemente frevo, botando a figura de um pequenino boi e fazendo parte do coro das pastoras. Percorremos o Brasil, passamos rapidamente por diversos Estados, e fui conhecendo cada cidade através da forma com que cada público acolhia o espetáculo. Nessa época fiz minha primeira viagem ao exterior. Fui com minha família à França, junto com nós a “Banda Pernambucana”, as cantoras e a equipe técnica formaram um grupo de cerca de 20 pessoas. Me divertia com todos aqueles músicos que possuíam seus curiosos códigos e regras.
  • 14. Os franceses ficavam perplexos com nossas eufóricas brincadeiras que traduziam a eles um certo “excesso de intimidade”. Eu ficava perplexa ao observar o público local dançando ao final dos shows, via uma maneira de se movimentar que parecia pouco íntima de seu próprio corpo. Além disso, me aborrecia com a maneira de tratarem as crianças, não compreendia a razão de tanta frieza e indiferença, e justamente por estar longe de meu país que me identifiquei com aspectos singulares dele, senti uma saudável saudade. De volta a São Paulo, mudei de casa e de colégio. Passei um ano nessa nova escola com o sentimento de ser estrangeira. Meus pais e duas maravilhosas amigas, baianas e educadoras, ajudavam-me a compreender as incapacidades de um modelo de educação indiferente às relações humanas que se estabeleciam inclusive na própria escola. Na nova casa, meu pai dava a mim e a meu irmão aulas de pandeiro. No teatro, subíamos para uma sala mais isolada e com o violão ele nos ensinava as marchas de bloco. Eu retornei ao meu antigo colégio e me inscrevi em seu festival de poesia anual. Tocando pandeiro, declamei um poema de Manuel Bandeira em que falava de sua admiração pelos repentistas. Passei a me apresentar com o espetáculo de meu pai que marcava as comemorações dos “500 anos de Brasil”. Fazia de meu novo quarto o lugar de treinos e experimentos de novas coreografias. Em sua gostosa varanda fazia meus treinos de monociclo e dentro dele eu dançava de Cavalo Marinho a Fat Family. As férias de Recife passavam a ser acompanhadas por dois primos curitibanos de idades próximas à minha e de meu irmão. Eles participavam também do novo espetáculo. Fazíamos durante o dia regularmente aulas com os dançarinos que à noite víamos brincando nos cavalos marinhos, sambadas, treinos de caboclinho, etc. Com o espetáculo pronto, formamos uma nova equipe de viagens e deixei de preferir as belezas e perfeições
  • 15. dos palcos para divertir-me com seus erros e contextos, as letras de músicas esquecidas por meu pai, os tombos, os sumiços de figurinos na hora de entrada de cena, as truncadas comunicações com os estrangeiros, as histórias dos músicos, tudo isso passava a ser mais interessante que as perfeições coreográficas. A virada de ano de 2000 para 2001 foi marcada por férias em uma casa na ilha de Itamaracá com cerca de 17 amigos, e juntos seríamos dirigidos por meus pais em seu novo espetáculo de música e dança. Em Recife, as aulas eram agora em turmas, alugávamos vans para ir às sambadas e cavalos marinhos, sem infraestrutura por parte do Estado para orientar os novos curiosos, íamos trocando entre amigos informações sobre as brincadeiras. As festas populares passaram a ser local também de encontro entre pessoas muito queridas que vinham de fora em busca de uma beleza pouco conhecida. Eu cada vez mais me sentia à vontade para dançar com os amigos o maracatu rural, o caboclinho e aqueles deliciosos forrós. Mas a época do Carnaval foi ficando menos prazerosa: as ruas abarrotavam-se de turistas brasileiros e estrangeiros, e nos palcos as apresentações dos artistas populares cediam lugar a grandes shows com nomes famosos. Em um desses carnavais, meu pai foi convidado a fazer uma de suas apresentações no trio elétrico, ele convocou como sempre toda a família e dessa vez centenas de brincantes que seguiam dançando à frente do carro. Ao término do percurso, já com o carro parado e todos descansando, saí caminhando pela avenida Boa Viagem e encontrei um dos brincantes reservadamente inquieto, com lágrimas nos olhos, negro, de aproximadamente quarenta anos: ele me contou que, andando sozinho tinha sido pego por um policial, levado para um lugar escondido e recebido algumas pancadas. Essa foi uma daquelas experiências que condensam em um só pensamento uma infinidade de indagações.
  • 16. Em São Paulo, as dificuldades de estrutura para se manter um grupo de 17 jovens fizeram com que meus pais optassem por encerrá-lo. No mesmo período, eu fui convidada para participar de um grupo de percussão formado por uma dançarina africana vinda da Guiné e seu marido percussionista. Nele aprendi complexos ritmos africanos e me deliciei admirando a “suingada” e a perfeição da dança africana. Continuava dançando e tocando com os amigos em um grupo que era muito requisitado para festas e eventos. Meu pai fazia um show em que era acompanhado por meu irmão, e minha mãe montava seu espetáculo solo, no qual, para não perder o costume do trabalho em família, eu operava a luz. Mudamos novamente e dessa vez fomos morar em uma casa que pertencia aos meus pais, eu mudei de colégio e finalmente conhecia uma escola à qual eu sentia pertencer. No primeiro ano do ensino médio, fizemos uma viagem de trabalho de campo a Ribeirão Preto, cada grupo de alunos era responsável por entrevistar moradores de uma determinada região, a maior parte dos entrevistados eram cortadores de cana. Fui então a um pequeno bar onde encontrei pessoas com as mesmas mãos daqueles brincantes que tanto conhecia. Iniciei minhas entrevistas que rapidamente se tornaram uma conversa sobre suas vidas, com uma clara consciência sobre as situações desumanas que eram obrigados a viver, me relataram com falas lúcidas suas condições de vida e de trabalho, contaram desgraças, injustiças e situações inaceitáveis a qualquer ser humano, e me impressionei com a sensatez que tinham diante da impossibilidade de fazer algo que pudesse modificar aquela situação. Nessa época vivi uma agenda com poucas apresentações, no entanto mantinha-me tocando em festas e eventos com amigos, treinava e fazia aulas no teatro, que passou a não comportar mais as necessidades dos ensaios de minha família. Os fundos de minha casa
  • 17. sofreram então uma transformação: foi construída uma sala de dança. Com um grande espelho, fiz meus pequenos experimentos mais cuidadosos. Lembro-me que um dia meu pai deixou espalhado pela sala os figurinos de seu primeiro espetáculo de dança. Ao som de sua trilha sonora, tentei dançar aquelas figuras, fiquei impressionada com o desastre, tentando experimentar uma movimentação que seguisse a música, senti-me despida de meu próprio corpo, o que aos meus olhos pareciam movimentos tão simples executados por meu pai foram naquele momento percebidos por mim como um longo e novo caminho que me disporia a percorrer. Identifiquei através da ausência aquilo que iria buscar na nova sala de dança. No colégio, eu me encantava com as aulas de filosofia, conhecia os professores e fazia grandes amigos, descobrindo tanto os prazeres da escola quanto os de meus estudos corporais particulares, que passavam a ser feitos com regularidade, porém não tardou para que o colégio se tornasse algo que impossibilitava que eu cumprisse com meu ideal de dedicação corporal. Inspirada por meu professor de filosofia, escolhi de presente de 15 anos uma viagem ao Xingu. Acompanhando uns amigos indigenistas que trabalhavam com vídeos nas aldeias, passei 15 dias na tribo Kuicuru. Durante os primeiros dias, fiquei a maior parte do tempo na rede, até hoje eles acham que eu adoeci, no entanto sei que experimentei a entrega a um cansaço cuja dimensão só fui conhecer ali. Naquela estadia, me permiti a ausência de coisas que já me eram tão habituais, e longe delas passei a perceber e a me dar conta de uma novidade pela qual guardo muito carinho. Com tudo tão diferente e com muitas saudades da família, certa noite, fui caminhar e olhando distraída para o céu fui tomada por algo bom: com calma percebi que a visão do céu me trazia a sensação de familiaridade, uma visão muito conhecida, isso fez com que me sentisse pela primeira vez
  • 18. em casa. Porém só muito perto de ir embora é que fui entendendo um pouco dali, com medo do acúmulo de faltas na escola parti de lá com a sensação de curiosidade de quem experimenta o suficiente para perceber o quanto ainda se poderia conhecer. Durante o segundo ano colegial, tive a oportunidade de acompanhar meus pais nas filmagens de um programa de televisão sobre danças brasileiras. Com a missão de fazer o registro fotográfico, viajei com eles de norte a sul do país, conhecia novas manifestações e revia com um olhar mais maduro diversas delas. Mais do que uma aprendizagem de movimentos, eu fazia da viagem um momento de observação, a câmera fotográfica aguçava meu olhar e era um modo das pessoas se aproximarem de mim e eu delas. Por sempre aparentar ser mais nova, onde quer que eu chegasse era recrutada pelas crianças e me divertia com suas falas e brincadeiras, mas também tinha boas conversas com os adultos que ali brincavam. Nestas viagens, também fiquei admirada com a forma de religiosidade que percebia naquelas pessoas: todas as casas de brincantes que visitávamos tinham um lugar reservado a seus santos e preces, pequenos oratórios, neles juntavam-se figuras das mais variadas religiões, mas a crença pelo divino não se encontrava exclusivamente ali, era notável em sua maneira de falar, nos gestos, na dança. Passando por Juazeiro do Norte, ao visitar Padre Cícero, minha mãe e eu decidimos que recrutaríamos nossas primeiras imagens religiosas e formaríamos nosso oratório, a antiga adega de casa transformou-se no canto de inúmeras entidades, de cada viagem traríamos as lembranças que dariam ouvidos às nossas rezas, lamentos, agradecimentos, promessas... No terceiro ano colegial, a escola propunha a realização de uma monografia, quis aprofundar meu olhar sobre as coisas que vivia e intuía, peguei lindos textos com a educadora amiga da família, lia e tinha conversas preciosas com uma amiga,
  • 19. acompanhávamos nossas vivências, olhares e reflexões desde nossos quatro anos de idade, naquele momento eram conversas de descobertas, falávamos de nós e do mundo, surgia uma enorme admiração por Fernando Pessoa e Guimarães Rosa, discutíamos muito sobre nossas indignações com o sistema de educação, este tema sempre foi o preferido por nós, eram daquelas conversas que mudam os caminhos do pensamento e portanto da vida. Meu orientador, lendo minha caderneta de anotações, definiu o tema da monografia como “Os processos simbólicos como instrumento de constituição do indivíduo atuando socialmente”; para mim, eu falava sobre arte e brincadeira. Enquanto as faculdades lançavam suas inscrições e provas, um diretor francês vinha ao Brasil e recrutava bailarinos que iriam compor seu espetáculo. Estávamos todos trancafiados: meus amigos nos cursinhos e estudos, e eu na sala de dança, montando uma coreografia para o teste desse trabalho. Todos nós passamos na primeira fase dos testes, agora diminuía a quantidade de pessoas, mas aumentava o grau de exigência. Alguns amigos não passaram no pretendido, e os caminhos foram vários: houve quem optasse por viajar para fora do país, quem se trancafiasse novamente nos cursinhos, quem quisesse ficar um tempo longe do mundo acadêmico para “descobrir a vida”, e quem fosse cursar a faculdade na qual havia passado. Sob a alegação de que me faltava “técnica contemporânea”, fui eliminada no teste. Saí desconcertada da sala, a tensão de segurar o choro fez eu esquecer de pegar minhas coisas, e de repente me vi aos prantos no centro de São Paulo sem dinheiro para voltar pra casa e sem a mínima coragem de voltar à sala, restava-me a boa vontade de desconhecidos, em uma mistura de cena trágica e cômica, com trajes de exercício, chorando e totalmente sem jeito pedia uma ajuda às pessoas para comprar a passagem de
  • 20. metrô, apesar das caras feias não tardou para que uma mulher se dispusesse generosamente a comprar um bilhete para mim. Livre da escola, optei por fazer minha grade de atividades. A decisão de não iniciar uma faculdade deixava-me com tempo livre para me dedicar à dança. No entanto, eu ficava inquieta por não ter uma rotina de estudos, momentos dedicados à reflexão. Eu e uma amiga criamos então um evento que faria parte da programação do teatro, nele traríamos uma vez por mês alguma pessoa para falar de um tema, a ideia era que se formasse um lugar de boa conversa. Porém, não contava com o efeito colateral do evento: ao invés de me tranquilizar com relação a meus estudos, mais crescia em mim a ânsia por saber tudo sobre cada um daqueles temas que eram tratados ali. Em minha rotina, mesclava minhas práticas individuais a diversas aulas de dança que ia experimentando. Desde então passei a fazer aulas matinais de balé em um espaço muito querido com uma professora a quem admiro muito. Paralelamente fiz aulas de consciência corporal com uma professora maravilhosa que, assim como a professora de balé, possuía um trabalho baseado na técnica de Klauss Vianna. Pela primeira vez, eu estreitava meu vínculo com um nome que há muito eu ouvia de meus pais. Sentindo a necessidade de contrapor-me às linhas e simetrias do clássico, fiz aulas de dança do ventre com uma professora que curiosamente também havia passado pelas aulas de Klauss e utilizava em suas ótimas aulas o que havia aprendido. Fiz “contato improvisação”, dança africana com aqueles mesmo que anteriormente haviam tocado comigo, dança afro com uma bailarina admirável e grande amiga da família, e voltei à minha antiga academia de ginástica olímpica onde reencontrei os professores, o enorme prazer das piruetas e as dores, essas que inevitavelmente me afastaram daquelas aulas. Voltava também a nadar e a fazer aulas de sanfona.
  • 21. Durante essa época, procurava incessantemente por aulas, por técnicas corporais, embora sem conseguir explicar ao certo do que necessitava, sabia quando uma aula me distanciava e quando me aproximava do que tanto sentia falta. Neste período fiz duas oficinas, cada uma com duração de uma semana, nas quais senti uma forte proximidade com a técnica que procurava. Uma delas era com um grupo de teatro de Campinas, através da qual tive contato com uma nova forma de trabalhar a movimentação corporal. Talvez tão forte quanto a apreciação dessa técnica foi a descoberta da existência de novas possibilidades de se trabalhar o corpo. A outra oficina foi com um dançarino de Butô, para a descrição da importância desse encontro rendo-me a ausência das palavras, pois não saberia fazê-las darem conta de traduzir a intensidade e a transformação que este contato causou em mim. Uma professora muito especial (que também possuía vínculos com a técnica de Klauss Vianna), me propôs montar um número de dança que iria compor a mostra anual de dança contemporânea que ela fazia com suas alunas. Na sala eu descobria novos movimentos que todas aquelas aulas me ofereciam e mesclando-os aos antigos tentava coreografá-los. Foi uma breve experiência de algo que mal sabia que seria vivenciado tantas outras vezes. A resposta que tive foi suficiente para me dar ânimo e vontade de repetir tudo aquilo várias vezes. Ao final desse primeiro ano sem escola, troquei a ida a Recife e a participação em uma primeira versão do novo espetáculo de meu pai por uma viagem ao Chile. Há pouco tempo havia conhecido uma aluna do teatro, minha curiosidade diante da sua facilidade em aprender os movimentos e o “jeitinho” daquelas danças me aproximou dela. Fazendo um curso de danças juntas nos conhecemos um pouco mais e acabamos nessa aventurosa viagem.
  • 22. Fomos eu e Marina descendo por diversas cidades do sul e ouvíamos em cada uma delas a mesma fala “tan chicas y solas?!”. Em uma delas, decidimos fazer um passeio de subida a um vulcão ativo, na neve e sob muito vento, o instrutor explicou que, caso escorregássemos, deveríamos primeiramente gritar e depois fincar na neve o instrumento que levávamos à mão, só percebi que seria capaz de fazer tudo aquilo quando, ao primeiro grande vento, eu, devido meu pouco peso escorreguei e pus tudo aquilo em prática. Foram seis horas de subida em que senti muito, muito medo, e pensava a todo momento em voltar, no entanto a chegada no topo e a visão da lava foi algo de uma beleza esplendorosa, e a descida foi feita por uma espécie de tobogã de neve no qual apenas sentávamos e íamos descendo velozmente sem perigo e medo algum. Tenho a sensação de que essa viagem foi de certo modo um pequeno presságio de sensações que experimentaríamos juntas. No Brasil voltava às minhas aulas e começava a ensaiar para a segunda versão do novo trabalho de meu pai, que comemorava os cem anos do frevo. Pensava em criar uma coreografia que, adotando como base essa dança popular, fosse capaz de incorporar os movimentos novos que meu corpo havia assimilado. Em minhas férias costumeiras em Recife na casa de meus avós, me deparei com uma coleção de filmes de Fred Astaire e Ginger Rogers: assisti com enorme prazer, sem imaginar que mais tarde aquelas histórias e danças me serviriam de referência. Durante o processo de elaboração da coreografia, experimentei um enorme prazer em descobrir, desconstruir e reconstruir movimentos, divertia-me com as possibilidades corporais que o ritmo e melodia me propunham. Ali, apesar de sozinha, me sentia muito próxima daquele universo das brincadeiras que tanto havia presenciado. Mas também condensava ali momentos que vivia em meu cotidiano: desgostos, irritações, alegrias e
  • 23. euforias eram sentidos com grande intensidade. Passei a perceber a necessidade que eu tinha daqueles momentos de ensaio e a cuidar para que não os deixasse de fazer com frequência. Como toda primeira nova experiência, esse espetáculo me marcou. Ouvi depoimentos que me foram muito preciosos, falavam- me de coisas que intimamente buscava nos meus ensaios, mas que pensava não serem visíveis, e com isso senti vontade de aprofundar algo que com gosto ia descobrindo. A imagem plástica que de criança guardava das obras de Bispo do Rosário aguçava agora minha curiosidade pela sua figura, e durante as viagens das apresentações li uma linda biografia sua. A leitura me fez recordar não somente das imagens da infância como de alguns princípios, revia ali o valor de uma simplicidade constantemente ameaçada pelo esquecimento, e no entanto a cada aproximação eu tomava novamente consciência da importância de sua dimensão. A temporada deste espetáculo finalizou-se com a gravação de um DVD. Mais uma vez a família aumentava, um grande amigo cineasta e meu pai se juntaram a para criação de um cenário, ou melhor, de vários, diante dos quais com primos e amigos me deslumbrei e me diverti muito. Em um encantamento juvenil, via-me rodeada de pessoas incríveis e percebia a graça da soma de trabalhos. Assim como os outros, exigia de mim mesma a melhor execução, no porem passei a sentir a saúde diferente, dores de cabeça, excessivos frios na barriga, queda de pressão, eu com uma certa ingenuidade poética atribuía tudo isso às emoções daquilo que vivia, só muito tempo depois, já com o fígado bem ruim, vim a descobrir que em uma das viagens anteriores tinha pego uma verminose perigosa e que a havia cultivado mais do que deveria... Não só eu como toda a casa entusiasmava-se com a dança, e meu pai criava seu novo espetáculo em que eu, minha mãe, meu primo, minha amiga Marina e mais quatro
  • 24. dançarinos seríamos dirigidos por ele. Meu irmão faria a cenografia. Com uma grande carga horária de ensaios, convivia muito tempo com pessoas muito queridas e isso me era muito prazeroso, no entanto angustiava-me com a diminuição de minhas aulas e ensaios sozinha. Meu pai tinha como intuito nesse trabalho aplicar seus extensos conhecimentos de dança que há muito pesquisara, e eu sentia um grande anseio em testar tudo aquilo que ia descobrindo. O processo de criação tornava-se um local de mescla entre seus estudos e teorias e nossos anseios corporais. Muitas vezes essa união tornou-se difícil e conflituosa, porém de grande enriquecimento a todos. Sentia uma grande necessidade de testar e de certa forma sintetizar o que ia pensando sobre dança. Em um momento bastante oportuno, uma pesquisadora de dança por quem guardo um enorme carinho me propôs a montagem de um pequeno espetáculo. Optei então por criar um espaço para apresentar as coreografias que tinha construído até ali. Durante essa construção, eu, com minuciosa observação, ia destrinchando e limpando cada gesto, ia revendo e ajustando cada movimento, curiosamente me dei conta de que este processo se estendia para além de meu trabalho com o corpo e revia-me por completo. Após a realização das apresentações, algo de muito forte me aconteceu: nossa casa sofreu um assalto, e eu passava a sentir um grande medo do local em que morava. Tudo convergia para as famosas faxinas da vida: o trabalho solo me fazia transformar meus gestos e afazeres, o assalto exigia-me a mudança do solo, do abandono do lugar em que tudo se originava. Fui então morar em um pequenino apartamento com uma amiga de uma amiga. Descobri rapidamente que havia tido uma grande sorte, a deliciosa companhia com quem havia ido morar me oferecia grandes momentos de ótimas conversas, o tempo com os cuidados de casa me fizeram descansar de um trabalho que passava a me consumir de
  • 25. forma excessiva, troquei minhas práticas de danças sozinha por outras mais descontraídas que aconteciam à noite junto aos amigos. Após algum tempo, com tudo mais calmo, fui morar novamente na minha antiga casa. Nessa época, as apresentações do espetáculo de dança encerravam-se, e, curiosamente, ao seu término, cada um dos oito dançarinos passou a verticalizar um trabalho próprio. Eu descobria uma enorme afinidade não só de temperamento como de ideias corporais com a Marina, e decidimos nos juntar em uma cia. de dança. Paralelamente, surgia uma forte vontade de entrar na faculdade de filosofia. À noite, ia ao cursinho e, de dia, junto com minha amiga, nos inscrevíamos em inúmeros editais, íamos colocando no papel um pouco do que sabíamos sobre nossa dança e muito do que desejávamos com ela. Em uma noite de ansiosas buscas pelos resultados desses editais, recebi o alegre telefonema de um amigo: ele também tinha tido seu projeto contemplado. Diferente do que imaginávamos, passamos em um edital que não envolvia diretamente a prática de dança, mas a experiência da escrita dos projetos nos havia feito perceber quão valioso era o processo de escrita sobre algo que até então nunca havíamos tentado experimentar por meio de palavras. Dar início a um projeto de pesquisa teórica não nos distanciou de nossa pesquisa com o corpo. Tomamos como ponto de partida aquilo que já vínhamos desenvolvendo com a dança. O que seria isso exatamente é que fomos descobrir em uma das costumeiras férias de Recife. Talvez por estarmos tão próximas de nossas referências ou – penso ser mais provável – pelo descanso da cabeça e do corpo, é que fomos descobrir em uma gostosa caminhada pela praia que queríamos falar sobre a brincadeira. Assim como nas nossas práticas de dança, também no processo da escrita muitas vezes sentimos falta de um “olhar de fora”, de alguém que nos orientasse em nossas
  • 26. incursões dentro de algo tão pouco explorado. Foi então que a Marina sugeriu como orientador seu antigo amigo e professor. Passamos a nos encontrar semanalmente, e aquilo que eu pensava que seriam encontros densos para uma reflexão teórica sobre a dança começaram a ser momentos que nos enriqueciam de saberes que permeavam a dança e todos os demais aspectos de minha vida. E desses encontros veio por fim a clareza de uma vontade de priorizar, também na escrita, aquilo que buscávamos naturalmente na dança. Maria Eugenia
  • 27. UMA HISTORIA Escrever [e dançar] é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como conseguirei saber do que nem ao menos sei? assim: como se me lembrasse. Com um esforço de memória, como se eu nunca tivesse nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne viva. Clarice Lispector Vinte nove de janeiro de 1988 foi o dia em que eu nasci. Tinha um ano e meio quando comecei a frequentar a escola. Não passei por muitas, duas na verdade. Sempre me foi um lugar de bom proveito. Inegavelmente a instituição escola toma grande parte da minha vida até então e nela pude ter a oportunidade de experimentar brincadeiras, brigas, broncas, autoritarismos, conselhos, reivindicações, besteiras, injustiças, boas conversas. Dos primeiros anos de escola pouco me lembro, mas sempre tive notícias de algo bastante lúdico, muito próximo do viver, muito próximo de mim. A única coisa que eu realmente me lembro desse primeiro tempo de escola é de um barril de latão que, preso em suas pontas, rodava se alguém corresse em cima dele – obviamente que para correr tinham apoios para os dois braços –, e acho que tanta repetição do mesmo me embutiu a imagem
  • 28. do latão girando embaixo dos meus pés, enlouquecidamente. Se não na escola, em casa, na rua, na praia, na casa dos avós tudo era brincadeira. Dentro de casa minha mãe resolveu marcar hora para uma nova atividade. Todos os dias às quatro horas da tarde ela me tirava para dançar. Passávamos quase uma hora brincando na sala de casa ao som de Louis Armstrong, que, segundo meus pais, eu adorava, principalmente quando chegava “What a Wonderful World”. Afastávamos os móveis para ter mais espaço e pronto, ao som da música, podia começar a dançar. Disso eu não me lembro, são daquelas lembranças que tomam forma pelo relato alheio, mas tenho minhas dúvidas de quem gostava mais daqueles momentos, se era eu ou se era ela. De qualquer forma, vendo meu gosto por aquilo, ela quis me colocar em alguma escola de dança. A primeira coisa que veio à cabeça foi o balé clássico. E foi assim que fui parar lá. Tinha três anos. Aquele lugar era bastante agitado. Lembro-me vagamente das meninas mais velhas no vestiário aprontando-se para as aulas, todas elegantes com os cabelos impecáveis e as famosas sapatilhas de ponta. Mais tarde soube que meu horário de entrada coincidia com a saída não das alunas do estúdio, mas das bailarinas da companhia. Pouco lembro das aulas, e pouco também da rigidez. Mas foi exatamente esse o motivo que fez minha mãe desistir de minhas aulas lá, especialmente depois de um “pequeno” acidente. No meio de uma aula, levei um tombo e cai sentada no chão, bati o cóccix. A professora colocou-me em um canto da sala e eu fui dispensada de continuar, mas acontece que eu fiquei lá até o horário terminar sem que ninguém fosse capaz de avisar meus pais. Quando minha mãe
  • 29. chegou para me buscar, eu reclamei da dor e ela quis se informar com a professora que apenas confirmou o acidente. Achando tudo aquilo absurdo, principalmente considerando a minha idade, ela resolveu me tirar do estúdio. Tinham se passado dois anos. Foi com esse estúdio que fiz minha primeira apresentação, foi a primeira vez que subi em um palco. No Teatro Sergio Cardoso, fui um dos ratinhos da Cinderela. Lembro do frio na barriga, lembro que errei alguma coisa na coreografia do queijo e lembro que ganhei um buquê de flores no final. Tive a sorte de ter crescido em uma vila. E em muitas conversas pude perceber que isso afetou e muito os moldes da infância. Em uma cidade como São Paulo, poucos pais ficariam tranquilos de deixar seus filhos brincarem na rua. Só depois de grande é que fui perceber que na minha geração isso já não era algo comum. A rua como espaço de acontecimentos e não apenas como passagem pode ser algo incrível. Ela nos dava tudo o que era preciso: limites demarcados, portões para subir, muros para se esconder, postes para se salvar, pedras para rabiscar e pessoas para brincar. Tinha uma menina escandalosa e seu irmão mais velho; os dois irmãos que vinham passar as férias na casa da avó; a garota calada da última casa; o menino mais engraçado que já conheci, que durante um ano morou na casa de sua avó; a japonesinha adorável e muito amiga que morava na casa mais pro fundo e seus dois irmão mais novos. Com esses e outros que iam e vinham transformamos a rua no quintal de nossas casas. Lembro que em um grande evento chegamos a desenhar no chão da rua inteira, com giz e pedra colorimos tudo. No dia seguinte, a primeira coisa que eu quis fazer foi sair de casa para admirar mais um pouco,
  • 30. mas o trabalho de um dia inteiro tinha durado só aquela noite. Eu tinha crescido e o colégio tinha aumentado também. Os espaços eram maiores e os brinquedos mais ainda, e se desse ou se não desse estava eu lá tentando subir mais alto. Não sei como não me machuquei muito. Tive poucos acidentes graves e raros acidentes pequenos. O mais sério deles foi quando cortei o pescoço subindo na traseira de um jipe para conhecer a maior concha do mundo. Estava no condomínio da praia. Todos os amigos e conhecidos de férias e feriados estavam lá para ver a maior concha do mundo. Como para quase todos a janela por onde a veríamos era alta demais, cada um inventou uma maneira de conseguir aumentar o seu tamanho. E eu inventei de subir no jipe, caí e não sei em que bati, mas acabei com a brincadeira de todos. Foi uma correria. Meu pai ouviu os gritos e no meio da minha corrida para casa ele me catou no colo e com seus conhecimentos de primeiros socorros, devido ao brevê de piloto, ele enfiou o dedo no corte para estancar o sangue. Minha mãe quis ver, mas quase desmaiou. Durante boa parte do percurso para o hospital, ia pedindo para o meu pai não me deixar morrer, afinal um corte no pescoço era definitivamente um sinônimo de morte. Foi a primeira e única vez que levei pontos. Até aqui a escola ainda continuava cumprindo seu nobre papel de “tempo livre”. Tinha muitos amigos meninos, as brincadeiras eram mais dinâmicas, nunca fui das bonecas. Aliás, como a grande maioria dos brinquedos que tive foram heranças das gerações mais velhas da família, as bonecas que cheguei a olhar foram dessa leva também, mais antigas que suas donas anteriores, uma vez que essas já tinham recebido de outras
  • 31. gerações. Mas não ligava, não gostava de brincar de mãe, ou de amigo imaginário. O único filho que cheguei a ter foi o cachorro que chegou novinho na casa da minha avó, mas não durou muito tempo, ele pesava de mais e não parava quieto, desisti de ficar com ele no colo e passei a correr com ele. A praia e a casa dos avós no interior foram a outra parcela de sorte para a infância. Foi nesses lugares que tive a oportunidade de brincar na água, na lama, na terra, no mato, tomar alguns “caldos”, ficar com olho de peixe, pisar no formigueiro, pegar carrapato, descer morro de grama, fazer guerra de mamona, construir castelo de areia, furar a lata de leite condensado e tomar tudo junto com meu avô. E catar pedras. Tudo isso sempre fiz acompanhada. Não tenho irmãos, mas sempre tive muitos amigos, e eles preencheram todo o espaço que dizem que um irmão cumpre. Tudo isso menos catar pedras. Isso eu fazia sozinha e ia guardando nos lugares mais seguros. Muitas vezes dava de presente e sempre guardava porque as achava muito bonitas. O ápice foi quando meus pais foram viajar e me trouxeram de presente pedras que quebravam. Era inacreditável. Quebrei uma, quebrei duas e parei, tinha que guardar aquilo para a eternidade. Imagina, pedras que quebram! Saindo do balé, minha mãe soube da tia de um amigo meu que começava a dar aulas de Laban para criança, e lá fomos nós, eu e mais três amigos, fazer a tal da aula. Completamente o oposto do que eu havia experimentado no balé, as posturas não existiam mais e o chão passou a existir não só para os pés. Não tinha certo e errado, a regra era tentar não se machucar, e serviu para todos nós. Obviamente, nessa época, eu não tinha a
  • 32. consciência de quem seria Rudolf Laban, talvez eu estivesse servindo de cobaia para alguém fazer pesquisas, mas tanto fazia, aquele era mais um espaço para o encontro com novas possibilidades de brincadeiras: um pano azul gigante, várias bolas de plástico e um túnel de pano, dentre outras coisas que já fugiram da minha memória. Um ano depois, eu tive de deixar de frequentar as aulas, pois minha mãe havia passado por uma cirurgia no joelho e teve de ficar imobilizada. Passei todas as minhas férias na casa dos meus avós e grande parte do tempo só com o meu pai. Meu pai era meu amigo. Brincava de tudo. Tinha ótimas ideias. Quando aceitava brincar com toda a turma da rua, era um sucesso, imagina uma pessoa daquele tamanho correndo atrás de você no “elefantinho colorido”, era de dar medo, deixava tudo mais emocionante. Eu cresci e ele cansou de correr. Com meus pais frequentei muitos museus, livrarias e teatros. Mas para gostar de museus tive um marco. Niki de Saint Phalle. Com nove anos, fui com a escola em uma exposição da artista plástica na Pinacoteca do Estado, e suas obras abriram-me caminho para realmente gostar das artes plásticas. Nessa fase, passei a frequentar aulas de desenho durante alguns períodos de férias, mas foram poucos. Na escola tinha começado a ter aulas de música. Geralmente essas coisas na escola não costumam receber muita importância, infelizmente, mas neste caso foi diferente. Tivemos aula com um maestro que botava a classe inteira para cantar os intervalos. Ele nos acompanhou durante alguns anos, e depois dele as aulas de música só voltaram no fim dos anos de colégio.
  • 33. Na casa de uma das minhas tias avós, tinha um piano, e, como era de costume na infância delas, quase todas tinham tomado aulas daquele instrumento e ensinaram-me, uma delas em especial, o pouco que restava em sua memória. Ficava então atormentando os ouvintes com as mesmas melodias, incansavelmente. Queria porque queria aprender a tocar piano, mas, quando tive a oportunidade, já mais crescida, de fazer alguma aula resolvi que queria violão, e o motivo era simples: queria um instrumento que eu pudesse levar para todo lugar. Lembro-me que desde muito cedo gostava de fazer “showzinhos”. Chamava a vizinhança e às vezes até cobrar entrada eu cobrava. Nunca estava sozinha, os amigos estavam ou apresentando junto ou cuidando de alguma outra coisa necessária para que o espetáculo pudesse acontecer – fazer o figurino, ligar o som, ascender as luzes, cobrar a entrada e etc. Tinha música, teatro e dança principalmente. Tudo depois de muito “ensaio”, que podia durar o dia inteiro e culminar na apresentação. Na verdade, geralmente era assim. Foram raras as vezes que a brincadeira durou mais do que um dia. O dia seguinte era muito distante para gente continuar com a mesma vontade de repetir as mesmas coisas e daí poder apresentar. Era tudo uma brincadeira. O dia seguinte, se fosse o caso, serviria para aumentar o repertório de apresentações. Mas nem tudo era tão tranquilo. Nos “ensaios”, muitas brigas aconteciam e a turma se dividia. A brincadeira tomava outros rumos – o caminho era a discussão, e eu não me incomodava, gostava de umas brigas. Com o passar do tempo, fui conhecendo o sentimento da vergonha e deixando de fazer “showzinhos”, mas os ensaios nunca pararam. Junto com as amigas, passava as
  • 34. tardes arrastando os móveis da sala e preparando coreografias. Com os meus oito anos, quis fazer ginástica olímpica, hoje chamada de ginástica artística. Nessa época, algo tinha acontecido na ginástica que a fez ter mais visibilidade na mídia, minha mãe se informou e descobriu uma academia da qual a dona era uma brasileira que tinha sido juíza nas competições internacionais. Entrei. Fiz um ano do que eles chamam de “escolinha” para então entrar despretensiosamente no “treinamento”. Durante quatro anos, dediquei-me intensamente a isso, minha vida se moldou para eu conseguir treinar cinco horas por dia, seis vezes por semana. Ao mesmo tempo, inventei que queria jogar handball na escola, e duas vezes por semana eu ia lá de noite para jogar. Entre escola e treinos, ainda conseguia ter tempo para as festinhas, tardes com amigos e algumas viagens. Mas a ginástica continuava sendo minha prioridade. Por causa dela, tive meu segundo encontro com o balé, mas de uma maneira completamente diferente. A aula era voltada para os movimentos que acompanhavam as acrobacias, na trave de equilíbrio ou no solo. Todos os movimentos deveriam ser executados com perfeição segundo as normas que regiam as competições. O balé servia então como instrumento para se ter uma ponta de pé mais bonita, uma postura mais elegante, um corpo alinhado. De todos os aparelhos, o solo era o que eu mais gostava. Para além das acrobacias, tinha a dança. Cada ginasta tinha sua música e sua coreografia, e de tempos em tempos tínhamos que relembrá-la. Quando esse dia chegava, se pudesse, eu ficava fazendo só aquilo, repetindo mil vezes a mesma coreografia. Como não podia, eu dava um jeito e
  • 35. sempre fazia o dobro das vezes. Mais tarde, tive certeza de que a Maria Eugenia havia frequentado a ginástica no mesmo período que eu, quando, em uma conversa sobre essas lembranças, cantarolei a música que dançava, e seu irmão, que fazia a aula junto, me disse que voltava da ginástica e ia tocar no piano a mesma música. Comecei a competir, às vezes, em grandes estádios com público e torcida e às vezes em pequenos espaços mal-equipados. Eram apresentações quase que sofridas. “Quase” porque eu gostava, mas “sofridas” porque eram carregadas de nervosismo e ansiedade. As competições duravam horas, tardes inteiras, mas lá estava a família e as amigas. Para além do trabalho corporal acrobático, a ginástica exigia precisão, domínio, concentração e disciplina. Errar era quase sinônimo de se machucar, e desistir era algo quase inadmissível. Cheguei a levar tombos que assustaram quem viu, mas parece que ou a gente vai acumulando sorte ou vai aprendendo a cair. Com 13 anos, larguei a ginástica. Não porque quis. Na verdade, resolvi que tinha que parar sem querer parar. Tinha descoberto que aquela quantidade de esforço físico, especialmente quando coincidente com a época do estirão, prejudicava o crescimento. Não tinha alternativa, mas ao mesmo tempo não queria deixar tudo aquilo. A solução foi diminuir a quantidade de horas de treino. O que veio com isso foram as pressões externas nos períodos pré-competições. Eu não queria mais competir, mas não tinha escolha. Até que chegou o momento em que eu resolvi parar de vez. Precisava então de algo que suprisse a falta que eu sentia de exercitar meu corpo. Foi quando a mãe de uma amiga minha conheceu um teatro-escola escondido no fim de uma
  • 36. rampa, num lugar onde antes parece ter sido uma fábrica de lustres. No começo de 2002, eu e essa amiga começamos a fazer aulas de dança e percussão. Paralelamente a isso, em outra escola, quis fazer aulas de violão e algum tempo depois acabei me deparando com a gaita. No mesmo lugar, pulei de galho e comecei as aulas do novo instrumento. Meu professor tinha uma ligação muito forte com o choro, o que acabou me incentivando a conhecer melhor esse universo da música brasileira. Três anos depois, parei a gaita, mas continuei a fazer as aulas de percussão no teatro- escola. O professor tinha mudado, e a aula se focou em apenas um instrumento, o pandeiro. Comecei a frequentar as aulas desse teatro-escola não com o intuito de me profissionalizar, mas para me divertir, junto com minha amiga, vendo a mãe dela dançar de uma maneira muito peculiar. Acabei sendo pega de surpresa. Encantei-me com aquele universo da cultura popular brasileira. Um universo tão próximo de nós, mas que frequentemente desconhecemos. Aquela mesma descontração e espontaneidade que haviam me levado àquele lugar, ali tomavam forma e se expressavam na dança, na música, na festa, na aula. Ritmos que eu nunca tinha ouvido e passos que eu nunca tinha feito me foram tão acolhedores que eu tinha vontade de repetir, repetir e repetir de novo. Esse processo foi me trazendo a familiaridade com aqueles sons e movimentos, e logo eu podia me divertir com eles. No colégio, eu começava a ter aulas de capoeira. Nas rodas, com meu pequeno tamanho, tive que buscar formas para atacar e me defender dos meninos amigos que na
  • 37. época precisavam exibir suas habilidades botando os “oponentes” no chão. Aprendemos os repertórios de golpes, toques e letras. Chegamos a ser batizados pelos mestres da minha professora. Mas, mais do que uma luta, aprendemos a brincar com o outro em um jogo de desafio e respeito. As aulas de dança do colégio, nesse mesmo período, começaram, a pedidos e iniciativas da minha série, a trabalhar as danças populares brasileiras. Como algo ali não me convencia, ou não me animava a fazer, eu preferi continuar na capoeira pelos três anos de colegial. Neste momento, tivemos um professor que nos acompanhou do começo ao fim do colegial e que ajudou a muitos de nós a fazer da escola o nosso espaço de encontro e de reflexão. Ele que no primeiro dia de sua aula nos disse que escola significava “tempo livre”. E o que fazíamos desse tempo? As aulas eram sempre inusitadas: eram filmes, peças de teatro, gritarias, músicas, discussões, construções. Presentes. Ninguém tinha a obrigação de ir, sem provas, nem chamadas, mas estávamos sempre em maioria na sala de aula. Pude presenciar um exemplo do que deveria ser uma aula, de como os alunos deveriam compartilhar da construção de um aprendizado. Pude presenciar o que seria a aula de uma possível escola real. Independente de qualquer coisa, o colégio foi o lugar onde me encontrei com pessoas maravilhosas. De lá trago amizades que perduram. Com a maioria cresci junto. São daquelas pessoas que não poderiam deixar de aparecer num texto como este. Pessoas com as quais já brinquei em hospital, já montei um simulador de coração, já cantei, já discuti, já
  • 38. pedi desculpas, já viajei, já vi a morte, já ri do tombo do outro, já pedi conselhos, já passei numa república, já muitas coisas e outras mais que estão por vir. Delas e deles tive sempre uma acolhida carinhosa. Durante dois anos virei frequentadora assídua daquele teatro-escola. Fiz aulas, oficinas, apresentações de fim de ano e fui a todas as festas. Entrei então em um grupo de formação em danças brasileiras que estava sendo desenvolvido por alunos e amigos de lá para durante dois anos pesquisar as danças populares e criar um espetáculo que seria apresentado no próprio teatro. Foi uma ótima experiência na medida em que para além da dança pude começar a me familiarizar com uma discussão mais abrangente sobre a riqueza das manifestações populares e o que podemos criar a partir desses saberes. Éramos, no começo, 25 pessoas, e eu, como na maioria das coisas que fiz na vida, era a caçula. O curso tinha sido estruturado em módulos referentes a cada dança, como cavalo marinho, caboclinho, frevo, “afro”, e teria a capoeira como base para o aquecimento e o preparo físico. Junto a essa estrutura de trabalho corporal, um tempo tinha sido separado para conversas e filmes sobre a dança e sobre o ser humano. O curso tinha uma intenção que ia além do corpo e se propunha a reflexão. Tive a oportunidade de fazer uma oficina que me marcou muito. Na época, não sabia quem era Klauss Vianna, mas tinha, naqueles dias, experimentado um trabalho com princípios de sua técnica. Partindo de apoios e pesos, chegamos ao improviso. O começo foi difícil. Era tudo muito novo. Era preciso calma e concentração para acompanhar e fazer parte do processo. O que me chamou a atenção foi que todo o trabalho daqueles dias me
  • 39. acompanhou menos na dança, a principio, mas mais no meu dia a dia. As sensações que havia experimentado voltavam constantemente à memória do corpo. Depois daquela experiência fui ler o livro A Dança, escrito pelo próprio Klauss Vianna, no qual me deparei com a passagem: Acredito que o meu método de trabalho tenha começado a surgir no momento em que vi meu filho nascer. Achei tão duro, tão violento vê-lo nascendo e logo em seguida ser afastado da mãe... De alguma forma percebi que ali começava a interromper-se o fluxo natural das coisas, mas, por paradoxal que possa parecer, era impossível conceber a vida e o próprio nascimento sem qualquer violência. Nesse momento, tornou-se claro que o mesmo processo ocorria em nosso corpo, da superfície da pele até o sistema nervoso, num movimento em que nascimento, vida e morte confundiam-se como um jogo de forças ao mesmo tempo opostas e complementares. Aí deveria residir a essência de qualquer trabalho que propusesse recuperar a percepção da totalidade do corpo e tornar consciente gestos até então mecanizados em nossa prática cotidiana. Ao acordar, ao sensibilizar uma dada articulação, adquiro mais
  • 40. um ponto de equilíbrio em meu corpo, e isso acaba agindo sobre todo o resto, inclusive sobre as coisas que aparentemente nada têm a ver com músculos e articulações, como a atividade intelectual (VIANNA, 2005). No segundo ano do curso, tive meu segundo encontro com Laban. Também em uma oficina, pude ter um contato rápido com seu método. Era tanta informação que fiquei com a impressão de que era algo racional demais para mexer com o corpo. Mas ainda tenho curiosidade para conhecer melhor seu modo de trabalho, penso que esse segundo contato foi apenas um contato superficial. Nesse meio tempo, uma cia., da qual uma das professoras do nosso grupo fazia parte, me convidou para participar de algumas apresentações que fariam no Centro Cultural São Paulo. Topei na hora. A apresentação era uma aula espetáculo sobre algumas danças populares brasileiras e principalmente as histórias, características e movimentos dos orixás. Não sabia nem por onde começava a me maquiar. Aprendi com uma das meninas que apresentava também. No primeiro dia, ela me maquiou, no segundo ela ia indicando a ordem dos produtos e deu os retoques finais, no terceiro, eu fiz tudo sozinha. Para quem nunca havia se maquiado, ter que “pesar a mão” para fazer uma maquiagem para o palco não foi nada fácil. A escola, que nessa fase já tinha perdido seu nobre espaço de “tempo livre”, ia nos enquadrando cada vez mais para os moldes dos famosos vestibulares. E nós queríamos.
  • 41. Queríamos passar o mais rápido possível em uma faculdade para não precisar passar pelas aulas de um cursinho. Eu pelo menos não. Mas ao mesmo tempo era incômoda aquela maneira de ensinar e aprender que tinha ficado tão distante de tudo o que vivíamos. A vida parecia ter se resumido a fórmulas matemáticas ou fórmulas de análise que nem parecia mais que falávamos de nós. Foi terminando essa fase que li Guimarães Rosa. E com ele chorei pela primeira e única vez até agora nas páginas de um livro. Era Miguilim. A reza não esbarrava. Uma hora o Dito chamou Miguilim, queria ficar com Miguilim sozinho. Quase que ele não podia mais falar. “– Miguilim, e você não contou a história da Cuca Pingo-de- Ouro...” “– Mas eu não posso, Dito, mesmo não posso! Eu gosto de mais dela, estes dias todos...” Como é que podia inventar a estória? Miguilim soluçava. “– Faz mal não, Miguilim, mesmo ceguinha mesmo, ela há de me reconhecer...” “– No Céu, Dito? No Céu?!” – e Miguilim desengolia da garganta um desespero. “– Chora não, Miguilim, de quem eu gosto mais, junto com mãe, é de você...” E o Dito também não conseguia mais falar direito, os dentes dele teimavam em ficar encostados, a boca mal abria, mas mesmo assim ele forcejou e disse tudo: “– Miguilim, Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais
  • 42. alegre, mais alegre, por dentro!...” E o Dito quis rir para Miguilim. Mas Miguilim chorava aos gritos, sufocava, os outros vieram, puxaram Miguilim de lá. Guimarães mudou meu ler. Havia descoberto que palavras no papel podem ser mais do que isso. Li nele as frases mais bonitas. As apresentações resultantes dos dois anos do curso de formação coincidiram com a época que eu deveria decidir a faculdade que gostaria de fazer. Optei por ciências sociais. Não me interessava pela academia, interessava-me pelo estudo e pelos três pilares do curso: política, sociologia e antropologia. A dança, nesta época, não estava tão clara para mim como uma opção que devesse entrar no meio acadêmico, aliás, eu acreditava que as linguagens artísticas não deveriam estar dentro das universidades, achava pretensioso demais, ou enganoso de mais, ter um diploma de artista. Mas hoje, terminando minha faculdade, vejo que enganoso é se considerar formado em qualquer coisa. Do grupo de formação em danças brasileiras nasceram duas iniciativas. Na qual resolvi continuar, estava sendo formado um grupo de sete dançarinos, em sua maioria professores do teatro-escola, que dali a um ano estaria apresentando o espetáculo Passo. A brincadeira tinha tomado proporções inimagináveis, e eu estava tendo a oportunidade de seguir em frente com ela. Foi nesse momento que resolvi mergulhar de vez na dança. E foi aí também que fui ver, pela primeira vez, como essas danças aconteciam nos seus contextos originários. Em
  • 43. uma viagem para Pernambuco, tive a oportunidade de ir a ensaios e festas de algumas das manifestações populares que ocorrem lá. E percebi o tamanho da falta que sentia daquilo... de ver por mim mesma como acontecia tudo aquilo que eles chamam de brincadeira. Não tinha vontade de fazer nada, só olhar. Era lindo ver o que aquelas brincadeiras representavam como uma organização espontânea do coletivo que foi capaz de costurar gerações e demonstrar a vitalidade de tantas pessoas. Aqueles corpos que atentos em suas distrações propunham movimentos dos mais inusitados e maravilhosos. Era impossível ver aquilo fora dali, mas vi que era possível viver aquela energia de forma diferente como diferente eram nossas vidas e nossas histórias para contar. O “espírito” de festa que vi ali era o mesmo que havia me encantado nas aulas que eu tinha feito no teatro-escola, o que mudavam eram os contextos. Para deixar de olhar e aceitar ir embora, era sempre difícil. Saí sempre com um gostinho de quero mais. Não desisti da faculdade porque de uma maneira ou de outra ela me completava, e me completa. Os horários ficaram apertados e a certo momento não conseguia mais dar conta das leituras como eu gostaria. Agora, me aproximando do fim do curso, sinto falta de tê-lo aproveitado melhor, mas não me arrependo. Sei que aproveitei o máximo que consegui. Encontrei-me com textos e discussões que sabendo agora teria sido uma pena não conhecê-los. Mas fato é que a dança dominou meus interesses, ao mesmo tempo em que procurei aprofundar a discussão que havia se iniciado, para mim, no curso de formação. Antes de iniciar o trabalho, nas férias que separaram o colégio da faculdade, a dança
  • 44. como passatempo e a dança não apenas como passatempo, fui viajar com uma amiga, a Maria Eugenia, que um pouco depois se tornou minha parceira no trabalho. Tinha acabado de fazer 18 anos. Foram 20 dias viajando e conhecendo pessoas maravilhosas. Lá tive uma das experiências mais bonitas da minha vida; depois de uma caminhada de seis horas subindo o vulcão Villa Rica, vi lava. A sensação foi daquelas que dizem ser indescritível. E ainda ganhamos uma descida escorregando vulcão abaixo – sim, detalhe, ele estava coberto de gelo. O Passo começou. Tive então meu terceiro encontro com o balé. No início de alguns dos dias de ensaio, tínhamos um balé mais preocupado com a consciência corporal do que com o alfabeto próprio daquele universo. Por ele não nos interessávamos. O que importava era exatamente as possibilidades estruturais que o balé já tem formalizado e que poderiam nos auxiliar no trabalho com um outro alfabeto qualquer. Queríamos os princípios e não as formas. A base do desenvolvimento coreográfico eram os passos e procedimentos provenientes das danças populares brasileiras. Dentre sua vastidão trabalhamos com frevo, cavalo marinho, batuque de umbigada, samba de parelha, coco de zambê, maracatu rural, capoeira, caboclinho e nos deparamos com várias dificuldades. A maioria relacionada à metodologia de trabalho. As primeiras apresentações foram feitas nos CEUs (Centro de Educação Unificada). Nos deparamos com todo tipo de público, e com um espetáculo que ainda não condizia
  • 45. com nossos anseios. A estreia tinha sido marcada para dali a poucos meses no Sesc Vila Mariana. Era março de 2008. Pouco antes do que viria a ser nossa última apresentação, meu pai passou por sérios problemas de saúde e teve de ficar internado durante quase um mês. Deparei-me então com a vida frágil, fácil de se desestruturar. Fiz a última apresentação com dor nas costas, um frio horrível, um choro constantemente contido e o pensamento sempre apreensivo por notícias do hospital. Foi a primeira vez que cai em cena. A coisa mais injusta sobre a vida é como ela termina. Eu acho que o verdadeiro ciclo da vida está todo de trás para frente. Nós deveríamos morrer primeiro, nos livrar logo disso. Daí viver num asilo, até ser chutado pra fora de lá por estar muito novo, ganhar um relógio de ouro e ir trabalhar. Então você trabalha quarenta anos até ficar novo o bastante para poder aproveitar a sua aposentadoria. Aí curte tudo, bebe bastante álcool, faz festas e se prepara para a faculdade. Vai para o colégio, tem várias namoradas, vira criança, não tem nenhuma responsabilidade, se torna um bebezinho de colo, volta pro útero da mãe, passa seus últimos nove meses de vida flutuando, e termina tudo num grande orgasmo. Não seria perfeito? (Charles Chaplin). A vida, por sorte, não tinha terminado. Toda a família teve de recomeçar. Com aquele Passo, eu e, ouso dizer, os outros, caminhamos individualmente. Para concordar ou discordar do que fizemos naqueles dois anos, nada foi em vão. De lá todos saíram com projetos encaminhados.
  • 46. Foi então que eu e outra dançarina do grupo, Maria Eugenia, decidimos continuar a caminhar juntas. Participamos de algumas aulas espetáculos nas quais ouvimos repetidamente um discurso sobre uma nova dança. Uma dança que, independente do discurso, é a dança que fazemos, é a brincadeira que compartilhamos. Pelo mesmo teatro-escola, também tive a oportunidade de participar de um curso de formação de gestores culturais dado a todas as instituições finalistas e semifinalistas do Prêmio Cultura Viva, do Ministério da Cultura. Em três encontros, discutimos a cultura, o governo, os projetos, mas mais do que nas atividades propostas a riqueza dessa experiência esteve no encontro e nas conversas descompromissadas. Muita gente bacana. Tudo isso me mobilizou a pensar a arte e o fazer artístico como meio de transformação. Durante o período de escola, cheguei a participar de alguns projetos sociais, mas nunca me identifiquei de verdade com nenhum deles. Tenho vontade de criar um projeto que me permita unir as duas coisas. Sinto dificuldade em enxergar como o meu fazer poderia modificar diretamente o outro que me assiste ou que compartilha comigo daquele momento – no caso de uma apresentação. O canal do sensível pode ser despertado naquele instante, mas para que disso surja algo efetivo e prático, por pequeno que seja, na vida do outro, penso que é um percurso muito longo. Por que então não pensar em utilizar no dia a dia de um projeto essa potência que a arte pode proporcionar, para que a partir disso sejamos capazes de fazer algo para mudar um status quo que tanto inquieta? Me inquieta. Mas ainda não sei como fazer isso.
  • 47. Almejando construir um caminho na dança, começamos a desenvolver um projeto juntas e passamos a nos inscrever em editais. Foi, então, que surgiu esta oportunidade. O primeiro projeto que ganhamos. Escrever era o mais novo desafio. Dar início a um projeto de pesquisa teórica não nos distanciou de nossa pesquisa com o corpo. Tomamos como ponto de partida aquilo que já vínhamos desenvolvendo com a dança. O que seria isso exatamente é o que fomos descobrir em uma das costumeiras férias em Recife. Talvez por estarmos tão próximas de nossas referências, ou, talvez – penso ser mais provável –, pelo descanso da cabeça e do corpo, é que fomos descobrir em uma gostosa caminhada pela praia que queríamos falar sobre a brincadeira. Assim como nas nossas práticas de dança, também no processo da escrita muitas vezes sentimos falta de um “olhar de fora”, de alguém que nos orientasse em nossas incursões dentro de algo tão pouco explorado. Foi então que sugeri como orientador meu antigo amigo e professor. Passamos a nos encontrar semanalmente, e aquilo que eu pensava que seriam encontros densos para uma reflexão teórica sobre a dança começaram a ser momentos que nos enriqueciam de saberes que permeavam a dança e todos os demais aspectos de minha vida. E desses encontros veio por fim a clareza de uma vontade de priorizar, também na escrita, aquilo que buscávamos naturalmente na dança. Marina
  • 48. CONVERSAS INTRODUÇÃO Com os dançarinos com os quais conversamos, buscamos refletir sobre as experiências pessoais, as buscas, os objetivos, as faltas. Elaboramos três perguntas que de algum modo lidavam com questões muito presentes em nossa pesquisa. 1) Por que a opção pela dança em sua vida e por que acha que ela é a melhor maneira de transmitir o que deseja? 2) Existe uma inquietação comum, uma busca que se faz presente em todos os seus trabalhos, ou cada trabalho possui uma inquietação particular? 3) Você, como público, sente falta de alguma coisa nos espetáculos de dança? Por meio dessas questões esperávamos dar início e nortear as conversas, tentando trazer, a partir delas, as diversas e muitas vezes inusitadas questões que pudessem aparecer. Algumas conversas foram gravadas na boa e velha fita cassete, outras foram feitas pelo meio virtual. Algumas longas outras curtas. Daniel Fagundes, Helder Vasconcelos, Julia Rocha e Susana Yamauchi são aqueles dançarinos que participaram das conversas e aos quais devemos nossos agradecimentos pela disponibilidade. Essas conversas, muito prazerosas e enriquecedoras, nos propiciaram novas reflexões e nos ajudaram a organizar as que já tínhamos. A partir das gravações, tomamos a liberdade de utilizar as falas e dissertar sobre algumas questões: - Relação música e dança e a criação de movimentos - O improviso - O “contemporâneo” e o “tradicional” - A técnica
  • 49. RELAÇÃO MÚSICA E DANÇA E A CRIAÇÃO DE MOVIMENTOS Um dos dançarinos com quem conversamos e que já possui um longo e aprofundado trabalho com as danças populares brasileiras chamou a nossa atenção para a simplicidade com que se dá a relação entre música e dança. Ela acontece da forma mais “óbvia” e mais interligada possível. Parece que a música se faz para a dança e a dança se alimenta da música. Muitas vezes a sonoridade percussiva de um passo é idêntica à batida rítmica de um dos instrumentos. É comum que o ritmo dite a elaboração dos movimentos, no entanto, essa relação também pode se dar através da melodia, como acontece com o Frevo. Os instrumentos melódicos propõem movimentações que envolvem o corpo como um todo. Quanto mais braços, troncos e pernas seguem os instrumentos, obedecendo às pausas, acelerações e intensidades, maior é o encanto para quem assiste. Embora a relação entre som e movimento aconteça de forma evidente, notamos que, sem deixar de seguir a música, a dança vai se tornando cada vez mais complexa. As batidas rítmicas dos pés tornam-se velozes e ágeis, os movimentos corporais do Frevo ganham virtuosismo. Diferente do que poderíamos pensar, essa “obediência” à cadência da música não restringe nem limita as possibilidades corporais, muito pelo contrário, o fato de existir uma ordem à qual o corpo é inicialmente submetido faz com que haja uma “verticalização dos movimentos”. É como se os passos, justamente por terem que se desenvolver dentro de certas leis, fossem tornando-se mais complexos. Por exemplo, existem trupés que acompanham a simples célula rítmica do Cavalo Marinho, mas, conforme a dança foi se desenvolvendo, essas mesmas trupés passaram a compor movimentos que, embora não estivessem fora do ritmo, eram executados de forma muito mais complexa e rebuscada. Associamos isso a uma possível forma de se trabalhar com cada dança popular específica. Experimentando essa maneira, certa vez, trabalhamos com o “toque de guerra”, um dos ritmos do Caboclinho. Notamos características comuns a todos os passos: movimentos que parecem sempre seguir um trajeto reto; direções muito bem- estabelecidas; e pernas que se desdobram em movimentos ágeis e precisos. A partir da
  • 50. identificação das especificidades dessa dança, passamos a criar novos movimentos que obrigatoriamente seguiam esses padrões, explícitos, mais uma vez tanto na dança como na música. Surgiram então passos que já não faziam parte da dança “tradicional” do caboclinho. Estes eram movimentos corporais novos que poderiam ser executados em diferentes músicas e ritmos, e que, no entanto, só surgiram em decorrência de uma delimitação inicial. O IMPROVISO Em uma outra conversa surgiu como tema o estar em cena. Diferente de nós, a maioria daqueles com quem conversamos trabalham, sobretudo, a partir da improvisação. Percebemos a partir dos relatos que uma cena improvisada traz como “desafio sedutor” um estado de permanente atenção. O desafio está em manter o corpo aberto à “escuta” de uma série de fatores que muda de acordo com a ocasião, as condições físicas, o som, o estado pessoal dos dançarinos, enfim, diversas interferências que conseguem impactar de maneiras distintas no corpo de cada dançarino. O que é sedutor são as novidades corporais que podem surgir como resposta. Quando trabalhamos na elaboração cênica de uma dança, criamos uma espécie de partitura coreográfica. Determinamos uma sequência de movimentos que pode inclusive conter pequenos movimentos improvisados. No entanto, seguimos essa partitura que pode ser repetida a partir de diferentes pontos. Ambas, tanto improviso como coreografia, porém possuem o risco de se fixar em uma comodidade corporal. Uma improvisação pode facilmente repetir um mesmo recurso em diferentes situações, e o que em um momento surgiu de modo espontâneo e inesperado pode tornar-se uma saída, uma fuga na repetição. Evidentemente, a reutilização de um mesmo procedimento retira dele seu principal fundamento: a novidade. Na coreografia, isso se torna igualmente perigoso. Na medida em que os passos seguintes se tornam previsíveis, o ato de estabelecer um caminho pode favorecer uma comodidade corporal e terminar por desvitalizar o corpo. Curiosamente no mesmo diálogo conversamos sobre a falta de técnica notada nos espetáculos de dança. Embora compreendêssemos a técnica de maneiras distintas, percebemos que tanto nós quanto nossos entrevistados sentíamos falta de um mesmo aspecto.
  • 51. Dois depoimentos chamaram especialmente nossa atenção: um relacionado a uma falta de “vitalidade das danças”, e outro referente à dança performada em cena que, em alguns casos, parece ser menos interessante que a dança fora dela. Essa falta de vitalidade que é notada em cena, desaparece em uma dança “descompromissada”, é o mesmo aspecto que tratamos acima como “desvitalizador” tanto do improviso quanto da coreografia. Um recurso que usamos para tentar sustentar esse vigor e conservar na ação do palco uma vitalidade que nos coloque em permanente estado de prontidão consiste em buscar no ato da criação e em cena tanto prazer quanto concentração e rigor. Percebemos que as referências que tínhamos desses aspectos resultavam de nossas experiências com as brincadeiras e do equilíbrio desses fatores que nelas encontramos. O “CONTEMPORÂNEO” E O “TRADICIONAL” Ouvimos um depoimento bem interessante sobre a questão do “contemporâneo” e do “tradicional”, e queríamos relatá-lo. “A compreensão que eu tenho do fazer contemporâneo é o particular, o que só você pode dizer, o que só você pode fazer. E que de tão particular chega no geral, no mais humano” (informação verbal). O contemporâneo como um contexto no qual a expressão do particular se faz mais presente. Já "o “tradicional” é algo extremamente coletivo, não existe “Eu inventei o mestre Ambrosio”, ou “Eu inventei a Velha do Bambu” (figuras da brincadeira do Cavalo-Marinho). Essa necessidade não existe no coletivo, quem inventou, que assinatura é essa, existe uma necessidade que está em um coletivo, embora atenda muitas necessidades particulares." Ambos os casos se encontram no mesmo ponto: “Atender as necessidades humanas. (...) só que em contextos e de formas diferentes”³. E tanto no coletivo como no particular o ponto comum parece ser revelar o humano de infinitas formas distintas. Através dessa visão entendemos que os passos, os princípios, os significados e o simbolismo presentes nas brincadeiras não se restringem a uma forma ou a um contexto específico, mas podem estar presentes tanto numa construção artística quanto num trabalho de ordem pedagógica.
  • 52. A TÉCNICA Um ponto que surgiu logo na primeira conversa que tivemos foi a questão da técnica. Ela apareceu, a princípio, como aquilo que os entrevistados sentiam falta nos espetáculos de dança. Surpreendemo-nos uma vez que a técnica parecia ser, para nós, aquilo que geralmente saltava aos olhos. Várias vezes saímos de espetáculos com o seguinte comentário: “Não gostei muito, mas eles têm um domínio técnico incrível dos movimentos”. O incômodo deles era causado exatamente pela falta desse domínio. "A produção da dança contemporânea fica nessa coisa de corpo híbrido, vários treinamentos corporais, aí você olha, a pessoa não tem domínio não só do corpo, mas de tempo e espaço, não tem dinâmica, não tem tônus, não tem vigor. (...) aí que entra a técnica para te auxiliar, ela vai te dando limites, parâmetros, recursos." Segundo o verbete do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, “Técnica – 1. A parte material ou o conjunto de processos de uma arte. 2. Maneira, jeito, ou habilidade especial de executar ou fazer algo”. Entendendo técnica como um trajeto para o domínio do movimento, acreditamos que ele envolve um conjunto de processos que vai desde a construção de uma estrutura corporal até uma metodologia de trabalho que tenha como objetivo o aprimoramento da movimentação. Nosso trabalho inicial com as danças populares foi assimilar os movimentos específicos das brincadeiras, os chamados passos. Fomos percebendo que toda essa variedade de passos oferecia-nos possibilidades corporais que se estendiam para além da execução de suas formas. A dança dos Caboclinhos, por exemplo, exige uma grande atenção às direções; os batuques possibilitam maneiras diferentes de trabalhar com o peso; o frevo nos mostra inúmeras maneiras de torções, enfim, poderíamos dar diversos exemplos de como as movimentações dessas danças ampliam nossos recursos corporais e nos permitem utilizá-las em contextos outros que não os das brincadeiras. Acreditamos que as possibilidades corporais que exemplificamos acima são
  • 53. procedimentos e recursos que transcendem os limites das próprias danças populares. Por isso, uma vertente dos nossos esforços está voltada para a construção de um método de trabalho que possibilite o desenvolvimento dessas possibilidades independentemente das formas, dos passos e das danças em que estão inseridos. E, numa via de mão dupla, como eles podem ser usados para romper com os limites dos passos, ampliando as possibilidades de movimentações. Embora esse método esteja ainda em elaboração, notamos que, nos trabalhos de construção coreográfica, ele já tenta dar conta de processos que eram interpretados intuitiva e desordenadamente. A construção dessa metodologia seria então uma tentativa de organizar esses processos de execução dos passos, de trabalho com diversos procedimentos e de reelaboração das formas buscando assim construir o que seria uma constante de trabalho para o aprimoramento e o domínio do movimento. O cuidado estaria na elaboração de uma metodologia que não desperdiçasse esse estado “brincante” apreendido com as brincadeiras.
  • 54. BRINCADEIRA INTRODUÇÃO Percebemos que, apesar de distintas, todas aquelas questões levantadas em nossos diálogos remetiam sempre às nossas referências: as brincadeiras. Seria então inevitável relatarmos mais detalhadamente de que maneira elas se configuram como aspecto de pesquisa. Para que fiquem mais evidentes os diversos temas abordados, separamos cada um deles em subtítulos: - Repetição - Corpo comum e corpo particular - O equilíbrio dentro da brincadeira e o estado de prontidão - As brincadeiras e a vida - Arredondando... REPETIÇÃO Diversas manifestações populares no Brasil são denominadas por seus participantes de brincadeiras, e eles, por decorrência – ou causa –, de brincantes. As brincadeiras envolvem diversas linguagens artísticas como poesia, artes plásticas, teatro, música e dança. E foi por meio da aprendizagem das várias danças que penetramos nesse universo. Sempre nos fascinamos pelo contexto que envolve cada uma dessas danças, pelo comprometimento e pela despretensão, pela seriedade e pela festividade, pela manutenção de uma estrutura de passos e de uma sequência de cenas e pela novidade criativa trazida na exibição particular de cada brincante. Essa composição equilibrada de concentração e divertimento nos parecia algo muito especial, que se refletia no corpo dos brincantes em uma prontidão e um prazer tão verdadeiros que a dança que faziam seria bonita independentemente da forma de seus passos. Portanto, assim como as diversas características das formas nos ofereciam uma referência corporal, a brincadeira e a maneira do brincante se relacionar com seu corpo e com seu entorno tornaram-se também
  • 55. uma referência. E é sobre ela que gostaríamos de falar. Quando dizemos ter como referência principal as brincadeiras populares, estamos falando também de um processo de aprendizado que se dá pela repetição. Um brincante, geralmente, aprende a dançar quando criança e, envolvido pelo contexto da festa, é seduzido não por um imperativo e racional, em virtude da qual a aprendizagem da dança tenha algum fim pragmático, mas pela simples vontade de participar daquilo que o seduz. O movimento, embora não inventado por ele, ganha em seu corpo características particulares. Não existem o “certo” e o “errado”, existem o diferente e as possibilidades que permitem a execução de movimentos particulares que correspondem a um ato espontâneo. Dentro das regras de cada brincadeira, que lida com limites definidos, a criatividade parece tomar forma. Tais regras referem-se a um conjunto de características específicas que está relacionado tanto aos passos como ao ritmo da música e à ordem dos fatos que irão se encadear do começo ao fim da experiência. Cada brincadeira possui a mesma estrutura, que, em sua especificidade, se repete. Passos, música e sequência de acontecimentos sempre irão existir de formas distintas, criando assim a “personalidade” de cada uma. A repetição mantém essa identidade visível. O processo de aprendizado dado pela repetição também permite uma assimilação consistente e uma familiarização com os movimentos, o que nos parece necessário para possibilitar uma brincadeira com o corpo que leve à recriação daquele alfabeto. Por recriação entendemos não só modificações propositais feitas nos passos, mas a maneira particular com que cada brincante os executa. São invenções ou trejeitos que trazem a novidade. * * * Para iniciar esta pesquisa, passamos alguns meses experimentando retomar o vocabulário que havíamos aprendido com cada brincadeira. Passamos pelo Frevo, Caboclinho, Batuque de Umbigada, Maracatu Rural, Capoeira, Cavalo Marinho e Samba de Parelha. Nessa experiência, retomamos o processo de repetição e verificamos, de um modo prático, a validade da hipótese sobre a sua importância no aprendizado dessas danças. Retomando e repetindo os passos, fomos nos sentindo cada vez mais confortáveis
  • 56. e instigadas a acrescentar algo de novo naquelas estruturas. Sem pensar em mecanismos para essa reelaboração, fomos deixando que a brincadeira do corpo nos sugerisse novas formas. E dessa brincadeira surgiram ideias que mais tarde nos foram muito úteis em processos de criação. Refletindo sobre essa experiência, perguntamo-nos por que nós, quando nos apropriamos desse alfabeto popular e recriamos em cima dele, dizemos que aquele novo passo não pertence especificamente a nenhuma das danças, mas quando os brincantes inovam os antigos passos, esses continuam dentro do vocabulário da manifestação. Uma possível resposta a isso está ligada ao objetivo final de cada um. A nossa finalidade não é a de se ater exclusivamente a uma ou outra brincadeira popular, mas aprender dela um amplo conjunto de movimentos e procedimentos coreográficos capazes de nos fazer lidar com o corpo e seu entorno, e que nos torne capazes de expressar o que queremos. Já os brincantes parecem querer ampliar somente o universo da própria brincadeira na qual estão inseridos. Outra possibilidade de responder a esta questão é uma observação sobre os diferentes contextos nos quais acontecem as recriações. A recriação do brincante está dentro do contexto da própria manifestação popular, a nossa está dentro do contexto da criação e elaboração de cenas para o palco. Para ambas as hipóteses, é importante enfatizar que a recriação dos brincantes é o ouro das brincadeiras, é a expressão visível de que as manifestações populares não são algo fixo e imutável, mas, pelo contrário, são expressões vivas de um coletivo que é composto por diversos particulares ativos e que se move e se transforma no tempo. CORPO COMUM E PARTICULAR As brincadeiras revelam um universo compartilhado também por crianças, essas às assistem, deslumbram-se e muitas vezes participam. "Muito menino brasileiro deve ter tido como primeiro herói não um doutor branco, um oficial da marinha ou advogado, mas um acrobata escravo que viu dar piruetas no circo e no bumba-meu- boi no engenho, ou um trompetista negro ou flautista." (MURPHY, 2008).
  • 57. O envolvimento com o contexto da festa as fazem participar de diversas maneiras, e uma delas é repetindo aquilo que assistem. Não raro vimos nos ensaios de Maracatu Nação crianças muito pequenas sentadas no chão e nele batendo com dois gravetos procurando repetir o gesto feito pelos mais velhos no tambor. Isso também ocorre com a dança, o movimento, ainda que não inventado por ela, ganha em seu corpo características particulares. Ao assistir a uma brincadeira, temos muitas vezes a possibilidade de ver um mesmo passo acontecendo em corpos de diferentes idades, crianças muito pequenas, adolescentes, adultos e velhos. É possível notar que no momento em que adentram no universo dessas danças as crianças as percebem de acordo com seu olhar específico. A maneira como as introjetam corresponde a esse olhar, os movimentos serão executados buscando um modo confortável e prazeroso de acontecerem em seus corpos. Para tanto, precisam estar ajustados à sua conformação física particular. Os trejeitos e as peculiaridades infantis são verticalizados ao longo de seu desenvolvimento artístico. Isso resulta tanto em uma particularidade exclusiva a cada brincante quanto em uma permanência de gestos e características de um corpo de criança. Observamos portanto que tanto a criança ao dançar reproduz em seu corpo gestos que observamos nos dançarinos mais velhos, quanto na dança dos mais velhos é claramente notada uma maneira de dançar que foi mantida desde sua infância. O universo da brincadeira perpetua-se de diferentes formas, pelas diversas gerações. São corpos que carregam ao mesmo tempo um aprendizado comum a todos, como: os passos, as músicas; a cronologia do desenrolar da brincadeira; o suingue, ou melhor, o sotaque daquela brincadeira, e a novidade que o fazer de cada um traz. É um corpo coletivo e ao mesmo tempo particular. E, mais do que isso, é um coletivo que compartilha também suas criações para além de um aprendizado comum, ou seja, não existem autores. Não se sabe quem criou o passo, a música ou a figura, mas não importa, são na verdade criações da brincadeira exibidas no particular de cada brincante. A finalidade do brincar, portanto reside em si mesmo. Sua “ação”, a princípio, não produz nada em termos materiais, não tem um fim exterior individualista que possa ser apropriado por outros, mas suas características permitem que o homem desfrute, naquele momento espontâneo, uma ação prazerosa por si própria. A nosso ver, esse jogo entre coletivo e particular, um sustentando o outro, explica