1. O documento resume o roteiro do documentário "Ilha das Flores", que satiriza as marcas textuais do modo expositivo de representação usado em documentários tradicionais.
2. Furtado usa termos cotidianos de forma lúdica para construir comentários irônicos e criticar a objetividade e imparcialidade defendidas por documentaristas.
3. Na Ilha das Flores, Furtado retoma a ironia com imagens reais que deixam clara sua intenção de crítica social sobre o tratamento dos mais pobres.
2. 22
ž Há uma distinção entre a linguagem do documentário e a
linguagem ficcional
ž Mas há duas simplificações a respeito dessa distinção:
1. Documentário é um produto com a presunção de
superioridade moral ou de acesso privilegiado à
realidade
2. Documentário é um objeto ideológico, já que é
representação da realidade, não a própria realidade.
ž Não há nada num filme que possa garantir sua
autenticidade histórica, pois o documento é sempre
resultado de manipulação estética.
Documentário
3. 33
ž Documentário e ficção constituem regimes discursivos
distintos, que são percebidos pelos espectadores.
ž A distinção entre o discurso do documentário e o ficcional
decorre de uma dialética que envolve que envolve os três
níveis do processo comunicacional: a emissão (a agência
produtora), o texto (as marcas discursivas) e a recepção
(as expectativas de leitura)
ž O espectador processa o filme como um argumento
sobre o real, comportando uma permanente dinâmica de
adesão e rejeição, já que não são documentos
empilhados, mas construções textuais.
Documentário
4. 44
ž A denominação “documentarista” estabelece uma ligação
com narrativas que recusam a mediação metafórica da
ficção e pretendem referir-se diretamente ao mundo
histórico
ž A intenção do autor se reflete em marcas textuais, como a
lógica informativa – uma estrutura do tipo problema-
solução, que demarca toda a organização do material.
ž Outra marca discursiva é a predomínio da palavra falada e
a montagem comprobatória.
Documentário
9. 99
ž O "roteiro" original de foi escrito por Jorge Furtado em
dezembro de 1988 e aprovado para produção pela Casa de
Cinema de Porto Alegre em janeiro de 1989.
ž Era basicamente um longo texto de locução, antecedido
por uma apresentação do assunto e apenas duas frases
sobre as imagens do filme:
ž "A câmera mostra exatamente o que o texto diz, da
forma mais didática, óbvia e objetiva possível.
ž Quando o texto fala em números eles são mostrados
num quadro negro ou em gráficos."
Ilha das Flores
10. 1010
ž Depois, Furtado escreveu um "roteiro técnico" em forma de
tabela, com o detalhamento de 267 planos previstos para o
filme, conforme a locução.
ž O roteiro consolidado posteriormente foi incluído no livro
“Um astronauta no Chipre”.
ž A produção foi finalizada em maio de 1989.
ž Prêmios:
ž Melhor curta-metragem no Festival de Gramado (1989).
ž Urso de Prata curta-metragem no Festival de Berlim (1990).
Ilha das Flores
11. 1111
ž Furtado foi um dos primeiros documentaristas que ousou
questionar o modelo clássico de documentário no Brasil.
ž Ilha das Flores foi produzido para a Universidade Federal do
RS.
ž Era para ser mais um documentário sobre tratamento de
lixo.
ž Há dezenas de documentários sobre esse tema: a temática
é relevante e de grande impacto, tem apelo social e
político, rende imagens fortes.
Ilha das Flores
12. 1212
ž Furtado satiriza as marcas textuais do modo expositivo de
representação, distanciando o espectador, que, a priori,
espera uma leitura passiva em relação ao filme.
ž Constrói comentários por meio de associações as mais
diversas e sem muito nexo – como a localização geográfica
de uma plantação de tomates, as características do ser
humano, o que o diferencia do tomate e do porco, etc.
ž No meio dessas associações, percebe-se o tom irônico dos
conceitos, demonstrando um pseudodidatismo.
Ilha das Flores
13. 1313
ž Uma locução em off (ou seja, despersonalizada) faz o papel
de detentora do saber, da ciência.
ž O autor usa conceitos “de dicionário” para ajudar a criar
uma empatia no público.
ž Furtado usa de forma lúdica termos cotidianos – como
ser humano, porco, tomate, perfume, flores.
ž Mas o ponto de vista crítico do autor vai sendo notado aos
poucos por meio dessas “definições” e das imagens que as
ilustram.
Fórmula editorial
14. 1414
ž Ao utilizar “conceitos de dicionário”, Furtado leva o
espectador a acionar suas competências semióticas para
entender as “instruções” contidas na mensagem.
ž É um modo de significação termo a termo, uma relação
“diádica” do tipo “estímulo-resposta”, mas nesse caso
temos uma relação “triádica” (ECO, 1995, p.186).
ž O significado é o resultado de um trabalho “inferencial” do
espectador.
ž É uma ação ou influência que é, ou implica, uma
cooperação de três sujeitos – o signo, seu objeto e seu
interpretante, tal que essa influência tri-relativa de modo
algum se pode resolver em ações entre pares (PEIRCE,
1983, p. 13).
Fórmula editorial
15. 1515
ž Outro exemplo de uso lúdico de termos cotidianos:
ž “Os seres humanos são animais mamíferos, bípedes que
se distinguem dos outros mamíferos, como a baleia, ou
bípedes, como a galinha, principalmente por duas
características: o telencéfalo altamente desenvolvido e
o polegar opositor.”
ž “O tomate, ao contrário da baleia, da galinha, dos
japoneses e dos demais seres humanos, é um vegetal.
Fruto do tomateiro, o tomate passou a ser cultivado
pelas suas qualidades alimentícias a partir de mil e
oitocentos.”
Fórmula editorial
16. 1616
ž Ou então:
ž “Dona Anete é um bípede, mamífero, católico, apostólico,
romano, possui o telencéfalo altamente desenvolvido e
polegar opositor. É, portanto, um ser humano.”
ž A frase foi alterada em relação ao roteiro original que,
em vez de dizer que Dona Anete é “católica, apostólica,
romana”, dizia: “não sabemos se ela é judia, mas temos
quase certeza que ela não é japonesa”.
Fórmula editorial
17. 1717
ž Há o esforço, por parte de Furtado, em questionar a
objetividade e a imparcialidade, defendidas pelos
documentaristas tradicionais
ž A definição de dinheiro, criado na Ásia Menor no século 7º
antes de Cristo, é associada ao fato de Cristo ser judeu.
ž Enquanto o locutor explica que “os judeus possuem o
telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor.
São, portanto, seres humanos”, aparecem imagens do
Holocausto.
Fórmula editorial
18. 1818
ž Esse tom irônico perdura até o momento em que a narrativa
chega à Ilha das Flores.
ž A partir de então, percebe-se mais claramente o tom das
críticas do autor e o por quê da sofisticada teia de relações
apresentada no filme.
ž O tomate, o porco, os seres
humanos e até os perfumes
vendidos por dona Anete têm
uma função específica no
“racional” pensado pelo autor.
Fórmula editorial
19. 1919
ž Por exemplo: Tudo o que é de origem orgânica – tomate, porco,
papel, madeira, galinha, ou algo que um dia teve vida – vira lixo:
ž “O lixo atrai todos os tipos de germes e bactérias que, por sua
vez, causam doenças. As doenças prejudicam seriamente o bom
funcionamento dos seres humanos. Outras características do lixo
são o aspecto e o aroma extremamente desagradáveis. Por tudo
isso, ele é levado na sua totalidade para um único lugar, bem
longe, onde possa, livremente, sujar, cheirar mal e atrair
doenças.”
ž “Uma cidade como Porto Alegre, habitada por mais de um milhão
de seres humanos, produz cerca de quinhentas toneladas de lixo
por dia.”
ž “Em Porto Alegre, um dos lugares escolhidos para que o lixo
cheire mal e atraia doenças chama-se Ilha das Flores.”
Fórmula editorial
20. 2020
ž Na Ilha, Furtado retoma a ironia da cultura de dicionário, mas
com imagens reais, que deixam clara a intenção de crítica
[inclusive com uma trilha musical mórbida]:
ž “Ilha é uma porção de terra cercada de água por todos os lados.”
ž “Água é uma substância inodora, insípida e incolor formada por
dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio.”
ž “Flores são os órgãos de reprodução das plantas, geralmente
odoríferas e de cores vivas.”
ž “De flores odoríferas são extraídos perfumes, como os que do
Anete trocou pelo dinheiro que trocou por tomates.”
ž “Há poucas flores na Ilha das Flores. Há, no entanto, muito lixo.”
ž “Há também muitos porcos na ilha.”
Fórmula editorial
21. 2121
ž A partir da chegada na narrativa à Ilha das Flores, o filme se
torna totalmente impactante para o espectador. Ao final, mostra
mendigos circulando em meio a um grande lixão.
ž Com uma lente tele-objetiva, filmando em câmera lenta, até
o lixo fica bonito. “A gente vê um mendigo desdentado no
meio do lixo e diz: ‘que lindo’. A lente faz isso, e o final de
Ilhas das Flores é exatamente isso. Os mendigos, uma tele,
uma trilha de fundo [‘O Guarani’, em solo de guitarra]. Se a
gente for filmar a mesma coisa com uma lente 32, velocidade
normal e sem trilha, a gente não vai emocionar
ninguém.” (FURTADO, 1992)
Conclusões
22. 2222
ž Em contraposição à imagem dos catadores de lixo, poetizados
pela técnica, o locutor define liberdade, citando poema de
Cecília Meireles:
ž “O ser humano se diferencia dos outros animais pelo
telencéfalo altamente desenvolvido, pelo polegar opositor e
por ser livre. Livre é o estado daquele que tem liberdade.
Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta,
Que não há ninguém que explique
E ninguém que não entenda.”
ž No roteiro original, o filme terminaria com a cena de um menino
pegando um tomate em meio ao lixo e comendo. Na edição final,
a cena não aparece. Talvez ficasse óbvio demais.
Conclusões
23. 2323
ž No início do filme, aparece o aviso: “Este não é um filme de
ficção”
ž Nos letreiros finais, Furtado questiona o suporte mítico da
superioridade do documentarista, ao usar repetidas vezes a
palavra “verdade”.
ž “Este filme na verdade foi feito por..../ Na verdade, a maior
parte das locações foi rodada na Ilha dos Marinheiros, a dois
quilômetros da Ilha das Flores./ Os temas musicais, na verdade,
foram extraídos de “O Guarani”, de Carlos Gomes./ Dona Anete
na verdade é...”
E conclui: “O resto é verdade”
Conclusões
24. 2424
ž O roteiro original já trazia os dados que embasavam a tese do
autor, sobre o tratamento aos “seres humanos” na Ilha das
Flores. Houve uma pesquisa detalhada.
ž Texto sofreu pequenas alterações na edição final - alguns trechos
suprimidos, por exemplo:
ž “O papel é um material produzido a partir da celulose. São
necessários 300 quilos de madeira para produzir 60 quilos de
celulose. A madeira é o material do qual são compostas as
árvores. As árvores são seres vivos. O papel é industrializado
principalmente na forma de folhas, que servem para escrever ou
embrulhar.”
ž “A História é a narração metódica dos fatos ocorridos na vida
dos seres humanos. Recordar é viver.”
ž “O lixo é levado para estes lugares por caminhões. Os caminhões
são veículos de carga providos de rodas.”
Conclusões
25. 2525
ž Ilha das Flores é uma paródia ao documentário do modo
expositivo de representação
ž Tem o objetivo de criar empatia, através do humor, para
melhor provocar e chocar o público na sequência final.
ž “Para convencer o público a participar de uma viagem por
dentro de uma realidade horrível, eu precisava enganá-lo.
Primeiro, tinha que seduzi-lo e depois dar a porrada.”
(FURTADO, 1992).
Conclusões
27. 2727
Referências
ECO, Umberto. Os limites da interpretação. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1995.
FURTADO, Jorge. Ilha das Flores (documentário). Casa de Cultura de Porto Alegre, 1989.
______________. Um astronauta no Chipre. Porto Alegre: Artes e OfÍcios, 1992.
JESUS, R. M. V. Ilha das Flores: o documentarista em primeiro plano. UFBA, 2005. Disponível em
http://www.oolhodahistoria.ufba.br/artigos/ilha-das-flores-rosane-meira-vieira-de-jesus.pdf.
Acesso em 02 out 2015.
NICHOLS, B. Representing reality: issues and concepts in documentary. Bloomington: Indiana
University Press, 1991.
PEIRCE, C. Escritos Coligidos. Tradução de Armando Mora D’Oliveira e Sergio Pomerangblum. 3 ed.
São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores).