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Carlos Drummond de Andrade – Fazedor de homens
William Shakespeare – Coletânea escolhida
Giuseppe Guiaroni – A palavra querida
Manuel Bandeira – O inútil luar
Manuel Bandeira – Vou-me embora pra Pasárgada
Raquel de Queiroz – Telha de vidro
Giuseppe Guiaroni – A máquina de escrever
Giuseppe Guiaroni – Dia das mães
Carlos Drummond de Andrade - Resíduo
J. G. de Araújo Jorge – O verbo amar
J. G. de Araújo Jorge – Existo
Carlos Drummond de Andrade – Declaração em juízo
Vicente de Carvalho – Cair das folhas
Vicente de Carvalho – Velho Tema II
Álvares de Azevedo – Tristeza
Olegário Mariano – O enamorado das rosas
Olegário Mariano – As duas sombras
Mário de Sá Carneiro – Quase
Mário de Sá Carneiro - Dispersão
José Saramago – Não me peçam razões
Olavo Bilac - Remorso
Manoel Bandeira – Crepúsculo de Outono
J. G. de Araújo Jorge - Outono
Fernando Pessoa – Uma névoa de outono o ar raro vela
Cecília Meireles – Canção de Outono
Gregório de Matos – Coletânea escolhida – 9 (nove) poemas
Olavo Bilac – Velhas árvores
Jorge Luís Borges – El soneto Del vino
Fazedor de Homens

         Todo homem é uma ilha...
        É bom ser uma ilha distante
    tanto quanto é bom ser um homem.

      Todo homem possui uma ponte
     pois é preciso sair da ilha, seguro.
A ponte de um homem é um braço estendido.

       Todo homem é um mundo.
   O mundo roda no sistema egocêntrico
          de suas realidades,
       pequenos alumbramentos,
          medos e coragens.

       E quando o homem encara o
           mundo e se depara
            - homem-mundo,
             mundo-homem,
               volta à ilha:
        Todo homem ama sua ilha.

                   II

        O homem faz o homem.
   E porque fez o homem, sem nem o
 homem querer aufere direitos do homem.
           Diz a ele: Cresça!
          E ele fica mais alto.

         Diz ao homem: Trabalhe!
E ele usa o corpo.
                Diz ao homem: Viva!
                E ele respira e existe.
                Diz ao homem: Ame!
                E ele não sabe como.
              Mas diz ao homem: Procrie!
                  E ele faz homens.

                  Um dia ele morre.
            Se a vida foi longa para viver -
                 é curta para morrer -
        porque o homem não fez, não escolheu,
                  não pensou nada.

                           III

          O que faz um homem diferente de
           outro homem é o que ele pensa.
             O que o transforma, também,
          de um simples fazedor de homens,
               num criador de homens.

              Todo homem é uma vontade.
                E se deixa de ser vontade
               teme a perda de sua posse.
           Todo homem é uma consciência.
                 Nela inclui o seu saber
              e a parte maior do não saber,
    e se aceita o fato, é com ela que ele se entende.

              Todo homem é seu corpo.
      E sabe dele em contraste com outro corpo,
                 tal é a sua medida.
Como também, a medida de um homem é a sua carência:
         porque é assim que ele se assume,
          porque é assim que ele se liberta.

               Quanto mais ele precisa
                mais ele é maior. E dá.
         Pede. Reivindica. Exige, quanto pode.
                     Luta e sofre.

          Todo homem quer deixar sua ilha.
     Temeroso de ter que voltar um dia, entretanto,
               não destrói as pontes.
        Enquanto isso, a ilha fica ali, só ilha.
              A ponte fica ali, só ponte.
           E o homem fica ali, só homem.

              Carlos Drummond de Andrade

   Publicado no Jornal Última Hora (RJ) de 23/04/73


                                                        Título
Soneto 18 - Shakespeare

    Devo igualar-te a um dia de verão?
   Mais afável e belo é o teu semblante:
   O vento esfolha Maio inda em botão,
  Dura o termo estival um breve instante.

    Muitas vezes a luz do céu calcina,
 Mas o áureo tom também perde a clareza:
   De seu belo a beleza enfim declina,
     Ao léu ou pelas leis da Natureza.


     Só teu verão eterno não se acaba
      Nem a posse de tua formosura;
 De impor-te a sombra a Morte não se gaba
Pois que esta estrofe eterna ao Tempo dura.


    Enquanto houver viventes nesta lida,
    Há-de viver meu verso e te dar vida.
Se Nada Há de Novo

      Se nada há de novo e tudo o que há
          já dantes era como agora é,
             só ilusão a criação será:
           criar o já criado para quê?
 Que alguém me mostre, sobre um livro antigo
     como quinhentas translações astrais,
     a tua imagem, na inscrição, no abrigo
       do espírito em seus signos iniciais.
    Que eu saiba o que diria o velho mundo
        deste milagre que é a tua forma;
      se te viram melhor, se me confundo,
  se as translações seguem a mesma norma.
      Mas disto estou seguro: antigos textos
   louvaram mais com bem menores pretextos.

         William Shakespeare, in "Sonetos"
          Tradução de Carlos de Oliveira




   A Noite não me Deu nenhum Sossego

       Como voltar feliz ao meu trabalho
   se a noite não me deu nenhum sossego?
       A noite, o dia, cartas dum baralho
       sempre trocadas neste jogo cego.
      Eles dois, inimigos de mãos dadas,
     me torturam, envolvem no seu cerco
       de fadiga, de dúbias madrugadas:
     e tu, quanto mais sofro mais te perco.
        Digo ao dia que brilhas para ele,
    que desfazes as nuvens do seu rosto;
    digo à noite sem estrelas que és o mel
      na sua pele escura: o oiro, o gosto.
         Mas dia a dia alonga-se a jornada
       e cada noite a noite é mais fechada.

         William Shakespeare, in "Sonetos"
          Tradução de Carlos de Oliveira




Meus Olhos Veem Melhor se os Vou Fechando

 Meus olhos veem melhor se os vou fechando.
      Viram coisas de dia e foi em vão,
  mas quando durmo, em sonhos te fitando,
    são escura luz que luz na escuridão.
     Tu cuja sombra faz a sombra clara,
como em forma de sombras assombravas
        ledo o claro dia em luz mais rara,
   se em sombra a olhos sem visão brilhavas!
       Que benção a meus olhos fora feita
         vendo-te à viva luz do dia bem,
      se a tua sombra em trevas imperfeita
         a olhos sem visão no sono vem!
      Vejo os dias quais noites não te vendo,
       e as noites dias claros sonhos tendo.

        William Shakespeare, in "Sonetos (43)"




                    Soneto 107


       Medos, nem alma capaz de prever

        Medos, nem alma capaz de prever
     Os sonhos de porvir do mundo inteiro,
        Podem o meu amor circunscrever,
       Nem dar-lhe fado triste por certeiro.
           A Lua seu eclipse superou,
         Os agourentos de si podem rir,
           A incerteza agora se firmou,
         A paz proclama olivas no porvir.
     Com o orvalho dos tempos refrescado
       O meu amor a própria morte prende
       E em meus versos vivo consagrado,
      Enquanto as tribos mudas ela ofende.
        Aqui encontrarás teu monumento,
     E o bronze dos tiranos vai com o vento.

                   Soneto 54

       Oh, como a beleza parece mais bela
  com o doce ornamento que a verdade produz!
    A rosa tão bela, mas mais bela a julgamos
        Pelo doce aroma que nela seduz.

   As rosas silvestres têm a cor tão profunda
     Quanto a tintura das rosas perfumadas,
Têm os mesmos espinhos e brincam tão vivamente
Quando o sopro do verão expõe os botões velados;

     Mas exibem-se apenas para si mesmas,
     Vivem esquecidas e murcham obscuras;
     Morrem sozinhas. As doces rosas, não;
De suas doces mortes surgem as mais doces essências.
                      e assim também a ti, a bela e adorável mocidade,
                      Fenecido o frescor, revela em versos tua verdade.


                                              Soneto 73

                                  Em mim tu vês a época do estio

                                Em mim tu vês a época do estio
                              Na qual as folhas pendem, amarelas,
                              De ramos que se agitam contra o frio,
                               Coros onde cantaram aves belas.
                               Tu me vês no ocaso de um tal dia
                             Depois que o Sol no poente se enterra,
                              Quando depois que a noite o esvazia,
                                O outro eu da morte sela a terra.
                                 Em mim tu vês o brilho da pira
                                Que nas cinzas de sua juventude
                              Como em leito de morte agora expira
                                Comido pelo que lhe deu saúde.
                              Visto isso, tens mais força para amar
                            E amar muito o que em breve vais deixar.



William Shakespeare

Resumo

William Shakespeare foi um poeta e dramaturgo inglês, tido como o maior escritor do idioma inglês e o mais
influente dramaturgo do mundo. É chamado frequentemente de poeta nacional da Inglaterra e de "Bardo do
Avon" (ou simplesmente The Bard, "O Bardo").

Nasceu em 26 de abril de 1564 em Stratford-upon-Avon onde também foi criado.

Foi um poeta e dramaturgo respeitado em sua própria época, mas sua reputação só viria a atingir o nível
em que se encontra hoje no século XIX. Os românticos, especialmente, aclamaram a genialidade de
Shakespeare, e os vitorianos idolatraram-no como um herói, com uma reverência que George Bernard
Shaw chamava de "bardolatria". No século XX sua obra foi adotada e redescoberta repetidamente por
novos movimentos, tanto na academia e quanto na performance. Suas peças permanecem extremamente
populares hoje em dia , e são estudadas, encenadas e reinterpretadas constantemente, em diversos
contextos culturais e políticos, por todo o mundo.

William Shakespeare morreu em 23 de Abril de 1616, mesmo dia de seu aniversário.É bem conhecida a
coincidência das datas de morte de dois dos grandes escritores da humanidade, Miguel de Cervantes e
William Shakespeare, ambos com data de falecimento em 23 de Abril de 1616. Porém, é importante notar
que o Calendário gregoriano já era utilizado na Espanha desde o século XVI, enquanto que na Inglaterra
sua adoção somente ocorreu em 1751. Daí, em realidade, Miguel de Cervantes faleceu dez dias antes de
William Shakespeare.




                                                                                                         Título
A palavra Querida...
              Giuseppe Ghiaronni


     A palavra "querida", está para a garganta,
  como o mel para a boca e a mulher para o olhar.
  Quando um santo do céu, se dirige a uma santa,
     de face imaculada e expressão comovida,
      é assim, penso, que ele a deve chamar:
                   oh!querida!

  Querida é um substantivo espiritual, é um nome.
      É um fio emocional de um ouro cristalino,
que se estende e que atrai um destino e um destino...
  Que alinhava e que enleia uma vida e uma vida.

   Não é somente um modo de tratar, é um nome,
      Assim como Izabel, Marina, Margarida...
   No entanto é mais que isso, é um nome divino,
que em si define um sonho, um sentimento e um bem.

     Querida, não é só uma palavra, é alguém,
   alguém que tem a vida em nossa própria vida.
   Querida quer dizer eu mesmo e mais alguém...
                  oh! querida!

    Querida é um adjetivo estranhamente feito
       de carinho, ciúme, adoração, ternura.
   Ninguém dirá "querida" a uma mulher impura,
pois parte da expressão fica em ecos no peito daquele que a usou...

      A expressão querida não é bem para ser falada, nem ouvida.
              É para que uma alma pense e outra a sinta.
    Sempre será maldita uma mulher que minta, em silêncio atendendo
                     a alguém que assim a chama,
            se não se ouviu chamar, antes que ele falasse,
                por um tic no peito e um carinho na face,
             se não é profundamente a querida que o ama!

                  Que cruel, que infiel esta mulher fingida,
                que se deixa chamar de querida e, não ama,
                                oh!querida!

              Querida, quer dizer a que eu amo e estremeço,
              a que é a minha amante, a minha amiga e irmã,
             conheço-a mais que a mim e a tudo que conheço,
                e com ela eu esqueço o ontem e o amanhã.

A palavra querida é a articulação do primeiro vagido instintivo e inconsciente.

               É Deus na nossa boca e o céu na nossa frente,
                 é ter mundos no olhar, ter estrelas na mão,
                  é ser um fio d´água e uma constelação...
                     é partilhar da grande Vida Universal,
                    é viver, mas viver como anjo e animal,
                    é encontrar o espaço e resumir a vida,
                     é trilhar confiante uma senda perdida
                    é ser quase divino é ser quase brutal,
                   é ter uma utopia entre a sala e o quintal
     é prender-te, sentir-te integrada, diluída em meus braços, em mim,
  infiltrada em meus poros, depois que eu derrubei os gigantes e os toros
                da floresta do mundo e a transpus triunfante!

                É te chamar "querida" e ver o teu semblante
                 transtornado de luz, uma luz comovida...

                É chegares o ouvido ao meu peito anelante
             e ouvir meu coração dizer de instante em instante:
                        Oh! querida... querida...




                                                                                  Título
Manuel Bandeira
           O inútil luar

   É noite. A Lua, ardente e terna,
      Verte na solidão sombria
     A sua imensa, a sua eterna
             Melancolia...


  Dormem as sombras na alameda
    Ao longo do ermo Piabanha.
   E dele um ruído vem de seda
       Que se amarfanha. . .


    No largo, sob os jambolanos,
  Procuro a sombra embalsamada.
   (Noite, consolo dos humanos!
         Sombra sagrada!)


  Um velho senta-se ao meu lado.
Medita. Há no seu rosto uma ânsia . . .
   Talvez se lembre aqui, coitado!
           De sua infância.


   Ei-lo que saca de um papel . . .
  Dobra-o direito, ajusta as pontas,
E pensativo, a olhar o anel,
      Faz umas contas . . .


  Com outro moço que se cala,
Fala um de compleição raquítica.
 Presto atenção ao que ele fala:
        — É de política.


  Adiante uma senhora magra,
Em ampla charpa que a modela,
Lembra uma estátua de Tanagra.
         E, junto dela,


Outra a entretém, a conversar:
— "Mamãe não avisou se vinha.
   Se ela vier, mando matar
        Uma galinha."


E embalde a Lua, ardente e terna,
    Verte na solidão sombria
   A sua imensa, a sua eterna
         Melancolia . . .




                                    Título
Manuel Bandeira
Vou-me embora pra Pasárgada


   Vou-me embora pra Pasárgada
         Lá sou amigo do rei
   Lá tenho a mulher que eu quero
       Na cama que escolherei
   Vou-me embora pra Pasárgada


   Vou-me embora pra Pasárgada
        Aqui eu não sou feliz
   Lá a existência é uma aventura
     De tal modo inconseqüente
   Que Joana a Louca de Espanha
       Rainha e falsa demente
      Vem a ser contraparente
     Da nora que eu nunca tive


       E como farei ginástica
        Andarei de bicicleta
     Montarei em burro brabo
      Subirei no pau-de-sebo
     Tomarei banhos de mar!
     E quando estiver cansado
        Deito na beira do rio
    Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
 Que no tempo de eu menino
    Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada


  Em Pasárgada tem tudo
     É outra civilização
  Tem um processo seguro
  De impedir a concepção
  Tem telefone automático
  Tem alcalóide à vontade
   Tem prostitutas bonitas
    Para a gente namorar


E quando eu estiver mais triste
   Mas triste de não ter jeito
   Quando de noite me der
    Vontade de me matar
  — Lá sou amigo do rei —
 Terei a mulher que eu quero
   Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada




                                  Título
Telha de Vidro
       Por Rachel de Queiroz

  Quando a moça da cidade chegou
        veio morar na fazenda,
            na casa velha...
              Tão velha!
 Quem fez aquela casa foi o bisavô...
 Deram-lhe para dormir a camarinha,
  uma alcova sem luzes, tão escura!
        mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha...

       A moça não disse nada,
    mas mandou buscar na cidade
         uma telha de vidro...
     Queria que ficasse iluminada
    sua camarinha sem claridade...

                  Agora,
         o quarto onde ela mora
   é o quarto mais alegre da fazenda,
tão claro que, ao meio dia, aparece uma
 renda de arabesco de sol nos ladrilhos
                vermelhos,
      que — coitados — tão velhos
só hoje é que conhecem a luz doa dia...
            A luz branca e fria
 também se mete às vezes pelo clarão
da telha milagrosa...
    Ou alguma estrela audaciosa
               careteia
 no espelho onde a moça se penteia.

  Que linda camarinha! Era tão feia!
       — Você me disse um dia
   que sua vida era toda escuridão
              cinzenta,
                 fria,
   sem um luar, sem um clarão...
    Por que você na experimenta?
   A moça foi tão vem sucedida...
Ponha uma telha de vidro em sua vida!




                                        Título
Giuseppe Ghiaroni

     A Máquina de Escrever

  Mãe, se eu morrer de um repentino mal,
vende meus bens a bem dos meus credores:
        a fantasia de festivas cores
     que usei no derradeiro Carnaval.

  Vende ese rádio que ganhei de prêmio
   por um concurso num jornal do povo,
   e aquele terno novo, ou quase novo,
  com poucas manchas de café boêmio.

   Vende também meus óculos antigos
   que me davam uns ares inocentes.
    Já não precisarei de duas lentes
   para enxergar os corações amigos.

  Vende , além das gravatas, do chapéu,
   meus sapatos rangentes. Sem ruído
  é mais provável que eu alcance o Céu
     e logre penetrar despercebido.

   Vende meu dente de ouro. O Paraíso
   requer apenas a expressão do olhar.
     Já não precisarei do meu sorriso
    para um outro sorriso me enganar.
Vende meus olhos a um brechó qualquer
   que os guarde numa loja poeirenta,
    reluzindo na sombra pardacenta,
   refletindo um semblante de mulher.

   Vende tudo, ao findar a minha sorte,
    libertando minha alma pensativa
   para ninguém chorar a minha morte
   sem realmente desejar que eu viva.

  Pode vender meu próprio leito e roupa
    para pagar àqueles a quem devo.
 Sim, vende tudo, minha mãe, mas poupa
  esta caduca máquina em que escrevo.

Mas poupa a minha amiga de horas mortas,
  de teclas bambas,tique-taque incerto.
  De ano em ano, manda-a ao conserto
  e unta de azeite as suas peças tortas.

   Vende todas as grandes pequenezas
     que eram meu humílimo tesouro,
    mas não! ainda que ofereçam ouro,
    não venda o meu filtro de tristezas!

   Quanta vez esta máquina afugenta
   meus fantasmas da dúvida e do mal,
    ela que é minha rude ferramenta,
    o meu doce instrumento musical.

 Bate rangendo, numa espécie de asma,
mas cada vez que bate é um grão de trigo.
Quando eu morrer, quem a levar consigo
  há de levar consigo o meu fantasma.

      Pois será para ela uma tortura
    sentir nas bambas eclas solitárias
    um bando de dez unhas usurárias
        a datilografar uma fatura.

Deixa-a morrer também quando eu morrer;
  deixa-a calar numa quietude extrema,
     à espera do meu último poema
   que as palavras não dão para fazer.

  Conserva-a, minha mãe, no velho lar,
 conservando os meus íntimos instantes,
  e, nas noites de lua, não te espantes
   quando as teclas baterem devagar.




                                            Título
Giuseppe Ghiaroni

           Dia das Mães

  Mãe! eu volto a te ver na antiga sala
    onde uma noite te deixei sem fala
 dizendo adeus como quem vai morrer.
     E me viste sumir pela neblina,
  porque a sina das mães é esta sina:
  amar, cuidar, criar, depois... perder.

  Perder o filho é como achar a morte.
  Perder o filho quando, grande e forte,
   já podia ampará-la e compensá-la.
 Mas nesse instante uma mulher bonita,
 sorrindo, o rouba, e a velha mãe aflita
     ainda se volta para abençoá-la

     Assim parti, e nos abençoaste.
 Fui esquecer o bem que me ensinaste,
    fui para o mundo me deseducar.
      E tu ficaste num silêncio frio,
  olhando o leito que eu deixei vazio,
     cantando uma cantiga de ninar.

      Hoje volto coberto de poeira
  e te encontro quietinha na cadeira,
    a cabeça pendida sobre o peito.
Quero beijar-te a fronte, e não me atrevo.
Quero acordar-te, mas não sei se devo,
  não sinto que me caiba este direito.

    O direito de dar-te este desgosto,
  de te mostrar nas rugas do meu rosto
    toda a miséria que me aconteceu.
   E quando vires e expressão horrível
    da minha máscara irreconhecível,
  minha voz rouca murmurar: ''Sou eu!"

     Eu bebi na taberna dos cretinos,
    eu brandi o punhal dos assassinos,
    eu andei pelo braço dos canalhas.
   Eu fui jogral em todas as comédias,
    eu fui vilão em todas as tragédias,
   eu fui covarde em todas as batalhas.

 Eu te esqueci: as mães são esquecidas.
       Vivi a vida, vivi muitas vidas,
    e só agora, quando chego ao fim,
       traído pela última esperança,
  e só agora quando a dor me alcança
lembro quem nunca se esqueceu de mim.

   Não! Eu devo voltar, ser esquecido.
 Mas que foi? De repente ouço um ruído;
     a cadeira rangeu; é tarde agora!
 Minha mãe se levanta abrindo os braços
e, me envolvendo num milhão de abraços,
rendendo graças, diz: "Meu filho!", e chora.

     E chora e treme como fala e ri,
    e parece que Deus entrou aqui,
  em vez de o último dos condenados.
 E o seu pranto rolando em minha face
 quase é como se o Céu me perdoasse,
   me limpasse de todos os pecados.

 Mãe! Nos teus braços eu me transfiguro.
  Lembro que fui criança, que fui puro.
 Sim, tenho mãe! E esta ventura é tanta
   que eu compreendo o que significa:
    o filho é pobre, mas a mãe é rica!
  O filho é homem, mas a mãe é santa!

  Santa que eu fiz envelhecer sofrendo,
  mas que me beija como agradecendo
 toda a dor que por mim lhe foi causada.
 Dos mundos onde andei nada te trouxe,
   mas tu me olhas num olhar tão doce
   que , nada tendo, não te falta nada.
Dia das Mães! É o dia da bondade
   maior que todo o mal da humanidade
      purificada num amor fecundo.
Por mais que o homem seja um mesquinho,
enquanto a Mãe cantar junto a um bercinho
    cantará a esperança para o mundo!




                                            Título
Resíduo
Carlos Drummond de Andrade

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco
Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).
Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.
Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.
Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?
Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.
E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.

Às vezes um botão. Às vezes um rato.




                                          Título
O verbo amar
                 JG de Araujo Jorge

            Te amei: era de longe que te olhava
            e de longe me olhavas vagamente...
        Ah, quanta coisa nesse tempo a gente sente,
              que a alma da gente faz escrava.

            Te amava: como inquieto adolescente,
            tremendo ao te enlaçar, e te enlaçava
              adivinhando esse mistério ardente
            do mundo, em cada beijo que te dava.

        Te amo: e ao te amar assim vou conjugando
          os tempos todos desse amor, enquanto
        segue a vida, vivendo, e eu, vou te amando...

         Te amar: é mais que em verbo é a minha lei,
             e é por ti que o repito no meu canto:
            te amei, te amava, te amo e te amarei!


(Poema de JG de Araujo Jorge do livro -Bazar de Ritmos- 1935)




                                                                Título
"Existo"
                JG de Araujo Jorge


      Seu amor me fez real, e me deu sentido
      da alegria de ser, total, completamente...
    Fez de um pobre poeta em sonhos consumido
alguém que tem nas mãos um mundo! e sofre, e sente!


      Seu amor foi a vida a irromper da semente
     de um velho coração cansado e ressequido,
      o verde que voltou ao ramo nu, pendente,
       a imprevisível flor, o fruto inconcebido...


       Seu amor foi milagre a cantar pelo chão
    como a água, no agreste, a acenar ao viajante
     a esperança, o prazer, a vida, a salvação...


 Passo a existir, quem sabe ? apenas porque amei...
      E ela existe talvez, a partir deste instante
  porque ela e o seu amor... em versos transformei!




                                                      Título
Declaração em juízo
      Carlos Drummond de Andrade


            Peço desculpas de ser
                 o sobrevivente.
        Não por longo tempo, é claro,
                 tranquilizem-se.
     Mas devo confessar, reconhecer
             que sou sobrevivente.
                Se é triste/cômico
            ficar sentado na plateia
        quando o espetáculo acabou
               e fecha-se o teatro,
mais triste/grotesco é permanecer no palco,
             ator único, sem papel,
    quando o público já virou as costas
               e somente baratas
               circulam no farelo.
         Reparem: não tenho culpa.
             Não fiz nada para ser
                   sobrevivente.
        Não roguei aos altos poderes
   que me conservassem tanto tempo.
  Não matei nenhum dos companheiros.
          Se não saí violentamente,
         se me deixei ficar ficar ficar,
          foi sem segunda intenção.
         Largaram-me aqui, eis tudo,
        e lá se foram todos, um a um,
       sem prevenir, sem me acenar,
     sem dizer adeus, todos se foram.
 (houve os que requintaram no silêncio).
Não me queixo. Nem os censuro.
            Decerto não houve propósito
      de me deixar entregue a mim mesmo,
              perplexo, desentranhado.
          Não cuidaram que um sobraria,
            foi isso. Tornei, tornaram-me
                    sobre - vivente.
           Se admiram de eu estar vivo,
             esclareço: estou sobrevivo.
            viver, propriamente, não vivi
           senão em projeto. Adiamento.
             Calendário do ano próximo.
            jamais percebi estar vivendo
    quando em volta viviam quantos! Quanto.
                Alguma vez os invejei.
         Outras, sentia pena de tanta vida
  que se exauria no viver enquanto o não viver,
        o sobreviver duravam, perdurando.
        e me punha a um canto, à espera,
           contraditória e simplesmente,
        de chegar a hora de também viver.
             Não chegou. Digo que não.
                  Tudo foram ensaios,
       testes, ilustrações. a verdadeira vida
         sorria longe, indecifrável. Desisti.
              Recolhi-me cada vez mais,
    concha à concha. Agora sou sobrevivente.
               Sobrevivente incomoda
                  mais que fantasma.
                   Sei a mim mesmo
                    incomodo-me.
            O reflexo é uma prova feroz.
     Por mais que me esconda, projeto-me,
              devolvo-me, provoco-me.
              não adianta ameaçar-me.
                     Volto sempre,
       todas as manhãs me volto, viravolto
com exatidão de carteiro que distribui más notícias.
                    O dia todo é dia
           de verificar o meu fenômeno.
                 Estou onde não estão
            minhas raízes, meu caminho
                      onde sobrei,
             insistente, reiterado, aflitivo
                      sobrevivente
                   da vida que ainda
    não vivi, juro por deus e o diabo, não vivi.
             Tudo confessado, que pena
           me será aplicada, ou perdão?
           Desconfio nada pode ser feito
                a meu favor ou contra,
         nem há técnica de fazer, desfazer
                   o infeito infazível.
     Se sou sobrevivente, sou sobrevivente.
     Cumpre reconhecer-me esta qualidade
                  que finalmente o é.
               Sou o único, entendem?
De um grupo muito antigo
   de que não há memória nas calçadas
                 e nos vídeos.
       Único a permanecer, a dormir,
               a jantar, a urinar,
        a tropeçar, até mesmo a sorrir
em rápidas ocasiões, mas garanto que sorrio,
    como neste momento estou sorrindo
       de ser - delícia? - sobrevivente.
        É esperar apenas, está bem?
    Que passe o tempo de sobrevivência
      e tudo se resolve sem escândalo
           ante a justiça indiferente.
      Acabo de notar, e sem surpresa:
  não me ouvem no sentido de entender,
     nem importa que um sobrevivente
    venha contar seu caso, defender-se
       ou acusar-se, é tudo a mesma
          nenhuma coisa, e branca.


          Fonte: Blog Café Brasil
                01.11.2011




                                               Título
CAIR DAS FOLHAS
  Vicente de Carvalho



   “Deixa-me, fonte”! Dizia
    A flôr, tonta de terror.
   E a fonte, sonora e fria,
   Cantava, levando a flor.

“Deixa-me, deixa-me, fonte!””
     Dizia a flor a chorar:
 “Eu fui nascida no monte...
 “Não me leves para o mar”.

   E a fonte, rapida e fria,
 Com um sussurro zombador,
   Por sobre a areia corria,
    Corria levando a flôr.

 “Ai, balanços do meu galho,
   “Balanços do berço meu;
 “Ai, claras gotas de orvalho
  “Caídas do azul do céu!...”

  Chorava a flor, e gemia,
  Branca, branca de terror,
   E a fonte sonora e fria,
   Rolava, levando a flor.
“Adeus, sombra das ramadas,
                             “Cantigas do rouxinol;
                          “Ai, festa das madrugadas,
                            “Doçuras do pôr do sol;

                            “Caricia das brizas leves
                         “Que abrem rasgões de luar...
                          “Fonte, fonte, não me leves,
                         “Não me leves para o mar!...”

                                       *
                            As correntezas da vida
                           E os restos do meu amor
                           Resvalam numa descida
                          Como a da fonte e da flor...




                             POEMAS E CANÇÕES
                              (SEGUNDA EDIÇÃO)
                         Porto: Livraria Chardon, 1909
                            250 p. 18 cmx 12 cm.

                  (Conservamos a ortografia antiga, original)




*Vicente Augusto de Carvalho, o "Poeta do Mar", nasceu em Santos (SP),
em 05/04/1866, lá faleceu no dia 22/04/1924. Poeta, contista, advogado,
jornalista, político e magistrado. Foi grande artista do verso, da fase criadora
do Parnasianismo. Ocupou a Cadeira 29 da Academia Brasileira de Letras,
tendo sido eleito em 1º de maio de 1909, na sucessão de Artur Azevedo.




                                                                                   Título
Velho Tema II
        Vicente de Carvalho


   Eu cantarei de amor tão fortemente
 Com tal celeuma e com tamanhos brados
   Que afinal teus ouvidos, dominados,
Hão de à força escutar quanto eu sustente.

   Quero que meu amor se te apresente
 - Não andrajoso e mendigando agrados,
 Mas tal como é: risonho e sem cuidados,
  Muito de altivo, um tanto de insolente.

    Nem ele mais a desejar se atreve
Do que merece: eu te amo, e o meu desejo
 Apenas cobra um bem que se me deve.

Clamo, e não gemo; avanço, e não rastejo;
   E vou de olhos enxutos e alma leve
    À galharda conquista do teu beijo.




                                             Título
TRISTEZA
                                  Álvares de Azevedo*

                           Eu deixo a vida como deixa o tédio
                            Do deserto o poente caminheiro;
                          Como as horas de um longo pesadelo
                          Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

                       Como um desterro de minha alma errante,
                         Onde o fogo insensato a consumia...
                       Só levo uma saudade — é desses tempos
                            Que amorosa ilusão embelecia.

                       Só levo uma saudade — é dessas sombras
                        Que eu sentia velar nas noites minhas...
                            De ti, ó minha mãe, pobre coitada,
                           Que por minha tristeza te definhas!

                           Descansem o meu leito solitário
                          Na floresta dos homens esquecida,
                      À sombra de uma cruz — e escrevam nela:
                          Foi poeta, sonhou e amou na vida...

                (Do livro: "Antologia Nacional", Livraria Francisco Alves, 1963, RJ)

*Álvares de Azevedo (1831-1852) foi um poeta, escritor e contista, da segunda geração
romântica brasileira. Suas poesias retratam o seu mundo interior. É conhecido como "o
poeta da dúvida".A figura da mulher aparece em seus versos, ora como um anjo, ora
como um ser fatal, mas sempre inacessível. Álvares de Azevedo é Patrono da cadeira nº
2, da Academia Brasileira de Letras.



                                                                                        Título
O enamorado das rosas
                                       Olegário Mariano*
                            Toda manhã, ao sol, cabelo ao vento,
                           Ouvindo a água da fonte que murmura,
                            Rego as minhas roseiras com ternura,
                         Que água lhes dando, dou-lhes força e alento.

                              Cada um tem um suave movimento
                            Quando a chamar minha atenção procura
                              E mal desabrochada na espessura,
                             Manda-me um gesto de agradecimento.

                               Se cultivei amores às mancheias,
                           Culpa não cabe às minhas mãos piedosas
                            Que eles passassem para mãos alheias.

                           Hoje, esquecendo ingratidões mesquinhas,
                             Alimento a ilusão de que essas rosas,
                             Ao menos essas rosas, sejam minhas.



*Olegário Mariano Carneiro da Cunha, poeta, diplomata, deputado federal e constituinte, nasceu no Poço da
Panela, arrabalde da cidade do Recife, estado de Pernambuco, no dia 24 de março, no mesmo ano da
Proclamação da República, em 1889. Segundo os biógrafos da Academia Brasileira de Letras, da qual foi
membro, “sua poesia lírica é simples, correntia, de fundo romântico, pertinente à fase do sincretismo
parnasiano-simbolista de transição para o Modernismo. Ficou conhecido como o "poeta das cigarras", por
causa de um de seus temas prediletos e considerado o último poeta romântico brasileiro.




                                                                                                            Título
As duas sombras
          Olegário Mariano
  Na encruzilhada silenciosa do Destino,
   Quando as estrelas se multiplicam,
  Duas sombras errantes se encontram .

  A primeira falou : - Nasci de um beijo.
 De luz, sou força, vida, alma, esplendor.
Toda a ânsia do Universo...Eu sou o Amor.
  O mundo sinto exâmine a meus pés...
  Sou Delírio...Loucura...E tu, quem és?

  Eu nasci de uma lágrima. Sou flama.
     Do teu incêndio que devora...
 Vivo, dos olhos tristes de quem ama,
Para os olhos nevoentos de quem chora.

 Dizem que ao mundo vim para ser boa.
 Para dar do meu sangue a quem queira.
   Sou a saudade, a tua companheira
 Que punge, que consola e que perdoa...

  Na encruzilhada silenciosa do Destino
    As duas sombras se abraçaram.
     E desde então, nunca mais se
              separaram.··.



                                             Título
QUASE
          Mário de Sá carneiro*


    Um pouco mais de sol — eu era brasa.
    Um pouco mais de azul — eu era além.
   Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
   Se ao menos eu permanecesse aquém...

  Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
    Num baixo mar enganador d'espuma;
   E o grande sonho despertado em bruma,
  O grande sonho — ó dor! — quase vivido...

  Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim — quase a expansão...
    Mas na minh'alma tudo se derrama...
          Entanto nada foi só ilusão!

  De tudo houve um começo... e tudo errou...
  — Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... —
  Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
    Asa que se elançou, mas não voou...

     Momentos de alma que desbaratei...
     Templos aonde nunca pus um altar...
     Rios que perdi sem os levar ao mar...



                                                  Título
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

  Num ímpeto difuso de quebranto,
    Tudo encetei e nada possuí...
 Hoje, de mim, só resta o desencanto
 Das coisas que beijei mas não vivi...




          Dispersão
      Perdi-me dentro de mim
       Porque eu era labirinto
      E hoje, quando me sinto.
      É com saudades de mim.

       Passei pela minha vida
      Um astro doido a sonhar,
       Na ânsia de ultrapassar,
      Nem dei pela minha vida...

     Para mim é sempre ontem,
    Não tenho amanhã nem hoje:
    O tempo que aos outros foge
     Cai sobre mim feito ontem.

        (O Domingo de Paris
     Lembra-me o desaparecido
        Que sentia comovido
       Os Domingos de Paris:

    Porque um domingo é família,
      É bem-estar, é singeleza,
      E os que olham a beleza
   Não têm bem-estar nem família).

      Pobre moço das ânsias...
      Tu, sim, tu eras alguém!
       E foi por isso também
Que me abismastes nas ânsias.

      A grande ave doirada
     Bateu asas para os céus
      Mas fechou-se saciada
   Ao ver que ganhava os céus.

   Como se chora um amante,
  Assim me choro a mim mesmo:
    Eu fui amante inconstante
     Que se traiu a si mesmo.

 Não sinto o espaço que encerro
   Nem as linhas que protejo:
 Se me olho a um espelho, erro
  Não me acho no que projeto.

    Regresso dentro de mim
    Mas nada me fala, nada!
   Tenho a alma amortalhada,
    Sequinha dentro de mim.

     Não perdi a minha alma,
     Fiquei com ela, perdida.
     Assim eu choro, da vida,
    Eu nunca vi... mas recordo

       A sua boca doirada
    E o seu corpo esmaecido,
      Em um hálito perdido
    Que vem na tarde doirada.

  (As minhas grandes saudades
    São do que nunca enlacei.
   Ai, como eu tenho saudades
   Dos sonhos que sonhei!... )

   E sinto que a minha morte —
     Minha dispersão total —
     Existe lá longe, ao norte,
       Numa grande capital.

      Vejo o meu último dia
    Pintado em rolos de fumo,
      E todo azul-de-agonia
   Em sombra e além me sumo.

      Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
        Sou amor e piedade
 Em face dessas mãos brancas. . .
Tristes mãos longas e lindas
                              Que eram feitas pra se dar
                              Ninguém mas quis apertar
                             Tristes mãos longas e lindas

                               Eu tenho pena de mim,
                                Pobre menino ideal...
                                Que me faltou afinal?
                           Um elo? Um rastro?... Ai de mim!

                           Desceu-me n’alma o crepúsculo;
                             Eu fui alguém que passou.
                             Serei, mas já não me sou;
                            Não vivo, durmo o crepúsculo.

                               Álcool dum sono outonal
                               Me penetrou vagamente
                               A difundir-me dormente
                               Em, uma bruma outonal.

                                Perdi a morte e a vida,
                             E, louco, não enlouqueço...
                                  A hora foge vivida
                             Eu sigo-a, mas permaneço ..



                                           .

*Mário de Sá Carneiro foi poeta, contista e ficcionista português, um dos grandes
expoentes do modernismo em Portugal e um dos mais reputados membros da Geração
d’Orpheu. Nasceu em Lisboa no dia 19 de Maio de 1890 e faleceu em Paris, em 26 de
Abril de 1916.
Época /Gênero literário: Modernismo
Magnum opus¹: Céu em Fogo

¹Magnum opus, em latim, significa grande obra. Refere-se à melhor, mais popular ou
renomada obra de um artista




                                                                                     Título
Não me Peçam Razões
            José Saramago


Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
 Que razões são palavras, todas nascem
 Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
 A força de maré que me enche o peito,
  Este estar mal no mundo e nesta lei:
   Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
     Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
    A cor de primavera que há-de vir.



José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"




                                           Título
Remorso
             Olavo Bilac



   Às vezes, uma dor me desespera...
 Nestas ânsias e dúvidas em que ando.
 Cismo e padeço, neste outono, quando
    Calculo o que perdi na primavera.

    Versos e amores sufoquei calando,
 Sem os gozar numa explosão sincera...
Ah! Mais cem vidas! com que ardor quisera
 Mais viver, mais penar e amar cantando!

  Sinto o que desperdicei na juventude;
    Choro, neste começo de velhice,
    Mártir da hipocrisia ou da virtude,

    Os beijos que não tive por tolice,
   Por timidez o que sofrer não pude,
  E por pudor os versos que não disse!




                                            Título
Crepúsculo de Outono
              Manoel Bandeira



  O crepúsculo cai, manso como uma benção.
 Dir-se-á que o rio chora a prisão de seu leito...
As grandes mãos da sombra evangélicas pensam
    As feridas que a vida abriu em cada peito.


   O outono amarelece e despoja os lariços.
Um corvo passa e grasna, e deixa esparso no ar
     O terror augural de encantos e feitiços.
As flores morrem. Toda a relva entra a murchar.


   Os pinheiros, porém viçam, e serão breve
  Todo o verde que a vista espairecendo vejas,
  Mais negros sobre a alvura unânime da neve,
   Altos e espirituais como flechas de igrejas.


  Um sino plange. A sua voz ritma o murmúrio
     Do rio, e isso parece a voz da solidão.
E essa voz enche o vale...o horizonte purpúreo...
     Consoladora como um divino perdão.
O sol fundiu a neve. A folhagem vermelha
  Reponta. Apenas há, nos barrancos retortos,
  Flocos, que a luz do poente extática semelha
  A um rebanho infeliz de cordeirinhos mortos.


 A sombra casa os sons numa grave harmonia.
  E tamanha esperança e uma tão grande paz
     Avultam do clarão que cinge a serrania,
Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás.




                                                  Título
Outono

      J. G. de Araújo Jorge

O outono já chegou - aos arrufos do vento
as folhas num desmaio embalam-se pelo ar...

- vão caindo... caindo... uma a uma, em desalento
e uma a uma, lentamente, vão no chão pousar...

O céu perdeu o azul - vestiu-se de cinzento
e envolveu na neblina a luz baça do luar...
- na alameda onde vou, de momento a momento,
há um gemido de folha a cair e a expirar...

O arvoredo transpira as carícias dos ninhos,
e o vento a cirandar na curva das estradas
eleva o folhareu no espaço em redemoinhos...

Há um córrego a levar as folhas secas em bando...
- e à aragem que soluça entre as ramas curvadas,
parece que o arvoredo em coro está chorando!...




                                                    Título
Uma névoa de Outono o ar raro vela
              Fernando Pessoa
                     (5-11-1932)

        Uma névoa de Outono o ar raro vela,
         Cores de meia-cor pairam no céu.
          O que indistintamente se revela,
        Árvores, casas, montes, nada é meu.

        Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
        Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
       Mas entre mim e ver há um grande sono.
       De sentir é só a janela a que eu assomo.

          Amanhã, se estiver um dia igual,
         Mas se for outro, porque é amanhã,
           Terei outra verdade, universal,
                 E será como esta.




                                                  Título
CANÇÃO DE OUTONO
     Cecília Meireles
    Perdoa-me, folha seca,
     não posso cuidar de ti.
  Vim para amar neste mundo,
    e até do amor me perdi.

   De que serviu tecer flores
     pelas areias do chão,
   se havia gente dormindo
   sobre o próprio coração?

    E não pude levantá-la!
    Choro pelo que não fiz.
    E pela minha fraqueza
   é que sou triste e infeliz.
    Perdoa-me, folha seca!
  Meus olhos sem força estão
  velando e rogando aqueles
   que não se levantarão...

     Tu és a folha de outono
       voante pelo jardim.
   Deixo-te a minha saudade
    - a melhor parte de mim.
   Certa de que tudo é vão.
 Que tudo é menos que o vento,
 menos que as folhas do chão...



                                  Título
COLETÂNEA ESCOLHIDA DE GREGÓRIO DE MATOS


       Inconstância dos bens do mundo
                   Gregório de Matos

         Nasce o Sol e não dura mais que um dia,
         Depois da Luz, se segue a noite escura,
          Em tristes sombras morre a formosura,
            Em contínuas tristezas, a alegria.

         Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
        Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
          Como a beleza assim se transfigura?
           Como o gosto da pena assim se fia?


           Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,
           Na formosura não se dê constância,
              E na alegria sinta-se tristeza.


        Começa o mundo, enfim, pela ignorância,
        Pois tem, qualquer dos bens, por natureza
            Firmeza somente na inconstância.
Soneto Sobre a Bahia
           Gregório de Matos


   A cada canto um grande conselheiro.
 que nos quer governar cabana, e vinha,
    não sabem governar sua cozinha,
    e podem governar o mundo inteiro.
  Em cada porta um frequentado olheiro,
    que a vida do vizinho, e da vizinha
pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,
    para a levar à Praça, e ao Terreiro.
    Muitos mulatos desavergonhados,
  trazidos pelos pés os homens nobres,
     posta nas palmas toda a picardia.
    Estupendas usuras nos mercados,
 todos, os que não furtam, muito pobres,
       e eis aqui a cidade da Bahia




       Buscando a Cristo
           Gregório de Matos




 A vós correndo vou, braços sagrados,
 Nessa cruz sacrossanta descobertos
 Que, para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.

     A vós, divinos olhos, eclipsados
   De tanto sangue e lágrimas abertos,
Pois, para perdoar-me, estais despertos,
E, por não condenar-me, estais fechados.

A vós, pregados pés, por não deixar-me,
 A vós, sangue vertido, para ungir-me,
 A vós, cabeça baixa, p'ra chamar-me

   A vós, lado patente, quero unir-me,
 A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
     Para ficar unido, atado e firme.
Epílogos
        Juízo anatômico da Bahia
                  Gregório de Matos

Que falta nesta cidade?................Verdade
Que mais por sua desonra?...........Honra
Falta mais que se lhe ponha..........Vergonha.

O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
numa cidade, onde falta
Verdade, Honra, Vergonha.

Quem a pôs neste socrócio*?..........Negócio
Quem causa tal perdição?.............Ambição
E o maior desta loucura?...............Usura.

Notável desventura de um povo néscio, e sandeu,
que não sabe, que o perdeu
Negócio, Ambição, Usura.

Quais são os seus doces objetos?....Pretos
Tem outros bens mais maciços?.....Mestiços
Quais destes lhe são mais gratos?...Mulatos.

Dou ao demo os insensatos,
dou ao demo a gente asnal,
que estima por cabedal
Pretos, Mestiços, Mulatos.

Quem faz os círios* mesquinhos?...Meirinhos
Quem faz as farinhas tardas?.........Guardas
Quem as tem nos aposentos?.........Sargentos.

Os círios lá vêm aos centos,
e a terra fica esfaimando,
porque os vão atravessando
Meirinhos, Guardas, Sargentos.

E que justiça a resguarda?.............Bastarda
É grátis distribuída?.....................Vendida
Que tem, que a todos assusta?.......Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa,
o que El-Rei nos dá de graça,
que anda a justiça na praça
Bastarda, Vendida, Injusta.

Que vai pela clerezia?..................Simonia*
E pelos membros da Igreja?..........Inveja
Cuidei, que mais se lhe punha?.....Unha.
Sazonada caramunha*!
                             enfim que na Santa Sé
                             o que se pratica, é
                             Simoni*, Inveja, Unha*.

                             E nos frades há manqueiras*?.........Freiras
                             Em que ocupam os serões?............Sermões
                             Não se ocupam em disputas?.........Putas.

                             Com palavras dissolutas
                             me concluís na verdade,
                             que as lidas todas de um Frade
                             são Freiras, Sermões, e Putas.

                             O açúcar já se acabou?..................Baixou
                             E o dinheiro se extinguiu?.............Subiu
                             Logo já convalesceu?.....................Morreu.

                             À Bahia aconteceu
                             o que a um doente acontece,
                             cai na cama, o mal lhe cresce,
                             Baixou, Subiu, e Morreu.

                             A Câmara não acode?...................Não pode
                             Pois não tem todo o poder?...........Não quer
                             É que o governo a convence?........Não vence.

                             Que haverá que tal pense,
                             que uma Câmara tão nobre
                             por ver-se mísera, e pobre
                             Não pode, não quer, não vence.

*Interpretação de alguns vocábulos:

Socrócio – emplastro, alivio, bálsamo ( o poeta usou-o no sentido antitético, irônico).
Círios – sacos de farinha (a grafia correta é sírios).
Simonia – venda de coisas sagradas.
Unha – roubalheira, avareza, tirania, opressão.
Caramunha – lamentação experiente.
Manqueiras – vícios, defeitos.

                                                     ********************
    1.
         Gregório de Matos Guerra (Salvador, 23 de dezembro de 1636¹ – Recife, 26 de novembro de 1695),
         alcunhado de Boca do Inferno ou Boca de Brasa, foi um advogado e poeta do Brasil colônia. É
         considerado o maior poeta barroco do Brasil e o mais importante poeta satírico da literatura em
         língua portuguesa, no período.

¹Por haver divergências a respeito da data de nascimento de Gregório de Matos, foi adotado a utilizada pelo pesquisador Fernando da
Rocha Peres, no livro de sua autoria Gregório de Mattos e Guerra: Uma Revisão Biográfica e em nota biográfica publicada no site da
Universidade Federal da Bahia/UFBA (http://www.ufba.br/~gmg/gregorio.html)




                                                                                                                                  Título
Velhas Árvores
             Olavo Bilac


  Olha estas velhas árvores, mais belas
  Do que as árvores novas, mais amigas:
  Tanto mais belas quanto mais antigas,
  Vencedoras da idade e das procelas...

O homem, a fera, e o inseto, à sombra delas
     Vivem, livres de fomes e fadigas;
 E em seus galhos abrigam-se as cantigas
     E os amores das aves tagarelas.

   Não choremos, amigo, a mocidade!
   Envelheçamos rindo! Envelheçamos
   Como as árvores fortes envelhecem:

    Na glória da alegria e da bondade,
  Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!


        Olavo Bilac, in "Poesias"




                                              Título
Soneto del vino
                          Jorge Luis Borges*
                      ¿En qué reino, en qué siglo, bajo qué silenciosa
                        conjunción de los astros, en qué secreto día
                      que el mármol no ha salvado, surgió la valerosa
                           y singular idea de inventar la alegría?

                          Con otoños de oro la inventaron. El vino
                          fluye rojo a lo largo de las generaciones
                        como el río del tiempo y en el arduo camino
                       nos prodiga su música, su fuego y sus leones.

                        En la noche del júbilo o en la jornada adversa
                             exalta la alegría o mitiga el espanto
                         y el ditirambo nuevo que este día le canto

                           otrora lo cantaron el árabe y el persa.
                      Vino, enséñame el arte de ver mi propia historia
                        como si ésta ya fuera ceniza en la memoria.




*Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo (Buenos Aires, 24 de agosto de 1899 — Genebra, 14 de
junho de 1986) foi um escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino.




                                                                                                    Título

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  • 1. Carlos Drummond de Andrade – Fazedor de homens William Shakespeare – Coletânea escolhida Giuseppe Guiaroni – A palavra querida Manuel Bandeira – O inútil luar Manuel Bandeira – Vou-me embora pra Pasárgada Raquel de Queiroz – Telha de vidro Giuseppe Guiaroni – A máquina de escrever Giuseppe Guiaroni – Dia das mães Carlos Drummond de Andrade - Resíduo J. G. de Araújo Jorge – O verbo amar J. G. de Araújo Jorge – Existo Carlos Drummond de Andrade – Declaração em juízo Vicente de Carvalho – Cair das folhas Vicente de Carvalho – Velho Tema II Álvares de Azevedo – Tristeza Olegário Mariano – O enamorado das rosas Olegário Mariano – As duas sombras Mário de Sá Carneiro – Quase Mário de Sá Carneiro - Dispersão José Saramago – Não me peçam razões Olavo Bilac - Remorso Manoel Bandeira – Crepúsculo de Outono J. G. de Araújo Jorge - Outono Fernando Pessoa – Uma névoa de outono o ar raro vela Cecília Meireles – Canção de Outono Gregório de Matos – Coletânea escolhida – 9 (nove) poemas Olavo Bilac – Velhas árvores Jorge Luís Borges – El soneto Del vino
  • 2. Fazedor de Homens Todo homem é uma ilha... É bom ser uma ilha distante tanto quanto é bom ser um homem. Todo homem possui uma ponte pois é preciso sair da ilha, seguro. A ponte de um homem é um braço estendido. Todo homem é um mundo. O mundo roda no sistema egocêntrico de suas realidades, pequenos alumbramentos, medos e coragens. E quando o homem encara o mundo e se depara - homem-mundo, mundo-homem, volta à ilha: Todo homem ama sua ilha. II O homem faz o homem. E porque fez o homem, sem nem o homem querer aufere direitos do homem. Diz a ele: Cresça! E ele fica mais alto. Diz ao homem: Trabalhe!
  • 3. E ele usa o corpo. Diz ao homem: Viva! E ele respira e existe. Diz ao homem: Ame! E ele não sabe como. Mas diz ao homem: Procrie! E ele faz homens. Um dia ele morre. Se a vida foi longa para viver - é curta para morrer - porque o homem não fez, não escolheu, não pensou nada. III O que faz um homem diferente de outro homem é o que ele pensa. O que o transforma, também, de um simples fazedor de homens, num criador de homens. Todo homem é uma vontade. E se deixa de ser vontade teme a perda de sua posse. Todo homem é uma consciência. Nela inclui o seu saber e a parte maior do não saber, e se aceita o fato, é com ela que ele se entende. Todo homem é seu corpo. E sabe dele em contraste com outro corpo, tal é a sua medida. Como também, a medida de um homem é a sua carência: porque é assim que ele se assume, porque é assim que ele se liberta. Quanto mais ele precisa mais ele é maior. E dá. Pede. Reivindica. Exige, quanto pode. Luta e sofre. Todo homem quer deixar sua ilha. Temeroso de ter que voltar um dia, entretanto, não destrói as pontes. Enquanto isso, a ilha fica ali, só ilha. A ponte fica ali, só ponte. E o homem fica ali, só homem. Carlos Drummond de Andrade Publicado no Jornal Última Hora (RJ) de 23/04/73 Título
  • 4. Soneto 18 - Shakespeare Devo igualar-te a um dia de verão? Mais afável e belo é o teu semblante: O vento esfolha Maio inda em botão, Dura o termo estival um breve instante. Muitas vezes a luz do céu calcina, Mas o áureo tom também perde a clareza: De seu belo a beleza enfim declina, Ao léu ou pelas leis da Natureza. Só teu verão eterno não se acaba Nem a posse de tua formosura; De impor-te a sombra a Morte não se gaba Pois que esta estrofe eterna ao Tempo dura. Enquanto houver viventes nesta lida, Há-de viver meu verso e te dar vida.
  • 5. Se Nada Há de Novo Se nada há de novo e tudo o que há já dantes era como agora é, só ilusão a criação será: criar o já criado para quê? Que alguém me mostre, sobre um livro antigo como quinhentas translações astrais, a tua imagem, na inscrição, no abrigo do espírito em seus signos iniciais. Que eu saiba o que diria o velho mundo deste milagre que é a tua forma; se te viram melhor, se me confundo, se as translações seguem a mesma norma. Mas disto estou seguro: antigos textos louvaram mais com bem menores pretextos. William Shakespeare, in "Sonetos" Tradução de Carlos de Oliveira A Noite não me Deu nenhum Sossego Como voltar feliz ao meu trabalho se a noite não me deu nenhum sossego? A noite, o dia, cartas dum baralho sempre trocadas neste jogo cego. Eles dois, inimigos de mãos dadas, me torturam, envolvem no seu cerco de fadiga, de dúbias madrugadas: e tu, quanto mais sofro mais te perco. Digo ao dia que brilhas para ele, que desfazes as nuvens do seu rosto; digo à noite sem estrelas que és o mel na sua pele escura: o oiro, o gosto. Mas dia a dia alonga-se a jornada e cada noite a noite é mais fechada. William Shakespeare, in "Sonetos" Tradução de Carlos de Oliveira Meus Olhos Veem Melhor se os Vou Fechando Meus olhos veem melhor se os vou fechando. Viram coisas de dia e foi em vão, mas quando durmo, em sonhos te fitando, são escura luz que luz na escuridão. Tu cuja sombra faz a sombra clara,
  • 6. como em forma de sombras assombravas ledo o claro dia em luz mais rara, se em sombra a olhos sem visão brilhavas! Que benção a meus olhos fora feita vendo-te à viva luz do dia bem, se a tua sombra em trevas imperfeita a olhos sem visão no sono vem! Vejo os dias quais noites não te vendo, e as noites dias claros sonhos tendo. William Shakespeare, in "Sonetos (43)" Soneto 107 Medos, nem alma capaz de prever Medos, nem alma capaz de prever Os sonhos de porvir do mundo inteiro, Podem o meu amor circunscrever, Nem dar-lhe fado triste por certeiro. A Lua seu eclipse superou, Os agourentos de si podem rir, A incerteza agora se firmou, A paz proclama olivas no porvir. Com o orvalho dos tempos refrescado O meu amor a própria morte prende E em meus versos vivo consagrado, Enquanto as tribos mudas ela ofende. Aqui encontrarás teu monumento, E o bronze dos tiranos vai com o vento. Soneto 54 Oh, como a beleza parece mais bela com o doce ornamento que a verdade produz! A rosa tão bela, mas mais bela a julgamos Pelo doce aroma que nela seduz. As rosas silvestres têm a cor tão profunda Quanto a tintura das rosas perfumadas, Têm os mesmos espinhos e brincam tão vivamente Quando o sopro do verão expõe os botões velados; Mas exibem-se apenas para si mesmas, Vivem esquecidas e murcham obscuras; Morrem sozinhas. As doces rosas, não;
  • 7. De suas doces mortes surgem as mais doces essências. e assim também a ti, a bela e adorável mocidade, Fenecido o frescor, revela em versos tua verdade. Soneto 73 Em mim tu vês a época do estio Em mim tu vês a época do estio Na qual as folhas pendem, amarelas, De ramos que se agitam contra o frio, Coros onde cantaram aves belas. Tu me vês no ocaso de um tal dia Depois que o Sol no poente se enterra, Quando depois que a noite o esvazia, O outro eu da morte sela a terra. Em mim tu vês o brilho da pira Que nas cinzas de sua juventude Como em leito de morte agora expira Comido pelo que lhe deu saúde. Visto isso, tens mais força para amar E amar muito o que em breve vais deixar. William Shakespeare Resumo William Shakespeare foi um poeta e dramaturgo inglês, tido como o maior escritor do idioma inglês e o mais influente dramaturgo do mundo. É chamado frequentemente de poeta nacional da Inglaterra e de "Bardo do Avon" (ou simplesmente The Bard, "O Bardo"). Nasceu em 26 de abril de 1564 em Stratford-upon-Avon onde também foi criado. Foi um poeta e dramaturgo respeitado em sua própria época, mas sua reputação só viria a atingir o nível em que se encontra hoje no século XIX. Os românticos, especialmente, aclamaram a genialidade de Shakespeare, e os vitorianos idolatraram-no como um herói, com uma reverência que George Bernard Shaw chamava de "bardolatria". No século XX sua obra foi adotada e redescoberta repetidamente por novos movimentos, tanto na academia e quanto na performance. Suas peças permanecem extremamente populares hoje em dia , e são estudadas, encenadas e reinterpretadas constantemente, em diversos contextos culturais e políticos, por todo o mundo. William Shakespeare morreu em 23 de Abril de 1616, mesmo dia de seu aniversário.É bem conhecida a coincidência das datas de morte de dois dos grandes escritores da humanidade, Miguel de Cervantes e William Shakespeare, ambos com data de falecimento em 23 de Abril de 1616. Porém, é importante notar que o Calendário gregoriano já era utilizado na Espanha desde o século XVI, enquanto que na Inglaterra sua adoção somente ocorreu em 1751. Daí, em realidade, Miguel de Cervantes faleceu dez dias antes de William Shakespeare. Título
  • 8. A palavra Querida... Giuseppe Ghiaronni A palavra "querida", está para a garganta, como o mel para a boca e a mulher para o olhar. Quando um santo do céu, se dirige a uma santa, de face imaculada e expressão comovida, é assim, penso, que ele a deve chamar: oh!querida! Querida é um substantivo espiritual, é um nome. É um fio emocional de um ouro cristalino, que se estende e que atrai um destino e um destino... Que alinhava e que enleia uma vida e uma vida. Não é somente um modo de tratar, é um nome, Assim como Izabel, Marina, Margarida... No entanto é mais que isso, é um nome divino, que em si define um sonho, um sentimento e um bem. Querida, não é só uma palavra, é alguém, alguém que tem a vida em nossa própria vida. Querida quer dizer eu mesmo e mais alguém... oh! querida! Querida é um adjetivo estranhamente feito de carinho, ciúme, adoração, ternura. Ninguém dirá "querida" a uma mulher impura,
  • 9. pois parte da expressão fica em ecos no peito daquele que a usou... A expressão querida não é bem para ser falada, nem ouvida. É para que uma alma pense e outra a sinta. Sempre será maldita uma mulher que minta, em silêncio atendendo a alguém que assim a chama, se não se ouviu chamar, antes que ele falasse, por um tic no peito e um carinho na face, se não é profundamente a querida que o ama! Que cruel, que infiel esta mulher fingida, que se deixa chamar de querida e, não ama, oh!querida! Querida, quer dizer a que eu amo e estremeço, a que é a minha amante, a minha amiga e irmã, conheço-a mais que a mim e a tudo que conheço, e com ela eu esqueço o ontem e o amanhã. A palavra querida é a articulação do primeiro vagido instintivo e inconsciente. É Deus na nossa boca e o céu na nossa frente, é ter mundos no olhar, ter estrelas na mão, é ser um fio d´água e uma constelação... é partilhar da grande Vida Universal, é viver, mas viver como anjo e animal, é encontrar o espaço e resumir a vida, é trilhar confiante uma senda perdida é ser quase divino é ser quase brutal, é ter uma utopia entre a sala e o quintal é prender-te, sentir-te integrada, diluída em meus braços, em mim, infiltrada em meus poros, depois que eu derrubei os gigantes e os toros da floresta do mundo e a transpus triunfante! É te chamar "querida" e ver o teu semblante transtornado de luz, uma luz comovida... É chegares o ouvido ao meu peito anelante e ouvir meu coração dizer de instante em instante: Oh! querida... querida... Título
  • 10. Manuel Bandeira O inútil luar É noite. A Lua, ardente e terna, Verte na solidão sombria A sua imensa, a sua eterna Melancolia... Dormem as sombras na alameda Ao longo do ermo Piabanha. E dele um ruído vem de seda Que se amarfanha. . . No largo, sob os jambolanos, Procuro a sombra embalsamada. (Noite, consolo dos humanos! Sombra sagrada!) Um velho senta-se ao meu lado. Medita. Há no seu rosto uma ânsia . . . Talvez se lembre aqui, coitado! De sua infância. Ei-lo que saca de um papel . . . Dobra-o direito, ajusta as pontas,
  • 11. E pensativo, a olhar o anel, Faz umas contas . . . Com outro moço que se cala, Fala um de compleição raquítica. Presto atenção ao que ele fala: — É de política. Adiante uma senhora magra, Em ampla charpa que a modela, Lembra uma estátua de Tanagra. E, junto dela, Outra a entretém, a conversar: — "Mamãe não avisou se vinha. Se ela vier, mando matar Uma galinha." E embalde a Lua, ardente e terna, Verte na solidão sombria A sua imensa, a sua eterna Melancolia . . . Título
  • 12. Manuel Bandeira Vou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura De tal modo inconseqüente Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que eu nunca tive E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-d'água
  • 13. Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcalóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar — Lá sou amigo do rei — Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada Título
  • 14. Telha de Vidro Por Rachel de Queiroz Quando a moça da cidade chegou veio morar na fazenda, na casa velha... Tão velha! Quem fez aquela casa foi o bisavô... Deram-lhe para dormir a camarinha, uma alcova sem luzes, tão escura! mergulhada na tristura de sua treva e de sua única portinha... A moça não disse nada, mas mandou buscar na cidade uma telha de vidro... Queria que ficasse iluminada sua camarinha sem claridade... Agora, o quarto onde ela mora é o quarto mais alegre da fazenda, tão claro que, ao meio dia, aparece uma renda de arabesco de sol nos ladrilhos vermelhos, que — coitados — tão velhos só hoje é que conhecem a luz doa dia... A luz branca e fria também se mete às vezes pelo clarão
  • 15. da telha milagrosa... Ou alguma estrela audaciosa careteia no espelho onde a moça se penteia. Que linda camarinha! Era tão feia! — Você me disse um dia que sua vida era toda escuridão cinzenta, fria, sem um luar, sem um clarão... Por que você na experimenta? A moça foi tão vem sucedida... Ponha uma telha de vidro em sua vida! Título
  • 16. Giuseppe Ghiaroni A Máquina de Escrever Mãe, se eu morrer de um repentino mal, vende meus bens a bem dos meus credores: a fantasia de festivas cores que usei no derradeiro Carnaval. Vende ese rádio que ganhei de prêmio por um concurso num jornal do povo, e aquele terno novo, ou quase novo, com poucas manchas de café boêmio. Vende também meus óculos antigos que me davam uns ares inocentes. Já não precisarei de duas lentes para enxergar os corações amigos. Vende , além das gravatas, do chapéu, meus sapatos rangentes. Sem ruído é mais provável que eu alcance o Céu e logre penetrar despercebido. Vende meu dente de ouro. O Paraíso requer apenas a expressão do olhar. Já não precisarei do meu sorriso para um outro sorriso me enganar.
  • 17. Vende meus olhos a um brechó qualquer que os guarde numa loja poeirenta, reluzindo na sombra pardacenta, refletindo um semblante de mulher. Vende tudo, ao findar a minha sorte, libertando minha alma pensativa para ninguém chorar a minha morte sem realmente desejar que eu viva. Pode vender meu próprio leito e roupa para pagar àqueles a quem devo. Sim, vende tudo, minha mãe, mas poupa esta caduca máquina em que escrevo. Mas poupa a minha amiga de horas mortas, de teclas bambas,tique-taque incerto. De ano em ano, manda-a ao conserto e unta de azeite as suas peças tortas. Vende todas as grandes pequenezas que eram meu humílimo tesouro, mas não! ainda que ofereçam ouro, não venda o meu filtro de tristezas! Quanta vez esta máquina afugenta meus fantasmas da dúvida e do mal, ela que é minha rude ferramenta, o meu doce instrumento musical. Bate rangendo, numa espécie de asma, mas cada vez que bate é um grão de trigo. Quando eu morrer, quem a levar consigo há de levar consigo o meu fantasma. Pois será para ela uma tortura sentir nas bambas eclas solitárias um bando de dez unhas usurárias a datilografar uma fatura. Deixa-a morrer também quando eu morrer; deixa-a calar numa quietude extrema, à espera do meu último poema que as palavras não dão para fazer. Conserva-a, minha mãe, no velho lar, conservando os meus íntimos instantes, e, nas noites de lua, não te espantes quando as teclas baterem devagar. Título
  • 18. Giuseppe Ghiaroni Dia das Mães Mãe! eu volto a te ver na antiga sala onde uma noite te deixei sem fala dizendo adeus como quem vai morrer. E me viste sumir pela neblina, porque a sina das mães é esta sina: amar, cuidar, criar, depois... perder. Perder o filho é como achar a morte. Perder o filho quando, grande e forte, já podia ampará-la e compensá-la. Mas nesse instante uma mulher bonita, sorrindo, o rouba, e a velha mãe aflita ainda se volta para abençoá-la Assim parti, e nos abençoaste. Fui esquecer o bem que me ensinaste, fui para o mundo me deseducar. E tu ficaste num silêncio frio, olhando o leito que eu deixei vazio, cantando uma cantiga de ninar. Hoje volto coberto de poeira e te encontro quietinha na cadeira, a cabeça pendida sobre o peito. Quero beijar-te a fronte, e não me atrevo.
  • 19. Quero acordar-te, mas não sei se devo, não sinto que me caiba este direito. O direito de dar-te este desgosto, de te mostrar nas rugas do meu rosto toda a miséria que me aconteceu. E quando vires e expressão horrível da minha máscara irreconhecível, minha voz rouca murmurar: ''Sou eu!" Eu bebi na taberna dos cretinos, eu brandi o punhal dos assassinos, eu andei pelo braço dos canalhas. Eu fui jogral em todas as comédias, eu fui vilão em todas as tragédias, eu fui covarde em todas as batalhas. Eu te esqueci: as mães são esquecidas. Vivi a vida, vivi muitas vidas, e só agora, quando chego ao fim, traído pela última esperança, e só agora quando a dor me alcança lembro quem nunca se esqueceu de mim. Não! Eu devo voltar, ser esquecido. Mas que foi? De repente ouço um ruído; a cadeira rangeu; é tarde agora! Minha mãe se levanta abrindo os braços e, me envolvendo num milhão de abraços, rendendo graças, diz: "Meu filho!", e chora. E chora e treme como fala e ri, e parece que Deus entrou aqui, em vez de o último dos condenados. E o seu pranto rolando em minha face quase é como se o Céu me perdoasse, me limpasse de todos os pecados. Mãe! Nos teus braços eu me transfiguro. Lembro que fui criança, que fui puro. Sim, tenho mãe! E esta ventura é tanta que eu compreendo o que significa: o filho é pobre, mas a mãe é rica! O filho é homem, mas a mãe é santa! Santa que eu fiz envelhecer sofrendo, mas que me beija como agradecendo toda a dor que por mim lhe foi causada. Dos mundos onde andei nada te trouxe, mas tu me olhas num olhar tão doce que , nada tendo, não te falta nada.
  • 20. Dia das Mães! É o dia da bondade maior que todo o mal da humanidade purificada num amor fecundo. Por mais que o homem seja um mesquinho, enquanto a Mãe cantar junto a um bercinho cantará a esperança para o mundo! Título
  • 21. Resíduo Carlos Drummond de Andrade De tudo ficou um pouco Do meu medo. Do teu asco. Dos gritos gagos. Da rosa ficou um pouco Ficou um pouco de luz captada no chapéu. Nos olhos do rufião de ternura ficou um pouco (muito pouco). Pouco ficou deste pó de que teu branco sapato se cobriu. Ficaram poucas roupas, poucos véus rotos pouco, pouco, muito pouco. Mas de tudo fica um pouco. Da ponte bombardeada, de duas folhas de grama, do maço - vazio - de cigarros, ficou um pouco. Pois de tudo fica um pouco. Fica um pouco de teu queixo no queixo de tua filha. De teu áspero silêncio um pouco ficou, um pouco nos muros zangados, nas folhas, mudas, que sobem. Ficou um pouco de tudo
  • 22. no pires de porcelana, dragão partido, flor branca, ficou um pouco de ruga na vossa testa, retrato. Se de tudo fica um pouco, mas por que não ficaria um pouco de mim? no trem que leva ao norte, no barco, nos anúncios de jornal, um pouco de mim em Londres, um pouco de mim algures? na consoante? no poço? Um pouco fica oscilando na embocadura dos rios e os peixes não o evitam, um pouco: não está nos livros. De tudo fica um pouco. Não muito: de uma torneira pinga esta gota absurda, meio sal e meio álcool, salta esta perna de rã, este vidro de relógio partido em mil esperanças, este pescoço de cisne, este segredo infantil... De tudo ficou um pouco: de mim; de ti; de Abelardo. Cabelo na minha manga, de tudo ficou um pouco; vento nas orelhas minhas, simplório arroto, gemido de víscera inconformada, e minúsculos artefatos: campânula, alvéolo, cápsula de revólver... de aspirina. De tudo ficou um pouco. E de tudo fica um pouco. Oh abre os vidros de loção e abafa o insuportável mau cheiro da memória. Mas de tudo, terrível, fica um pouco, e sob as ondas ritmadas e sob as nuvens e os ventos e sob as pontes e sob os túneis e sob as labaredas e sob o sarcasmo e sob a gosma e sob o vômito e sob o soluço, o cárcere, o esquecido e sob os espetáculos e sob a morte escarlate e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
  • 23. e sob tu mesmo e sob teus pés já duros e sob os gonzos da família e da classe, fica sempre um pouco de tudo. Às vezes um botão. Às vezes um rato. Título
  • 24. O verbo amar JG de Araujo Jorge Te amei: era de longe que te olhava e de longe me olhavas vagamente... Ah, quanta coisa nesse tempo a gente sente, que a alma da gente faz escrava. Te amava: como inquieto adolescente, tremendo ao te enlaçar, e te enlaçava adivinhando esse mistério ardente do mundo, em cada beijo que te dava. Te amo: e ao te amar assim vou conjugando os tempos todos desse amor, enquanto segue a vida, vivendo, e eu, vou te amando... Te amar: é mais que em verbo é a minha lei, e é por ti que o repito no meu canto: te amei, te amava, te amo e te amarei! (Poema de JG de Araujo Jorge do livro -Bazar de Ritmos- 1935) Título
  • 25. "Existo" JG de Araujo Jorge Seu amor me fez real, e me deu sentido da alegria de ser, total, completamente... Fez de um pobre poeta em sonhos consumido alguém que tem nas mãos um mundo! e sofre, e sente! Seu amor foi a vida a irromper da semente de um velho coração cansado e ressequido, o verde que voltou ao ramo nu, pendente, a imprevisível flor, o fruto inconcebido... Seu amor foi milagre a cantar pelo chão como a água, no agreste, a acenar ao viajante a esperança, o prazer, a vida, a salvação... Passo a existir, quem sabe ? apenas porque amei... E ela existe talvez, a partir deste instante porque ela e o seu amor... em versos transformei! Título
  • 26. Declaração em juízo Carlos Drummond de Andrade Peço desculpas de ser o sobrevivente. Não por longo tempo, é claro, tranquilizem-se. Mas devo confessar, reconhecer que sou sobrevivente. Se é triste/cômico ficar sentado na plateia quando o espetáculo acabou e fecha-se o teatro, mais triste/grotesco é permanecer no palco, ator único, sem papel, quando o público já virou as costas e somente baratas circulam no farelo. Reparem: não tenho culpa. Não fiz nada para ser sobrevivente. Não roguei aos altos poderes que me conservassem tanto tempo. Não matei nenhum dos companheiros. Se não saí violentamente, se me deixei ficar ficar ficar, foi sem segunda intenção. Largaram-me aqui, eis tudo, e lá se foram todos, um a um, sem prevenir, sem me acenar, sem dizer adeus, todos se foram. (houve os que requintaram no silêncio).
  • 27. Não me queixo. Nem os censuro. Decerto não houve propósito de me deixar entregue a mim mesmo, perplexo, desentranhado. Não cuidaram que um sobraria, foi isso. Tornei, tornaram-me sobre - vivente. Se admiram de eu estar vivo, esclareço: estou sobrevivo. viver, propriamente, não vivi senão em projeto. Adiamento. Calendário do ano próximo. jamais percebi estar vivendo quando em volta viviam quantos! Quanto. Alguma vez os invejei. Outras, sentia pena de tanta vida que se exauria no viver enquanto o não viver, o sobreviver duravam, perdurando. e me punha a um canto, à espera, contraditória e simplesmente, de chegar a hora de também viver. Não chegou. Digo que não. Tudo foram ensaios, testes, ilustrações. a verdadeira vida sorria longe, indecifrável. Desisti. Recolhi-me cada vez mais, concha à concha. Agora sou sobrevivente. Sobrevivente incomoda mais que fantasma. Sei a mim mesmo incomodo-me. O reflexo é uma prova feroz. Por mais que me esconda, projeto-me, devolvo-me, provoco-me. não adianta ameaçar-me. Volto sempre, todas as manhãs me volto, viravolto com exatidão de carteiro que distribui más notícias. O dia todo é dia de verificar o meu fenômeno. Estou onde não estão minhas raízes, meu caminho onde sobrei, insistente, reiterado, aflitivo sobrevivente da vida que ainda não vivi, juro por deus e o diabo, não vivi. Tudo confessado, que pena me será aplicada, ou perdão? Desconfio nada pode ser feito a meu favor ou contra, nem há técnica de fazer, desfazer o infeito infazível. Se sou sobrevivente, sou sobrevivente. Cumpre reconhecer-me esta qualidade que finalmente o é. Sou o único, entendem?
  • 28. De um grupo muito antigo de que não há memória nas calçadas e nos vídeos. Único a permanecer, a dormir, a jantar, a urinar, a tropeçar, até mesmo a sorrir em rápidas ocasiões, mas garanto que sorrio, como neste momento estou sorrindo de ser - delícia? - sobrevivente. É esperar apenas, está bem? Que passe o tempo de sobrevivência e tudo se resolve sem escândalo ante a justiça indiferente. Acabo de notar, e sem surpresa: não me ouvem no sentido de entender, nem importa que um sobrevivente venha contar seu caso, defender-se ou acusar-se, é tudo a mesma nenhuma coisa, e branca. Fonte: Blog Café Brasil 01.11.2011 Título
  • 29. CAIR DAS FOLHAS Vicente de Carvalho “Deixa-me, fonte”! Dizia A flôr, tonta de terror. E a fonte, sonora e fria, Cantava, levando a flor. “Deixa-me, deixa-me, fonte!”” Dizia a flor a chorar: “Eu fui nascida no monte... “Não me leves para o mar”. E a fonte, rapida e fria, Com um sussurro zombador, Por sobre a areia corria, Corria levando a flôr. “Ai, balanços do meu galho, “Balanços do berço meu; “Ai, claras gotas de orvalho “Caídas do azul do céu!...” Chorava a flor, e gemia, Branca, branca de terror, E a fonte sonora e fria, Rolava, levando a flor.
  • 30. “Adeus, sombra das ramadas, “Cantigas do rouxinol; “Ai, festa das madrugadas, “Doçuras do pôr do sol; “Caricia das brizas leves “Que abrem rasgões de luar... “Fonte, fonte, não me leves, “Não me leves para o mar!...” * As correntezas da vida E os restos do meu amor Resvalam numa descida Como a da fonte e da flor... POEMAS E CANÇÕES (SEGUNDA EDIÇÃO) Porto: Livraria Chardon, 1909 250 p. 18 cmx 12 cm. (Conservamos a ortografia antiga, original) *Vicente Augusto de Carvalho, o "Poeta do Mar", nasceu em Santos (SP), em 05/04/1866, lá faleceu no dia 22/04/1924. Poeta, contista, advogado, jornalista, político e magistrado. Foi grande artista do verso, da fase criadora do Parnasianismo. Ocupou a Cadeira 29 da Academia Brasileira de Letras, tendo sido eleito em 1º de maio de 1909, na sucessão de Artur Azevedo. Título
  • 31. Velho Tema II Vicente de Carvalho Eu cantarei de amor tão fortemente Com tal celeuma e com tamanhos brados Que afinal teus ouvidos, dominados, Hão de à força escutar quanto eu sustente. Quero que meu amor se te apresente - Não andrajoso e mendigando agrados, Mas tal como é: risonho e sem cuidados, Muito de altivo, um tanto de insolente. Nem ele mais a desejar se atreve Do que merece: eu te amo, e o meu desejo Apenas cobra um bem que se me deve. Clamo, e não gemo; avanço, e não rastejo; E vou de olhos enxutos e alma leve À galharda conquista do teu beijo. Título
  • 32. TRISTEZA Álvares de Azevedo* Eu deixo a vida como deixa o tédio Do deserto o poente caminheiro; Como as horas de um longo pesadelo Que se desfaz ao dobre de um sineiro; Como um desterro de minha alma errante, Onde o fogo insensato a consumia... Só levo uma saudade — é desses tempos Que amorosa ilusão embelecia. Só levo uma saudade — é dessas sombras Que eu sentia velar nas noites minhas... De ti, ó minha mãe, pobre coitada, Que por minha tristeza te definhas! Descansem o meu leito solitário Na floresta dos homens esquecida, À sombra de uma cruz — e escrevam nela: Foi poeta, sonhou e amou na vida... (Do livro: "Antologia Nacional", Livraria Francisco Alves, 1963, RJ) *Álvares de Azevedo (1831-1852) foi um poeta, escritor e contista, da segunda geração romântica brasileira. Suas poesias retratam o seu mundo interior. É conhecido como "o poeta da dúvida".A figura da mulher aparece em seus versos, ora como um anjo, ora como um ser fatal, mas sempre inacessível. Álvares de Azevedo é Patrono da cadeira nº 2, da Academia Brasileira de Letras. Título
  • 33. O enamorado das rosas Olegário Mariano* Toda manhã, ao sol, cabelo ao vento, Ouvindo a água da fonte que murmura, Rego as minhas roseiras com ternura, Que água lhes dando, dou-lhes força e alento. Cada um tem um suave movimento Quando a chamar minha atenção procura E mal desabrochada na espessura, Manda-me um gesto de agradecimento. Se cultivei amores às mancheias, Culpa não cabe às minhas mãos piedosas Que eles passassem para mãos alheias. Hoje, esquecendo ingratidões mesquinhas, Alimento a ilusão de que essas rosas, Ao menos essas rosas, sejam minhas. *Olegário Mariano Carneiro da Cunha, poeta, diplomata, deputado federal e constituinte, nasceu no Poço da Panela, arrabalde da cidade do Recife, estado de Pernambuco, no dia 24 de março, no mesmo ano da Proclamação da República, em 1889. Segundo os biógrafos da Academia Brasileira de Letras, da qual foi membro, “sua poesia lírica é simples, correntia, de fundo romântico, pertinente à fase do sincretismo parnasiano-simbolista de transição para o Modernismo. Ficou conhecido como o "poeta das cigarras", por causa de um de seus temas prediletos e considerado o último poeta romântico brasileiro. Título
  • 34. As duas sombras Olegário Mariano Na encruzilhada silenciosa do Destino, Quando as estrelas se multiplicam, Duas sombras errantes se encontram . A primeira falou : - Nasci de um beijo. De luz, sou força, vida, alma, esplendor. Toda a ânsia do Universo...Eu sou o Amor. O mundo sinto exâmine a meus pés... Sou Delírio...Loucura...E tu, quem és? Eu nasci de uma lágrima. Sou flama. Do teu incêndio que devora... Vivo, dos olhos tristes de quem ama, Para os olhos nevoentos de quem chora. Dizem que ao mundo vim para ser boa. Para dar do meu sangue a quem queira. Sou a saudade, a tua companheira Que punge, que consola e que perdoa... Na encruzilhada silenciosa do Destino As duas sombras se abraçaram. E desde então, nunca mais se separaram.··. Título
  • 35. QUASE Mário de Sá carneiro* Um pouco mais de sol — eu era brasa. Um pouco mais de azul — eu era além. Para atingir, faltou-me um golpe de asa... Se ao menos eu permanecesse aquém... Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído Num baixo mar enganador d'espuma; E o grande sonho despertado em bruma, O grande sonho — ó dor! — quase vivido... Quase o amor, quase o triunfo e a chama, Quase o princípio e o fim — quase a expansão... Mas na minh'alma tudo se derrama... Entanto nada foi só ilusão! De tudo houve um começo... e tudo errou... — Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... — Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim, Asa que se elançou, mas não voou... Momentos de alma que desbaratei... Templos aonde nunca pus um altar... Rios que perdi sem os levar ao mar... Título
  • 36. Ânsias que foram mas que não fixei... Se me vagueio, encontro só indícios... Ogivas para o sol — vejo-as cerradas; E mãos de herói, sem fé, acobardadas, Puseram grades sobre os precipícios... Num ímpeto difuso de quebranto, Tudo encetei e nada possuí... Hoje, de mim, só resta o desencanto Das coisas que beijei mas não vivi... Dispersão Perdi-me dentro de mim Porque eu era labirinto E hoje, quando me sinto. É com saudades de mim. Passei pela minha vida Um astro doido a sonhar, Na ânsia de ultrapassar, Nem dei pela minha vida... Para mim é sempre ontem, Não tenho amanhã nem hoje: O tempo que aos outros foge Cai sobre mim feito ontem. (O Domingo de Paris Lembra-me o desaparecido Que sentia comovido Os Domingos de Paris: Porque um domingo é família, É bem-estar, é singeleza, E os que olham a beleza Não têm bem-estar nem família). Pobre moço das ânsias... Tu, sim, tu eras alguém! E foi por isso também
  • 37. Que me abismastes nas ânsias. A grande ave doirada Bateu asas para os céus Mas fechou-se saciada Ao ver que ganhava os céus. Como se chora um amante, Assim me choro a mim mesmo: Eu fui amante inconstante Que se traiu a si mesmo. Não sinto o espaço que encerro Nem as linhas que protejo: Se me olho a um espelho, erro Não me acho no que projeto. Regresso dentro de mim Mas nada me fala, nada! Tenho a alma amortalhada, Sequinha dentro de mim. Não perdi a minha alma, Fiquei com ela, perdida. Assim eu choro, da vida, Eu nunca vi... mas recordo A sua boca doirada E o seu corpo esmaecido, Em um hálito perdido Que vem na tarde doirada. (As minhas grandes saudades São do que nunca enlacei. Ai, como eu tenho saudades Dos sonhos que sonhei!... ) E sinto que a minha morte — Minha dispersão total — Existe lá longe, ao norte, Numa grande capital. Vejo o meu último dia Pintado em rolos de fumo, E todo azul-de-agonia Em sombra e além me sumo. Ternura feita saudade, Eu beijo as minhas mãos brancas... Sou amor e piedade Em face dessas mãos brancas. . .
  • 38. Tristes mãos longas e lindas Que eram feitas pra se dar Ninguém mas quis apertar Tristes mãos longas e lindas Eu tenho pena de mim, Pobre menino ideal... Que me faltou afinal? Um elo? Um rastro?... Ai de mim! Desceu-me n’alma o crepúsculo; Eu fui alguém que passou. Serei, mas já não me sou; Não vivo, durmo o crepúsculo. Álcool dum sono outonal Me penetrou vagamente A difundir-me dormente Em, uma bruma outonal. Perdi a morte e a vida, E, louco, não enlouqueço... A hora foge vivida Eu sigo-a, mas permaneço .. . *Mário de Sá Carneiro foi poeta, contista e ficcionista português, um dos grandes expoentes do modernismo em Portugal e um dos mais reputados membros da Geração d’Orpheu. Nasceu em Lisboa no dia 19 de Maio de 1890 e faleceu em Paris, em 26 de Abril de 1916. Época /Gênero literário: Modernismo Magnum opus¹: Céu em Fogo ¹Magnum opus, em latim, significa grande obra. Refere-se à melhor, mais popular ou renomada obra de um artista Título
  • 39. Não me Peçam Razões José Saramago Não me peçam razões, que não as tenho, Ou darei quantas queiram: bem sabemos Que razões são palavras, todas nascem Da mansa hipocrisia que aprendemos. Não me peçam razões por que se entenda A força de maré que me enche o peito, Este estar mal no mundo e nesta lei: Não fiz a lei e o mundo não aceito. Não me peçam razões, ou que as desculpe, Deste modo de amar e destruir: Quando a noite é de mais é que amanhece A cor de primavera que há-de vir. José Saramago, in "Os Poemas Possíveis" Título
  • 40. Remorso Olavo Bilac Às vezes, uma dor me desespera... Nestas ânsias e dúvidas em que ando. Cismo e padeço, neste outono, quando Calculo o que perdi na primavera. Versos e amores sufoquei calando, Sem os gozar numa explosão sincera... Ah! Mais cem vidas! com que ardor quisera Mais viver, mais penar e amar cantando! Sinto o que desperdicei na juventude; Choro, neste começo de velhice, Mártir da hipocrisia ou da virtude, Os beijos que não tive por tolice, Por timidez o que sofrer não pude, E por pudor os versos que não disse! Título
  • 41. Crepúsculo de Outono Manoel Bandeira O crepúsculo cai, manso como uma benção. Dir-se-á que o rio chora a prisão de seu leito... As grandes mãos da sombra evangélicas pensam As feridas que a vida abriu em cada peito. O outono amarelece e despoja os lariços. Um corvo passa e grasna, e deixa esparso no ar O terror augural de encantos e feitiços. As flores morrem. Toda a relva entra a murchar. Os pinheiros, porém viçam, e serão breve Todo o verde que a vista espairecendo vejas, Mais negros sobre a alvura unânime da neve, Altos e espirituais como flechas de igrejas. Um sino plange. A sua voz ritma o murmúrio Do rio, e isso parece a voz da solidão. E essa voz enche o vale...o horizonte purpúreo... Consoladora como um divino perdão.
  • 42. O sol fundiu a neve. A folhagem vermelha Reponta. Apenas há, nos barrancos retortos, Flocos, que a luz do poente extática semelha A um rebanho infeliz de cordeirinhos mortos. A sombra casa os sons numa grave harmonia. E tamanha esperança e uma tão grande paz Avultam do clarão que cinge a serrania, Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás. Título
  • 43. Outono J. G. de Araújo Jorge O outono já chegou - aos arrufos do vento as folhas num desmaio embalam-se pelo ar... - vão caindo... caindo... uma a uma, em desalento e uma a uma, lentamente, vão no chão pousar... O céu perdeu o azul - vestiu-se de cinzento e envolveu na neblina a luz baça do luar... - na alameda onde vou, de momento a momento, há um gemido de folha a cair e a expirar... O arvoredo transpira as carícias dos ninhos, e o vento a cirandar na curva das estradas eleva o folhareu no espaço em redemoinhos... Há um córrego a levar as folhas secas em bando... - e à aragem que soluça entre as ramas curvadas, parece que o arvoredo em coro está chorando!... Título
  • 44. Uma névoa de Outono o ar raro vela Fernando Pessoa (5-11-1932) Uma névoa de Outono o ar raro vela, Cores de meia-cor pairam no céu. O que indistintamente se revela, Árvores, casas, montes, nada é meu. Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono. Sim, sinto-o eu pelo coração, o como. Mas entre mim e ver há um grande sono. De sentir é só a janela a que eu assomo. Amanhã, se estiver um dia igual, Mas se for outro, porque é amanhã, Terei outra verdade, universal, E será como esta. Título
  • 45. CANÇÃO DE OUTONO Cecília Meireles Perdoa-me, folha seca, não posso cuidar de ti. Vim para amar neste mundo, e até do amor me perdi. De que serviu tecer flores pelas areias do chão, se havia gente dormindo sobre o próprio coração? E não pude levantá-la! Choro pelo que não fiz. E pela minha fraqueza é que sou triste e infeliz. Perdoa-me, folha seca! Meus olhos sem força estão velando e rogando aqueles que não se levantarão... Tu és a folha de outono voante pelo jardim. Deixo-te a minha saudade - a melhor parte de mim. Certa de que tudo é vão. Que tudo é menos que o vento, menos que as folhas do chão... Título
  • 46. COLETÂNEA ESCOLHIDA DE GREGÓRIO DE MATOS Inconstância dos bens do mundo Gregório de Matos Nasce o Sol e não dura mais que um dia, Depois da Luz, se segue a noite escura, Em tristes sombras morre a formosura, Em contínuas tristezas, a alegria. Porém, se acaba o Sol, por que nascia? Se é tão formosa a Luz, por que não dura? Como a beleza assim se transfigura? Como o gosto da pena assim se fia? Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza, Na formosura não se dê constância, E na alegria sinta-se tristeza. Começa o mundo, enfim, pela ignorância, Pois tem, qualquer dos bens, por natureza Firmeza somente na inconstância.
  • 47. Soneto Sobre a Bahia Gregório de Matos A cada canto um grande conselheiro. que nos quer governar cabana, e vinha, não sabem governar sua cozinha, e podem governar o mundo inteiro. Em cada porta um frequentado olheiro, que a vida do vizinho, e da vizinha pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha, para a levar à Praça, e ao Terreiro. Muitos mulatos desavergonhados, trazidos pelos pés os homens nobres, posta nas palmas toda a picardia. Estupendas usuras nos mercados, todos, os que não furtam, muito pobres, e eis aqui a cidade da Bahia Buscando a Cristo Gregório de Matos A vós correndo vou, braços sagrados, Nessa cruz sacrossanta descobertos Que, para receber-me, estais abertos, E, por não castigar-me, estais cravados. A vós, divinos olhos, eclipsados De tanto sangue e lágrimas abertos, Pois, para perdoar-me, estais despertos, E, por não condenar-me, estais fechados. A vós, pregados pés, por não deixar-me, A vós, sangue vertido, para ungir-me, A vós, cabeça baixa, p'ra chamar-me A vós, lado patente, quero unir-me, A vós, cravos preciosos, quero atar-me, Para ficar unido, atado e firme.
  • 48. Epílogos Juízo anatômico da Bahia Gregório de Matos Que falta nesta cidade?................Verdade Que mais por sua desonra?...........Honra Falta mais que se lhe ponha..........Vergonha. O demo a viver se exponha, Por mais que a fama a exalta, numa cidade, onde falta Verdade, Honra, Vergonha. Quem a pôs neste socrócio*?..........Negócio Quem causa tal perdição?.............Ambição E o maior desta loucura?...............Usura. Notável desventura de um povo néscio, e sandeu, que não sabe, que o perdeu Negócio, Ambição, Usura. Quais são os seus doces objetos?....Pretos Tem outros bens mais maciços?.....Mestiços Quais destes lhe são mais gratos?...Mulatos. Dou ao demo os insensatos, dou ao demo a gente asnal, que estima por cabedal Pretos, Mestiços, Mulatos. Quem faz os círios* mesquinhos?...Meirinhos Quem faz as farinhas tardas?.........Guardas Quem as tem nos aposentos?.........Sargentos. Os círios lá vêm aos centos, e a terra fica esfaimando, porque os vão atravessando Meirinhos, Guardas, Sargentos. E que justiça a resguarda?.............Bastarda É grátis distribuída?.....................Vendida Que tem, que a todos assusta?.......Injusta. Valha-nos Deus, o que custa, o que El-Rei nos dá de graça, que anda a justiça na praça Bastarda, Vendida, Injusta. Que vai pela clerezia?..................Simonia* E pelos membros da Igreja?..........Inveja Cuidei, que mais se lhe punha?.....Unha.
  • 49. Sazonada caramunha*! enfim que na Santa Sé o que se pratica, é Simoni*, Inveja, Unha*. E nos frades há manqueiras*?.........Freiras Em que ocupam os serões?............Sermões Não se ocupam em disputas?.........Putas. Com palavras dissolutas me concluís na verdade, que as lidas todas de um Frade são Freiras, Sermões, e Putas. O açúcar já se acabou?..................Baixou E o dinheiro se extinguiu?.............Subiu Logo já convalesceu?.....................Morreu. À Bahia aconteceu o que a um doente acontece, cai na cama, o mal lhe cresce, Baixou, Subiu, e Morreu. A Câmara não acode?...................Não pode Pois não tem todo o poder?...........Não quer É que o governo a convence?........Não vence. Que haverá que tal pense, que uma Câmara tão nobre por ver-se mísera, e pobre Não pode, não quer, não vence. *Interpretação de alguns vocábulos: Socrócio – emplastro, alivio, bálsamo ( o poeta usou-o no sentido antitético, irônico). Círios – sacos de farinha (a grafia correta é sírios). Simonia – venda de coisas sagradas. Unha – roubalheira, avareza, tirania, opressão. Caramunha – lamentação experiente. Manqueiras – vícios, defeitos. ******************** 1. Gregório de Matos Guerra (Salvador, 23 de dezembro de 1636¹ – Recife, 26 de novembro de 1695), alcunhado de Boca do Inferno ou Boca de Brasa, foi um advogado e poeta do Brasil colônia. É considerado o maior poeta barroco do Brasil e o mais importante poeta satírico da literatura em língua portuguesa, no período. ¹Por haver divergências a respeito da data de nascimento de Gregório de Matos, foi adotado a utilizada pelo pesquisador Fernando da Rocha Peres, no livro de sua autoria Gregório de Mattos e Guerra: Uma Revisão Biográfica e em nota biográfica publicada no site da Universidade Federal da Bahia/UFBA (http://www.ufba.br/~gmg/gregorio.html) Título
  • 50. Velhas Árvores Olavo Bilac Olha estas velhas árvores, mais belas Do que as árvores novas, mais amigas: Tanto mais belas quanto mais antigas, Vencedoras da idade e das procelas... O homem, a fera, e o inseto, à sombra delas Vivem, livres de fomes e fadigas; E em seus galhos abrigam-se as cantigas E os amores das aves tagarelas. Não choremos, amigo, a mocidade! Envelheçamos rindo! Envelheçamos Como as árvores fortes envelhecem: Na glória da alegria e da bondade, Agasalhando os pássaros nos ramos, Dando sombra e consolo aos que padecem! Olavo Bilac, in "Poesias" Título
  • 51. Soneto del vino Jorge Luis Borges* ¿En qué reino, en qué siglo, bajo qué silenciosa conjunción de los astros, en qué secreto día que el mármol no ha salvado, surgió la valerosa y singular idea de inventar la alegría? Con otoños de oro la inventaron. El vino fluye rojo a lo largo de las generaciones como el río del tiempo y en el arduo camino nos prodiga su música, su fuego y sus leones. En la noche del júbilo o en la jornada adversa exalta la alegría o mitiga el espanto y el ditirambo nuevo que este día le canto otrora lo cantaron el árabe y el persa. Vino, enséñame el arte de ver mi propia historia como si ésta ya fuera ceniza en la memoria. *Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo (Buenos Aires, 24 de agosto de 1899 — Genebra, 14 de junho de 1986) foi um escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino. Título