2. O TERMO “BARROCO”
etimologia e significação
pérola irregular e defeituosa; processos confusos de raciocínio
ETIMOLOGIA
valor: negativo, pejorativo bizarro; perda da clareza, da pureza e da elegância clássicas
visão dos clássicos
estilo impuro, alambicado e obscuro
Wölflin, a reabilitação
o teórico alemão Wölflin reabilita o termo “barroco” e diz que ele designa uma forma peculiar de arte moderna
3. O HOMEM “BARROCO”
dividido entre duas concepções de mundo
TEOCENTRISMO ANTROPOCENTRISMO
[medieval] [renascentista]
Deus é o centro e a medida de todas as coisas O homem é a medida de todas as coisas [humanismo]
crença no sistema geocêntrico crença no sistema heliocêntrico
conhecimento restrito à Igreja produção e propagação da arte
valorização dos santos e mártires valorização de Grécia-Roma [Mitologia : caráter clássico]
consciência da transitoriedade da vida, busca a salvação celebração do prazer de viver [carpe diem]
consequências
espiritualização da matéria
mistura do real e do sobrenatural
fixação de estados contraditórios
grande volume de antíteses e paradoxos
4. A CONTRARREFORMA
e suas implicações na literatura barroca
século XVI
Martinho Lutero protesta contra desvios-desmandos dos que professavam
Reforma Protestante a doutrina católica. [a Reforma espalha-se por Alemanha, França, Reino
Unido e Holanda]
Defende-se a unidade da fé e a disciplina eclesiástica. Desdobramentos:
Concílio de Trento [1545] Inquisição, Tribunal do Santo Ofício e Index librorum prohibitorum. A Companhia
de Jesus difunde e aplica os ideais contrarreformistas.
Autos de fé: rituais de punição aos hereges, que eram queimados em praça
Clima de Terror Religioso pública. A ação da Inquisição atingiu principalmente Bahia e Pernambuco.
Autores como Galileu, Descartes e Newton são abolidos do ensino.
temas na literatura
fragilidade e efemeridade da existência contrição e consciência do pecado
dolorosa percepção do tempo e da efemeridade advertência contínua sobre a brevidade da vida
permanente inutilidade das glórias mundanas consciência de que o homem é mortal e limitado
5. O BARROCO
estilos e ideologias
cultismo ou gongorismo conceptismo ou quevedismo
influência: Luiz de Gôngora influência: Francisco de Quevedo
requinte da forma sutileza das idéias
vocabulário raro raciocínios engenhosos
alusões mitológicas associações inesperadas
reiteração de metáforas alegorias, paradoxos
jogos de palavras jogos de idéias
uso excessivo de figuras de linguagem percepção íntima dos objetos
Essas duas tendências se completam e, não raro, coexistem num mesmo texto literário. No Sermão da sexagésima,
Vieira condena os abusos do estilo cultista, próprios dos pregadores da Ordem de São Domingos, no entanto,
esse sermão, de estilo conceptista, apresenta, em alguns momentos, o uso do mesmo estilo que condenava.
6. O BARROCO
estilos e ideologias
cultismo ou gongorismo conceptismo ou quevedismo
Todas as estrelas por sua ordem; mas é ordem que Há de tornar o pregador uma só matéria, há de
faz influência, não é ordem que faça favor. Não fez defini-la para que se conheça, há de dividi-la para que
Deus o Céu em xadrez de estrelas, como os se distinga, há de prová-la com a Escritura, há de
pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. declará-la com a razão, há de confirmá-la com o
Se de uma parte está Branco, da outra há de estar exemplo, há de amplificá-la com as causas e com os
Negro, se de uma parte está Dia, da outra há de estar efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências
Noite; se de uma parte dizem Luz, da outra hão de que se hão de seguir, com os inconvenientes que se
dizer Sombra; se de uma parte dizem Desceu, da devem evitar, há de responder às dúvidas, há de
outra hão de dizer Subiu. Basta que não havemos de satisfazer as dificuldades, há de impugnar e refutar
ver num sermão duas palavras em paz? Todos hão de com toda a força da eloqüência os argumentos
estar sempre em fronteira com o contrário? contrários, e depois disto há de colher, há de apertar,
há de concluir, há de persuadir, há de acabar.
7. RETÓRICA E ORATÓRIA
palavra e poder no púlpito
Sermão é um texto em prosa, um discurso importante, longo e demoradamente elaborado, tendo como objetivo a
propaganda e edificação religiosa. Esta modalidade literária faz parte da oratória, isto é, a prática ou arte de bem
dizer, explorando os recursos verbais com vistas a ensinar, persuadir e comover.
O sermão ou prédica é eloqüência religiosa, também chamada perenética, cujo objetivo é discutir os dogmas da
religião com vistas a incuti-los no ouvinte, comovendo e persuadindo.
retórica e oratória
retórica: regras que estruturam a oratória; oratória: arte do bem falar, do bem dizer
perenética
oratória sacra; gênero que serve à difusão dos dogmas da religião, a fim de incuti-los no ouvinte
eloquência
capacidade do orador de se expressar com desenvoltura e persuadir através da palavra
8. GÊNERO TEXTUAL
o sermão na sociedade do século XVII
sermão
forma de pensamento e ação
fala a uma grande diversidade de almas platéia heterogênea
veículo de comunicação social
trata de temas atuais mantém a platéia informada
temática variada e importante
questões históricas e sociais interesse da Colônia e da Metrópole
função análoga à da imprensa [em nossos dias]
divulgação de fatos e idéias espaço de formação e informação
9. GÊNERO TEXTUAL
o sermão na sociedade do século XVII
sermão
princípio dialógico [estrutura de diálogo]
Todo o discurso do jesuíta português está centrado no leitor e no auditório e, em última instância, converge para
o proselitismo, isto é, volta-se para o exercício de convencer o ouvinte a adotar a doutrina pregada. Não por
acaso, o interlocutor é aquele que deve captar uma verdade absoluta, impessoal, universal, acima de quaisquer
circunstâncias. E mais: para conhecer o mundo, é preciso conhecer o texto divino porque o mundo profano é um
conjunto enigmático, mas cognoscível. A chave para a “correta” decifração do mundo está na leitura da Bíblia,
efetuada pelo sacerdote.
o pregador deve desgostar o ouvinte, levá-lo a querer mudar de atitude
A pregação que frutifica, a pregação que aproveita, não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que lha pena.
Quando o ouvinte a cada palavra do pregador tremer; quando cada palavra do pregador é um torcedor para o
coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para casa confuso e atônito, sem saber parte de si, então é a
pregação qual convém, então pode esperar que faça fruto.
10. GÊNERO TEXTUAL
o sermão na sociedade do século XVII
sermão
a função do púlpito
A figura do pregador nas igrejas barrocas é centralizadora e ocupa uma posição estratégica. É ele que detém o
poder da palavra, conhece o texto bíblico e funciona como elemento agregador do grupo, fortalecendo-o e
conduzindo-o. Como orador, sua posição é destacada; o púlpito é seu posto de observação. É ele que tem acesso
exclusivo ao púlpito, cuja preeminência arquitetônica sobreleva o papel dele como sacerdote; é dele a escolha
pensada e anterior do trecho do Evangelho a ser lido; e dele, as vestes características e singulares. Isso estabelece
entre o sermonista e o público uma relação desigual. Não por acaso, a distância entre púlpito e público é uma
barreira que separa o detentor da fala e seus ouvintes. O orador é o interprete fiel do texto divino, através de suas
palavras, o auditório nota que Cristo disse algo. A tribuna é o lugar do fascinante poder da linguagem. Nesse palco
retórico, Vieira é o próprio porta-voz de Deus; ao ouvinte só resta ouvir e acreditar. Seu discurso pode sinalizar
segurança e solução dos problemas.
citações em latim
As citações latinas são imprescindíveis nos sermões de Vieira, mas, como analisa o ensaísta Luiz Roncari, não é
imprescindível para seu entendimento compreender o latim das citações, isto porque, geralmente, o orador traduz tais citações
ou aclara seu conteúdo exaustivamente reproduzindo ou repetindo ao longo da prédica. Roncari afirma que as
citações latinas são próprias da mentalidade da época, torna as autoridades do passado como fontes de verdades que vêm comprovar
suas afirmações sobre o presente. O que é dito em latim soa como verdade imutável.
11. O ESTILO
a língua e o lúdico
precisão semântica
propensão lúdica da linguagem
Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma
parte há de estar branco, de outra há de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra hão de dizer sombra; se
de uma parte dizem desceu, da outra hão de dizer subiu. Basta que não havemos de ver num sermão duas
palavras em paz?
apesar de metafórica, a linguagem elege com precisão o objeto de sua análise
12. O ESTILO
a língua e o lúdico
rigor no amarramento sintático
Semeadores do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermões: não que os homens saiam
contentes de nós, senão que saiam muito descontentes de si; não que lhes pareçam bem os nossos conceitos, mas
que lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambições e, enfim, todos os
seus pecados. Contanto que se descontentem de si, descontentem-se embora de nós.
uso de estruturas linguísticas elaboradas, rigorosas
13. O ESTILO
a língua e o lúdico
recurso a um conceito sintetizador
Há de tomar o pregador uma só matéria, há de defini-la para que se conheça, há de dividi-la para que se distinga,
há de prová-la com a Escritura, há de declará-la com a razão, há de confirmá-la com o exemplo, há de amplificá-la
com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências, que se hão de seguir, com os
inconvenientes que se devem evitar, há de responder às dúvidas, há de satisfazer às dificuldades, há de impugnar e
refutar com toda a força da eloquência com os argumentos contrários, e depois disso há de colher, há de apertar,
há de concluir, há de persuadir, há de acabar. Isto é o sermão, isto é pregar, e o que não é isto, é falar de mais alto.
através do recurso anafórico [enumerativo], o locutor define a matéria de sua prédica
14. O ESTILO
a língua e o lúdico
construção tipicamente anafórica
A omissão é um pecado que se faz não fazendo... Estava o profeta Elias em um deserto metido em uma cova,
aparece-lhe Deus e diz-lhe: Quid hic agis, Elia? E bem Elias, vós aqui? Aqui, Senhor! Pois aonde estou eu? Não
estou metido em uma cova? Não estou retirado do mundo? Não estou sepultado em vida? Quid hic agis? E que
faço eu? Não estou disciplinando, não estou jejuando, não estou contemplando e orando a Deus? Assim era. Pois
se Elias estava fazendo penitência em uma cova, como o repreende Deus e lho estranha tanto? Porque ainda que
eram boas as obras as que fazia, eram melhores as que deixava de fazer. O que fazia era devoção, o que deixava de
fazer era obrigação. Tinha Deus feito a Elias profeta do povo de Israel, tinha-lhe dado ofício público; e estar Elias
no deserto, quando havia de andar na corte; estar metido em uma cova, quando havia de aparecer na praça; estar
contemplando o Céu, quando havia de estar emendando a terra; era muito grande culpa.
uso de anáfora [construção de estruturas sintaticamente paralelas]
15. O ESTILO
a língua e o lúdico
frase recolhitiva
acumulação enumerativa de palavras
Por isso Isaías chamou aos pregadores nuvens: qui sunt isti, qui ut nubes volant? A nuvem tem relâmpago, tem trovão
e tem raio: relâmpago par os olhos, trovão para os ouvidos, raio para o coração: com o relâmpago alumia, com o
trovão assombra, com o raio mata. Mas o raio fere um, o relâmpago a muitos, o trovão a todos. Assim há de ser a
voz do pregador; um trovão do Céu, que assombra e faça tremer ao mundo.
uso da técnica de disseminação e recolha: depois de apresentar elementos, retorma-os em ordem
16. A ESTRUTURA DO SERMÃO
um gênero da perenética
prólogo, exórdio
é a parte que inicia o sermão e é composto de três elementos
Momento em que uma passagem da Bíblia é eleita para ilustrar-embasar o
tema sermão. Pode ser versículo ou trecho mais amplo. Vieira ancora sua
argumentação fundamenta seu raciocínio nessa passagem da Bíblia.
Apresentação do assunto. É um campo que apresenta grande variedade de
intróito temas, abordando questões filosóficas, políticas ou morais. Fatos históricos
e sociais também entram na pauta do sermão.
Pedido de auxílio divino para que o pregador consiga realizar o seu intuito.
invocação Tal pedido é feito geralmente à Virgem Maria e, caso os ouvintes saiam da
Igreja tocados e transformados, infere-se que houve um milagre.
17. A ESTRUTURA DO SERMÃO
um gênero da perenética
desenvolvimento
é o corpo do sermão, onde o tema é esclarecido, dividido, desenvolvido
Procedimentos argumentativos: exemplificação, comparações, deduções, indagações, silogismos;
Alusões a outros episódios bíblicos;
Alusão a figuras expoentes da Filosofia e da História, como forma de ilustrar os raciocínios desenvolvidos;
Apresentação do tema e antecipação de questionamento, de modo a evitar a refutação por parte do auditório;
Perguntas retóricas;
18. A ESTRUTURA DO SERMÃO
um gênero da perenética
peroração
conclusão do argumento e exortação [advertência relativa aos valores propostos pelo sermão]
Ao final de seu texto, o pregador retorna ao tema, esclarecendo-o e resolvendo-o em definitivo. Posto que o
sermão é o desenvolvimento de uma tese, ao final da peroração, o auditório está convencido do valor da pregação
e transformado pela ação moralizante.
19. O TÍTULO
um libelo contra os maus pregadores
local e data
Capela Real de Lisboa, penúltimo domingo antes da Quaresma [sexagésima] de 1655
metassermão
sermão sobre a arte de pregar [pode ser considerado um tratado sobre a perenética do século XVII]
tema
ineficácia da Palavra de Deus, utilizada pelos contemporâneos de Vieira
uso recorrente do estilo cultista por parte dos pregadores da Ordem Dominicana
20. DISCUTINDO O TEMA
um libelo contra os maus pregadores
por que teria a palavra de Deus pouco fruto?
1) Pregadores usam a perenética para agradar os ouvintes;
2) Pregadores usam a perenética para divulgar seus dons oratórios;
3) Pregadores fazem da perenética uma forma vaidosa e estéril de divulgar suas habilidades retóricas.
21. DISCUTINDO O TEMA
um libelo contra os maus pregadores
No século XVII, o pregador era uma figura pública e sua palavra era respeitada e difundida entre
os fiéis. Por isso mesmo, se os pregadores preferiam exibir seus dons literários a moralizar os
ouvintes, o uso da palavra divina perdia não só sua eficácia, mas sua razão de existir.
Vieira critica, então, a quebra do decoro [adequação ao estilo, intenção] dos oradores barrocos.
fiéis
jesuítas política
dominicanos
22. DISCUTINDO O TEMA
um libelo contra os maus pregadores
O Sermão da sexagésima pode ser considerado um libelo contra os maus pregadores, aqueles
que abusavam das formas cultistas. Estes, segundo Vieira, pregavam a si mesmos e não à palavra
Pregar a si significa demonstrar suas habilidades literárias e se esquecer da relação divina e
transcendente entre as palavras e as coisas do mundo.
O mau pregador seria aquele que estivesse utilizando de forma inadequada o estilo próprio da
oratória sacra para tratar da palavra de Deus, que seria o seu tema fundamental.
Mais: nesses lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É esse o
sentido em que os entendem os padres da Igreja? É esse o sentido da mesma gramática das palavras? Não, por certo;
porque muitas vezes as tomais pelo que toam e não pelo que significam, e talvez nem pelo que toam.
Pois se não é esse o sentido das palavras de Deus, segue-se que não são palavras de Deus. E se não são palavras de Deus, que nos
queixamos que não façam fruto as pregações? Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós
queremos, e coisas não havemos de querer o que elas dizem?! E então ver cabecear o auditório a estas coisas,
quando devíamos de dar com a cabeça pelas paredes de as ouvir! Verdadeiramente não sei de que mais me espante, se dos
nossos conceitos, se dos vossos aplausos? Oh, que bem levantou o pregador! Assim é: mas que levantou? Um falso
testemunho ao santo, outro ao entendimento e ao sentido de ambos. Então que se converta o mundo com falsos
testemunhos da palavra de Deus?
23. SERMÃO DA SEXAGÉSIMA
a estrutura
prólogo partes I e II
desenvolvimento partes III, IV, V, VI, VII e VIII
peroração partes IX e X
Intervalos entre cada parte: silêncio do pregador, preparação do ouvinte.
24. O INTERTEXTO
Mateus, 12: Parábola do Semeador
03. E seus discursos foram uma série de parábolas.
04. Disse ele: Um semeador saiu a semear. E, semeando, parte da semente caiu ao longo do caminho; os pássaros
vieram e comeram.
05. Outra parte caiu em solo pedregoso, onde não havia muita terra, e nasceu logo, porque a terra era pouco
profunda.
06. Logo, porém, que o sol nasceu, queimou-se, por falta de raízes.
07. Outras sementes caíram entre os espinhos: os espinhos cresceram e as sufocaram.
08. Outras, enfim, caíram em terra boa, deram frutos, cem por um, sessenta por um, trinta por um.
09. Aquele que tem ouvidos, ouça.
25. PARTE I
apresentação do tema
tema
a semente é a palavra de Deus [semen est verbum dei]
objetivo
examinar a palavra divina [metassermão]
Depois de propor tema e objetivo, o locutor lança um desafio: E se quisesse Deus que este tão
ilustre e tão numeroso auditório saísse hoje tão desenganado da pregação, como vem enganado
com o pregador? Atente-se que a intencionalidade do sermão é a de provocar, desenganar.
O sermão não visa ao contentamento, mas ao descontentamento, que promoverá a mudança.
26. PARTE I
apresentação do tema
Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair.
Quiasmo: disposição cruzada da ordem das partes simétricas de duas
linguagem
frases, de modo que formem uma antítese ou um paralelo.
O sair é uma virtude do pregador, representa a divulgação dos ideais cristãos. Aqui se nota uma
valorização dos procedimentos dos jesuítas e uma crítica aos dominicanos que não faziam missões.
O pregador que semeia sem sair prefere a comodidade de pregar na terra local.
Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço; os de lá, com mais passos. Exit seminare.
Paronomásia: palavras se aproximam pelo som, mas cujo sentido pode ou
linguagem
não se relacionar. Paço: palácio x Passos: ato de caminhar.
O pregador defende que os pregadores saiam de suas terras e que divulguem os ideais cristãos
em terras distantes e pagãs, como Índia, China e Japão.
27. PARTE I
apresentação do tema
O tom predominante nesta primeira parte é de crítica e advertência. Trabalha-se com analogias:
Quando Cristo mandou pregar os Apóstolos pelo Mundo, disse-lhes dessa maneira? Euntes in mundum universum,
praedicate omni creaturae (Mc. 16:15): “Ide, e pregai a toda a criatura”. Como assim, senhor?! Os animais não são
criaturas?! As árvores não são criaturas?! As pedras não são criaturas?! Pois hão os Apóstolos de pregar às
pedras?! Hão de pregar aos animais?! Sim, diz S. Gregório, depois de Santo Agostinho. Porque como os Apóstolos
iam pregar a todas as nações do mundo, muitas delas bárbaras e incultas, haviam de achar homens degenerados
em todas as espécies de criaturas? haviam de achar homens homens, haviam de achar homens brutos, haviam de
achar homens troncos, haviam de achar homens pedras.
Note-se a presença de analogias dispostas, num primeiro momento, e
linguagem
recolhidas, num segundo. O trecho se estrutura através de anáforas.
Questiona-se a perseverança do pregador e seu compromisso com a semeadura. Para tanto,
vale-se de uma passagem do livro de Ezequiel, como prova da firmeza necessária ao pregador.
O pregador precisa de uma postura íntegra e determinada. O desafio inicial é retomado:
Eis aqui por que eu dizia ao princípio, que vindes enganados com o pregador. Mas para que possas ir
desenganados com o sermão, tratarei nele uma matéria de grande peso e importância. Servirá como prólogo aos
sermões que hei de pregar, e aos mais que ouvirdes esta Quaresma.
Confirmação do caráter metalinguístico do sermão e reforço à idéia
linguagem
segundo a qual o sermão deve ferir para curar.
28. PARTE II
definição da matéria do sermão
tema
explicar por que a palavra de Deus não tem frutificado muito nos dias atuais
objetivo
criticar o estilo de pregação dos dominicanos e cultistas
O trigo que semeou o Pregador Evangélico, diz Cristo, que é a palavra de Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho e a
terra boa, em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens. Os espinhos são os corações embaraçados com
cuidados, com riquezas, com delícias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras são os corações duros e
obstinados; e nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são os corações inquietos,
e perturbados com a passagem e o tropel das cousas do mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que
atravessam e todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque ou a desatendem, ou a desprezam.
Finalmente, a terra boa são os corações bons ou os homens de bom coração; e nestes prende e frutifica a palavra
divina, com tanta fecundidade e abundância, que se colhe cento por um: Et fructum fecit centuplum.
Uso de analogias, metáforas e alegorias. O locutor levanta dúvidas que
linguagem serão prontamente resolvidas, sem dar ao ouvinte o tempo necessário para
elucidar a questão.
29. PARTE II
definição da matéria do sermão
A pergunta fundamental aparece no segundo e no último parágrafos, cuja resposta se estenderá
por todo o corpo do sermão. Aqui a questão é problematizada, e sua resolução será dilatada ao
máximo, chegando até a nona parte do sermão.
Nunca na Igreja de Deus houve tantas pregações, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia a palavra
de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um homem que em um sermão entre em si e se resolva, não há um moço
que se arrependa, não há um velho que se desengane. Que é isto?
Assim como Deus não é hoje menos onipotente, assim a sua palavra não é hoje menos poderosa do que dantes
era. Pois se a palavra de Deus é tão poderosa, se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, porque não vemos hoje nenhum fruto
da palavra de Deus? Esta, tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do sermão. Quero começar pregando-me a
mim. A mim será, e também a vós; a mim, para aprender a pregar; a vós, para que aprendam a ouvir.
30. PARTE III
uma escolha entre três respostas
A resposta divide-se em três partes e induz o interlocutor a considerá-las como formas de solução:
Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da
parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão, há de haver três concursos:
há de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há de concorrer o ouvinte com o entendimento,
percebendo; há de concorrer Deus com a graça, alumiando.
Tal divisão será transformada em alegoria [para que um homem veja a si mesmo são necessários]
[elementos: luz, olhos e espelho]; ver a si mesmo: converter-se, arrepender-se, orientar-se pela
palavra divina empenhada no sermão:
Para completar a alegoria, falta a esperada conversão
É assim que tem início a análise dos elementos necessários para que o homem se veja a si mesmo,
ou seja, para que a palavra de Deus frutifique.
31. PARTE III
uma escolha entre três respostas
Em primeiro lugar, vem Deus, que é prontamente absolvido [cita-se do Concílio de Trento].
Deus é a luz e a luz nunca pode faltar.
Para tanto, volta à “Parábola do semeador” e deduz algo não muito evidente, numa primeira leitura:
segundo Vieira, o trigo não é atingido nem pelo sol nem pela chuva [obras do céu]; o que impediu
o êxito da frutificação foram os espinhos, as pedras, os homens e as aves.
Em segundo lugar, levanta-se a hipótese de o ouvinte ser culpado pela ineficácia da pregação.
O ouvinte é comparado aos olhos, necessários ao homem para ver a si mesmo. Mesmo isento de
culpa, o ouvinte não deixa de ser acusado.
Vieira compara os ouvintes à terra onde caiu o trigo [seja nos espinhos, nas pedras ou na terra boa]
e afirma que todos os solos foram férteis. Sendo assim, a culpa não podia ser dos ouvintes,
pois, mesmo nos maus ouvintes a palavra divina chegou a nascer. Vejamos, pois, as analogias:
32. PARTE III
uma escolha entre três respostas
Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não
faça fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no. [...] O
trigo que caiu nas pedras, nasceu também, mas secou-se [...]. O trigo que caiu na terra boa, nasceu e frutificou
com grande multiplicação. [...] De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu
na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão funda, que nos bons faz muito fruto e é
tão eficaz que nos maus ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até
nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja
de Deus, são as pedras e os espinhos. E por quê? – os espinhos por agudos, e as pedras por duras. Ouvintes de
entendimentos agudos e ouvintes de vontades endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos
agudos são maus ouvintes, porque vêm só a ouvir sutilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes
também a picar quem os não pica. [...] O trigo não picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele; e o
mesmo sucede cá. Cuidais que o ser mão vos picou a vós, e não é assim; vós sois os que picais o sermão. Por isto
são maus ouvintes os de entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda são piores, porque um
entendimento agude pode ferir pelos mesmos fios, e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra
vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas são mais
agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra.
33. PARTE III
uma escolha entre três respostas
AGUDOS refutam, duvidam, negam, não se deixaram convencer
MAUS OUVINTES DUROS fazem-se de convictos, intransponíveis ao sermão
As qualidades dos maus ouvintes estão associadas a agudeza dos espinhos e a dureza das pedras.
Vieira afirma que é possível convencer as pedras e os espinhos, associando a alegoria com outro
texto bíblico [Mateus, XXVII]: os espinhos acabariam por coroar Jesus, assim como as pedras
seriam movidas em sua ressurreição. Assim, os ouvintes são isentos do insucesso da pregação:
Tomai exemplo nessas mesmas pedras e nesses espinhos! Esses espinhos e essas pedras agora resistem ao
semeador do céu; mas virá tempo em que essas mesmas pedras o aclamem e esses mesmos espinhos o coroem.
Quando o semeador do céu deixou o campo, saindo deste mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem
aclamações, e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa.
Posto que Deus e os ouvintes foram isentados da culpa. Ela só pode estar no pregador.
34. PARTE IV
as qualidades do pregador
pessoa
que é
voz com ciência
que fala que tem
estilo matéria
que segue que trata
35. PARTE IV
as qualidades do pregador [a pessoa]
a pessoa
Antigamente convertia-se o mundo, hoje por que não se converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e
pensamentos, antigamente se pregavam palavras e obras. Palavras sem obra são tiros sem bala; atroam, mas não ferem. A
funda de David derrubou o gigante, mas não o derrubou com o estalo, senão com a pedra [...]. As vozes da harpa
de David lançavam fora os demônios do corpo de Saul, mas não eram vozes pronunciadas com a boca, eram
vozes formadas com a mão [...]. Por isso Cristo comparou o pregador ao semeador. O pregar que é falar, faz-se
com a boca; o pregar que é semear, faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são
necessárias obras. Diz o Evangelho que a palavra de Deus frutificou cem por um. Que quer dizer isso? Quer dizer
que de uma palavra nasceram cem palavras? – Não. Quer dizer que de poucas palavras nasceram muitas obras.
Pois palavras que frutificam obras, vede se podem ser só palavras!
Afirma-se que a palavra divina só é divina se vier acompanhada de obras q justifiquem sua condição.
Exemplos: Deus, para converter o pecador, criou sua obra mais importante – o Deus-homem, Jesus.
Exemplos: a encenação da Paixão de Cristo tem apelo maior que a simples explanação sobre ela.
Essa exposição é feita através do apelo sensorial – as palavras são ouvidas e as obras são vistas:
36. PARTE IV
as qualidades do pregador [a pessoa]
Verbo Divino é palavra divina; mas importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem
desacompanhadas de obras. A razão disso é porque as palavras ouvem-se, as obras vêem-se; as palavras entram pelos
ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. No céu ninguém
há que não ame a Deus, nem possa deixar de o amar. Na terra há tão poucos que o amem, todos o ofendem.
Deus não é o mesmo, e tão digno de ser amado no céu e na terra? Pois como no céu obriga e necessita a todos o
amarem, e na terra não? A razão é porque Deus no céu é Deus visto; Deus na terra é Deus ouvido. No céu entra o
conhecimento de Deus à alma pelos olhos: Videbimus eum sicut est; na terra entra-lhe o conhecimento de Deus
pelos ouvidos: Fides ex auditu; e o que entra pelos ouvidos crê-se, o que entra pelos olhos necessita.
A fim de confirmar a sua tese, o pregador recorre a um exemplo de autoridade em Mateus:
Por que convertia o Batista tantos pecadores? – Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo
pregava aos olhos. As palavras do Batista pregavam penitência [...] e o exemplo clamava: Ecce homo: “eis aqui está o
homem” que é o retrato da penitência e da aspereza. As palavras do Batista pregavam jejum e repreendiam os
regalos e demasias da gula; e o exemplo chamava: Ecce homo: eis aqui está o homem que se sustenta de gafanhotos
e mel silvestre. As palavras do Batista pregavam composição e modéstia, e condenavam a soberba e a vaidade das
galas; e o exemplo clamava: Ecce homo: eis aqui está o homem vestido de peles de camelo, com as cordas e cilício à
raiz da carne. As palavras do Batista pregavam desapegos e retiros do Mundo, e fugir das ocasiões; e o exemplo
clamava: Ecce homo: eis aqui o homem que deixou as cortes e as sociedades, e vive num deserto e numa cova. Se os
ouvintes ouvem uma coisa e veem outra, como se hão de converter?
Outra personagem bíblica que convence pelo sermão e pela ação é Jonas, cuja pessoa, segundo
Vieira, é composta de palavras e obras.
37. PARTE V
as qualidades do pregador [o estilo]
o estilo
Parte mais importante do sermão, pois nela se critica a falta de decoro dos que usam o cultismo:
Um estilo tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afetado, um estilo tão encontrado a toda a arte e a
toda a natureza? Boa razão é também esta. O estilo há de ser muito fácil e muito natural.
Ao discorrer sobre a naturalidade do estilo, recorre-se à metáfora da disposição das estrelas no céu:
Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo pregador que houve no
mundo. E qual foi ele? O mais antigo pregador que houve no mundo foi o céu. [...] Suposto que o céu é pregador,
deve de ter sermões e deve de ter palavras. Sim, tem, diz o mesmo David; tem palavras e tem sermões; e mais,
muito bem ouvidos [...]. E quais são estes sermões e estas palavras do céu? As palavras são as estrelas, os sermões
são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas.
Vede com diz o estilo de pregar do céu, com o estilo que Cristo ensinou na terra. um e outro é semear; a terra
semeada de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha ou
azuleja. Ordenado, mas como as estrelas [...]. Todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz
influência, não é ordem que faça favor. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o
sermão em xadrez de palavras.
38. PARTE V
as qualidades do pregador [o estilo]
Inicia-se virulento ataque ao estilo cultista, que é visto como um modelo que carece de fundamento
divino e, por isso, não produz a verdadeira persuasão, senão a exibição estéril do estilo do pregador:
Se de uma parte há de estar branco, da outra há de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra hão de dizer
sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra hão de dizer subiu. Basta que não havemos de ver num sermão duas
palavras em paz? Todas hão de estar sempre em fronteira com o seu contrário? Aprendamos do céu o estilo da
disposição, e também o das palavras. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há de ser o estilo da
pregação; muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito
distintas e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que
não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem.
Se no plano do conteúdo, defende-se que se pregue de modo claro e distinto, do ponto de vista da
forma, percebe-se que a alegoria empregada consegue o efeito pretendido [é claro e distinto].
39. PARTE V
as qualidades do pregador [o estilo]
Segue-se uma série de acusações, demonstradas de forma cáustica e agressiva:
Sim, Padre; porém esse estilo de pregar não é pregar culto. Mas fosse! Este desventurado estilo que hoje se usa, os
que o querem honrar chamam-lhe culto, os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita
honra. O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. É possível que somos portugueses e havemos de
ouvir um pregador em português e não haver de entender o que diz?! Assim como há Lexicon para o grego e
Calepino para o latim, assim é necessário haver um vocabulário do púlpito. Eu ao menos o tomara para nomes
próprios, porque os cultos têm desbatizado os santos, e cada autor que alegam é um enigma.
Criticam-se, agora, as perífrases e antonomásias usadas pelos pregadores cultistas:
Assim o disse o Cetro Penitente, assim o disse o Evangelista Apeles, assim o disse a Águia de África, o Favo de
Claraval, a Púrpura de Belém, a Boca de Ouro. Há tal modo de alegar! O Cetro Penitente dizem que é David,
como se todos os cetros não foram penitência; o Evangelista Apeles, que é S. Lucasw; o Favo de Claraval, S.
Bernardo; a Água de África, Santo Agostinho; a Púrpura de Belém, S. Jerônimo; a Boca de Ouro, S. Crisóstomo.
E quem quitaria ao outro cuidar que a Púrpura de Belém é Herodes, que a Água de África é Cipião, e a Boca de
Ouro é Midas? Se houvesse um advogado que alegasse assim a Bartolo e Baldo, havíeis de fiar dele o vosso pleito?
Se houvesse um homem que assim falasse na conversação, não o havíeis de ter por néscio? Pois o que na conversação seria
necedade, como há de ser discrição no púlpito.
O estilo necessita ser alto e claro, para não afastar o ouvinte do sentido final do sermão – a pregação.
40. PARTE VI
as qualidades do pregador [o assunto]
o assunto
Primeiramente há que se notar que Viera põe em execução, no Sermão da sexagésima, o modelo
de sermão proposto: ao mesmo tempo que defende um estilo, o pregador o demonstra no sermão:
Há de tomar o pregador uma só matéria; há de defini-la, para que se distinga; há de prová-la com a Escritura; há
de declará-la com a razão; há de confirmá-la com o exemplo; há de amplificá-la com as causas, com os efeitos,
com as circunstâncias, com as conveniências que se hão de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; há
de responder às dúvidas, há de satisfazer às dificuldades; há de impugnar e refutar com toda a força da eloquência
os argumentos contrários; e depois disto há de colher, há de apartar, há de concluir, há de persuadir, há de acabar.
Isto é o sermão, isto é pregar; e o que não é isto, é falar de mais alto.
41. PARTE VI
as qualidades do pregador [o assunto]
Para explicar em que consiste a divisão do assunto, o locutor usa o exemplo da árvore [alegoria]:
Não nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade de discursos, mas esses hão de nascer todos da
mesma matéria e continuar e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede. Uma árvore tem raízes, tem
tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há de ser o sermão; há de ter raízes fortes e sólidas,
porque há de ser fundado no Evangelho; há de ter um tronco, porque há de ter um só assunto e tratar uma só
matéria; deste tronco hão de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e
continuados nela; estes ramos hão de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão de ser vestidos
e ornados de palavras. Há de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios, há de ter flores, que são as
sentenças; e por remate de tudo, há de ter frutos, que é o fruto o fim a que se há de ordenar o sermão. De
maneira que há de haver frutos, há de haver flores, há de haver varas, há de haver folhas, há de haver ramos; mas tudo nascido e
fundado em um só tronco, que é uma só matéria.
Método da disseminação e recolha: os elementos da árvore são dispostos
linguagem numa ordem gradativa e em seguida são examinados e recolhidos na
disposição exatamente inversa.
Mais adiante, usa-se o expediente intertextual para invocar figuras da arte oratória:
42. PARTE VI
as qualidades do pregador [o assunto]
Tudo o que tenho dito pudera demonstrar largamente, não só com os preceitos dos Aristóteles, dos Túlios, dos
Quintilianos, mas com a prática observada do príncipe dos pregadores evangélicos, S. João Crisóstomo, de S.
Basílio Magno, S. Bernardo, S. Cipriano, e com as famosíssimas orações de s. Gregório Nazianzeno, mestre de
ambas as Igrejas. E posto que nestes mesmo Padres, como em Santo Agostinho, S. Gregório e muitos outros, se
acham os Evangelhos apostilados com nomes de sermão e homilias, uma coisa é expor, e outra pregar; uma
ensinar, e outra persuadir, desta última é que eu falo.
Neste trecho, revelam-se suas influências. Revela, ainda, seu modelo de pregar [alegoria da árvore]
tronco assunto
raízes evangelho
ramos discursos, argumentos
folhas palavras, ornamentos
varas moralização, repreensão
flores sentenças, raciocínios
frutos finalidade do sermão
43. PARTE VII
as qualidades do pregador [a ciência]
a ciência
Cada pregador tem sua própria razão e esta não pode ser tomada de outro; o pregador deve pregar
com sua própria ciência, nascida de seu próprio juízo. O que se condena aqui é o uso indevido do
raciocínio alheio, da palavra alheia, atitude que impossibilita, segundo Vieira, qualquer persuasão:
Eis aqui por que muitos pregadores não fazem fruto; porque pregam o alheio, e não o seu; Semem suum. O pregar
é entrar em batalha com os vícios; e armas alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a ninguém deram vitória.
Quando David saiu a campo com o gigante, ofereceu-lhe Saul as suas armas, mas ele não as quis aceitar. Com
armas alheias ninguém pode vencer ainda que seja David. As armas de Saul só servem a Saul, e as de David a
David; e mais aproveita um cajado e uma funda própria, que a espada e a lança alheia. Pregador que peleja com as
armas alheias, não hajais medo que derrube gigante.
O uso de exemplos advindos tanto da Bíblia quanto da tradição grega confirmam a erudição de Vieira
e comprovam seu caráter barroco – ligado tanto à tradição teocêntrica, quanto à antropocêntrica.
44. PARTE VII
as qualidades do pregador [a ciência]
Eis outra alegoria que visa a esclarecer como deve ser a ciência do pregador:
Fez Cristo aos Apóstolos pescadores de homem, que foi ordená-los de pregadores. E que faziam os Apóstolos?
Diz o texto que estavam refientes retia sua: refazendo as redes suas; eram as redes dos Apóstolos, e não eram
alheias. Notai: retia sua: Não diz que eram suas porque as compraram, senão que eram suas porque as faziam; não
eram suas porque lhes custaram o seu dinheiro, senão porque lhes custavam o seu trabalho. Desta maneira eram
as redes suas; e porque desta maneira eram suas, por isso eram redes de pescadores que haviam de pescar homens.
Com redes alheias, ou feitas por mão alheia, podem-se pescar peixes, homens não se podem pescar. A razão disto
é porque nesta pesca de entendimentos só quem sabe fazer a rede sabe fazer o lanço. Como se faz uma rede? Do
fio e do nó se compõe a malha; quem não enfia nem ata, como há de fazer rede? E quem não sabe enfiar nem
sabe atar, como há pescar homens? A rede tem chumbada que vai ao fundo, e tem cortiça que nada em cima da
água. A pregação tem umas coisas de mais peso e de mais fundo, e tem outras mais superficiais e mais leves; e
governar o leve e o pesado, só o sabe fazer quem faz a rede. Na boca de quem não faz a pregação, até o chumbo é cortiça.
A analogia dilata as possibilidades de leitura do Evangelho. Para evitar refutação, comprova-se que
a razão deve vir do próprio entendimento [não do alheio], ao citar os apóstolos e idiossincrasias:
Se de cinco temos escrituras; mas a diferença com que escrevem [...] é admirável. As penas todas eram tiradas das
asas daquela pomba divina; mas o estilo tão diverso, tão particular e tão próprio de cada um, quem bem mostra
que era seu. Mateus fácil, João misterioso, Pedro grave, Jacob forte, Tadeu sublime, e todos com tal valentia no
dizer, que cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio e cada razão um triunfo. Ajuntai a estes cinco S.
Lucas e S Marcos, que também ali estavam, e achareis o número daqueles sete trovões que ouviu S. João no
Apocalipse.
45. PARTE VIII
as qualidades do pregador [a voz]
a voz
Vieira examina, aqui, as possibilidades físicas da voz do orador [trovão do céu]:
Por isso Isaías chamou aos pregadores “nuvens”: Qui sunt isti, qui ut nubes volant? A nuvem tem relâmpago, tem trovão
e tem raio: relâmpago para os olhos, trovão para os ouvidos e raio para o coração; com o relâmpago alumia, com o
trovão assombra, com o raio mata. Mais o raio fere a um, o relâmpago a muitos, o trovão a todos. Assim há de ser a
voz do pregador, um trovão do Céu, que assombre e faça tremer o mundo.
Através da técnica da disseminação e recolha, o pregador chega ao final da sua argumentação.
Após examinar pormenorizadamente os elementos que compõe a pessoa do pregador, conclui:
Em conclusão que a causa de não fazerem hoje fruto os pregadores com a palavra de Deus, nem é a circunstância
da pessoa: Qui semint: nem a do estilo: Seminare; nem a da matéria: Semen; nem a da ciência: Suum; nem a da voz:
Clamabat. Moisés tinha fraca voz; Amós tinha grosseiro estilo; Salomão multiplicava e variava os assuntos; Balaão
não tinha exemplo de vida; o seu animal não tinha ciência; e contudo todos estes, falando, persuadiam e
convenciam. Pois se nenhuma destas razões que discorremos, nem todas elas juntas são a causa principal nem
bastante do pouco fruto que hoje faz a palavra de Deus, qual diremos finalmente que é a verdadeira causa?
46. PARTE IX
a acusação feita aos pregadores
Constata-se que a falta de decoro do pregador é a causa de a palavra de Deus fazer pouco fruto:
É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve.
A palavra de Deus (como diria) é tão poderosa e tão eficaz, que não só na terra faz fruto, mas até nas pedras e no espinho nasce.
Mas se as palavras dos pregadores não são palavras de Deus, que muito que não tenham a eficácia e os efeitos da
palavra de Deus? […]. Diz o Espírito Santo: “Quem semeia ventos colhe tempestades”. Se os pregadores
semeiam vento, se o que se prega é vaidade, se não se prega a palavra de Deus, como não há a Igreja de Deus de
correr da tormenta, em vez de colher fruto?
Observe-se que o vento é um elemento metafórico que indica a vacuidade
linguagem do que se prega e ainda o intertexto com o ditado popular [Quem semeia
vento colhe tempestades].
Atente, agora, para o fato de que o locutor lança uma pergunta, para, em seguida, respondê-la:
Mas dir-me-eis: Padre, os pregadores de hoje não pregam do Evangelho, não pregam das Sagradas Escrituras? Pois como não
pregam a palavra de Deus? Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus. As
palavras de Deus, pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavras de Deus, mas pregadas no sentido que
nós queremos, não são palavras de Deus, antes podem ser palavras do Demônio.
Através de um silogismo e de um paradoxo [as palavras de Deus, quando
não pregadas no sentido em que Deus as disse, não são palavras de Deus],
linguagem
o pregador critica virulentamente os maus pregadores – os que se
preocupam em agradar aos ouvintes com seus dotes oratórios.
47. PARTE IX
a acusação feita aos pregadores
Tais pregadores [q exibem seu estilo ao invés de se preocuparem com o sentido da palavra de Deus]
são indignos do nome de pregadores. Os aplausos que recebe, ao invés de serem de aprovação
são símbolo da reprovação ao estilo. A partir de agora, o pregador justifica sua condenação:
Pois se não é esse o sentido das palavras de Deus, segue-se que não são palavras de Deus. E se não são palavras de
Deus, que nos queixamos que não façam fruto as pregações? Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a
que digam o que nós queremos, e não havemos de querer dizer o que elas dizem?! E então ver cabecear o
auditório a estas coisas, quando devíamos de dar com a cabeça pelas paredes de as ouvir?! Verdadeiramente não sei de
que mais me espante, se dos nossos conceitos, se dos vossos aplausos? Oh, que bem levantou o pregador! Assim é mas que
levantou? Um falso testemunho ao texto, outro falso testemunho ao santo, outro ao entendimento e ao sentido de
ambos. Então que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus? Se a alguém parecer demasiada a
censura, ouça-me.
48. PARTE IX
a acusação feita aos pregadores
O sermão que se desvia das palavras de Deus é comparado à fábula e à comédia:
E nós que é o que vemos? Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajos, uma voz muito afetada e
muito polida, e logo começar com muito desgarro a quê? A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a
lisonjear precipícios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar jasmins, a toucar primaveras, e outras mil indignidades destas.
Repare que a voz do pregador é caracterizada como indecorosa. Ademais,
linguagem Vieira utiliza um expediente cultista [estrutura anafórica] de forma irônica,
de modo a criticar tal estilo e os pregadores que o utilizam.
Nesta nona parte, evocam-se dramaturgos da Antiguidade Clássica e os relacionam aos pregadores:
Não é isto farsa a mais digna de riso, se não fora tanto para chorar? Na comédia o rei veste como rei, e fala como
rei; o lacaio, veste como lacaio, e fala como lacaio; o rústico veste como rústico, e fala como rústico; mas um
pregador, vestir como religioso e falar como... não o quero dizer, por reverência do lugar.
Satirizam-se os efeitos sensoriais próprios do cultismo [apelo à visão –
linguagem roupas – e à audição – fala –]. Apesar de não se dita, o termo irônico
[palhaço, bobo da corte] salta aos olhos do leitor/ouvinte.
49. PARTE X
a finalidade do sermão
finalidade do sermão
persuadir o ouvinte; o orador não se deve preocupar com o gosto do ouvinte
Pois o gostarem ou não gostarem os ouvintes! Oh, que advertência tão digna! Que médico há que repare no gosto
do enfermo, quando trata de lhe dar saúde? Sarem e não gostem; salvem-se e amargue-lhes, que para isso somos
médicos das almas. Quais vos parece que são as pedras sobre que caiu parte do trigo do Evangelho? Explicando
Cristo a parábola, diz que as pedras são aqueles que ouvem a pregação com gosto [...]. Pois será bem que os
ouvintes gostem e que no cabo fiquem pedras? Não gostem e abrandem-se; não gostem e quebrem-se; não
gostem e frutifiquem. [...] De maneira que o frutificar não se ajunta com o gostar, senão com o padecer;
frutifiquemos n[os, e tenham eles paciência. A pregação que frutifica, a pregação que aproveita, não é aquela que
dá gosto ao ouvinte, é aquela que lhe dá pena. Quando o ouvinte a cada palavra do pregador treme; quando cada
palavra do pregador é um torcedor para o coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para casa confuso
e atônito, sem saber parte de si, então é a preparação qual convém, então se pode esperar que faça fruto.
o sucesso do pregador seria o fracasso dos pecados do ouvinte, que deve se arrepender e converter
50. PARTE X
a finalidade do sermão
finalidade do sermão
ferir, causticar, incomodar
Com isto tenho acabado. Algum dia vos enganastes tanto comigo, que saíeis do sermão muito contentes do
pregador; agora quisera eu desenganar-vos tanto, que as[ireis muito descontentes de vós. Semeadores do
Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermões: não que os homens saiam contentes de nós,
senão que saiam muito descontentes de si; não que lhes parecem bem os nossos conceitos, mas que lhes pareçam
mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambições e, enfim, todos os seus pecados.
Contanto que se descontentem-se de si, descontentem-se embora de nós.
a admiração pelo orador deve dar lugar ao arrependimento e à conversão do ouvinte:
Estamos às portas da Quaresma, que é o tempo em que principalmente se semeia a palavra de Deus na Igreja, e
em que ela se arma contra os vícios. Preguemos e armemo-nos todos contra os pecados, contra as soberbas, contra os ódios,
contra as invejas, contra as cobiças, contra as sensualidades.