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“O título escolhido para a revista também justifica uma explicação breve. A pessoa humana constitui o único ser existente
no universo que  busca permanentemente conhecê-lo, o que é inerente à sua sobrevivência e à afirmação da sua
especificidade humana. Como Ser curioso, está condenado a aprender e a interrogar-se. É um trabalho permanente
e inacabado que implica colocar em causa os resultados e recomeçar, sempre. A produção de conhecimento
assume formas diversas, nas quais se inclui o saber científico. Este distingue-se pelo seu carácter
sistemático, pela utilização consciente e explicitada de um método, objecto permanente de uma meta análise,
individual e colectiva. O trabalho científico consiste numa busca permanente da verdade, através de um
conhecimento sempre provisório e conjectural, empiricamente refutável. O reconhecimento da
necessidade deste permanente recomeço é ilustrado historicamente quer pela redescoberta de teorias negligenciadas no
seu tempo e recuperadas mais tarde (caso da teoria heliocêntrica de Aristarco), quer pela redescoberta de visionários que
anteciparam os nossos problemas de hoje (Ivan Illich é um desses exemplos). É a partir destas características do trabalho
científico que é possível comparar   a aventura humana do conhecimento à condenação pelos


                           Sísifo
deuses a que foi sujeito                                       de incessantemente recomeçar a mesma tarefa.”




	                          revista	de	ciências	da	educação
                           Unidade de I&D de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa
                           Direcção de Rui Canário e Jorge Ramos do Ó

                           n.º   01 · Set | Out | Nov | Dez · 2006
                  > História da Educação
                    e Educação Comparada:
                           novos territórios e algumas revisitações
                           a dois domínios disciplinares contíguos
                           Coordenação de Jorge Ramos do Ó




                           issn 1646-4990
                           http://sisifo.fpce.ul.pt
Contents
                                                                                                             SíSifo
                                                                                                              REvIStA DE CIêNCIAS
                                                                                                                 DA EDUCAçãO
Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .      1-2
Nota de apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .               3-4                 N.º 01
                                                                                                              História da Educação e
                                                                                                              Educação Comparada:
DOSSIER
                                                                                                            novos territórios e algumas
O Manual Escolar no Quadro da História Cultural:                                                            revisitações a dois domínios
                                                                                                              disciplinares contíguos
para uma historiografia do manual escolar em Portugal
Justino Magalhães . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .                 5-14
                                                                                                                        Edição
Bocage e a Educação Entre Dois Séculos                                                                     Responsável Editorial deste número:
Rogério Fernandes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .               15-26            Jorge Ramos do Ó

                                                                                                                 Director: Rui Canário
A Escola e a Abordagem Comparada. Novas realidades e novos olhares
                                                                                                           Director Adjunto: Jorge Ramos do Ó
Rui Canário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27-36
                                                                                                            Conselho Editorial: Rui Canário,
Estudos Comparados em História da Educação Colonial:                                                        Luís Miguel Carvalho, Fernando
algumas considerações sobre a comparação no espaço da língua portuguesa                                    Albuquerque Costa, Helena Peralta,
                                                                                                                   Jorge Ramos do Ó
Ana Isabel Madeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37-56
ISEP: Identidade de uma Escola com Raízes Oitocentistas                                                    Colabor adores deste número:
Luís Alberto Marques Alves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .                      57-70     Autoria dos artigos: Luís Alberto
                                                                                                            Marques Alves, Maria Isabel A.
Arquivos e Educação: a Construção da Memória Educativa                                                       Baptista, Rui Canário, Albano
Maria João Mogarro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .                71-84       Estrela, Rogério Fernandes,
                                                                                                               Paulo Guinote, Ana Isabel
Currículo e Ensino: Uma Leitura Paralela nas Escolas Régias e                                                 Madeira, Justino Magalhães,
                                                                                                             Maria João Mogarro, António
nas Escolas Regimentais na Província de trás-os-Montes                                                         Nóvoa e Jorge Ramos do Ó.
Maria Isabel Alves Baptista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .                     85-112      Traduções: Robert G. Carter,
                                                                                                              thomas Kundert, Filomena
O Lugar da(o)s Regentes Escolares na Política Educativa do Estado Novo:                                       Matos e tânia Lopes da Silva
Uma Proposta de Releitura (anos 30—anos 50)                                                                Secretariado de Direcção: Gabriela
                                                                                                              Lourenço e Mónica Raleiras
Paulo Guinote . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113-126
Os terrenos Disciplinares da Alma e do Self-government                                                            Logotipo Sísifo
no Primeiro Mapa das Ciências da Educação (1879-1911)                                                          Desenho de Pedro Proença

Jorge Ramos do Ó . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127-138
                                                                                                             Informação Institucional

RECENSõES                                                                                                    Propriedade: Unidade de I&D
                                                                                                               de Ciências da Educação
Recensão da obra O Governo de si mesmo,                                                                       da Faculdade de Psicologia
                                                                                                              e de Ciências da Educação,
de Jorge Ramos do Ó [2003]. Lisboa: Educa                                                                     da Universidade de Lisboa
António Nóvoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139-142                     issn: 1646-4990

                                                                                                            Apoios: Fundação para a Ciência
CONFERêNCIAS                                                                                                         e a tecnologia

Necessidade e Actualidade das Ciências da Educação                                                                    Contactos
(Academia de Ciências de Lisboa a 27 de Julho de 2006)
                                                                                                           Morada: Alameda da Universidade,
Albano Estrela . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143-148                     1649-013 Lisboa.
                                                                                                                 Telefone: 217943651
Sísifo, revista de ciências de educação:                                                                            Fax: 217933408
Instruções para os Autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149-150                   e-mail: sisifo@fpce.ul.pt
sísifo   /   r e v i sta de c i ê nc i a s da e duc aç ão   ·   n .º   1 ·   s e t/ d e z   06         issn   1 6 46 ‑ 4 9 9 0


editorial




Porquê a criação desta revista? apesar de fazermos                     sem que isso signifique uma menor consciência
parte de uma comunidade científica recente, pouco                      da hibridez e das fragilidades epistemológicas
internacionalizada, e com um ainda reduzido nível                      próprias deste campo. entendem-se as Ciências
de “massa crítica”, confrontamo-nos com o facto de                     da educação como parte de um campo mais vasto,
uma parte substancial da investigação produzida                        o das ciências sociais e humanas, cujas fronteiras
permanecer sob a forma de literatura “cinzenta” ou                     são o resultado de factores históricos e sociais,
com uma difusão restrita a núcleos de investigadores                   externos e internos ao campo social das práticas
mais próximos da respectiva temática. o primeiro                       de investigação. trabalharemos na difícil tensão
objectivo da criação desta revista aponta para a                       entre a unidade do social e a diversidade das suas
necessidade de conferir maior visibilidade à produção                  abordagens científicas, recusando, quer a redução
científica da ui&dCe, através de uma primeira linha                    das ciências da educação a uma extensão à educação
de publicação e difusão que permita um diálogo                         de áreas disciplinares que lhe preexistem, quer a
entre investigadores, interno e externo à unidade.                     pretensão de, através da definição impossível de
o facto de termos optado por uma edição bilingue                       um método e de um objecto próprios, demarcar
(versão portuguesa e versão inglesa) inscreve-se                       fronteiras e identidades que se constituem como
numa orientação estratégica de internacionalização                     obstáculos ao conhecimento. este posicionamento
da nossa actividade de investigação, ajudando a                        sobre as ciências da educação significa, também,
fomentar intercâmbios que viabilizem, sustentem e                      uma demarcação clara do campo da pedagogia,
tornem visíveis redes e projectos que ultrapassem o                    expressão de um saber profissional com uma
âmbito interno da ui&dCe e as fronteiras nacionais.                    inevitável componente prescritiva.
esta primeira linha de publicação, em versão                              o título escolhido para a revista também
electrónica, alimentará outras iniciativas editoriais                  justifica uma explicação breve. a pessoa humana
em curso (uma Colecção de Ciências da educação                         constitui o único ser existente no universo que
e uma Colecção de Cadernos). a importância                             busca permanentemente conhecê-lo, o que é
decisiva que atribuímos ao incentivo à publicação                      inerente à sua sobrevivência e à afirmação da sua
corresponde a uma ideia da investigação, entendida                     especificidade humana. Como ser curioso, está
como actividade produtora de um conhecimento,                          condenado a aprender e a interrogar-se. É um
através de um método permanentemente sujeito                           trabalho permanente e inacabado que implica
ao crivo da crítica inter pares, e transformado num                    colocar em causa os resultados e recomeçar, sempre.
saber comunicável.                                                     a produção de conhecimento assume formas
   esta revista assume-se claramente como uma                          diversas, nas quais se inclui o saber científico.
publicação na área das ciências da educação,                           este distingue-se pelo seu carácter sistemático,

                                                                                                                            1
pela utilização consciente e explicitada de um           contínuos com o nível empírico (cada número da
método, objecto permanente de uma meta análise,          revista organiza-se em torno de um dossier temático
individual e colectiva. o trabalho científico consiste   em que a dimensão empírica da investigação
numa busca permanente da verdade, através de um          será um aspecto relevante); que a abordagem
conhecimento sempre provisório e conjectural,            especializada de um tema se inscreva (em vez de
empiricamente refutável. o reconhecimento da             ignorar) nos grandes problemas com que estamos
necessidade deste permanente recomeço é ilustrado        confrontados (tentaremos articular a investigação
historicamente quer pela redescoberta de teorias         especializada com a referência a problemas globais
negligenciadas no seu tempo e recuperadas mais           que previnam a esterilidade de uma fragmentação
tarde (caso da teoria heliocêntrica de aristarco),       do saber); a comunicação clara de ideias complexas
quer pela redescoberta de visionários que                que é o oposto da formulação de banalidades
anteciparam os nossos problemas de hoje (ivan            numa linguagem deliberadamente confusa e opaca
illich é um desses exemplos). É a partir destas          (procuraremos incentivar o cultivo da clareza, da
características do trabalho científico que é possível    simplicidade e do rigor).
comparar a aventura humana do conhecimento à                Julgamos que só nestas condições poderemos
condenação pelos deuses a que foi sujeito Sísifo de,     imaginar o investigador, como aliás o sugeriu
incessantemente recomeçar a mesma tarefa. no caso        albert Camus, menos como um “herói absurdo” e
da ciência é preciso que ela tenha uma pertinência e     mais como um “Sísifo feliz”.
um sentido para quem a faz.
    a pertinência social dos resultados do trabalho
científico supõe: que o primado da teoria seja           Rui Canário
complementado por um confronto e um vaivém               Jorge Ramos do Ó




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nota de apresentação
História da educação e educação Comparada:
novos territórios e algumas revisitações
a dois domínios disciplinares contíguos

Jorge Ramos do Ó



este primeiro dossier da Sísifo pretende ser uma                         horizontes teóricos próprios da história cultural,
mostra da produção científica que vem sendo                              visa demonstrar como uma “linha de investigação”
conduzida pelos membros da unidade de i&d em                             apenas acometida ao livro escolar nos remete,
Ciências da educação da faculdade de Psicologia                          afinal, para o processo mesmo de construção de
e de Ciências da educação da universidade de                             “novos objectos epistémicos”, no quadro de uma
Lisboa, nos domínios particulares da História da                         efervescente renovação historiográfica. É assim que
educação e da educação Comparada. a todos os                             este autor descobre na materialidade do manual
autores foi sugerido que procurassem apresentar                          — esse incontornável da cultura escolar ao menos
um trabalho que, de modo mais impressivo, desse a                        a partir de finais do século XiX — um autêntico
conhecer ao leitor as linhas e pistas estruturantes de                   dispositivo de ordenação da cultura, da memória e
uma prática investigativa bem actual e até em pleno                      da acção colectivas. em texto centrado sobre a figura
curso de andamento. o desafio seria, portanto, o de                      de Bocage, subscrito por Rogério fernandes, diga-
tentar mostrar como e de que maneira aqueles dois                        -se que é o ainda desconhecido jogo de tensões entre
domínios disciplinares têm estado, por um lado, a                        uma cultura escolar, tendencialmente hegemónica,
ser alvo de análises que intentam delimitar novos                        e a possibilidade de uma formação cultural realizada
territórios educativos e, por outro, a ser revisitados                   em oposição a ela — encarnada pela figura do poeta
a partir de novas ferramentas teóricas, susceptíveis                     setecentista, cuja carreira literária pareceu dispensar
de desdobrar e lançar outras iluminações sobre                           a académica — que ocupa o centro da narrativa. neste
realidades educativas que até aí se julgavam sólida                      artigo é, pois, explorada a hipótese segundo a qual
e consensualmente interpretadas. evidentemente e                         o processo de afirmação do estado-nação parece
se bem vistas as coisas, trata-se neste breve acervo de                  impor o princípio de que os chamados fenómenos
fornecer uma visão panorâmica, mas que se obtém a                        de contra-cultura se inteligibilizem como sendo de
partir de planos particulares — o que vale por dizer                     natureza essencialmente extra-escolar.
que, a haver coerência entre os artigos, ela deverá                          o domínio da educação Comparada colhe
residir tão apenas no propósito ora de começar a                         dois trabalhos. no primeiro, Rui Canário procede
escrever para lá dos limites do estado actual da arte                    a uma “síntese reflexiva” de quatro desafios que,
ora de intentar reescrever, acreditando desta forma                      em sua opinião, importa encarar de frente para se
que o texto por vir, como notava amiúde derrida,                         operar uma efectiva “renovação metodológica”
se imporá inteiro a partir de uma plataforma que                         neste sector da investigação e que parece passar pelo
renova e relança uma tradição discursiva.                                abandono das metanarrativas construídas em torno
    o dossier abre sintomaticamente com um                               do estado-nação. o artigo organiza-se em torno de
texto de Justino Magalhães o qual, a partir dos                          uma tese de natureza causal — a de que os processos

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de “regulação dos sistemas educativos” são               que a compreensão efectiva do tecido complexo que
resultado de um fenómeno mais vasto de “regulação        envolve a escola passa pela triangulação de fontes as
transnacional” —, a qual, por seu turno, permite         mais diversificadas. É assim que começam a emergir,
articular uma ampla discussão, que atravessa não         e cada vez com mais força, os estudos de história local
apenas os processos globalizados de integração           da educação, como é de resto o caso da investigadora
económica como também a erosão de fronteiras do          Maria isabel Baptista, que nos oferece uma síntese
mundo tradicional, num cenário que permite ainda         panorâmica do paralelismo entre as escolas régias
descobrir, de forma indistinta, a mudança social tanto   e as escolas regimentais na província de trás-os-
no plano das instituições quanto nos ciclos de vida      -Montes entre finais do século Xviii e os primórdios
profissional dos sujeitos. Questionando também as        do século XiX. um acervo documental bastante rico
condições teórico-metodólogicas do trabalho em           é neste trabalho mobilizado para perceber como,
educação Comparada se apresenta o texto de ana           no quadro de uma região periférica e no período
isabel Madeira, embora nele seja a educação colonial     do despotismo iluminado e do Liberalismo, se foi
no espaço lusófono a delimitar o argumento. nele,        construindo, na verdade, uma certa homogeneidade
trata-se de incorporar um conjunto de contributos        na cultura escolar, no que respeita seja a planos de
interpretativos destinados a desconstruir uma            estudo, seja a materiais escolares e didácticos.
analítica que ainda se encontra muito amarrada a             Paulo Guinote consagra o seu texto à questão
um “eurocentrismo” “auto-referenciado”.                  dos actores educativos. trabalha especificamente
    a história da escola é uma outra superfície          a figura dos regentes escolares no quadro de uma
que aqui se abre a novas territorialidades e a           rápida expansão do sistema educativo levada a
outras interpretações. Luís alberto Marques              cabo pelo estado novo — que criou uma rede de
alves procura traçar, desde as suas raízes mais          postos de ensino com um mínimo de encargos
remotas, a identidade do actual instituto Superior       para o orçamento —, mas procura levar a sua
de engenharia do Porto (iSeP). apresenta-nos a           análise ao território das práticas do ensino das
genealogia de uma instituição, mas faz mais do que       primeiras letras. e dos professores passamos à
isso. Remontando ao início da segunda metade de          pedagogia. este dossier encerra com um artigo
oitocentos, é-nos permitido visualizar, de facto,        de Jorge Ramos do Ó no qual se regressa quer a
a emergência e a difícil consolidação da chamada         textos quer a autores muito trabalhados — porque
razão técnica — dos limites das ambiguidades e           fundadores das Ciências da educação a partir do
hesitações do processo de industrialização em            último quartel do século XiX —, mas para propor
Portugal —, relacionando-a com a esfera da decisão       uma releitura que pretende situar para muito lá de
política. Maria João Mogarro regressa também ela ao      uma discussão de carácter epistemológico: a de
problema da memória da cultura escolar, só que o faz     que toda a psicopedagogia moderna se estruturou
pela via da salvaguarda e da preservação dos fundos      historicamente a partir dos princípios de governo
documentais e patrimoniais. Como se a própria            do eu; sempre que as autoridades educativas nos
renovação dos estudos em História da educação            falam de autonomia ou de responsabilidade estão
dependesse agora muito mais das condições de             a falar de disciplina, de auto-regulação. de uma
instalação e de organização destes espaços no            ampliação da esfera do poder dentro do coração e
interior dos estabelecimentos de ensino. depois          da consciência de si dos sujeitos.
dos estudos sobre as grandes reformas e políticas            o leitor tem agora à sua frente o esboço de uma
educativas os investigadores tendem a acreditar          prática, de um artesanato.




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o Manual escolar no Quadro da História Cultural:
para uma historiografia
do manual escolar em Portugal

Justino Magalhães
faculdade de Psicologia e de Ciências da educação da universidade de Lisboa
justinomagalhaes@fpce.ul.pt




            Resumo:
            Concomitantemente à construção de novos objectos epistémicos, a história cultural, tal
            como se desenvolveu no quadro de uma renovação historiográfica, a partir dos anos 80
            do século XX, trouxe uma outra prerrogativa fundamental: a de fazer depender a deli-
            mitação e a compreensão do objecto da operação historiográfica enquanto acto epistémi-
            co total, reforçando uma idiossincrasia entre investigação e construção do objecto, por
            um lado, e fazendo emergir as noções de complexidade e multifactorialidade, por outro.
            neste sentido, a história do livro escolar opera-se, entre outros aspectos, por contrapo-
            sição ao livro, enquanto mercadoria e produto editorial, representando e configurando
            uma ordem cognoscente e uma marca autoral; por aproximação à realidade pedagógica
            e didáctica — posto que o livro escolar é o principal ordenador da cultura, da memória e
            da acção escolares; por inscrição na cultura escrita. Mas correlativamente a esta denomi-
            nação e inscrição, num quadro cultural e pedagógico mais amplos, o livro escolar, na sua
            internalidade, enquanto principal suporte da cultura escolar e produto de uma dialéctica
            entre discurso e episteme, sugere e carece de uma abordagem específica, com recurso à
            seriação e fazendo emergir uma etnohistoriografia em que sobressai um historicismo que
            tende a determinar o sentido e a orientação da investigação.
                neste texto, para além de procurar fazer jus a estas deambulações, procuro também
            afirmar uma linha de investigação sobre o livro escolar, que reconheça a sua especificida-
            de, mas que não deixe também de abrir-se a uma multifactorialidade e ao cruzamento de
            dimensões diacrónicas e sincrónicas. e isto, no quadro mais amplo de uma historiografia
            que integre o material, o cultural, o social, o escolar, o pedagógico, num complexo epis-
            témico que contemple o triângulo básico da história cultural: o livro, o texto, a leitura.

            Palavras-chave:
            manual escolar, cultura escolar, história cultural, etnohistoriografia.




            Justino, Magalhães (2006). o Manual escolar no Quadro da História Cultural. Para uma histo-
            riografia do manual escolar em Portugal. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 1, pp. 5-14.
            Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

                                                                                                                                   5
a história do manual escolar tem-se desenvolvi-           so, é uma combinatória de saber/ conhecimento/
do com base em três linhas de orientação, a que           (in)formação. neste sentido, é nos planos da repre-
correspondem perspectivas disciplinares diferen-          sentação e da apropriação, isto é, do conhecimento
ciadas: uma etno-história (o livro escolar como           como saber e da informação como conhecimento,
meio didáctico e pedagógico privilegiado na es-           que a história dos manuais escolares constitui um
truturação da cultura escolar); uma abordagem             contributo fundamental para a história do livro.
no quadro da história económica e social; uma             tomados como informação, os manuais escolares
abordagem no quadro da história cultural. a pos-          apresentam uma internalidade, cujos planos básicos
sibilidade de aplicação destas perspectivas sugere        são a simbolização, a cognição, a semiótica, com-
que a história do manual escolar, enquanto livro e        preendendo as seguintes dimensões: os manuais
objecto cultural, se alarga para além do projecto         como leitura/ o leitor projectado, o leitor orientado;
investigativo de dupla entrada (história económi-         os manuais como estruturação e orientação do acto
ca e história social) concebido e sistematizado por       de ler e da experiência de leitura; os manuais esco-
Lucien febvre.                                            lares como intelecção/ acção; os manuais como sig-
   o manual escolar é um produto/ mercadoria com          nificação e construção do mundo. também como
profundas repercussões no domínio da sociologia           representação dos campos epistémico e científico,
do conhecimento; a sua construção como objecto            pedagógico, sociológico antropológico, os manuais
produto/ cultural é também uma questão da ordem           escolares constituem um caso particular no quadro
do saber; da ordem do livro e da ordem da cognição.       mais amplo da cultura escrita.
uma epistemologia do manual escolar constitui um              fazer a história do manual escolar é indagar da
desafio conceptual, cuja complexidade, extensível à       génese, natureza, simbolização e significação mais
história do livro, se particulariza, em síntese, numa     profundas do saber e do conhecimento; é indagar
dialéctica entre discurso e episteme. Há no livro, e      da materialidade e da significação do(s) livro(s)
muito particularmente no manual escolar, dimen-           como texto, enquanto ordem (suporte e unidade)
sões de natureza epistémica e gnoseológica, dimen-        do saber e do conhecimento; é indagar, ainda, do
sões de natureza científica e discursiva, dimensões       livro como discurso (configuração, forma/ estru-
de natureza socio-antropológica, com referência à         tura, especialização, autoria); é, por fim, indagar
pedagogia e à psicologia, que não se confinam ao          do saber como conhecimento e do conhecimento
documentalismo e à biblioteconomia.                       como (in)formação.
   Meio didáctico e símbolo do campo pedagógico,              em tese e radicalizando, pode admitir-se que o
o manual escolar, cuja produção corresponde a uma         manual escolar apresenta uma sobreposição entre
configuração complexa entre texto, forma e discur-        texto e conhecimento, entre escrita e leitura, pois

        sísifo 1 | justino magalhães | o manual escolar no quadro da história cultur al
que a lógica da sua construção é a da negação, ou         pecificidade. em tese, um manual da autoria de um
melhor, a da não legitimação da interpretação, como       cientista, de um literato, de um professor, ou um
processo cognoscente. Por outras palavras, no qua-        manual de unidade curricular (temática e didáctico-
dro dos manuais escolares, o grau de liberdade de         -pedagógica), ou, ainda, um manual/ compilação
interpretação, com base em operações complexas            de lições ou compósito de textos, informam e en-
de hermenêutica, não só não é admitido a priori,          formam diferenciadamente a leitura, perspectivan-
como não é legitimado a posteriori. Se há lugar a         do visões de mundo, igualmente diferenciadas.
variações de leitura, estas são acolhidas ou como             Sem o reconhecimento deste postulado, não se
falhas resultantes da incapacidade e dos condicio-        justificaria uma abordagem específica dos manuais,
nalismos do leitor, ou como actos perversos e ideo-       no quadro mais geral do texto, do livro e da leitu-
lógicos. num caso como noutro, jamais deverão ser         ra — ou seja, no quadro da cultura escrita. neste
objecto de legitimação.                                   sentido, a historiografia do manual escolar é um
    Qual a configuração do manual para assegurar          exercício que, recuperando uma base importante
(prevenir) uma (uni)versão da leitura? Se tomarmos        da biblioteconomia, se orienta para a ensaística e
esta pergunta como geradora de uma historiografia         para a (re)conceptualização, no quadro da história
dos manuais escolares, a resposta corresponderá           cultural.
aos seguintes planos de abordagem:                            o manual escolar tem uma materialidade; espé-
    a) em conformidade com a especialidade dos            cime e produto autoral, editorial, mercantil, ele é
discursos, os manuais podem ser inventariados, se-        mercadoria e produto industrializado e comercia-
riados, classificados e apresentados por domínios         lizado, com características próprias e que cumpre
científicos que constituem áreas do conhecimento.         objectivos específicos nos planos científico, social
É esta a função central da biblioteconomia, no âm-        e cultural. os seus modos de produção e de cir-
bito da qual se desenvolveram sistemas classificati-      culação envolvem uma cadeia de agentes e estão
vos, descritivos, informativos e expansivos, como o       condicionados por uma série de prerrogativas: di-
sistema universal Cdu.                                    mensões autorais; técnicas e materiais de fabrico
    b) apresentando marcas de adequação (configu-         e reprodução; processos e percursos produtivos;
racional, gnoseológíca, discursiva) ao destinatário,      circunstâncias e condicionalismos de comerciali-
e inscrevendo-se de forma operacional num momen-          zação, circulação, difusão, acesso. neste quadro, a
to específico do processo de ensino/ aprendizagem,        abordagem a partir de uma economia alargada não
os manuais podem, em regra, ser ordenados/ hie-           pode deixar de incluir uma tecnologia da produ-
rarquizados do simples para o complexo, em con-           ção, constituída por factores relativos a: locais; li-
formidade com a adequação didáctico-pedagógica.           cenciamentos e patentes; direitos de autor e de pro-
    c) Podem ainda os manuais ser ordenados/ hie-         priedade; circulação e reprodução dos originais;
rarquizados, tomando como referência a natureza e         mecanização, estilização e/ ou originalidade, nos
o estatuto epistémico do texto, ou seja, no quadro        planos tipográfico, editorial, autoral e estilístico. o
da enciclopédia universal do saber: tratados, súmu-       estudo sócio-económico dos processos de produ-
las, mementos, rudimentos, cartilha, caderno.             ção e de distribuição alarga-se, por consequência,
                                                          dos aspectos estritamente económicos, financeiros
                                                          e técnicos a factores de agenciamento, graus de es-
tomando a leitura como referente, acção e processo,       pecialização e de profissionalização, organização,
suas perspectivas, suas marcas indutoras e ordena-        formas de controlo e de poder.
doras (através da constituição de uma combinató-              Mas o mercado do livro escolar, para além dos
ria que configure e relacione factores/ categorias de     aspectos económicos e sociais de comercialização,
autoria, com as categorias científico/ curriculares,      distribuição, circulação, aquisição, empréstimo, é
com as categorias relativas à forma/ estrutura, com       também afectado por factores de regulação e pelas
as categorias relativas à função/ lugar no acto peda-     circunstâncias históricas no que se refere às polí-
gógico/ didáctico), os manuais podem ser inventa-         ticas curriculares e à mediatização do acesso por
riados, ordenados, seriados e analisados na sua es-       intervenção das instituições escolares e dos pro-

                        sísifo 1 | justino magalhães | o manual escolar no quadro da história cultur al        7
fessores, entre outros. objecto de contrafacção, de        lação do livro escolar, seus métodos e formas de orga-
censura e de controlo, o livro em geral, e o manual        nização, mobilização, profissionalização, associação;
escolar em particular, não obstante as políticas de            2) análise, caracterização e avaliação das inter-
protecção dos direitos de autoria, reedição, tradu-        textualidades, bases científico-culturais, recursos
ção, adaptação, e a existência de censura prévia à         linguísticos e meta-narrativos.
publicação e à mediatização, não se apresentam                 É a combinação destas marcas, umas respeitan-
isentos de falsificação, duplicação, plágio.               do a locais, espaços e tempos definidos e outras
    Com efeito, no caso particular dos manuais esco-       reportando-se a um futuro projectado e imaginado,
lares, foi fundamentalmente para impedir a elevada         que fundamenta, povoa e hierarquiza a informação
frequência de infracções aos direitos de autor e para      verbal, gráfica e objectual dos manuais escolares.
assegurar a normalização e a adequação da informa-             Principal meio de informação, conhecimento e
ção aos diferentes tipos de leitor, que, à existência de   legitimação da cultura escrita e da acção escolar,
censura prévia, foram associados outros meios orgâ-        o manual, não obstante a sua função didáctico-
nicos de controlo de circulação e da utilização. São       -pedagógica, apresenta uma evolução em boa parte
organismos que se regem por normas que respeitam           análoga à história geral do livro, no que se refere à
à edição, à mercantilização, às formas de expressão,       ordenação e ao significado como veículo do saber e
sua natureza e adequação aos destinatários, nos pla-       do conhecimento, mas ajusta-se aos circunstancia-
nos cognitivo, moral e ideológico, como ainda ao           lismos e às prerrogativas das políticas da educação.
rigor científico e discursivo dos conteúdos.               Com efeito, analisado em si mesmo e como repre-
    Circunstâncias históricas houve, contudo, em           sentação da cultura, do campo e da acção escolares,
que a aplicação destes instrumentos de regulação           o manual apresenta, nos planos sócio-económico da
não foi suficiente para a superação dos condiciona-        circulação, da difusão e da apropriação, uma espe-
lismos sócio-económicos. É o que pode inferir-se ao        cificidade que para ser assinalada necessita de uma
tomar como exemplo a situação das escolas portu-           adequação dos critérios gerais da biblioteconomia.
guesas quando das inspecções gerais realizadas em              É que, reafirme-se, se, no quadro da bibliote-
1863 e em 1875. uma parte muito significativa das          conomia e da epistemologia, os manuais escolares
escolas elementares então inspeccionadas utilizava         podem, pelas suas características gerais, constituir
livros que não estavam incluídos na listagem dos           um único género bibliográfico, já tomados na sua
manuais recomendados pelo Conselho Superior de             especificidade apresentam uma grande diversidade
instrução Pública. dado que, segundo o testemu-            de tipos. Para o núcleo duro da biblioteconomia,
nho dos professores e dos inspectores, esta situa-         designadamente no que respeita a informação au-
ção se devia fundamentalmente a razões de carácter         toral, editorial e ramo/ domínio do conhecimento,
económico, está-se perante irregularidades que,            o manual escolar não constitui um caso particular,
apesar de não constituírem um desvio estratégico           sendo habitualmente tratado no quadro geral das
ao cumprimento das recomendações superiores,               normas e das práticas de cada sistema de classifi-
não deixavam de ser frequentes. os livros mais             cação. todavia, na medida em que simboliza uma
usados eram, com efeito, aqueles livros ou manuais         construção cultural, estrutura o acto do conheci-
que existiam nas famílias ou nas escolas, ou ainda         mento, materializa a relação pedagógica e configura
aqueles que o professor detinha e emprestava aos           o campo epistémico-pedagógico da cultura escolar,
alunos. também o critério da redução dos custos            o manual constitui um caso particular da produção
de produção foi, em diversas circunstâncias, utili-        bibliográfica e desafia a uma historiografia específi-
zado para justificar o recurso ao livro único.             ca. o reconhecimento da complementaridade entre
    ainda nos planos económico e social há dimen-          a história do livro e a história do livro escolar justi-
sões de natureza sócio-profissional, que podem             fica uma abordagem serial dos manuais.
estruturar-se com base em dois eixos fundamentais:
    1) inventário, descrição e hierarquização dos agen-
tes e dos segmentos sócio-profissionais envolvidos         a historiografia dos manuais escolares integra a his-
nos processos de autoria, legitimação, edição e circu-     tória geral do livro e da leitura, pelo que a sua parti-

8         sísifo 1 | justino magalhães | o manual escolar no quadro da história cultur al
cularização não dá lugar a uma historiografia a dois           É por consequência como exemplo de adap-
níveis — o da generalidade e o da especificidade. no       tação dos conteúdos, teorias e conceitos de uma
entanto, como a inclusão dos manuais no quadro da          matriz científica pura a uma aplicação à realidade
história cultural, especificamente nos domínios da         escolar, em primeiro lugar e, como representação
história do livro e da leitura, não esgota a historio-     e forma de acesso às práticas de ler e dar a ler, em
grafia do manual, não pode deixar de se perguntar o        segundo, que os manuais escolares constituem um
que acrescenta a história do manual à história do li-      contributo fundamental, se não único, para a histó-
vro e da leitura? os fenómenos e, por força de razão,      ria cultural.
os factos culturais ou pedagógicos são construções             as teorias da estética da recepção vieram con-
sócio-históricas que contêm uma materialidade, uma         ferir ao leitor o estatuto de factor determinante do
representação, um agenciamento e uma apropriação.          acto de ler, valorizando os processos de aprendiza-
Será na medida em que os manuais respeitem e se            gem e de apropriação como sendo os que melhor
adaptem à natureza profunda da realidade educativa         caracterizam a leitura enquanto processo educati-
que eles constituem um objecto específico no quadro        vo, e permitindo compreender, explicar e avaliar as
da história cultural e, por consequência, no quadro        diferentes formas de recepção e de uso das mensa-
da história do livro e da leitura.                         gens escritas. neste contexto, o estudo serial dos
    tomada numa acepção dinâmica e no sentido              manuais escolares, inventariados e ordenados por
mais genérico, a cultura, muito especificamente a          critérios que permitam caracterizar, hierarquizar
cultura escrita, é uma acção complexa de diálogo           e comparar os diferentes graus de complexificação
e de (in)formação, com base num texto, suportado           e aprofundamento do acto de conhecer, por acção
por um discurso/ livro, cuja mensagem se transmi-          do leitor/ aprendiz, e as diferentes atitudes e formas
te e é captada/ apropriada pela leitura. texto, livro      de implicação e de formação/ mediatização do pro-
e leitura são, deste modo, os elementos básicos da         fessor e do animador de leitura, a que acresçam o
cultura escrita e correspondem a uma acção educa-          registo e a análise dos diferentes tipos de manuais
tiva. as operações biblioteconómicas de inventário         quanto à estrutura, à composição, à autoria, é um
dos livros, autoria dos textos e classificação dos dis-    contributo fundamental para o esclarecimento de
cursos por domínios científicos e níveis do conhe-         algumas das questões mais complexas e profundas
cimento, têm-se revelado suficientes para uma inte-        da história cultural, nas suas vertentes dinâmica e
lecção e uma racionalidade das práticas culturais,         evolutiva.
no que respeita aos planos da produção, represen-              o reconhecimento da especificidade dos manu-
tação e circulação do livro. aliás, a aproximação ao       ais, enquanto produto cultural e objecto do conhe-
livro escolar permite ordenar os textos por graus de       cimento e de divulgação/ formação, permite refe-
dificuldade e de complexidade, quanto à organiza-          renciar e esclarecer a conflitualidade (articulação/
ção e transmissão da mensagem, como também por             distinção) entre os critérios que presidem às clas-
ordem de aprofundamento, quanto à produção do              sificações gnoseológicas e às classificações biblio-
saber e aos domínios do conhecimento.                      teconómicas. Com efeito, é à luz das primeiras que
    no entanto, é no contexto da leitura orientada,        a designação manual ganha sentido em si mesma, e
formas, práticas e metamorfoses do leitor, que a his-      que a vasta panóplia de tipos de manuais se ordena
tória cultural beneficia com a abertura ao caso espe-      e articula, constituindo, pela natureza dos textos e
cífico dos manuais escolares. do lado da produção,         pela orgânica dos livros, um produto cultural e um
autoria, edição e circulação, os manuais escolares,        objecto epistémico específicos — o domínio cien-
ainda que podendo apresentar marcas específicas,           tífico da manualística. É, de igual modo, o estudo
não constituem uma boa referência biblioteconómi-          criterioso dos diversos tipos de manuais que per-
ca, pois que tais variações resultam frequentemente        mite uma aproximação às formas de uso, às práti-
de deficiências de autoria e de falhas quanto à pro-       cas de ler e dar a ler, aos comportamentos cognos-
priedade intelectual, devidas, em regra, à adapta-         centes do leitor e das comunidades de leitores, aos
ção dos conteúdos às capacidades dos leitores e aos        graus de liberdade de interpretação, aos processos
objectivos da acção escolar.                               de variação de leituras, aos planos de legitimação

                         sísifo 1 | justino magalhães | o manual escolar no quadro da história cultur al       9
das possíveis versões de texto, enfim, à interacção       a uma pragmática que integra de forma articulada
simbólica.                                                finalidades de diferente natureza e uma diversida-
                                                          de de facetas quanto à morfologia e ao conteúdo, os
                                                          manuais escolares constituem um género bibliográ-
esse é o vasto quadro em que ganha sentido o pro-         fico específico, cuja configuração se traduz numa
cesso de construção de séries, informatizadas ou          diversidade de tipos.
não, bancos remissivos e comparativos dos diver-              neste sentido, e contrariando alguns dos cri-
sos tipos de manuais escolares, entre si, com ou-         térios biblioteconómicos, é possível admitir como
tros tipos de manuais e com o livro em geral. Mais        livro um manual de tamanho reduzido, porventura
que tomar o manual escolar como uma aplicação e           com menos de quarenta páginas, mas que corres-
uma especificação da história do livro e da leitura,      ponde a uma unidade temática, pedagógica ou sim-
a construção de séries progressivas, interactivas,        plesmente curricular. Pertencendo a um mesmo gé-
gradativas e selectivas são um ponto de partida e         nero, os diversos tipos de manuais traduzem o grau
um referencial fundamental para a história e para a       de orientação do leitor e de complementaridade en-
historiografia do livro e da leitura. Radicalizando,      tre as dimensões científica, curricular, didáctica.
poder-se-á dizer que o romance literário (ainda que           História de uma mercadoria e de um modo de
a sua diegese se traduza numa configuração pluri-         produção, a história do livro como a do manual
facetada que ordena e dá sentido ao acto e à expe-        escolar são também a história de arbítrios e confli-
riência da leitura), por não apresentar, nem na sua       tualidades culturais, de grupos, meios e processos
concepção, nem na sua apropriação, uma orienta-           sócio-culturais. de entre uns e outros, estes últimos
ção pedagógica e didáctica explícitas, está no ex-        são os mais estudados e porventura os mais signifi-
tremo oposto ao do manual escolar, se colocados           cativos e conhecidos, nos planos da hierarquia e no
num eixo continuum. Partindo do manual esco-              exercício da hegemonia de poder, como ainda nos
lar, a recíproca não é contudo verdadeira, já que o       planos de definição e de relacionamento entre os do-
aprendiz/ leitor pode colher conhecimentos e infor-       mínios público e privado, urbano e rural. Com efei-
mações ética e substancialmente relevantes e signi-       to, seja pelo aparato burocrático em que mergulham
ficativos, lendo um bom romance literário, sem que        no decurso dos processos de produção, legitimação,
este assuma estatuto de manual. ou seja, também           aprovação e leccionação, seja pela sua centralidade
o romance literário, na sua configuração, na sua          no interior da cultura e da acção escolares, uma das
linguagem, contextualização e desenvolvimento da          marcas sócio-culturais mais relevantes quando se
acção, procura de harmonização e de implicação do         analisam os manuais escolares é a explicitação de
leitor na construção e no desenlace da intriga, não       juízos sobre conteúdos, lugares, figuras ou perso-
contraria, em absoluto, as marcas estruturantes do        nagens. Subjazem aos manuais escolares lógicas de
manual escolar, sendo assim possível estabelecer          autoridade e de verdade que não são comuns a ou-
um continuum que vai do romance ao manual.                tros livros ou produtos culturais, mesmo no interior
    Passa-se com o livro um processo analógico ao         da cultura escolar. o manual escolar, mais que um
das disciplinas escolares. foi na medida em que           meio de aculturação e de alteridade, é factor de afir-
foram correspondendo às necessidades, às prer-            mação e de dominação cultural.
rogativas e às circunstâncias históricas da cultura           em Portugal, por exemplo, as Cartilhas, como
escolar e da pedagogia, em geral, que os diversos         os Manuais e Compêndios escolares (estes últimos
ramos do saber se estruturaram em disciplinas cur-        já no decurso do século Xviii), foram produzidos
riculares. idêntico processo se operou na evolução        no interior de corporações ou de estruturas notá-
histórica do livro.                                       veis, como a Corte, a universidade de Coimbra, as
    a abordagem serial do livro escolar visa tratá-lo     dioceses, as ordens Religiosas e Monásticas, os
enquanto produto cultural orientado para um sujei-        Mestres Régios. desde o século Xviii que há facto-
to leitor, em processo de formação e de crescimen-        res de natureza corporativa e de controlo, que exer-
to, e cuja actividade de leitura deverá ser orientada     cem determinado tipo de pressão sobre a produção,
e dirigida para determinados fins. Correspondendo         aprovação e circulação dos manuais escolares, e ain-

10       sísifo 1 | justino magalhães | o manual escolar no quadro da história cultur al
da sobre como historiá-los. Há, por outro lado, uma       historiografia total do livro, uma vez que permanece
sociologia de utilização, circulação e apropriação        centrada na produção e na oferta, circunscrevendo-
que não se esgota nos circuitos produtivos.               -se ao tipo de relações culturais que se estabele-
                                                          cem (ou é esperado estabelecerem-se) entre o sec-
                                                          tor sócio-profissional dos autores/ editores e os
tal como se referiu, há uma etno-historiografia do        públicos-alvo. não permite, se não por inferência,
livro e do manual escolar, cuja centração em facto-       passar para o lado da procura, da utilização e da
res de natureza económica e social visa inventariar       apropriação. tal desafio, que, como tem vindo a as-
e compreender, através da constituição de grandes         sinalar Roger Chartier, constitui um dos objectivos
listagens e séries, a especificidade da natureza e da     da sociologia dos textos enquanto condição de in-
história do livro como produto cultural e bem co-         tegração da história do livro e da leitura na história
merciável — catálogos de livrarias, editoras e distri-    cultural, radica numa análise das variações formais
buidoras; catálogos de bibliotecas; índices de livros     de um texto, seja no que estas contenham de ino-
censurados, proibidos, doados ou inventariados;           vação, seja no que contenham de acomodação e de
colecções. É uma historiografia que se organiza           adaptação a novos leitores e no interior das comu-
pela articulação de duas lógicas diferenciadas:           nidades de leitores. afinal, o triângulo básico da
    · a seriação transversal, a partir de um referente    história cultural: o livro, o texto, a leitura.
— uma instituição cultural ou educativa, uma livra-          Como passar para o leitor e para a leitura, atra-
ria, uma biblioteca, um fundo documental, uma bi-         vés de investigações centradas na produção, na
blioteca particular;                                      circulação e na oferta do texto e do livro? a uma
    · a seriação vertical, orientada para um histori-     estética da produção e da representação subjaz uma
cismo evolutivo e diacrónico, dentro de um mesmo          estética da recepção: como (re)conhecê-la e como
eixo condutor temático ou material — o manual             relacioná-las? É aqui que novos desafios se levan-
escolar, o livro de horas, as bibliotecas populares,      tam à historiografia do manual escolar.
enquanto continuum coleccionável, de livros ou de            Pelas suas marcas de orientação de leitura, pro-
títulos, progressivo e expansivo, nos planos do co-       jecção e conhecimento do público alvo, e pela nor-
nhecimento e da informação.                               malização do acto de ler (práticas e experiências
    a aplicação destas lógicas ao manual escolar          de leitura) no quadro da cultura escolar, o manual
tem originado projectos de investigação em grande         constituiria um segmento da produção bibliográfi-
escala, que para além de uma inventariação siste-         ca em que se poderiam tomar por inteiramente co-
mática, têm fomentado a construção do domínio             nhecidas as características e os produtos da leitura
científico da manualística e permitem abordagens          e da apropriação. todavia, nada mais enganoso e
comparativas.                                             porventura mais difícil de investigar. no quadro
    nesse contexto, a historiografia francesa, desig-     da cultura escolar, as actividades de leitura são me-
nadamente a partir do projecto eMManueLLe,                diatizadas pelo professor, pelo grupo de alunos,
como mais recentemente a historiografia ibero-            são objectivadas em consonância com os fins e as
-americana, através do projecto ManeS, fomenta-           funções da escola e da escolarização. Como inferir
ram grandes inventários, como base da manualísti-         pelos exames e pelas aquisições de aprendizagem
ca escolar e educacional. na origem destes inven-         as formas e os significados da leitura? ainda que
tários estão uma ficha identitária de cada espécime       as práticas de aprendizagem e de didáctica escola-
publicado e uma tabela criterial que permite censar       res sejam, em regra, uma aplicação de lecto-escrita,
e discriminar o universo dos exemplares colecta-          que relação pedagógica e antropológica subjaz de
dos, classificando-os quanto ao grau de especiali-        facto entre a leitura e a escrita escolares? Se as mar-
zação, à função, ao estatuto e ao uso como manual         cas de orientação de leitura constantes dos manuais
escolar.                                                  só indirectamente podem ser tomadas como infor-
    a abordagem a partir da biblioteconomia, ain-         mação sobre as formas e as práticas de leitura, tam-
da que exaustiva e com grande instrumentalização          bém a transferência da leitura para a escrita escolar
material, não responde todavia aos desafios de uma        (ou a regressão da escrita escolar para a leitura) só

                        sísifo 1 | justino magalhães | o manual escolar no quadro da história cultur al       11
indirectamente se poderá realizar. entre o texto e a       bases de dados biblioteconómicas existentes nos
criança está o professor; entre o professor e o texto,     vários fundos documentais? no plano prático, esta
está o programa.                                           é a questão crucial.
    a leitura escolar é uma leitura instrumentalizada.         de facto, as bases biblioteconómicas existentes
assim, em que medida o manual é portador de mar-           nas bibliotecas apenas contemplam uma projecção
cas que indiciam e orientam essa instrumentaliza-          da procura, a partir da oferta pormenorizadamente
ção? no seu modo de construção, como na orienta-           referida, mas não se abrem à apropriação. Por seu
ção para um destinatário, o manual escolar distingue-      lado, algumas das dimensões básicas de manualís-
-se de outros livros porque apresenta orientações          tica que têm vindo a ser mais trabalhadas são as se-
explícitas relativamente ao comportamento do leitor.       guintes: título, autor, leitor/ leitores, editor, matéria
o manual escolar é pro-activo, disciplinando o acto        (classificação temática), género — texto/ discurso
de ler. Como recolher, caracterizar e organizar essas      (científico/ humanístico, didáctico/ pedagógico),
marcas, no quadro de uma investigação? e, no en-           factores e agências de legitimação, formas de uso,
tanto, são estas marcas que conferem um estatuto ao        divulgação e aquisição. trata-se de um conjunto de
manual escolar e o situam como ponte e como me-            descritores pouco habituais no quadro da bibliote-
diatização entre a leitura e a pedagogia.                  conomia e que não se satisfazem com uma amplia-
    a abordagem serial com recurso a uma herme-            ção do número de campos e com uma maior atenção
nêutica suportada nessa mesma abordagem torna              aos diferentes tipos de manual, mecanismos de edi-
possível construir grandes categorias analíticas que       ção, reedição e circulação, formas de legitimação.
permitem incluir e sobrepor-se à casuística escolar.           no entanto, e de igual modo, nenhuma daquelas
É no quadro das grandes construções seriais que se         bases faz referência às diferentes versões de um mes-
torna possível projectar uma territorialidade e uma        mo texto e menos ainda se revelam sensíveis aos me-
temporalidade que subjazem a determinadas expe-            canismos de condicionamento e de orientação sobre
riências pedagógicas, e, ainda, que se torna possí-        as formas de uso e de apropriação. Como referir as
vel acompanhar e traçar a geografia, o itinerário e        diferentes configurações de um mesmo manual esco-
o destino de um modelo pedagógico, de um autor,            lar? o que é texto de autor e texto adaptado? Qual
ou de um livro escolar. É esse trabalho comparativo        o papel da ilustração? e qual o papel dos suportes
que o recurso a bases de dados, por grandes conti-         de leitura e de verificação (questionários, ordem dos
guidades geográficas e sócio-culturais e por gran-         textos)? estas são algumas questões, entre outras
des correntes pedagógicas, permitirão obter.               possíveis, a colocar aquando do estudo dos manuais
    Por contraponto a esta generalização e a esta pro-     escolares, no interior de uma história cultural.
cura das principais tendências, só a casuística, foca-
lizada em observações aplicadas a certos públicos,
a certas instituições, a certos territórios, a certas      a progressiva especialização da historiografia do li-
circunstâncias geográfico-históricas e às utilizações      vro ao longo das últimas décadas tem ficado assina-
específicas de um texto ou de um manual, permite           lada por linhas de investigação de carácter sistemá-
reconstituir cenas e experiências de leitura e falar de    tico, nomeadamente a partir do institute national
apropriação. É a articulação entre a particulariza-        de Recherche Pédagogique (frança). entre as pro-
ção e as grandes categorias da abordagem serial que        duções historiográficas de maior relevo, para além
permite uma aproximação complexa e aprofundada             de diversos catálogos em línguas francesa e inglesa,
à história dos manuais, do livro e da leitura.             relevam: Histoire d’Édition Française (4 volumes);
    e se o estudo de caso se torna necessário para         Historia Ilustrada del Libro Escolar en España
uma abordagem consequente da sociologia da lei-            (2 volumes).
tura, enquanto acto do conhecimento e da experi-               em Portugal, o projecto eMe organizado a par-
ência de leitura, enquanto configuração antropoló-         tir da universidade do Minho, permitiu uma inven-
gica, enquanto vestígio de uma experiência didác-          tariação dos manuais de Língua Portuguesa e de
tica concreta, em que medida, para a consecução            filosofia existentes na Biblioteca Pública de Braga
destes objectivos, se torna necessário ampliar as          e na Biblioteca do antigo Liceu Sá de Miranda.

12        sísifo 1 | justino magalhães | o manual escolar no quadro da história cultur al
ainda no âmbito deste projecto, tiveram lugar im-         cos tradicionais. Por um vasto período, o manual
portantes eventos culturais e contactos internacio-       escolar cumpriu uma função enciclopédica, con-
nais que deram origem a estudos e a publicações           tendo todas as matérias que não apenas constituem
sobre as diversas dimensões epistemológicas do            a educação básica mas cuja utilidade e pregnância
manual escolar: gnoseológica, linguística e discur-       se prolongam pela vida, podendo ser consultado a
siva, didáctica, sociológica, historiográfica. o ma-      cada momento.
nual escolar tem sido, além disso, objecto de várias          na transição do século XiX, correlativamente ao
dissertações de doutoramento e de mestrado, no            desenvolvimento da escola nova, que contém uma
âmbito das quais aliás têm sido realizados inven-         ampliação, uma diversificação e uma complexifica-
tários de diverso tipo, com vista a uma sistemati-        ção da pedagogia escolar (reforçando uma pedago-
zação, por graus e níveis de ensino, por domínios         gia activa, com base no dizer e no fazer), o manual
do conhecimento, por formatos e tipos discursivos.        escolar de leitura, como também os manuais espe-
uma terceira aproximação ao manual escolar de-            cíficos, constituem uma iniciação, uma abertura de
corre do estudo dos meios, dos modelos e dos pro-         caminhos, uma estruturação básica do raciocínio,
cessos de ensino-aprendizagem aplicados na esco-          com vista ao alargamento e ao aprofundamento da
la portuguesa. estas últimas abordagens têm sido          informação, remetendo para outras leituras e para
elaboradas com base nos relatórios da inspecção e         outras fontes do conhecimento. Por um tempo, o
dos órgãos de governo das escolas ou têm partido          estatuto e a função do manual escolar surgem as-
das listagens dos organismos de regulação e legi-         sumidamente relativizadas e circunscritas, quer no
timação, nomeadamente: a Real Mesa Censória, o            âmbito de um processo progressivo do conheci-
Conselho Superior de instrução Pública, a Junta           mento e da formação, quer enquanto representação
nacional de educação.                                     e estruturação da cultura e da pedagogia escolares.
                                                          neste último aspecto, há uma cultura escolar, de
                                                          ritualização, gestualidade, socialização, formação,
no que se refere ao ensino de Primeiras Letras e à        que não é vertida para o manual, mas que, no en-
instrução elementar, em Portugal, ainda que seja          tanto, tende a ser, directa ou indirectamente, ho-
possível referenciar vários inventários constantes        mologada, contextualizada, metaprojectada por ele.
de estudos sobre níveis de ensino e objectos didác-       o manual escolar era uma das portas de entrada na
ticos, não foi ainda elaborado um inventário crite-       vida e na cultura.
rioso e sistemático da manualística portuguesa.               a progressiva sobreposição entre instrução e
    tomando como referência a instrução elemen-           escolarização e entre escolarização e educação, nas
tar, do mural para o manual enciclopédico e des-          primeiras décadas do estado novo, tendo por ob-
te para a manual de leitura e de leitura e escrita, o     jectivo uma lógica basista e minimalista da escolari-
percurso histórico do manual escolar corresponde,         zação elementar, converteram o manual escolar em
nos seus traços gerais, ao processo de escolariza-        livro único e numa antropologia básica. o manual
ção da sociedade portuguesa — da alfabetização            escolar ordenava e permitia a interiorização de uma
ao ensino Primário Complementar, instituindo-se           visão sobre o mundo. o manual escolar antropolo-
por fim uma escola elementar Graduada, corres-            gizava o leitor/ aluno.
pondendo a uma educação Primária/ fundamental                 a centralidade do manual escolar e a sua maior
e posteriormente a um primeiro ciclo da educação          ou menor didactização (alcançada através de ques-
Básica.                                                   tionários, orientação geral, estruturação) consti-
    neste processo, o manual escolar tornou-se o          tuem uma fonte de investigação sobre a realidade
meio pedagógico central. na fase final do antigo          pedagógica. tal investigação pode ser organizada
Regime, sob o primado das Luzes, escola e manual          pela via directa ou por uma via de desconstrução,
escolar sobrepõem-se, uma situação que se altera          pois que houve partes da cultura escolar que não
no decurso do século XiX, à medida que o siste-           foram objecto do manual, e a pedagogização do ma-
ma escolar se estrutura e que a função da leitura se      nual não se operou sempre da mesma forma e com
autonomiza e reforça, face aos métodos catequísti-        igual relevo na história da escolarização.

                        sísifo 1 | justino magalhães | o manual escolar no quadro da história cultur al     13
o estatuto do manual escolar confere-lhe um           marcas de autoria e de autonomia dos professores
peso fundamental na estruturação do pensamento,           foram mais notórias, estas fases históricas são me-
na conceptualização e no método de construção e           nos nítidas, ainda que possam constituir ponto de
apropriação do conhecimento. Como historiar o             referência.
estatuto do manual escolar? a partir dos enquadra-
mentos legais? a partir da epistemologia dos sabe-
res escolares e outros? a partir dos relatórios da        É no quadro de uma etno-historiografia do manu-
inspecção e de outros organismos de poder e de re-        al escolar que têm vindo a ser elaboradas bases de
gulação? optando por uma abordagem serial, qual           dados que complementam e especificam os dados
o valor epistémico das bases construídas a partir         de natureza biblioteconómica. É uma historiografia
dos catálogos de editores de autores? e a partir dos      que, para além da inventariação e da caracteriza-
fundos bibliográficos das instituições educativas         ção do manual escolar, sua tipologia, seus modos
ou, ainda, das bibliotecas públicas?                      de produção e de circulação, sua evolução, permite
    Como foi já referido, relativamente ao proces-        conhecer e avaliar a função do manual como meio
so de escolarização em Portugal, para os séculos          didáctico e como representação do campo pedagó-
Xviii, XiX e XX, e genericamente, o estatuto do           gico. no entanto, uma aproximação aos domínios
manual escolar sofreu algumas variações:                  da aplicação didáctico-pedagógica do manual, for-
    a) no quadro das Luzes e de uma leitura/ emu-         mas de uso em situação de ensino-aprendizagem,
lação, o manual escolar identifica-se com a escola,       modos e níveis de apropriação, só se tem revelado
como método e disciplina e, posteriormente, como          possível através de estudos de caso.
enciclopédia;                                                 a inscrição da história do manual escolar na his-
    b) no quadro de uma valorização da cultura es-        tória cultural, com abertura, entre outros aspectos,
crita como simbolização e acção, o manual escolar         à produção/ conversão, à configuração dos diversos
constitui uma iniciação, uma conceptualização,            tipos de texto, em discurso didáctico/ pedagógico
uma remissão;                                             sob a forma de livro/ manual, à projecção e estru-
    c) num quadro estritamente (pre)formativo, o          turação dos modos de ler e dos comportamentos
manual escolar sob as modalidades de livro único e        do leitor e, ainda, à caracterização e avaliação das
unificado, funcionou como uma antropologia, uma           formas de apropriação, desafia a uma epistemolo-
visão total e organizada sobre o mundo.                   gia complexa que implica um cruzamento de dife-
    esta dialéctica evolutiva, mas também recur-          rentes instrumentos metodológicos. esta operação
siva em boa parte, pode ser referenciada ao pró-          histórica é também uma rigorosa aplicação histo-
prio enquadramento legal e à história da escola: a        riográfica que articula de forma coerente e conse-
primeira fase arrasta-se até ao terceiro quartel do       quente o historicismo da cultura escrita, da cultura
século XiX; a segunda fase marca os finais do sé-         escolar e da escolarização, e o do lugar e da função
culo XiX e a Primeira República; a terceira fase          do livro escolar, com as conjunturas que assinalam
marca o estado novo até à década de sessenta,             rupturas, transformações e inflexões no sentido
quando se observa uma progressiva tensão sobre            histórico. enquanto objecto epistémico, cultural e
o livro único. as práticas escolares, sobretudo no        pedagógico, o livro escolar tem um percurso e um
século XiX, assinalam muitas transgressões e uma          tempo histórico próprios, cujos significado, senti-
simplificação, se não mesmo uma reduzida utiliza-         do e evolução, representação e apropriação se do-
ção, do manual escolar. Relativamente ao ensino           cumentam, compreendem, explicam e narram no
secundário, liceal e técnico-profissional, onde as        quadro da história cultural.




14       sísifo 1 | justino magalhães | o manual escolar no quadro da história cultur al
s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 1 · s e t / d e z 0 6             i s s n 1 6 46 - 4 9 9 0


Bocage e a educação entre dois Séculos

Rogério fernandes
faculdade de Psicologia e de Ciências da educação da universidade de Lisboa
rogerio.a.fernandes@sapo.pt




            Resumo:
            integrada nas comemorações do ii Centenário de Bocage, promovidas pela Câmara Mu-
            nicipal de Setúbal sob a direcção do Prof. daniel Pires, esta conferência visa evocar as
            estruturas de educação escolar existentes no período correspondente à vida do poeta e
            a evolução delas. de certa maneira, a sua função consiste no contributo que prestam à
            leitura da biografia de Bocage, apesar de a sua carreira académica ter sido muito limitada,
            já que não frequentou a universidade de Coimbra, tendo ingressado, em compensação,
            numa escola de formação profissional do tipo da academia de Guardas-Marinha.
                a vida intelectual de Bocage, designadamente a actividade literária demonstra, por
            outro lado, que a sua formação cultural decorreu por assim dizer ao lado da escola, em-
            bora o domínio do Latim e da Língua francesa, (aquisições escolares) lhe tenham permi-
            tido o desempenho de outras actividades, tais como, por exemplo, a de tradutor. os seus
            versos revelam, ainda que a uma análise pouco aprofundada, uma cultura filosófica que
            se pode considerar rara na sua época.
                eis o que também tentamos aprofundar, na convicção de que a formação extra-escolar,
            livre das limitações da ideologia oficial, constituía em certos casos o elemento mais rele-
            vante dos fenómenos de contra-cultura.

            Palavras-chave:
            Reformas pombalinas, educação doméstica, educação escolar, academia de Guardas-
            -Marinhas.




            fernandes, Rogério (2006). Bocage e a educação entre dois Séculos. Sísifo. Revista de Ciências
            da Educação, 1, pp. 15-26.
            Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt



                                                                                                                                  15
na1 transição do século Xviii para o século XiX,            do Reino, o marquês de Pombal e conde de oeiras.
Portugal seguiu o caminho da maioria das monar-             o estado absoluto teve nesse período a sua primei-
quias europeias. exceptuando os factos singulares           ra consolidação, tendo sabido ler no período de agi-
da Revolução americana e, em seguida, da grande             tação de ideias que precedeu a Revolução de 1789 os
revolução francesa de 1789, os anos terminais do            sinais indiciadores dessa mesma revolução. assim,
século Xviii caracterizam-se pela adesão ao cha-            chamou a si todas as funções sociais, sobrepondo-
mado despotismo esclarecido, isto é à teoria de que         -se a todas as classes, em primeiro lugar à nobreza
a fundação de estados nacionais é essencialmente            tradicional e procurando apoiar-se na burguesia.
um processo de concentração do Poder no interior                a educação foi uma das áreas em que o processo
da realeza e de construção, através da educação e           de afirmação do Poder central foi mais claro e ter-
da técnica, de um espaço económico baseado no               minante.
comércio.
    nos finais de Setecentos não achamos em Portu-
gal a presença activa de nenhum dos grandes projec-         a educação doméstica /ensino privado
tos educativos constitutivos dos ideais dos enciclo-
pedistas revolucionários. Se existiam círculos cul-         o ensino doméstico de Primeiras Letras, ou seja o
turais onde os nomes e algumas obras de Rousseau            Ler, escrever e Contar, além da formação doutrinal
e de outros iluministas não eram desconhecidos, a           do Catecismo religioso e civil, equivalente ao que
sua leitura exigia em Portugal uma rigorosa clandes-        mais tarde viria a chamar-se instrução Primária,
tinidade, contrariamente ao que se passava em ou-           era ministrado eventualmente por um preceptor
tras monarquias ilustradas que ocasionalmente lhes          particular, (pelo capelão, por um elemento da famí-
recrutavam os serviços e os consultavam em ordem            lia ou por um mestre de Primeiras Letras, também
à consecução de novos planos político-sociais. em           chamado de Meninos, que desse aulas diariamente
Portugal, o estado absoluto seguiu outros percur-           em casa dos alunos onde se deslocava).
sos ao longo da segunda metade de Setecentos, ins-          esta modalidade de educação e instrução constituía
talando organismos de controlo da vida dos cida-            o primeiro escalão do sistema de ensino privado.
dãos, das suas leituras e dos seus pensamentos, não             em paralelo com este modelo havia o que ao
hesitando em lançar nas enxovias os que fossem              tempo se chamava “ensino público”, isto é, aque-
tidos como os mais perigosos e ousassem pôr em              le que era leccionado em intenção de um ou mais
causa o régio Poder. no nosso país a era da concen-         alunos fora das respectivas moradas. os discípu-
tração dos Poderes atinge o seu vértice com d. José         los frequentariam então uma instituição educativa
i e com o seu Secretário de estado dos negócios             por que era responsável o docente seu fundador.

1       sísifo 1 | rogério fernandes | bocage e a educação entre dois séculos
não havendo, nesse tempo, edifícios escolares             abrangiam insuficientemente matérias tais como a
construídos para aquela finalidade exclusiva, as au-      Língua materna. a língua de comunicação era o
las decorriam nas casas dos mestres ou mestras, ou        Latim, por vezes deteriorado para atender a situa-
em locais menos adequados, dependendo da iden-            ções que a língua latina não previra. além disso,
tidade do professor, que às vezes acumulava a pro-        em disciplinas como a Matemática e a física, os
fissão com outras mais miseráveis.                        Jesuítas não acompanhavam os desenvolvimentos
    no regime de ensino particular nocturno, exis-        científicos modernos, notadamente a experimenta-
tiam também escolas destinadas a adolescentes e           ção. assim, em Portugal os colégios jesuítas tinham
adultos, nas quais se ensinava Caligrafia e aritmé-       sido excelentes no século Xvi quanto ao ensino de
tica Comercial. eram as “escolas de escrita e arit-       humanidades mas entraram em decadência quan-
mética”, especializadas naquelas duas matérias e          do as ciências físicas, com Galileu e newton, e as
dirigidas em regra por um calígrafo reputado. o seu       matemáticas, com descartes e Leibniz, ganharam
público eram os rapazes que pretendiam aperfeiçoar-       preponderância sobre a cultura greco-latina2.
-se nas duas disciplinas citadas ou o público adulto         em contrapartida os colégios da Companhia de
que trabalhava de dia nas repartições governamen-         Jesus distinguiam-se quanto à organização. Quan-
tais ou como caixeiro nas casas de comércio.              do as turmas eram muito numerosas os Jesuítas
    desde o Concílio de trento, isto é desde o sé-        dividiam-nas em grupos de dez (decúria), cada um
culo Xvi, os bispos católicos tinham o dever de           deles acompanhado por um monitor (decurião).
velar pelo ensino do Catecismo e da Leitura, e de         aos sábados havia competições entre esses grupos
fiscalizarem os costumes e religiosidade dos mes-         sob a forma de debates (sabatinas). os horários in-
tres e mestras que exercessem a profissão docente,        cluíam intervalos que se permitia fossem preenchi-
concedendo-lhes ou não licença para ensinarem             dos pela prática de jogos e exercícios físicos. um
nas respectivas dioceses por determinados prazos          dia por semana interrompiam-se as aulas com um
renováveis.                                               passeio no exterior da instituição, de preferência no
    além das matérias referenciadas, estes profis-        campo. além disso, escreviam-se peças de teatro
sionais ministravam, a nível secundário e de modo         em Latim, imitando os modelos clássicos, levadas
avulso, aulas de Gramática Latina, Gramática Gre-         à cena por alunos e professores. Com a sua elabora-
ga e Retórica. Mais tarde, seria acrescentado ao en-      ção preenchiam-se as longas noites de inverno.
sino destas disciplinas o de filosofia natural e Mo-         os Jesuítas mantinham uma forte estruturação
ral. Semelhantes matérias interessavam às famílias        das actividades dos jovens. a disciplina imperava
na medida em que constituíam um acréscimo de              nesses colégios onde existia uma cadeia de coman-
cultura pessoal ou mais provavelmente um prepa-           do desde o director até aos professores. os alunos
ratório do ingresso nas universidades de Coimbra          eram obrigados a denunciar os colegas prevarica-
ou de Évora.                                              dores sob pena de serem considerados cúmplices.
                                                          além da formação, com base na cultura clássica, e
                                                          da endoutrinação religiosa, os Jesuítas formavam
os colégios                                               as crianças e os jovens para serem fiéis cristãos e
                                                          cidadãos zelosos. um colégio jesuíta seguia um rit-
finalmente é preciso referir o elemento mais im-          mo de vida de teor concentracionário, firmado na
portante do sistema escolar público. os principais        obediência incondicional, na espionagem mútua e
colégios do país eram dirigidos pelos Jesuítas. no        na denúncia. a formação ministrada era a mais con-
curso geral leccionavam-se disciplinas do que cha-        corde com os ideais do antigo Regime.
maríamos hoje “ensino secundário”, seguindo mé-              os grandes competidores dos Jesuítas viriam a
todos e compêndios próprios.                              ser, sob d. João v, os oratorianos, aos quais o so-
   os currículos escolares destes colégios, os            berano concedeu um belíssimo edifício para colé-
quais, apoiando-se financeiramente no legado de           gio no parque das necessidades. Mais do que isso,
um devoto se tornavam muitas vezes gratuitos,             o rei presenteou-os com um laboratório de física,
destinavam-se à formação na cultura clássica mas          destinado à lição dos alunos e de público externo

                                   sísifo 1 | rogério fernandes | bocage e a educação entre dois séculos    17
que se interessasse pelo experimentalismo, além de          permitiu-lhe ter da vida uma visão moderna, obser-
lhes conceder o direito a que os seus discípulos in-        vando o que então se passava na europa opulenta e
gressassem directamente na universidade sem que             comparando a abundância externa com a pobreza
tivessem de ser examinados pelos professores da             indígena. era, de certo modo, um estrangeirado
Companhia de Jesus3.                                        político, a quem não era estranho um plano, em
    ao contrário das ordens religiosas, cujos co-           grande parte pessoal, de recuperação do País.
légios estavam instalados em edifícios de algum                 Pombal professava como filosofia económica o
modo adequados às aulas, aos refeitórios, dormitó-          mercantilismo. dada a incapacidade da indolente
rios e enfermarias, os mestres e mestras de meni-           nobreza lusitana para se lançar em empreendimen-
nos/meninas dispunham apenas das casas de que               tos económicos rentáveis — era mais cómodo viver
eram arrendatários para leccionarem numa das                à mesa do estado — e levando em conta a debili-
suas divisões, quase nunca a mais salubre. em se-           dade da burguesia nacional, designadamente das
melhantes residências, havia casos em que os pro-           classes comerciantes, Pombal atribuiu ao estado
fessores recebiam em regime de internato um grupo           central o papel de criar um sector económico me-
de discípulos de um ou de outro sexo. as crianças,          diante a fundação e controlo de um certo número
residindo no interior do concelho em local distante         de grandes companhias.
da escola, ou impossível de percorrer duas vezes no             a aplicação da política económica pombalina
mesmo dia visto que tinham aulas de manhã e de              principiou no Brasil cujo governo foi confiado a um
tarde, ficavam sob protecção do seu mestre ou mes-          dos seus irmãos.
tra. era o que se chamava pensões.                              Pombal pretendia redefinir o papel do índio no
                                                            processo de exploração colonial, usando a violência
                                                            para forçar as populações ao trabalho agrícola cujos
um ensino financiado pelos poderes municipais               lucros fariam parte do mesmo sistema de explora-
                                                            ção. tal processo incluía a distribuição e cultivo do
ocorria, entretanto, que as Câmaras Municipais,             território, além da sua eventual redivisão em fazen-
prosseguindo uma política iniciada no século Xvi,           das, ao mesmo passo que se propunha promover o
financiassem eventualmente a actividade dos mes-            ensino da Língua portuguesa, liquidando o tupi ou
tres que tivessem escola pública, pagando-lhes em           Língua Geral. esta política contrariava frontalmen-
dinheiro ou em géneros a educação e instrução dos           te a orientação dos Jesuítas, que se eximiam à di-
filhos das famílias do concelho. em tais casos o en-        fusão da Língua portuguesa e resistiam à aplicação
sino seria gratuito, sendo absolutamente proibido           das indicações emanadas da sede do Poder.
aos professores cobrarem quaisquer quantias por                 a situação dos Jesuítas em Portugal agravara-se
esse trabalho, excepto na hipótese de se tratar de          quanto às suas responsabilidades no ensino devido
crianças que vivessem fora do município.                    à publicação em 1746 de uma obra célebre: Verda-
                                                            deiro Método de Estudar que tinha como autor um
                                                            Padre Barbadinho, forma de cobrir o nome de Luís
a reforma pombalina                                         antónio verney, residente em Roma e crítico im-
                                                            placável dos Jesuítas portugueses (Gomes, 1982).
a situação da instrução pública seria alterada em               um dos aspectos em que o conteúdo do livro
aspectos essenciais após a subida de Pombal ao lu-          deverá ter impressionado o seu principal leitor foi
gar de Secretário de estado dos negócios do Reino.          a crítica virulenta que dirigiu aos métodos e com-
Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de oei-            pêndios da Companhia de Jesus, embora numa das
ras e Marquês de Pombal, provinha de uma nobre-             passagens do seu livro ele tenha dito que se compa-
za culturalmente afastada dos “Grandes”. no salão           tibilizaria mais com os membros da Companhia de
de seu avô discutia-se física experimental mais do          Jesus se fossem italianos, o que sugere que os jesuítas
que literatura. ao serviço da Coroa desempenhara            portugueses eram particularmente rudes e incultos.
as funções de embaixador em viena de Áustria e                  o conflito entre os Jesuítas e o Poder estalou em
em seguida em Londres. a estada no estrangeiro              1759. aquela ordem religiosa foi expulsa do País

18       sísifo 1 | rogério fernandes | bocage e a educação entre dois séculos
e proibidos todos os estudos que dirigisse, assim         Régias Gratuitas de Ler, escrever e Contar, então
como os compêndios de que os seus membros fos-            fundadas, e ainda as cadeiras de filosofia Racional
sem autores. alguns dos actos repressivos do Po-          e Moral que passavam a figurar no elenco do se-
der foram espectaculares. É o caso da extinção da         cundário, ele próprio constituído pelas cadeiras de
universidade de Évora, cuja supressão foi acom-           Gramática Latina, Gramática Grega e Retórica.
panhada de um cerco militar no quadro do qual o              não foi intenção de Pombal assegurar o acesso
encerramento da biblioteca parece ter tido laivos         de todos ao ensino elementar. aos que trabalhavam
dramáticos.                                               nos campos e nas oficinas bastaria o ensino oral do
    as consequências desta política, ao nível edu-        Catecismo. assim, o sistema educativo teve desde
cacional, cifraram-se na concentração do ensino           o início uma orientação excludente a que não era
universitário em Coimbra e no desaparecimento             alheia, por mais estranho que pareça, a opinião
do que hoje denominamos “ensino secundário”               coincidente de vários teóricos revolucionários e,
nos colégios, já que os Jesuítas escassamente inter-      quanto a Portugal, do médico Ribeiro Sanches, o
feriam ou promoviam a alfabetização. Subsistiam           célebre autor das Cartas sobre a educação da mo-
apenas as escolas públicas de professores indepen-        cidade, livro publicado em Paris, no ano de 1759,
dentes e os ensinos domésticos.                           com o elogio das primeiras medidas educacionais
    os anos de 1759-1760 marcaram a primeira fase         pombalinas.
da fundação do ensino régio gratuito (hoje diría-            Quanto ao ensino industrial manufactureiro,
mos oficial) no nosso país. assinalaram também os         esse far-se-ia nas próprias oficinas mediante apren-
primeiros passos na construção de um sistema de           dizados especificados nos alvarás dirigidos aos di-
ensino. Sumariamente, essas disposições reformis-         ferentes empresários.
tas foram as seguintes:                                      ademais, Pombal promoveu uma importante
    – Criação da aula de Comércio, ou seja um cur-        reforma da universidade de Coimbra, à qual foram
so de guarda-livros, a pedido dos comerciantes da         acrescentadas duas novas escolas: através das quais
praça de Lisboa;                                          passou a existir uma licenciatura em Matemática e
    – instruções para os professores de Gramática         outra em filosofia (Ciências físicas e naturais).
Latina, Grega, Hebraica e de Retórica (definição          tais instituições alinharam ao lado das faculdades
dos programas, dos métodos dos manuais de ensi-           tradicionais, cujos estatutos foram revistos, não só
no obrigatórios);                                         do ponto de vista dos currículos e conteúdos de en-
    – Reforma dos estudos das Línguas Latina,             sino como também das práticas didácticas.
Grega, Hebraica e da arte da Retórica;                       Quanto às coisas do mar, notemos que o minis-
    – Criação da função de director dos estudos,          tro de d. José i aceitou o pedido da burguesia por-
órgão de orientação e direcção estatal dos estudos;       tuense no sentido de ser criada uma escola náutica
    – Criação de cadeiras gratuitas de Latim, Grego,      na sua cidade, assegurando para o efeito dois bar-
Retórica, e sua distribuição pelo país;                   cos armados de canhões, o que viria a ser feito em
    – Providências sobre o exercício dos professores      1761. nessa instituição formar-se-iam os oficiais de
de Gramática e Retórica;                                  Marinha e os Pilotos que permitiriam comboiar as
    – fundação do Colégio dos nobres, um interna-         frotas comerciais constantemente atacadas no alto
to de ensino secundário moderno destinado exclu-          mar pelos piratas. a instituição era administrada
sivamente à nobreza.                                      pela Companhia de vinhos do alto douro, que
    Mas a reforma pombalina não se ficaria por            a propusera ao Governo, interessada como estava
aqui. em 1772 foi criado um imposto sobre a produ-        em proteger a actividade marítima ligada à expor-
ção de vinho, ou sobre a aguardente ou o vinagre.         tação.
nas possessões ultramarinas em que não fossem                nestas circunstâncias, Pombal não criou pro-
produzidas bebidas alcoólicas seria taxada a carne        priamente nenhuma escola especializada de futu-
dos talhos. Com o produto desse imposto o esta-           ros oficiais da marinha mercante ou da marinha de
do propunha-se alargar o pagamento dos professo-          guerra. Limitou-se a formar o Corpo dos Guardas-
res que asseguravam o funcionamento de escolas            -Marinhas, que não deveriam exceder o número de

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  • 1. “O título escolhido para a revista também justifica uma explicação breve. A pessoa humana constitui o único ser existente no universo que busca permanentemente conhecê-lo, o que é inerente à sua sobrevivência e à afirmação da sua especificidade humana. Como Ser curioso, está condenado a aprender e a interrogar-se. É um trabalho permanente e inacabado que implica colocar em causa os resultados e recomeçar, sempre. A produção de conhecimento assume formas diversas, nas quais se inclui o saber científico. Este distingue-se pelo seu carácter sistemático, pela utilização consciente e explicitada de um método, objecto permanente de uma meta análise, individual e colectiva. O trabalho científico consiste numa busca permanente da verdade, através de um conhecimento sempre provisório e conjectural, empiricamente refutável. O reconhecimento da necessidade deste permanente recomeço é ilustrado historicamente quer pela redescoberta de teorias negligenciadas no seu tempo e recuperadas mais tarde (caso da teoria heliocêntrica de Aristarco), quer pela redescoberta de visionários que anteciparam os nossos problemas de hoje (Ivan Illich é um desses exemplos). É a partir destas características do trabalho científico que é possível comparar a aventura humana do conhecimento à condenação pelos Sísifo deuses a que foi sujeito de incessantemente recomeçar a mesma tarefa.” revista de ciências da educação Unidade de I&D de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa Direcção de Rui Canário e Jorge Ramos do Ó n.º 01 · Set | Out | Nov | Dez · 2006 > História da Educação e Educação Comparada: novos territórios e algumas revisitações a dois domínios disciplinares contíguos Coordenação de Jorge Ramos do Ó issn 1646-4990 http://sisifo.fpce.ul.pt
  • 2. Contents SíSifo REvIStA DE CIêNCIAS DA EDUCAçãO Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1-2 Nota de apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3-4 N.º 01 História da Educação e Educação Comparada: DOSSIER novos territórios e algumas O Manual Escolar no Quadro da História Cultural: revisitações a dois domínios disciplinares contíguos para uma historiografia do manual escolar em Portugal Justino Magalhães . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5-14 Edição Bocage e a Educação Entre Dois Séculos Responsável Editorial deste número: Rogério Fernandes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15-26 Jorge Ramos do Ó Director: Rui Canário A Escola e a Abordagem Comparada. Novas realidades e novos olhares Director Adjunto: Jorge Ramos do Ó Rui Canário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27-36 Conselho Editorial: Rui Canário, Estudos Comparados em História da Educação Colonial: Luís Miguel Carvalho, Fernando algumas considerações sobre a comparação no espaço da língua portuguesa Albuquerque Costa, Helena Peralta, Jorge Ramos do Ó Ana Isabel Madeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37-56 ISEP: Identidade de uma Escola com Raízes Oitocentistas Colabor adores deste número: Luís Alberto Marques Alves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57-70 Autoria dos artigos: Luís Alberto Marques Alves, Maria Isabel A. Arquivos e Educação: a Construção da Memória Educativa Baptista, Rui Canário, Albano Maria João Mogarro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71-84 Estrela, Rogério Fernandes, Paulo Guinote, Ana Isabel Currículo e Ensino: Uma Leitura Paralela nas Escolas Régias e Madeira, Justino Magalhães, Maria João Mogarro, António nas Escolas Regimentais na Província de trás-os-Montes Nóvoa e Jorge Ramos do Ó. Maria Isabel Alves Baptista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85-112 Traduções: Robert G. Carter, thomas Kundert, Filomena O Lugar da(o)s Regentes Escolares na Política Educativa do Estado Novo: Matos e tânia Lopes da Silva Uma Proposta de Releitura (anos 30—anos 50) Secretariado de Direcção: Gabriela Lourenço e Mónica Raleiras Paulo Guinote . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113-126 Os terrenos Disciplinares da Alma e do Self-government Logotipo Sísifo no Primeiro Mapa das Ciências da Educação (1879-1911) Desenho de Pedro Proença Jorge Ramos do Ó . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127-138 Informação Institucional RECENSõES Propriedade: Unidade de I&D de Ciências da Educação Recensão da obra O Governo de si mesmo, da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, de Jorge Ramos do Ó [2003]. Lisboa: Educa da Universidade de Lisboa António Nóvoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139-142 issn: 1646-4990 Apoios: Fundação para a Ciência CONFERêNCIAS e a tecnologia Necessidade e Actualidade das Ciências da Educação Contactos (Academia de Ciências de Lisboa a 27 de Julho de 2006) Morada: Alameda da Universidade, Albano Estrela . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143-148 1649-013 Lisboa. Telefone: 217943651 Sísifo, revista de ciências de educação: Fax: 217933408 Instruções para os Autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149-150 e-mail: sisifo@fpce.ul.pt
  • 3. sísifo / r e v i sta de c i ê nc i a s da e duc aç ão · n .º 1 · s e t/ d e z 06 issn 1 6 46 ‑ 4 9 9 0 editorial Porquê a criação desta revista? apesar de fazermos sem que isso signifique uma menor consciência parte de uma comunidade científica recente, pouco da hibridez e das fragilidades epistemológicas internacionalizada, e com um ainda reduzido nível próprias deste campo. entendem-se as Ciências de “massa crítica”, confrontamo-nos com o facto de da educação como parte de um campo mais vasto, uma parte substancial da investigação produzida o das ciências sociais e humanas, cujas fronteiras permanecer sob a forma de literatura “cinzenta” ou são o resultado de factores históricos e sociais, com uma difusão restrita a núcleos de investigadores externos e internos ao campo social das práticas mais próximos da respectiva temática. o primeiro de investigação. trabalharemos na difícil tensão objectivo da criação desta revista aponta para a entre a unidade do social e a diversidade das suas necessidade de conferir maior visibilidade à produção abordagens científicas, recusando, quer a redução científica da ui&dCe, através de uma primeira linha das ciências da educação a uma extensão à educação de publicação e difusão que permita um diálogo de áreas disciplinares que lhe preexistem, quer a entre investigadores, interno e externo à unidade. pretensão de, através da definição impossível de o facto de termos optado por uma edição bilingue um método e de um objecto próprios, demarcar (versão portuguesa e versão inglesa) inscreve-se fronteiras e identidades que se constituem como numa orientação estratégica de internacionalização obstáculos ao conhecimento. este posicionamento da nossa actividade de investigação, ajudando a sobre as ciências da educação significa, também, fomentar intercâmbios que viabilizem, sustentem e uma demarcação clara do campo da pedagogia, tornem visíveis redes e projectos que ultrapassem o expressão de um saber profissional com uma âmbito interno da ui&dCe e as fronteiras nacionais. inevitável componente prescritiva. esta primeira linha de publicação, em versão o título escolhido para a revista também electrónica, alimentará outras iniciativas editoriais justifica uma explicação breve. a pessoa humana em curso (uma Colecção de Ciências da educação constitui o único ser existente no universo que e uma Colecção de Cadernos). a importância busca permanentemente conhecê-lo, o que é decisiva que atribuímos ao incentivo à publicação inerente à sua sobrevivência e à afirmação da sua corresponde a uma ideia da investigação, entendida especificidade humana. Como ser curioso, está como actividade produtora de um conhecimento, condenado a aprender e a interrogar-se. É um através de um método permanentemente sujeito trabalho permanente e inacabado que implica ao crivo da crítica inter pares, e transformado num colocar em causa os resultados e recomeçar, sempre. saber comunicável. a produção de conhecimento assume formas esta revista assume-se claramente como uma diversas, nas quais se inclui o saber científico. publicação na área das ciências da educação, este distingue-se pelo seu carácter sistemático, 1
  • 4. pela utilização consciente e explicitada de um contínuos com o nível empírico (cada número da método, objecto permanente de uma meta análise, revista organiza-se em torno de um dossier temático individual e colectiva. o trabalho científico consiste em que a dimensão empírica da investigação numa busca permanente da verdade, através de um será um aspecto relevante); que a abordagem conhecimento sempre provisório e conjectural, especializada de um tema se inscreva (em vez de empiricamente refutável. o reconhecimento da ignorar) nos grandes problemas com que estamos necessidade deste permanente recomeço é ilustrado confrontados (tentaremos articular a investigação historicamente quer pela redescoberta de teorias especializada com a referência a problemas globais negligenciadas no seu tempo e recuperadas mais que previnam a esterilidade de uma fragmentação tarde (caso da teoria heliocêntrica de aristarco), do saber); a comunicação clara de ideias complexas quer pela redescoberta de visionários que que é o oposto da formulação de banalidades anteciparam os nossos problemas de hoje (ivan numa linguagem deliberadamente confusa e opaca illich é um desses exemplos). É a partir destas (procuraremos incentivar o cultivo da clareza, da características do trabalho científico que é possível simplicidade e do rigor). comparar a aventura humana do conhecimento à Julgamos que só nestas condições poderemos condenação pelos deuses a que foi sujeito Sísifo de, imaginar o investigador, como aliás o sugeriu incessantemente recomeçar a mesma tarefa. no caso albert Camus, menos como um “herói absurdo” e da ciência é preciso que ela tenha uma pertinência e mais como um “Sísifo feliz”. um sentido para quem a faz. a pertinência social dos resultados do trabalho científico supõe: que o primado da teoria seja Rui Canário complementado por um confronto e um vaivém Jorge Ramos do Ó 2 sísifo 1 | editorial
  • 5. s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 1 · s e t / d e z 0 6 i s s n 1 6 46 - 4 9 9 0 nota de apresentação História da educação e educação Comparada: novos territórios e algumas revisitações a dois domínios disciplinares contíguos Jorge Ramos do Ó este primeiro dossier da Sísifo pretende ser uma horizontes teóricos próprios da história cultural, mostra da produção científica que vem sendo visa demonstrar como uma “linha de investigação” conduzida pelos membros da unidade de i&d em apenas acometida ao livro escolar nos remete, Ciências da educação da faculdade de Psicologia afinal, para o processo mesmo de construção de e de Ciências da educação da universidade de “novos objectos epistémicos”, no quadro de uma Lisboa, nos domínios particulares da História da efervescente renovação historiográfica. É assim que educação e da educação Comparada. a todos os este autor descobre na materialidade do manual autores foi sugerido que procurassem apresentar — esse incontornável da cultura escolar ao menos um trabalho que, de modo mais impressivo, desse a a partir de finais do século XiX — um autêntico conhecer ao leitor as linhas e pistas estruturantes de dispositivo de ordenação da cultura, da memória e uma prática investigativa bem actual e até em pleno da acção colectivas. em texto centrado sobre a figura curso de andamento. o desafio seria, portanto, o de de Bocage, subscrito por Rogério fernandes, diga- tentar mostrar como e de que maneira aqueles dois -se que é o ainda desconhecido jogo de tensões entre domínios disciplinares têm estado, por um lado, a uma cultura escolar, tendencialmente hegemónica, ser alvo de análises que intentam delimitar novos e a possibilidade de uma formação cultural realizada territórios educativos e, por outro, a ser revisitados em oposição a ela — encarnada pela figura do poeta a partir de novas ferramentas teóricas, susceptíveis setecentista, cuja carreira literária pareceu dispensar de desdobrar e lançar outras iluminações sobre a académica — que ocupa o centro da narrativa. neste realidades educativas que até aí se julgavam sólida artigo é, pois, explorada a hipótese segundo a qual e consensualmente interpretadas. evidentemente e o processo de afirmação do estado-nação parece se bem vistas as coisas, trata-se neste breve acervo de impor o princípio de que os chamados fenómenos fornecer uma visão panorâmica, mas que se obtém a de contra-cultura se inteligibilizem como sendo de partir de planos particulares — o que vale por dizer natureza essencialmente extra-escolar. que, a haver coerência entre os artigos, ela deverá o domínio da educação Comparada colhe residir tão apenas no propósito ora de começar a dois trabalhos. no primeiro, Rui Canário procede escrever para lá dos limites do estado actual da arte a uma “síntese reflexiva” de quatro desafios que, ora de intentar reescrever, acreditando desta forma em sua opinião, importa encarar de frente para se que o texto por vir, como notava amiúde derrida, operar uma efectiva “renovação metodológica” se imporá inteiro a partir de uma plataforma que neste sector da investigação e que parece passar pelo renova e relança uma tradição discursiva. abandono das metanarrativas construídas em torno o dossier abre sintomaticamente com um do estado-nação. o artigo organiza-se em torno de texto de Justino Magalhães o qual, a partir dos uma tese de natureza causal — a de que os processos 3
  • 6. de “regulação dos sistemas educativos” são que a compreensão efectiva do tecido complexo que resultado de um fenómeno mais vasto de “regulação envolve a escola passa pela triangulação de fontes as transnacional” —, a qual, por seu turno, permite mais diversificadas. É assim que começam a emergir, articular uma ampla discussão, que atravessa não e cada vez com mais força, os estudos de história local apenas os processos globalizados de integração da educação, como é de resto o caso da investigadora económica como também a erosão de fronteiras do Maria isabel Baptista, que nos oferece uma síntese mundo tradicional, num cenário que permite ainda panorâmica do paralelismo entre as escolas régias descobrir, de forma indistinta, a mudança social tanto e as escolas regimentais na província de trás-os- no plano das instituições quanto nos ciclos de vida -Montes entre finais do século Xviii e os primórdios profissional dos sujeitos. Questionando também as do século XiX. um acervo documental bastante rico condições teórico-metodólogicas do trabalho em é neste trabalho mobilizado para perceber como, educação Comparada se apresenta o texto de ana no quadro de uma região periférica e no período isabel Madeira, embora nele seja a educação colonial do despotismo iluminado e do Liberalismo, se foi no espaço lusófono a delimitar o argumento. nele, construindo, na verdade, uma certa homogeneidade trata-se de incorporar um conjunto de contributos na cultura escolar, no que respeita seja a planos de interpretativos destinados a desconstruir uma estudo, seja a materiais escolares e didácticos. analítica que ainda se encontra muito amarrada a Paulo Guinote consagra o seu texto à questão um “eurocentrismo” “auto-referenciado”. dos actores educativos. trabalha especificamente a história da escola é uma outra superfície a figura dos regentes escolares no quadro de uma que aqui se abre a novas territorialidades e a rápida expansão do sistema educativo levada a outras interpretações. Luís alberto Marques cabo pelo estado novo — que criou uma rede de alves procura traçar, desde as suas raízes mais postos de ensino com um mínimo de encargos remotas, a identidade do actual instituto Superior para o orçamento —, mas procura levar a sua de engenharia do Porto (iSeP). apresenta-nos a análise ao território das práticas do ensino das genealogia de uma instituição, mas faz mais do que primeiras letras. e dos professores passamos à isso. Remontando ao início da segunda metade de pedagogia. este dossier encerra com um artigo oitocentos, é-nos permitido visualizar, de facto, de Jorge Ramos do Ó no qual se regressa quer a a emergência e a difícil consolidação da chamada textos quer a autores muito trabalhados — porque razão técnica — dos limites das ambiguidades e fundadores das Ciências da educação a partir do hesitações do processo de industrialização em último quartel do século XiX —, mas para propor Portugal —, relacionando-a com a esfera da decisão uma releitura que pretende situar para muito lá de política. Maria João Mogarro regressa também ela ao uma discussão de carácter epistemológico: a de problema da memória da cultura escolar, só que o faz que toda a psicopedagogia moderna se estruturou pela via da salvaguarda e da preservação dos fundos historicamente a partir dos princípios de governo documentais e patrimoniais. Como se a própria do eu; sempre que as autoridades educativas nos renovação dos estudos em História da educação falam de autonomia ou de responsabilidade estão dependesse agora muito mais das condições de a falar de disciplina, de auto-regulação. de uma instalação e de organização destes espaços no ampliação da esfera do poder dentro do coração e interior dos estabelecimentos de ensino. depois da consciência de si dos sujeitos. dos estudos sobre as grandes reformas e políticas o leitor tem agora à sua frente o esboço de uma educativas os investigadores tendem a acreditar prática, de um artesanato. 4 sísifo 1 | nota de apresentação
  • 7. s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 1 · s e t / d e z 0 6 i s s n 1 6 46 - 4 9 9 0 o Manual escolar no Quadro da História Cultural: para uma historiografia do manual escolar em Portugal Justino Magalhães faculdade de Psicologia e de Ciências da educação da universidade de Lisboa justinomagalhaes@fpce.ul.pt Resumo: Concomitantemente à construção de novos objectos epistémicos, a história cultural, tal como se desenvolveu no quadro de uma renovação historiográfica, a partir dos anos 80 do século XX, trouxe uma outra prerrogativa fundamental: a de fazer depender a deli- mitação e a compreensão do objecto da operação historiográfica enquanto acto epistémi- co total, reforçando uma idiossincrasia entre investigação e construção do objecto, por um lado, e fazendo emergir as noções de complexidade e multifactorialidade, por outro. neste sentido, a história do livro escolar opera-se, entre outros aspectos, por contrapo- sição ao livro, enquanto mercadoria e produto editorial, representando e configurando uma ordem cognoscente e uma marca autoral; por aproximação à realidade pedagógica e didáctica — posto que o livro escolar é o principal ordenador da cultura, da memória e da acção escolares; por inscrição na cultura escrita. Mas correlativamente a esta denomi- nação e inscrição, num quadro cultural e pedagógico mais amplos, o livro escolar, na sua internalidade, enquanto principal suporte da cultura escolar e produto de uma dialéctica entre discurso e episteme, sugere e carece de uma abordagem específica, com recurso à seriação e fazendo emergir uma etnohistoriografia em que sobressai um historicismo que tende a determinar o sentido e a orientação da investigação. neste texto, para além de procurar fazer jus a estas deambulações, procuro também afirmar uma linha de investigação sobre o livro escolar, que reconheça a sua especificida- de, mas que não deixe também de abrir-se a uma multifactorialidade e ao cruzamento de dimensões diacrónicas e sincrónicas. e isto, no quadro mais amplo de uma historiografia que integre o material, o cultural, o social, o escolar, o pedagógico, num complexo epis- témico que contemple o triângulo básico da história cultural: o livro, o texto, a leitura. Palavras-chave: manual escolar, cultura escolar, história cultural, etnohistoriografia. Justino, Magalhães (2006). o Manual escolar no Quadro da História Cultural. Para uma histo- riografia do manual escolar em Portugal. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 1, pp. 5-14. Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt 5
  • 8. a história do manual escolar tem-se desenvolvi- so, é uma combinatória de saber/ conhecimento/ do com base em três linhas de orientação, a que (in)formação. neste sentido, é nos planos da repre- correspondem perspectivas disciplinares diferen- sentação e da apropriação, isto é, do conhecimento ciadas: uma etno-história (o livro escolar como como saber e da informação como conhecimento, meio didáctico e pedagógico privilegiado na es- que a história dos manuais escolares constitui um truturação da cultura escolar); uma abordagem contributo fundamental para a história do livro. no quadro da história económica e social; uma tomados como informação, os manuais escolares abordagem no quadro da história cultural. a pos- apresentam uma internalidade, cujos planos básicos sibilidade de aplicação destas perspectivas sugere são a simbolização, a cognição, a semiótica, com- que a história do manual escolar, enquanto livro e preendendo as seguintes dimensões: os manuais objecto cultural, se alarga para além do projecto como leitura/ o leitor projectado, o leitor orientado; investigativo de dupla entrada (história económi- os manuais como estruturação e orientação do acto ca e história social) concebido e sistematizado por de ler e da experiência de leitura; os manuais esco- Lucien febvre. lares como intelecção/ acção; os manuais como sig- o manual escolar é um produto/ mercadoria com nificação e construção do mundo. também como profundas repercussões no domínio da sociologia representação dos campos epistémico e científico, do conhecimento; a sua construção como objecto pedagógico, sociológico antropológico, os manuais produto/ cultural é também uma questão da ordem escolares constituem um caso particular no quadro do saber; da ordem do livro e da ordem da cognição. mais amplo da cultura escrita. uma epistemologia do manual escolar constitui um fazer a história do manual escolar é indagar da desafio conceptual, cuja complexidade, extensível à génese, natureza, simbolização e significação mais história do livro, se particulariza, em síntese, numa profundas do saber e do conhecimento; é indagar dialéctica entre discurso e episteme. Há no livro, e da materialidade e da significação do(s) livro(s) muito particularmente no manual escolar, dimen- como texto, enquanto ordem (suporte e unidade) sões de natureza epistémica e gnoseológica, dimen- do saber e do conhecimento; é indagar, ainda, do sões de natureza científica e discursiva, dimensões livro como discurso (configuração, forma/ estru- de natureza socio-antropológica, com referência à tura, especialização, autoria); é, por fim, indagar pedagogia e à psicologia, que não se confinam ao do saber como conhecimento e do conhecimento documentalismo e à biblioteconomia. como (in)formação. Meio didáctico e símbolo do campo pedagógico, em tese e radicalizando, pode admitir-se que o o manual escolar, cuja produção corresponde a uma manual escolar apresenta uma sobreposição entre configuração complexa entre texto, forma e discur- texto e conhecimento, entre escrita e leitura, pois sísifo 1 | justino magalhães | o manual escolar no quadro da história cultur al
  • 9. que a lógica da sua construção é a da negação, ou pecificidade. em tese, um manual da autoria de um melhor, a da não legitimação da interpretação, como cientista, de um literato, de um professor, ou um processo cognoscente. Por outras palavras, no qua- manual de unidade curricular (temática e didáctico- dro dos manuais escolares, o grau de liberdade de -pedagógica), ou, ainda, um manual/ compilação interpretação, com base em operações complexas de lições ou compósito de textos, informam e en- de hermenêutica, não só não é admitido a priori, formam diferenciadamente a leitura, perspectivan- como não é legitimado a posteriori. Se há lugar a do visões de mundo, igualmente diferenciadas. variações de leitura, estas são acolhidas ou como Sem o reconhecimento deste postulado, não se falhas resultantes da incapacidade e dos condicio- justificaria uma abordagem específica dos manuais, nalismos do leitor, ou como actos perversos e ideo- no quadro mais geral do texto, do livro e da leitu- lógicos. num caso como noutro, jamais deverão ser ra — ou seja, no quadro da cultura escrita. neste objecto de legitimação. sentido, a historiografia do manual escolar é um Qual a configuração do manual para assegurar exercício que, recuperando uma base importante (prevenir) uma (uni)versão da leitura? Se tomarmos da biblioteconomia, se orienta para a ensaística e esta pergunta como geradora de uma historiografia para a (re)conceptualização, no quadro da história dos manuais escolares, a resposta corresponderá cultural. aos seguintes planos de abordagem: o manual escolar tem uma materialidade; espé- a) em conformidade com a especialidade dos cime e produto autoral, editorial, mercantil, ele é discursos, os manuais podem ser inventariados, se- mercadoria e produto industrializado e comercia- riados, classificados e apresentados por domínios lizado, com características próprias e que cumpre científicos que constituem áreas do conhecimento. objectivos específicos nos planos científico, social É esta a função central da biblioteconomia, no âm- e cultural. os seus modos de produção e de cir- bito da qual se desenvolveram sistemas classificati- culação envolvem uma cadeia de agentes e estão vos, descritivos, informativos e expansivos, como o condicionados por uma série de prerrogativas: di- sistema universal Cdu. mensões autorais; técnicas e materiais de fabrico b) apresentando marcas de adequação (configu- e reprodução; processos e percursos produtivos; racional, gnoseológíca, discursiva) ao destinatário, circunstâncias e condicionalismos de comerciali- e inscrevendo-se de forma operacional num momen- zação, circulação, difusão, acesso. neste quadro, a to específico do processo de ensino/ aprendizagem, abordagem a partir de uma economia alargada não os manuais podem, em regra, ser ordenados/ hie- pode deixar de incluir uma tecnologia da produ- rarquizados do simples para o complexo, em con- ção, constituída por factores relativos a: locais; li- formidade com a adequação didáctico-pedagógica. cenciamentos e patentes; direitos de autor e de pro- c) Podem ainda os manuais ser ordenados/ hie- priedade; circulação e reprodução dos originais; rarquizados, tomando como referência a natureza e mecanização, estilização e/ ou originalidade, nos o estatuto epistémico do texto, ou seja, no quadro planos tipográfico, editorial, autoral e estilístico. o da enciclopédia universal do saber: tratados, súmu- estudo sócio-económico dos processos de produ- las, mementos, rudimentos, cartilha, caderno. ção e de distribuição alarga-se, por consequência, dos aspectos estritamente económicos, financeiros e técnicos a factores de agenciamento, graus de es- tomando a leitura como referente, acção e processo, pecialização e de profissionalização, organização, suas perspectivas, suas marcas indutoras e ordena- formas de controlo e de poder. doras (através da constituição de uma combinató- Mas o mercado do livro escolar, para além dos ria que configure e relacione factores/ categorias de aspectos económicos e sociais de comercialização, autoria, com as categorias científico/ curriculares, distribuição, circulação, aquisição, empréstimo, é com as categorias relativas à forma/ estrutura, com também afectado por factores de regulação e pelas as categorias relativas à função/ lugar no acto peda- circunstâncias históricas no que se refere às polí- gógico/ didáctico), os manuais podem ser inventa- ticas curriculares e à mediatização do acesso por riados, ordenados, seriados e analisados na sua es- intervenção das instituições escolares e dos pro- sísifo 1 | justino magalhães | o manual escolar no quadro da história cultur al 7
  • 10. fessores, entre outros. objecto de contrafacção, de lação do livro escolar, seus métodos e formas de orga- censura e de controlo, o livro em geral, e o manual nização, mobilização, profissionalização, associação; escolar em particular, não obstante as políticas de 2) análise, caracterização e avaliação das inter- protecção dos direitos de autoria, reedição, tradu- textualidades, bases científico-culturais, recursos ção, adaptação, e a existência de censura prévia à linguísticos e meta-narrativos. publicação e à mediatização, não se apresentam É a combinação destas marcas, umas respeitan- isentos de falsificação, duplicação, plágio. do a locais, espaços e tempos definidos e outras Com efeito, no caso particular dos manuais esco- reportando-se a um futuro projectado e imaginado, lares, foi fundamentalmente para impedir a elevada que fundamenta, povoa e hierarquiza a informação frequência de infracções aos direitos de autor e para verbal, gráfica e objectual dos manuais escolares. assegurar a normalização e a adequação da informa- Principal meio de informação, conhecimento e ção aos diferentes tipos de leitor, que, à existência de legitimação da cultura escrita e da acção escolar, censura prévia, foram associados outros meios orgâ- o manual, não obstante a sua função didáctico- nicos de controlo de circulação e da utilização. São -pedagógica, apresenta uma evolução em boa parte organismos que se regem por normas que respeitam análoga à história geral do livro, no que se refere à à edição, à mercantilização, às formas de expressão, ordenação e ao significado como veículo do saber e sua natureza e adequação aos destinatários, nos pla- do conhecimento, mas ajusta-se aos circunstancia- nos cognitivo, moral e ideológico, como ainda ao lismos e às prerrogativas das políticas da educação. rigor científico e discursivo dos conteúdos. Com efeito, analisado em si mesmo e como repre- Circunstâncias históricas houve, contudo, em sentação da cultura, do campo e da acção escolares, que a aplicação destes instrumentos de regulação o manual apresenta, nos planos sócio-económico da não foi suficiente para a superação dos condiciona- circulação, da difusão e da apropriação, uma espe- lismos sócio-económicos. É o que pode inferir-se ao cificidade que para ser assinalada necessita de uma tomar como exemplo a situação das escolas portu- adequação dos critérios gerais da biblioteconomia. guesas quando das inspecções gerais realizadas em É que, reafirme-se, se, no quadro da bibliote- 1863 e em 1875. uma parte muito significativa das conomia e da epistemologia, os manuais escolares escolas elementares então inspeccionadas utilizava podem, pelas suas características gerais, constituir livros que não estavam incluídos na listagem dos um único género bibliográfico, já tomados na sua manuais recomendados pelo Conselho Superior de especificidade apresentam uma grande diversidade instrução Pública. dado que, segundo o testemu- de tipos. Para o núcleo duro da biblioteconomia, nho dos professores e dos inspectores, esta situa- designadamente no que respeita a informação au- ção se devia fundamentalmente a razões de carácter toral, editorial e ramo/ domínio do conhecimento, económico, está-se perante irregularidades que, o manual escolar não constitui um caso particular, apesar de não constituírem um desvio estratégico sendo habitualmente tratado no quadro geral das ao cumprimento das recomendações superiores, normas e das práticas de cada sistema de classifi- não deixavam de ser frequentes. os livros mais cação. todavia, na medida em que simboliza uma usados eram, com efeito, aqueles livros ou manuais construção cultural, estrutura o acto do conheci- que existiam nas famílias ou nas escolas, ou ainda mento, materializa a relação pedagógica e configura aqueles que o professor detinha e emprestava aos o campo epistémico-pedagógico da cultura escolar, alunos. também o critério da redução dos custos o manual constitui um caso particular da produção de produção foi, em diversas circunstâncias, utili- bibliográfica e desafia a uma historiografia específi- zado para justificar o recurso ao livro único. ca. o reconhecimento da complementaridade entre ainda nos planos económico e social há dimen- a história do livro e a história do livro escolar justi- sões de natureza sócio-profissional, que podem fica uma abordagem serial dos manuais. estruturar-se com base em dois eixos fundamentais: 1) inventário, descrição e hierarquização dos agen- tes e dos segmentos sócio-profissionais envolvidos a historiografia dos manuais escolares integra a his- nos processos de autoria, legitimação, edição e circu- tória geral do livro e da leitura, pelo que a sua parti- 8 sísifo 1 | justino magalhães | o manual escolar no quadro da história cultur al
  • 11. cularização não dá lugar a uma historiografia a dois É por consequência como exemplo de adap- níveis — o da generalidade e o da especificidade. no tação dos conteúdos, teorias e conceitos de uma entanto, como a inclusão dos manuais no quadro da matriz científica pura a uma aplicação à realidade história cultural, especificamente nos domínios da escolar, em primeiro lugar e, como representação história do livro e da leitura, não esgota a historio- e forma de acesso às práticas de ler e dar a ler, em grafia do manual, não pode deixar de se perguntar o segundo, que os manuais escolares constituem um que acrescenta a história do manual à história do li- contributo fundamental, se não único, para a histó- vro e da leitura? os fenómenos e, por força de razão, ria cultural. os factos culturais ou pedagógicos são construções as teorias da estética da recepção vieram con- sócio-históricas que contêm uma materialidade, uma ferir ao leitor o estatuto de factor determinante do representação, um agenciamento e uma apropriação. acto de ler, valorizando os processos de aprendiza- Será na medida em que os manuais respeitem e se gem e de apropriação como sendo os que melhor adaptem à natureza profunda da realidade educativa caracterizam a leitura enquanto processo educati- que eles constituem um objecto específico no quadro vo, e permitindo compreender, explicar e avaliar as da história cultural e, por consequência, no quadro diferentes formas de recepção e de uso das mensa- da história do livro e da leitura. gens escritas. neste contexto, o estudo serial dos tomada numa acepção dinâmica e no sentido manuais escolares, inventariados e ordenados por mais genérico, a cultura, muito especificamente a critérios que permitam caracterizar, hierarquizar cultura escrita, é uma acção complexa de diálogo e comparar os diferentes graus de complexificação e de (in)formação, com base num texto, suportado e aprofundamento do acto de conhecer, por acção por um discurso/ livro, cuja mensagem se transmi- do leitor/ aprendiz, e as diferentes atitudes e formas te e é captada/ apropriada pela leitura. texto, livro de implicação e de formação/ mediatização do pro- e leitura são, deste modo, os elementos básicos da fessor e do animador de leitura, a que acresçam o cultura escrita e correspondem a uma acção educa- registo e a análise dos diferentes tipos de manuais tiva. as operações biblioteconómicas de inventário quanto à estrutura, à composição, à autoria, é um dos livros, autoria dos textos e classificação dos dis- contributo fundamental para o esclarecimento de cursos por domínios científicos e níveis do conhe- algumas das questões mais complexas e profundas cimento, têm-se revelado suficientes para uma inte- da história cultural, nas suas vertentes dinâmica e lecção e uma racionalidade das práticas culturais, evolutiva. no que respeita aos planos da produção, represen- o reconhecimento da especificidade dos manu- tação e circulação do livro. aliás, a aproximação ao ais, enquanto produto cultural e objecto do conhe- livro escolar permite ordenar os textos por graus de cimento e de divulgação/ formação, permite refe- dificuldade e de complexidade, quanto à organiza- renciar e esclarecer a conflitualidade (articulação/ ção e transmissão da mensagem, como também por distinção) entre os critérios que presidem às clas- ordem de aprofundamento, quanto à produção do sificações gnoseológicas e às classificações biblio- saber e aos domínios do conhecimento. teconómicas. Com efeito, é à luz das primeiras que no entanto, é no contexto da leitura orientada, a designação manual ganha sentido em si mesma, e formas, práticas e metamorfoses do leitor, que a his- que a vasta panóplia de tipos de manuais se ordena tória cultural beneficia com a abertura ao caso espe- e articula, constituindo, pela natureza dos textos e cífico dos manuais escolares. do lado da produção, pela orgânica dos livros, um produto cultural e um autoria, edição e circulação, os manuais escolares, objecto epistémico específicos — o domínio cien- ainda que podendo apresentar marcas específicas, tífico da manualística. É, de igual modo, o estudo não constituem uma boa referência biblioteconómi- criterioso dos diversos tipos de manuais que per- ca, pois que tais variações resultam frequentemente mite uma aproximação às formas de uso, às práti- de deficiências de autoria e de falhas quanto à pro- cas de ler e dar a ler, aos comportamentos cognos- priedade intelectual, devidas, em regra, à adapta- centes do leitor e das comunidades de leitores, aos ção dos conteúdos às capacidades dos leitores e aos graus de liberdade de interpretação, aos processos objectivos da acção escolar. de variação de leituras, aos planos de legitimação sísifo 1 | justino magalhães | o manual escolar no quadro da história cultur al 9
  • 12. das possíveis versões de texto, enfim, à interacção a uma pragmática que integra de forma articulada simbólica. finalidades de diferente natureza e uma diversida- de de facetas quanto à morfologia e ao conteúdo, os manuais escolares constituem um género bibliográ- esse é o vasto quadro em que ganha sentido o pro- fico específico, cuja configuração se traduz numa cesso de construção de séries, informatizadas ou diversidade de tipos. não, bancos remissivos e comparativos dos diver- neste sentido, e contrariando alguns dos cri- sos tipos de manuais escolares, entre si, com ou- térios biblioteconómicos, é possível admitir como tros tipos de manuais e com o livro em geral. Mais livro um manual de tamanho reduzido, porventura que tomar o manual escolar como uma aplicação e com menos de quarenta páginas, mas que corres- uma especificação da história do livro e da leitura, ponde a uma unidade temática, pedagógica ou sim- a construção de séries progressivas, interactivas, plesmente curricular. Pertencendo a um mesmo gé- gradativas e selectivas são um ponto de partida e nero, os diversos tipos de manuais traduzem o grau um referencial fundamental para a história e para a de orientação do leitor e de complementaridade en- historiografia do livro e da leitura. Radicalizando, tre as dimensões científica, curricular, didáctica. poder-se-á dizer que o romance literário (ainda que História de uma mercadoria e de um modo de a sua diegese se traduza numa configuração pluri- produção, a história do livro como a do manual facetada que ordena e dá sentido ao acto e à expe- escolar são também a história de arbítrios e confli- riência da leitura), por não apresentar, nem na sua tualidades culturais, de grupos, meios e processos concepção, nem na sua apropriação, uma orienta- sócio-culturais. de entre uns e outros, estes últimos ção pedagógica e didáctica explícitas, está no ex- são os mais estudados e porventura os mais signifi- tremo oposto ao do manual escolar, se colocados cativos e conhecidos, nos planos da hierarquia e no num eixo continuum. Partindo do manual esco- exercício da hegemonia de poder, como ainda nos lar, a recíproca não é contudo verdadeira, já que o planos de definição e de relacionamento entre os do- aprendiz/ leitor pode colher conhecimentos e infor- mínios público e privado, urbano e rural. Com efei- mações ética e substancialmente relevantes e signi- to, seja pelo aparato burocrático em que mergulham ficativos, lendo um bom romance literário, sem que no decurso dos processos de produção, legitimação, este assuma estatuto de manual. ou seja, também aprovação e leccionação, seja pela sua centralidade o romance literário, na sua configuração, na sua no interior da cultura e da acção escolares, uma das linguagem, contextualização e desenvolvimento da marcas sócio-culturais mais relevantes quando se acção, procura de harmonização e de implicação do analisam os manuais escolares é a explicitação de leitor na construção e no desenlace da intriga, não juízos sobre conteúdos, lugares, figuras ou perso- contraria, em absoluto, as marcas estruturantes do nagens. Subjazem aos manuais escolares lógicas de manual escolar, sendo assim possível estabelecer autoridade e de verdade que não são comuns a ou- um continuum que vai do romance ao manual. tros livros ou produtos culturais, mesmo no interior Passa-se com o livro um processo analógico ao da cultura escolar. o manual escolar, mais que um das disciplinas escolares. foi na medida em que meio de aculturação e de alteridade, é factor de afir- foram correspondendo às necessidades, às prer- mação e de dominação cultural. rogativas e às circunstâncias históricas da cultura em Portugal, por exemplo, as Cartilhas, como escolar e da pedagogia, em geral, que os diversos os Manuais e Compêndios escolares (estes últimos ramos do saber se estruturaram em disciplinas cur- já no decurso do século Xviii), foram produzidos riculares. idêntico processo se operou na evolução no interior de corporações ou de estruturas notá- histórica do livro. veis, como a Corte, a universidade de Coimbra, as a abordagem serial do livro escolar visa tratá-lo dioceses, as ordens Religiosas e Monásticas, os enquanto produto cultural orientado para um sujei- Mestres Régios. desde o século Xviii que há facto- to leitor, em processo de formação e de crescimen- res de natureza corporativa e de controlo, que exer- to, e cuja actividade de leitura deverá ser orientada cem determinado tipo de pressão sobre a produção, e dirigida para determinados fins. Correspondendo aprovação e circulação dos manuais escolares, e ain- 10 sísifo 1 | justino magalhães | o manual escolar no quadro da história cultur al
  • 13. da sobre como historiá-los. Há, por outro lado, uma historiografia total do livro, uma vez que permanece sociologia de utilização, circulação e apropriação centrada na produção e na oferta, circunscrevendo- que não se esgota nos circuitos produtivos. -se ao tipo de relações culturais que se estabele- cem (ou é esperado estabelecerem-se) entre o sec- tor sócio-profissional dos autores/ editores e os tal como se referiu, há uma etno-historiografia do públicos-alvo. não permite, se não por inferência, livro e do manual escolar, cuja centração em facto- passar para o lado da procura, da utilização e da res de natureza económica e social visa inventariar apropriação. tal desafio, que, como tem vindo a as- e compreender, através da constituição de grandes sinalar Roger Chartier, constitui um dos objectivos listagens e séries, a especificidade da natureza e da da sociologia dos textos enquanto condição de in- história do livro como produto cultural e bem co- tegração da história do livro e da leitura na história merciável — catálogos de livrarias, editoras e distri- cultural, radica numa análise das variações formais buidoras; catálogos de bibliotecas; índices de livros de um texto, seja no que estas contenham de ino- censurados, proibidos, doados ou inventariados; vação, seja no que contenham de acomodação e de colecções. É uma historiografia que se organiza adaptação a novos leitores e no interior das comu- pela articulação de duas lógicas diferenciadas: nidades de leitores. afinal, o triângulo básico da · a seriação transversal, a partir de um referente história cultural: o livro, o texto, a leitura. — uma instituição cultural ou educativa, uma livra- Como passar para o leitor e para a leitura, atra- ria, uma biblioteca, um fundo documental, uma bi- vés de investigações centradas na produção, na blioteca particular; circulação e na oferta do texto e do livro? a uma · a seriação vertical, orientada para um histori- estética da produção e da representação subjaz uma cismo evolutivo e diacrónico, dentro de um mesmo estética da recepção: como (re)conhecê-la e como eixo condutor temático ou material — o manual relacioná-las? É aqui que novos desafios se levan- escolar, o livro de horas, as bibliotecas populares, tam à historiografia do manual escolar. enquanto continuum coleccionável, de livros ou de Pelas suas marcas de orientação de leitura, pro- títulos, progressivo e expansivo, nos planos do co- jecção e conhecimento do público alvo, e pela nor- nhecimento e da informação. malização do acto de ler (práticas e experiências a aplicação destas lógicas ao manual escolar de leitura) no quadro da cultura escolar, o manual tem originado projectos de investigação em grande constituiria um segmento da produção bibliográfi- escala, que para além de uma inventariação siste- ca em que se poderiam tomar por inteiramente co- mática, têm fomentado a construção do domínio nhecidas as características e os produtos da leitura científico da manualística e permitem abordagens e da apropriação. todavia, nada mais enganoso e comparativas. porventura mais difícil de investigar. no quadro nesse contexto, a historiografia francesa, desig- da cultura escolar, as actividades de leitura são me- nadamente a partir do projecto eMManueLLe, diatizadas pelo professor, pelo grupo de alunos, como mais recentemente a historiografia ibero- são objectivadas em consonância com os fins e as -americana, através do projecto ManeS, fomenta- funções da escola e da escolarização. Como inferir ram grandes inventários, como base da manualísti- pelos exames e pelas aquisições de aprendizagem ca escolar e educacional. na origem destes inven- as formas e os significados da leitura? ainda que tários estão uma ficha identitária de cada espécime as práticas de aprendizagem e de didáctica escola- publicado e uma tabela criterial que permite censar res sejam, em regra, uma aplicação de lecto-escrita, e discriminar o universo dos exemplares colecta- que relação pedagógica e antropológica subjaz de dos, classificando-os quanto ao grau de especiali- facto entre a leitura e a escrita escolares? Se as mar- zação, à função, ao estatuto e ao uso como manual cas de orientação de leitura constantes dos manuais escolar. só indirectamente podem ser tomadas como infor- a abordagem a partir da biblioteconomia, ain- mação sobre as formas e as práticas de leitura, tam- da que exaustiva e com grande instrumentalização bém a transferência da leitura para a escrita escolar material, não responde todavia aos desafios de uma (ou a regressão da escrita escolar para a leitura) só sísifo 1 | justino magalhães | o manual escolar no quadro da história cultur al 11
  • 14. indirectamente se poderá realizar. entre o texto e a bases de dados biblioteconómicas existentes nos criança está o professor; entre o professor e o texto, vários fundos documentais? no plano prático, esta está o programa. é a questão crucial. a leitura escolar é uma leitura instrumentalizada. de facto, as bases biblioteconómicas existentes assim, em que medida o manual é portador de mar- nas bibliotecas apenas contemplam uma projecção cas que indiciam e orientam essa instrumentaliza- da procura, a partir da oferta pormenorizadamente ção? no seu modo de construção, como na orienta- referida, mas não se abrem à apropriação. Por seu ção para um destinatário, o manual escolar distingue- lado, algumas das dimensões básicas de manualís- -se de outros livros porque apresenta orientações tica que têm vindo a ser mais trabalhadas são as se- explícitas relativamente ao comportamento do leitor. guintes: título, autor, leitor/ leitores, editor, matéria o manual escolar é pro-activo, disciplinando o acto (classificação temática), género — texto/ discurso de ler. Como recolher, caracterizar e organizar essas (científico/ humanístico, didáctico/ pedagógico), marcas, no quadro de uma investigação? e, no en- factores e agências de legitimação, formas de uso, tanto, são estas marcas que conferem um estatuto ao divulgação e aquisição. trata-se de um conjunto de manual escolar e o situam como ponte e como me- descritores pouco habituais no quadro da bibliote- diatização entre a leitura e a pedagogia. conomia e que não se satisfazem com uma amplia- a abordagem serial com recurso a uma herme- ção do número de campos e com uma maior atenção nêutica suportada nessa mesma abordagem torna aos diferentes tipos de manual, mecanismos de edi- possível construir grandes categorias analíticas que ção, reedição e circulação, formas de legitimação. permitem incluir e sobrepor-se à casuística escolar. no entanto, e de igual modo, nenhuma daquelas É no quadro das grandes construções seriais que se bases faz referência às diferentes versões de um mes- torna possível projectar uma territorialidade e uma mo texto e menos ainda se revelam sensíveis aos me- temporalidade que subjazem a determinadas expe- canismos de condicionamento e de orientação sobre riências pedagógicas, e, ainda, que se torna possí- as formas de uso e de apropriação. Como referir as vel acompanhar e traçar a geografia, o itinerário e diferentes configurações de um mesmo manual esco- o destino de um modelo pedagógico, de um autor, lar? o que é texto de autor e texto adaptado? Qual ou de um livro escolar. É esse trabalho comparativo o papel da ilustração? e qual o papel dos suportes que o recurso a bases de dados, por grandes conti- de leitura e de verificação (questionários, ordem dos guidades geográficas e sócio-culturais e por gran- textos)? estas são algumas questões, entre outras des correntes pedagógicas, permitirão obter. possíveis, a colocar aquando do estudo dos manuais Por contraponto a esta generalização e a esta pro- escolares, no interior de uma história cultural. cura das principais tendências, só a casuística, foca- lizada em observações aplicadas a certos públicos, a certas instituições, a certos territórios, a certas a progressiva especialização da historiografia do li- circunstâncias geográfico-históricas e às utilizações vro ao longo das últimas décadas tem ficado assina- específicas de um texto ou de um manual, permite lada por linhas de investigação de carácter sistemá- reconstituir cenas e experiências de leitura e falar de tico, nomeadamente a partir do institute national apropriação. É a articulação entre a particulariza- de Recherche Pédagogique (frança). entre as pro- ção e as grandes categorias da abordagem serial que duções historiográficas de maior relevo, para além permite uma aproximação complexa e aprofundada de diversos catálogos em línguas francesa e inglesa, à história dos manuais, do livro e da leitura. relevam: Histoire d’Édition Française (4 volumes); e se o estudo de caso se torna necessário para Historia Ilustrada del Libro Escolar en España uma abordagem consequente da sociologia da lei- (2 volumes). tura, enquanto acto do conhecimento e da experi- em Portugal, o projecto eMe organizado a par- ência de leitura, enquanto configuração antropoló- tir da universidade do Minho, permitiu uma inven- gica, enquanto vestígio de uma experiência didác- tariação dos manuais de Língua Portuguesa e de tica concreta, em que medida, para a consecução filosofia existentes na Biblioteca Pública de Braga destes objectivos, se torna necessário ampliar as e na Biblioteca do antigo Liceu Sá de Miranda. 12 sísifo 1 | justino magalhães | o manual escolar no quadro da história cultur al
  • 15. ainda no âmbito deste projecto, tiveram lugar im- cos tradicionais. Por um vasto período, o manual portantes eventos culturais e contactos internacio- escolar cumpriu uma função enciclopédica, con- nais que deram origem a estudos e a publicações tendo todas as matérias que não apenas constituem sobre as diversas dimensões epistemológicas do a educação básica mas cuja utilidade e pregnância manual escolar: gnoseológica, linguística e discur- se prolongam pela vida, podendo ser consultado a siva, didáctica, sociológica, historiográfica. o ma- cada momento. nual escolar tem sido, além disso, objecto de várias na transição do século XiX, correlativamente ao dissertações de doutoramento e de mestrado, no desenvolvimento da escola nova, que contém uma âmbito das quais aliás têm sido realizados inven- ampliação, uma diversificação e uma complexifica- tários de diverso tipo, com vista a uma sistemati- ção da pedagogia escolar (reforçando uma pedago- zação, por graus e níveis de ensino, por domínios gia activa, com base no dizer e no fazer), o manual do conhecimento, por formatos e tipos discursivos. escolar de leitura, como também os manuais espe- uma terceira aproximação ao manual escolar de- cíficos, constituem uma iniciação, uma abertura de corre do estudo dos meios, dos modelos e dos pro- caminhos, uma estruturação básica do raciocínio, cessos de ensino-aprendizagem aplicados na esco- com vista ao alargamento e ao aprofundamento da la portuguesa. estas últimas abordagens têm sido informação, remetendo para outras leituras e para elaboradas com base nos relatórios da inspecção e outras fontes do conhecimento. Por um tempo, o dos órgãos de governo das escolas ou têm partido estatuto e a função do manual escolar surgem as- das listagens dos organismos de regulação e legi- sumidamente relativizadas e circunscritas, quer no timação, nomeadamente: a Real Mesa Censória, o âmbito de um processo progressivo do conheci- Conselho Superior de instrução Pública, a Junta mento e da formação, quer enquanto representação nacional de educação. e estruturação da cultura e da pedagogia escolares. neste último aspecto, há uma cultura escolar, de ritualização, gestualidade, socialização, formação, no que se refere ao ensino de Primeiras Letras e à que não é vertida para o manual, mas que, no en- instrução elementar, em Portugal, ainda que seja tanto, tende a ser, directa ou indirectamente, ho- possível referenciar vários inventários constantes mologada, contextualizada, metaprojectada por ele. de estudos sobre níveis de ensino e objectos didác- o manual escolar era uma das portas de entrada na ticos, não foi ainda elaborado um inventário crite- vida e na cultura. rioso e sistemático da manualística portuguesa. a progressiva sobreposição entre instrução e tomando como referência a instrução elemen- escolarização e entre escolarização e educação, nas tar, do mural para o manual enciclopédico e des- primeiras décadas do estado novo, tendo por ob- te para a manual de leitura e de leitura e escrita, o jectivo uma lógica basista e minimalista da escolari- percurso histórico do manual escolar corresponde, zação elementar, converteram o manual escolar em nos seus traços gerais, ao processo de escolariza- livro único e numa antropologia básica. o manual ção da sociedade portuguesa — da alfabetização escolar ordenava e permitia a interiorização de uma ao ensino Primário Complementar, instituindo-se visão sobre o mundo. o manual escolar antropolo- por fim uma escola elementar Graduada, corres- gizava o leitor/ aluno. pondendo a uma educação Primária/ fundamental a centralidade do manual escolar e a sua maior e posteriormente a um primeiro ciclo da educação ou menor didactização (alcançada através de ques- Básica. tionários, orientação geral, estruturação) consti- neste processo, o manual escolar tornou-se o tuem uma fonte de investigação sobre a realidade meio pedagógico central. na fase final do antigo pedagógica. tal investigação pode ser organizada Regime, sob o primado das Luzes, escola e manual pela via directa ou por uma via de desconstrução, escolar sobrepõem-se, uma situação que se altera pois que houve partes da cultura escolar que não no decurso do século XiX, à medida que o siste- foram objecto do manual, e a pedagogização do ma- ma escolar se estrutura e que a função da leitura se nual não se operou sempre da mesma forma e com autonomiza e reforça, face aos métodos catequísti- igual relevo na história da escolarização. sísifo 1 | justino magalhães | o manual escolar no quadro da história cultur al 13
  • 16. o estatuto do manual escolar confere-lhe um marcas de autoria e de autonomia dos professores peso fundamental na estruturação do pensamento, foram mais notórias, estas fases históricas são me- na conceptualização e no método de construção e nos nítidas, ainda que possam constituir ponto de apropriação do conhecimento. Como historiar o referência. estatuto do manual escolar? a partir dos enquadra- mentos legais? a partir da epistemologia dos sabe- res escolares e outros? a partir dos relatórios da É no quadro de uma etno-historiografia do manu- inspecção e de outros organismos de poder e de re- al escolar que têm vindo a ser elaboradas bases de gulação? optando por uma abordagem serial, qual dados que complementam e especificam os dados o valor epistémico das bases construídas a partir de natureza biblioteconómica. É uma historiografia dos catálogos de editores de autores? e a partir dos que, para além da inventariação e da caracteriza- fundos bibliográficos das instituições educativas ção do manual escolar, sua tipologia, seus modos ou, ainda, das bibliotecas públicas? de produção e de circulação, sua evolução, permite Como foi já referido, relativamente ao proces- conhecer e avaliar a função do manual como meio so de escolarização em Portugal, para os séculos didáctico e como representação do campo pedagó- Xviii, XiX e XX, e genericamente, o estatuto do gico. no entanto, uma aproximação aos domínios manual escolar sofreu algumas variações: da aplicação didáctico-pedagógica do manual, for- a) no quadro das Luzes e de uma leitura/ emu- mas de uso em situação de ensino-aprendizagem, lação, o manual escolar identifica-se com a escola, modos e níveis de apropriação, só se tem revelado como método e disciplina e, posteriormente, como possível através de estudos de caso. enciclopédia; a inscrição da história do manual escolar na his- b) no quadro de uma valorização da cultura es- tória cultural, com abertura, entre outros aspectos, crita como simbolização e acção, o manual escolar à produção/ conversão, à configuração dos diversos constitui uma iniciação, uma conceptualização, tipos de texto, em discurso didáctico/ pedagógico uma remissão; sob a forma de livro/ manual, à projecção e estru- c) num quadro estritamente (pre)formativo, o turação dos modos de ler e dos comportamentos manual escolar sob as modalidades de livro único e do leitor e, ainda, à caracterização e avaliação das unificado, funcionou como uma antropologia, uma formas de apropriação, desafia a uma epistemolo- visão total e organizada sobre o mundo. gia complexa que implica um cruzamento de dife- esta dialéctica evolutiva, mas também recur- rentes instrumentos metodológicos. esta operação siva em boa parte, pode ser referenciada ao pró- histórica é também uma rigorosa aplicação histo- prio enquadramento legal e à história da escola: a riográfica que articula de forma coerente e conse- primeira fase arrasta-se até ao terceiro quartel do quente o historicismo da cultura escrita, da cultura século XiX; a segunda fase marca os finais do sé- escolar e da escolarização, e o do lugar e da função culo XiX e a Primeira República; a terceira fase do livro escolar, com as conjunturas que assinalam marca o estado novo até à década de sessenta, rupturas, transformações e inflexões no sentido quando se observa uma progressiva tensão sobre histórico. enquanto objecto epistémico, cultural e o livro único. as práticas escolares, sobretudo no pedagógico, o livro escolar tem um percurso e um século XiX, assinalam muitas transgressões e uma tempo histórico próprios, cujos significado, senti- simplificação, se não mesmo uma reduzida utiliza- do e evolução, representação e apropriação se do- ção, do manual escolar. Relativamente ao ensino cumentam, compreendem, explicam e narram no secundário, liceal e técnico-profissional, onde as quadro da história cultural. 14 sísifo 1 | justino magalhães | o manual escolar no quadro da história cultur al
  • 17. s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 1 · s e t / d e z 0 6 i s s n 1 6 46 - 4 9 9 0 Bocage e a educação entre dois Séculos Rogério fernandes faculdade de Psicologia e de Ciências da educação da universidade de Lisboa rogerio.a.fernandes@sapo.pt Resumo: integrada nas comemorações do ii Centenário de Bocage, promovidas pela Câmara Mu- nicipal de Setúbal sob a direcção do Prof. daniel Pires, esta conferência visa evocar as estruturas de educação escolar existentes no período correspondente à vida do poeta e a evolução delas. de certa maneira, a sua função consiste no contributo que prestam à leitura da biografia de Bocage, apesar de a sua carreira académica ter sido muito limitada, já que não frequentou a universidade de Coimbra, tendo ingressado, em compensação, numa escola de formação profissional do tipo da academia de Guardas-Marinha. a vida intelectual de Bocage, designadamente a actividade literária demonstra, por outro lado, que a sua formação cultural decorreu por assim dizer ao lado da escola, em- bora o domínio do Latim e da Língua francesa, (aquisições escolares) lhe tenham permi- tido o desempenho de outras actividades, tais como, por exemplo, a de tradutor. os seus versos revelam, ainda que a uma análise pouco aprofundada, uma cultura filosófica que se pode considerar rara na sua época. eis o que também tentamos aprofundar, na convicção de que a formação extra-escolar, livre das limitações da ideologia oficial, constituía em certos casos o elemento mais rele- vante dos fenómenos de contra-cultura. Palavras-chave: Reformas pombalinas, educação doméstica, educação escolar, academia de Guardas- -Marinhas. fernandes, Rogério (2006). Bocage e a educação entre dois Séculos. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 1, pp. 15-26. Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt 15
  • 18. na1 transição do século Xviii para o século XiX, do Reino, o marquês de Pombal e conde de oeiras. Portugal seguiu o caminho da maioria das monar- o estado absoluto teve nesse período a sua primei- quias europeias. exceptuando os factos singulares ra consolidação, tendo sabido ler no período de agi- da Revolução americana e, em seguida, da grande tação de ideias que precedeu a Revolução de 1789 os revolução francesa de 1789, os anos terminais do sinais indiciadores dessa mesma revolução. assim, século Xviii caracterizam-se pela adesão ao cha- chamou a si todas as funções sociais, sobrepondo- mado despotismo esclarecido, isto é à teoria de que -se a todas as classes, em primeiro lugar à nobreza a fundação de estados nacionais é essencialmente tradicional e procurando apoiar-se na burguesia. um processo de concentração do Poder no interior a educação foi uma das áreas em que o processo da realeza e de construção, através da educação e de afirmação do Poder central foi mais claro e ter- da técnica, de um espaço económico baseado no minante. comércio. nos finais de Setecentos não achamos em Portu- gal a presença activa de nenhum dos grandes projec- a educação doméstica /ensino privado tos educativos constitutivos dos ideais dos enciclo- pedistas revolucionários. Se existiam círculos cul- o ensino doméstico de Primeiras Letras, ou seja o turais onde os nomes e algumas obras de Rousseau Ler, escrever e Contar, além da formação doutrinal e de outros iluministas não eram desconhecidos, a do Catecismo religioso e civil, equivalente ao que sua leitura exigia em Portugal uma rigorosa clandes- mais tarde viria a chamar-se instrução Primária, tinidade, contrariamente ao que se passava em ou- era ministrado eventualmente por um preceptor tras monarquias ilustradas que ocasionalmente lhes particular, (pelo capelão, por um elemento da famí- recrutavam os serviços e os consultavam em ordem lia ou por um mestre de Primeiras Letras, também à consecução de novos planos político-sociais. em chamado de Meninos, que desse aulas diariamente Portugal, o estado absoluto seguiu outros percur- em casa dos alunos onde se deslocava). sos ao longo da segunda metade de Setecentos, ins- esta modalidade de educação e instrução constituía talando organismos de controlo da vida dos cida- o primeiro escalão do sistema de ensino privado. dãos, das suas leituras e dos seus pensamentos, não em paralelo com este modelo havia o que ao hesitando em lançar nas enxovias os que fossem tempo se chamava “ensino público”, isto é, aque- tidos como os mais perigosos e ousassem pôr em le que era leccionado em intenção de um ou mais causa o régio Poder. no nosso país a era da concen- alunos fora das respectivas moradas. os discípu- tração dos Poderes atinge o seu vértice com d. José los frequentariam então uma instituição educativa i e com o seu Secretário de estado dos negócios por que era responsável o docente seu fundador. 1 sísifo 1 | rogério fernandes | bocage e a educação entre dois séculos
  • 19. não havendo, nesse tempo, edifícios escolares abrangiam insuficientemente matérias tais como a construídos para aquela finalidade exclusiva, as au- Língua materna. a língua de comunicação era o las decorriam nas casas dos mestres ou mestras, ou Latim, por vezes deteriorado para atender a situa- em locais menos adequados, dependendo da iden- ções que a língua latina não previra. além disso, tidade do professor, que às vezes acumulava a pro- em disciplinas como a Matemática e a física, os fissão com outras mais miseráveis. Jesuítas não acompanhavam os desenvolvimentos no regime de ensino particular nocturno, exis- científicos modernos, notadamente a experimenta- tiam também escolas destinadas a adolescentes e ção. assim, em Portugal os colégios jesuítas tinham adultos, nas quais se ensinava Caligrafia e aritmé- sido excelentes no século Xvi quanto ao ensino de tica Comercial. eram as “escolas de escrita e arit- humanidades mas entraram em decadência quan- mética”, especializadas naquelas duas matérias e do as ciências físicas, com Galileu e newton, e as dirigidas em regra por um calígrafo reputado. o seu matemáticas, com descartes e Leibniz, ganharam público eram os rapazes que pretendiam aperfeiçoar- preponderância sobre a cultura greco-latina2. -se nas duas disciplinas citadas ou o público adulto em contrapartida os colégios da Companhia de que trabalhava de dia nas repartições governamen- Jesus distinguiam-se quanto à organização. Quan- tais ou como caixeiro nas casas de comércio. do as turmas eram muito numerosas os Jesuítas desde o Concílio de trento, isto é desde o sé- dividiam-nas em grupos de dez (decúria), cada um culo Xvi, os bispos católicos tinham o dever de deles acompanhado por um monitor (decurião). velar pelo ensino do Catecismo e da Leitura, e de aos sábados havia competições entre esses grupos fiscalizarem os costumes e religiosidade dos mes- sob a forma de debates (sabatinas). os horários in- tres e mestras que exercessem a profissão docente, cluíam intervalos que se permitia fossem preenchi- concedendo-lhes ou não licença para ensinarem dos pela prática de jogos e exercícios físicos. um nas respectivas dioceses por determinados prazos dia por semana interrompiam-se as aulas com um renováveis. passeio no exterior da instituição, de preferência no além das matérias referenciadas, estes profis- campo. além disso, escreviam-se peças de teatro sionais ministravam, a nível secundário e de modo em Latim, imitando os modelos clássicos, levadas avulso, aulas de Gramática Latina, Gramática Gre- à cena por alunos e professores. Com a sua elabora- ga e Retórica. Mais tarde, seria acrescentado ao en- ção preenchiam-se as longas noites de inverno. sino destas disciplinas o de filosofia natural e Mo- os Jesuítas mantinham uma forte estruturação ral. Semelhantes matérias interessavam às famílias das actividades dos jovens. a disciplina imperava na medida em que constituíam um acréscimo de nesses colégios onde existia uma cadeia de coman- cultura pessoal ou mais provavelmente um prepa- do desde o director até aos professores. os alunos ratório do ingresso nas universidades de Coimbra eram obrigados a denunciar os colegas prevarica- ou de Évora. dores sob pena de serem considerados cúmplices. além da formação, com base na cultura clássica, e da endoutrinação religiosa, os Jesuítas formavam os colégios as crianças e os jovens para serem fiéis cristãos e cidadãos zelosos. um colégio jesuíta seguia um rit- finalmente é preciso referir o elemento mais im- mo de vida de teor concentracionário, firmado na portante do sistema escolar público. os principais obediência incondicional, na espionagem mútua e colégios do país eram dirigidos pelos Jesuítas. no na denúncia. a formação ministrada era a mais con- curso geral leccionavam-se disciplinas do que cha- corde com os ideais do antigo Regime. maríamos hoje “ensino secundário”, seguindo mé- os grandes competidores dos Jesuítas viriam a todos e compêndios próprios. ser, sob d. João v, os oratorianos, aos quais o so- os currículos escolares destes colégios, os berano concedeu um belíssimo edifício para colé- quais, apoiando-se financeiramente no legado de gio no parque das necessidades. Mais do que isso, um devoto se tornavam muitas vezes gratuitos, o rei presenteou-os com um laboratório de física, destinavam-se à formação na cultura clássica mas destinado à lição dos alunos e de público externo sísifo 1 | rogério fernandes | bocage e a educação entre dois séculos 17
  • 20. que se interessasse pelo experimentalismo, além de permitiu-lhe ter da vida uma visão moderna, obser- lhes conceder o direito a que os seus discípulos in- vando o que então se passava na europa opulenta e gressassem directamente na universidade sem que comparando a abundância externa com a pobreza tivessem de ser examinados pelos professores da indígena. era, de certo modo, um estrangeirado Companhia de Jesus3. político, a quem não era estranho um plano, em ao contrário das ordens religiosas, cujos co- grande parte pessoal, de recuperação do País. légios estavam instalados em edifícios de algum Pombal professava como filosofia económica o modo adequados às aulas, aos refeitórios, dormitó- mercantilismo. dada a incapacidade da indolente rios e enfermarias, os mestres e mestras de meni- nobreza lusitana para se lançar em empreendimen- nos/meninas dispunham apenas das casas de que tos económicos rentáveis — era mais cómodo viver eram arrendatários para leccionarem numa das à mesa do estado — e levando em conta a debili- suas divisões, quase nunca a mais salubre. em se- dade da burguesia nacional, designadamente das melhantes residências, havia casos em que os pro- classes comerciantes, Pombal atribuiu ao estado fessores recebiam em regime de internato um grupo central o papel de criar um sector económico me- de discípulos de um ou de outro sexo. as crianças, diante a fundação e controlo de um certo número residindo no interior do concelho em local distante de grandes companhias. da escola, ou impossível de percorrer duas vezes no a aplicação da política económica pombalina mesmo dia visto que tinham aulas de manhã e de principiou no Brasil cujo governo foi confiado a um tarde, ficavam sob protecção do seu mestre ou mes- dos seus irmãos. tra. era o que se chamava pensões. Pombal pretendia redefinir o papel do índio no processo de exploração colonial, usando a violência para forçar as populações ao trabalho agrícola cujos um ensino financiado pelos poderes municipais lucros fariam parte do mesmo sistema de explora- ção. tal processo incluía a distribuição e cultivo do ocorria, entretanto, que as Câmaras Municipais, território, além da sua eventual redivisão em fazen- prosseguindo uma política iniciada no século Xvi, das, ao mesmo passo que se propunha promover o financiassem eventualmente a actividade dos mes- ensino da Língua portuguesa, liquidando o tupi ou tres que tivessem escola pública, pagando-lhes em Língua Geral. esta política contrariava frontalmen- dinheiro ou em géneros a educação e instrução dos te a orientação dos Jesuítas, que se eximiam à di- filhos das famílias do concelho. em tais casos o en- fusão da Língua portuguesa e resistiam à aplicação sino seria gratuito, sendo absolutamente proibido das indicações emanadas da sede do Poder. aos professores cobrarem quaisquer quantias por a situação dos Jesuítas em Portugal agravara-se esse trabalho, excepto na hipótese de se tratar de quanto às suas responsabilidades no ensino devido crianças que vivessem fora do município. à publicação em 1746 de uma obra célebre: Verda- deiro Método de Estudar que tinha como autor um Padre Barbadinho, forma de cobrir o nome de Luís a reforma pombalina antónio verney, residente em Roma e crítico im- placável dos Jesuítas portugueses (Gomes, 1982). a situação da instrução pública seria alterada em um dos aspectos em que o conteúdo do livro aspectos essenciais após a subida de Pombal ao lu- deverá ter impressionado o seu principal leitor foi gar de Secretário de estado dos negócios do Reino. a crítica virulenta que dirigiu aos métodos e com- Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de oei- pêndios da Companhia de Jesus, embora numa das ras e Marquês de Pombal, provinha de uma nobre- passagens do seu livro ele tenha dito que se compa- za culturalmente afastada dos “Grandes”. no salão tibilizaria mais com os membros da Companhia de de seu avô discutia-se física experimental mais do Jesus se fossem italianos, o que sugere que os jesuítas que literatura. ao serviço da Coroa desempenhara portugueses eram particularmente rudes e incultos. as funções de embaixador em viena de Áustria e o conflito entre os Jesuítas e o Poder estalou em em seguida em Londres. a estada no estrangeiro 1759. aquela ordem religiosa foi expulsa do País 18 sísifo 1 | rogério fernandes | bocage e a educação entre dois séculos
  • 21. e proibidos todos os estudos que dirigisse, assim Régias Gratuitas de Ler, escrever e Contar, então como os compêndios de que os seus membros fos- fundadas, e ainda as cadeiras de filosofia Racional sem autores. alguns dos actos repressivos do Po- e Moral que passavam a figurar no elenco do se- der foram espectaculares. É o caso da extinção da cundário, ele próprio constituído pelas cadeiras de universidade de Évora, cuja supressão foi acom- Gramática Latina, Gramática Grega e Retórica. panhada de um cerco militar no quadro do qual o não foi intenção de Pombal assegurar o acesso encerramento da biblioteca parece ter tido laivos de todos ao ensino elementar. aos que trabalhavam dramáticos. nos campos e nas oficinas bastaria o ensino oral do as consequências desta política, ao nível edu- Catecismo. assim, o sistema educativo teve desde cacional, cifraram-se na concentração do ensino o início uma orientação excludente a que não era universitário em Coimbra e no desaparecimento alheia, por mais estranho que pareça, a opinião do que hoje denominamos “ensino secundário” coincidente de vários teóricos revolucionários e, nos colégios, já que os Jesuítas escassamente inter- quanto a Portugal, do médico Ribeiro Sanches, o feriam ou promoviam a alfabetização. Subsistiam célebre autor das Cartas sobre a educação da mo- apenas as escolas públicas de professores indepen- cidade, livro publicado em Paris, no ano de 1759, dentes e os ensinos domésticos. com o elogio das primeiras medidas educacionais os anos de 1759-1760 marcaram a primeira fase pombalinas. da fundação do ensino régio gratuito (hoje diría- Quanto ao ensino industrial manufactureiro, mos oficial) no nosso país. assinalaram também os esse far-se-ia nas próprias oficinas mediante apren- primeiros passos na construção de um sistema de dizados especificados nos alvarás dirigidos aos di- ensino. Sumariamente, essas disposições reformis- ferentes empresários. tas foram as seguintes: ademais, Pombal promoveu uma importante – Criação da aula de Comércio, ou seja um cur- reforma da universidade de Coimbra, à qual foram so de guarda-livros, a pedido dos comerciantes da acrescentadas duas novas escolas: através das quais praça de Lisboa; passou a existir uma licenciatura em Matemática e – instruções para os professores de Gramática outra em filosofia (Ciências físicas e naturais). Latina, Grega, Hebraica e de Retórica (definição tais instituições alinharam ao lado das faculdades dos programas, dos métodos dos manuais de ensi- tradicionais, cujos estatutos foram revistos, não só no obrigatórios); do ponto de vista dos currículos e conteúdos de en- – Reforma dos estudos das Línguas Latina, sino como também das práticas didácticas. Grega, Hebraica e da arte da Retórica; Quanto às coisas do mar, notemos que o minis- – Criação da função de director dos estudos, tro de d. José i aceitou o pedido da burguesia por- órgão de orientação e direcção estatal dos estudos; tuense no sentido de ser criada uma escola náutica – Criação de cadeiras gratuitas de Latim, Grego, na sua cidade, assegurando para o efeito dois bar- Retórica, e sua distribuição pelo país; cos armados de canhões, o que viria a ser feito em – Providências sobre o exercício dos professores 1761. nessa instituição formar-se-iam os oficiais de de Gramática e Retórica; Marinha e os Pilotos que permitiriam comboiar as – fundação do Colégio dos nobres, um interna- frotas comerciais constantemente atacadas no alto to de ensino secundário moderno destinado exclu- mar pelos piratas. a instituição era administrada sivamente à nobreza. pela Companhia de vinhos do alto douro, que Mas a reforma pombalina não se ficaria por a propusera ao Governo, interessada como estava aqui. em 1772 foi criado um imposto sobre a produ- em proteger a actividade marítima ligada à expor- ção de vinho, ou sobre a aguardente ou o vinagre. tação. nas possessões ultramarinas em que não fossem nestas circunstâncias, Pombal não criou pro- produzidas bebidas alcoólicas seria taxada a carne priamente nenhuma escola especializada de futu- dos talhos. Com o produto desse imposto o esta- ros oficiais da marinha mercante ou da marinha de do propunha-se alargar o pagamento dos professo- guerra. Limitou-se a formar o Corpo dos Guardas- res que asseguravam o funcionamento de escolas -Marinhas, que não deveriam exceder o número de sísifo 1 | rogério fernandes | bocage e a educação entre dois séculos 19