1. ponto_e_virgula AGOSTO 2007 EDIÇÃO 5
Amor.Sexo.Tabus
As transgressões da Música
Escoteiros Popular Brasileira
NY.for.sale
Gastronomia, música e
Comemoram
turismo sem pagar nada
centenário de
educação junto Lya.Luft
à natureza e ao “A vida é transformação
próximo e não decadência”
2. ponto_e_virgula
[ su m ário]
AGOSTO 2007 EDIÇÃO 5
ESPAÇOS NESTA EDIÇÃO
ESCRITORES
13
04
Adriana Seguro
Perfil Alerta há 100 anos Fernanda Dutra
Juliana Sakae
Lya Luft: a vida é transformação e não Escoteiros comemoram centenário de educação Luisa Frey
decadência Lucas Sarmanho
16
07 Casa do Seu Machado Marina Almeida
Cinema Marina Veshagem
Arte na decoração de casa, com objetos doados e Pedro Santos
The Doors em cena: rock e drogas
vindos do lixo Rodrigo Tonetti
nos anos 60
19
09
Thiago Bora
Música Lar do Chico EDIÇÃO
As transgressões da Música Popular O manezinho que começou com uma barraca na praia e Carolina Moura
Brasileira: Amor, sexo e tabus hoje é dono de um os mais tradicionais restaurantes de Fernanda Dutra
11 Florianópolis
Literatura Fernanda Volkerling
Luisa Frey
Marina Veshagem
Amor é brega, mas rende literatura das
melhores: Travessuras da Menina Má
DIAGRAMAÇÃO
22 Entrevista Carolina Moura
Juliana Sakae
Ive Luna vai além da sonoridade das Maurício Tussi
palavras e brinca com a linguagem Thiago Bora
26 Esporte CAPA e ARTE FINAL
Juliana Sakae
Estádio de futebol - a primeira vez a gente
nunca esquece REVISÃO
29 Lucas Sarmanho
Viagem Luisa Frey
Nova York for sale - gastronomia, música e Rodrigo Tonetti
turismo sem pagar nada
31 Fotografia
;
Florianópolis - SC
Micromundo: o mais perto possível
33 Criação
Um remix de trilha sonoras de filmes
brasileiros, hollywoodianos e clássicos
34 Causos&Coisas www.revistapontoevirgula.com
3. [ca r ta ao lei tor ]
R
eportamos aquilo que gostamos e
nos interessa. E é exatamente a
leveza e o prazer tidos ao escrever
o que desejamos transmitir a você, leitor
ponto-virgulino de quinta viagem. Sim,
chegamos à edição de número 5!
No catálogo do mês, oferecemos
Nova Iorque de graça e os 100 anos de
escotismo no Brasil. Tem amor, sexo e
tabus na MPB dos anos 70. Tem Cine The
Doors (!); entrevista é com Ive Luna – voca-
lista do Cravo-da-Terra. Da Ilha da Magia,
a tão única Casa do Seu Machado e a tão
saborosa Casa do Chico.
Românticos, deliciem-se com As tra-
vessuras da Menina Má; otimistas, inspi-
rem-se com Lya Luft; fanáticos ou simples
apreciadores do futebol, relembrem a pri-
meira vez no estádio; curiosos, divirtam-
se com o Causos&Coisas!
E um pout-pourry pra encerrar.
ilustração:
Tropicália, uma revolução cultural
brasileira, de John Connelly Presents
disponível em: www.hkw.de
4. Lya Luft . Lya Luft . Lya Luft . Lya Luft . Lya Luft . Lya Luft . Lya
4
[ p er fil]
“Transgredir até o último suspiro” por Luisa Frey
foto: Luisa Frey; arte: Thiago Bora
Lya Luft:
tradutora, escritora, cronista e, acima de tudo,
alguém que sabe viver
N
ão sou uma mulher sofrida, trágica”. Gaúcha de
“
Santa Cruz do Sul, Lya Luft é tradutora e escri-
tora. Seu último livro Perdas & Ganhos teve seus
direitos comprados por 15 editoras internacionais. A
autora escreve agora O silêncio dos amantes, romance
que deve ser lançado em 2008.
Formada em Letras, Lya conta que o fato de ter
o alemão e o inglês “de casa” e escrever razoavelmente
bem em português facilitou seu ingresso na profissão
de tradutora. “Tive o privilégio de trabalhar com algo
que adorava”, diz. Já verteu para o português autores
como Thomas Mann, Hermann Hesse e Virginia Wolf.
Antes, com os filhos pequenos, Lya traduzia para ganhar
dinheiro. Agora o faz apenas por prazer, quando se in-
teressa por algum trabalho. O último foi a peça Um Dia
no Verão, do norueguês Jan Fosse.
ya ft
Em 1964, aos 26 anos, Lya escreve seu primeiro
livro de poesias: Canções de Limiar. Na época, era aluna
L
de Celso Pedro Luft, que depois se tornaria seu mari-
u
do. “Casar com um homem vinte anos mais velho foi
muito importante na minha vida. Aprendi muito”, re-
L flete. Essa paixão foi, em parte, o que lhe inspirou para
os versos. Em 1972, publica mais um livro de poesias:
Flauta Doce. Os dois livros de poesia tiveram tiragens
pequenas e nunca foram reeditados. A verdadeira car-
reira literária começa oito anos depois, com o primeiro
de nove romances: As Parceiras.
5. Lya Luft . Lya Luft . Lya Luft . Lya Luft . Lya Luft . Lya Luft . Lya 5
Ao ser perguntada sobre o tom autobiográfico de sua obra, Lya diz ter a impressão “de que nós, seres humanos, esta-
faz questão de dizer que não faz uma literatura confessional, mos em uma fase de isolamento” e que o sofrimento nos deixa
com exceção de Mar de dentro, em que conta suas memórias amargos, mas faz parte da vida. Hoje existe uma cultura louca
de infância, e O lado fatal – livro de poemas escrito quando de que não se pode sofrer. Parece haver uma onda de superfi-
ficou viúva pela primeira vez: “fiquei viúva duas vezes e isso é cialidade em tudo, deixando as pessoas infelizes. “Poderíamos
bem pessoal. Tão pessoal que depois eu resolvi suspender O ser muito mais felizes do que somos”, afirma.
lado fatal. Eu não quero ser sempre vista como a viúva de Hé- “Escrevo quando tem algo que quer ser escrito, sobre o
lio Pellegrino. Passou o tempo, passaram os anos”. que não entendo e continuo não entendendo”; para Lya, a li-
Lya diz que todo mundo começa influenciado por algum teratura tem um lado lúdico e deve sempre envolver alegria,
escritor. No caso dela foram três: Mário Quintana, Cecília prazer e respeito. Um bom exemplo disso são suas crônicas
Meirelles e Rainer Maria Rilke - autor tcheco que escrevia em quinzenais na revista Veja. Em resposta às críticas sobre o
alemão. Ela explica que “as influências fazem parte da for- tom conservador da coluna, a autora diz ser apenas severa
mação do autor, que depois passa o resto da vida tentando com algumas coisas, mas não conservadora.
se livrar delas, criar o próprio estilo. Porque se você passa a
vida inteira escrevendo à maneira de Rainer Maria Rilke ou de
Mário Quintana, então você não é um verdadeiro artista”.
O último livro Perdas & Ganhos, de 2003, foi um fenôme-
no, como a própria autora o define. Ficou 113 semanas nas lis-
tas dos mais vendidos de Veja, Isto É, O Globo e Folha de São
Paulo. Lya diz que nunca entendeu direito porque ele repercu-
tiu tanto, mas supõe que seja por causa de algo que chama de
globalização das emoções humanas: “Perdas não só agrada a
várias gerações, como a culturas diversas. Saiu na Iugoslávia,
Israel, Finlândia... Percebi que o ser humano não é tão dife-
rente em cada lugar”. O livro traz um tema recorrente em sua
obra: a passagem do tempo. Fala também do processo de ama-
durecimento, da formação de valores, da vida e da morte.
Lya ressalta que Perdas & Ganhos não é bonzinho, uma
receita de felicidade. É um livro de questionamentos e é burrice
classificá-lo como auto-ajuda, pois “auto-ajuda tem a intenção
de ajudar, do estilo ‘Como ser feliz em dez lições a preços módi-
ar
cos’”. A autora classifica a obra como um ensaio moral em tom
on
esti eitar”
de conversa com o leitor. Ela diz que ensaio moral nada tem a
ver com moralizante, trata-se de discorrer, ensaiar sobre um
u
“Q o ac
assunto.
nã
e
foto: Luisa Frey
6. Lya Luft . Lya Luft . Lya Luft . Lya Luft . Lya Luft . Lya Luft . Lya
6
O livro que escreve agora é sobre a incomunica-
bilidade, “fala da palavra que dizemos quando devía-
mos ter ficado em silêncio ou que deixamos de dizer
Os casamentos
quando devíamos”. E, assim como em O silêncio dos
amantes, “entender essa coisa estranha que é estar
vivo” é o que busca Lya na vida e na obra. O tempo
é apenas uma convenção criada para marcar nossas Lya foi aluna de Letras do lingüista e gramático
atividades. Cada etapa da vida tem suas coisas boas e Celso Pedro Luft, irmão Marista e vinte anos mais ve-
ruins. Na infância, temos que fazer o que nos mandam; lho. No terceiro ano de faculdade, ele pediu dispensa
na juventude, a pressão familiar e social é enorme; dos votos e, já na vida “civil”, fez a proposta de ca-
não é fácil envelhecer, mas talvez a maturidade seja a samento. Lya e Celso se casaram em 1964, tiveram
mais tranqüila das fases. A vida – processo pelo qual três filhos e foram felizes por mais de vinte anos.
somos muito responsáveis – é transformação e não Após uma separação amigável, veio o segun-
decadência. “O desafio é mudar sempre para melhor. do matrimônio, com o psicanalista e escritor Hélio
Questionar e não aceitar. Transgredir até o último Pellegrino, em 1985. Ele faleceu pouco mais de dois
suspiro.” ; anos depois.
Perdas & Ganhos Em 1992, a união com o Professor Luft foi reto-
(Record; 156 páginas; 15,90) mada. Na época, ele já estava doente e em 1995, Lya
foto: Luisa Frey; arte: Thiago Bora
ficou viúva pela segunda vez.
Atualmente, está em seu terceiro casamento,
com o engenheiro carioca Vicente Britto Pereira. Há
cerca de três anos, os dois residem em Porto Alegre.
- O ponto cego (1999)
Livros Publicados - Histórias do tempo (2000)
- Mar de dentro (2002)
- Exílio (1987)
- Perdas & Ganhos (2003)
- O lado fatal (1988)
- As Parceiras (1980)
- A sentinela (1994)
- A asa esquerda do anjo (1981)
- O rio do meio (1996, prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes)
- Reunião de família (1982)
- Secreta mirada (1997)
- Mulher no palco (1984)
- O quarto fechado (1984)
7. 7
[c i nema]
Videoclipe de
Rebelde
psicodélico
140 minutos
ou rei do
rock?
por Pedro Santos
S
how de rock. Platéia alucinada. No palco, os quatro inte-
grantes da banda de sucesso absoluto nos Estados Uni-
dos: The Doors. São vistos pela imprensa como resposta
norte-americana aos ingleses The Beatles e The Rolling Stones.
O vocalista, visivelmente drogado, começa a divagar. Entre ber-
ros, simula atos sexuais e exibe a genitália. A polícia não pensa
duas vezes: domina o palco e prende o sujeito. Tudo sob as
vaias do público.
Essa história aconteceu em Miami, em 1969, e, como
fato marcante na trajetória da banda, está presente no
filme que pretende ser uma biografia do “líder”, Jim Mor-
rison. Com roteiro do diretor Oliver Stone, escrito em par-
ceria com J. Randal Johnson, The Doors (EUA,
1991) reconstitui alguns acontecimentos no-
táveis da trajetória do grupo. O episódio da de-
tenção durante o show não podia ficar de fora.
A banda, formada por Jim (voz), Ray
Manzarek (teclados), Robby Krieger (guitarra)
e John Densmore (bateria) teve o nome tirado
de um livro de Aldous Huxley. A idéia era que
The Doors representasse as portas da percep-
ção (“se as portas da percepção fossem abertas,
tudo apareceria ao homem como realmente é,
infinito”), alusão que um dos músicos faz às
drogas. Drogar-se era uma forma de atingir ou-
tra dimensão e visão do mundo. Foi através delas,
principalmente do LSD, que Jim largou a timidez
– expressa no início da carreira, quando cantava de
costas para o público – e passou a desenvolver uma
performance cada vez mais explosiva nos shows.
8. 8
São nessas viagens lisérgicas, no entanto, que o filme se Doors não seriam nada nem venderiam discos. Nas capas dos
perde. As imagens assumem aspecto psicodélico com o som álbuns, ele é o rosto do grupo. Ego e vaidade não explorados
de poemas ao fundo, declamados pelo narrador. A película de pelo filme. “Somos nós quem criamos o mito, Jim”, alguém fala
140 minutos seria mais bem aproveitada se momentos longos no meio da projeção.
como esses ficassem restritos à sala de edição. O grande pro- Entre uma tragada de whisky e outra, Jim Morrison sur-
blema do filme, porém, é a visão superficial que faz dos per- ge como o sujeito que fala, grita, berra a uma sociedade de
sonagens. O mundo de Jim carece de profundidade. A relação conformados: “Vocês são escravos!”. A mudança de persona-
dele com os pais – ele mentia dizendo que estavam mortos – é lidade dele do início ao fim da carreira é meramente pincela-
levemente sugerida. O roteiro, inconsistente, não nos ajuda a da. No entanto, a falta de conteúdo é preenchida por música.
compreender a perso-nalidade mutável e violenta do cantor. Praticamente todas as seqüências são ilustradas por canções.
Morrison exalta a morte, desejando-a. Mas por quê? O que o As falhas, porém, não desmerecem a atuação central. Val
levou a ser assim? Kilmer dá vida a Morrison. É dos mais bem sucedidos exemplos
A resposta pode surgir depois, quando o espectador curio- de atores interpretando uma personalidade. Aparências físicas
so vai buscar informações extras. A questão é que o roteiro e atitudes extravagantes, olhar vago e o jeito de cantar e se mo-
trata os personagens de forma caricatural sem retomar con- vimentar no palco; a coleção de gestos. As escolhas de Kilmer
ceitos que o próprio script propõe, como a questão dos mitos. não poderiam ser melhores. Jim está vivo, ainda que o roteiro e
;
Jim é constantemente levado a acreditar – por fãs, empresá- a direção deixem a desejar. “Come on, baby, and light my fire!”...
rios e pelas circunstâncias – que ele é a banda, que sem ele os
9. 9
[ m ús ica]
D
Rita Lee e Roberto de Carvalho écada da ebulição, do experimen-
talismo, das drogas e da repressão.
“As pessoas eram mais ousadas, di-
ziam o que realmente pensavam”, explica
Rodrigo Faour, jornalista, crítico, produ-
tor musical e autor do livro História Se-
xual da MPB – A evolução do amor e do
sexo na canção brasileira. A década de 70
representou a consolidação da revolução
sexual no Brasil e foi, ao mesmo tempo,
o período de maior repressão da Ditadura
(1964-1984) no país.
Falar de sexo nas músicas foi con-
seqüência do processo de mudança no
comportamento sexual já delineado no
mundo pós anos 60 - com o surgimen-
to da pílula anticoncepcional -, mas era
também uma maneira de protestar con-
tra a censura militar no Brasil. “De mea-
dos da década de 70, até início dos anos
80 – que coincidiu com um arrefecimento
na ditadura -, nós tínhamos uma MPB
sensual. As músicas eram políticas, mas
também eróticas”, comenta Rodrigo Fa-
our. “O politicamente correto surgiu ape-
nas na década de 80.”
Assim, era papel da censura proibir
nas músicas qualquer referência, pala-
vra ou conteúdo considerado “pornográfi-
co” ou mesmo “indecente”. Vários termos
eram tabus para a época, como “sexo”,
“amante”, “macho” e tantos outros. A pa-
“Não existe Amor, sexo,Músicae
lavra “tesão” apareceu pela primeira vez
tabus em gravação discográfica no ano de 1980,
censura na em “Bye, Bye Brasil” (“eu tenho tesão é
pecado do lado Popular Brasileira a
no mar”), de Chico Buarque e Roberto Me-
nescal.
partir dos anos 70 Várias músicas foram censuradas,
de baixo do
como Bárbara (1972-1973), de Chico Bu-
arque, que tratou do amor lésbico pela
primeira vez:
“O meu destino é caminhar assim
equador”por Marina Veshagen Desesperada e nua
Sabendo que no fim da noite serei tua”
foto: álbum Rita Lee & Roberto de Carvalho (Som Livre) arte: Maurício Tussi
10. fonte: mpbnet.com.br
fonte: cifrantiga3.blogspot.com
10
Gilberto Gil Ney Matogrosso
A cantora Joyce, no livro História Se-
No entanto, diversas outras canções Diversos outros artistas transgredi-
xual da MPB, comenta essa faceta mas-
escaparam dos olhos atentos dos censo- ram os padrões da época. Ney Matogros-
res. “A censura era muito burra”, diz Fa- culina. “Todas as letras escritas por mu- so, por exemplo, em 1978, apareceu nu
our. Na música “Cavalgada” de Roberto lheres são de um planeta completamente no encarte do LP “Feitiço”. O cantor ho-
Carlos, por exemplo, “cavalgar” não sim- diferente das dos homens. Mesmo quando mossexual explorou toda a sensualidade
boliza nada mais do que o ato sexual, mas eles escrevem como mulher, com a possí- masculina. “Ele tinha o corpo todo pelu-
a metáfora passou despercebida: vel e talvez única exceção do Chico [Buar- do, não sorria, se pintava todo e serviu de
“Vou cavalgar por toda a noite que], que tem um encosto de pomba-gira incentivo para vários gays se assumirem
Por uma estrada colorida que lhe baixa de vez em quando”. Chico como tais”, destaca o Faour.
Usar meus beijos como açoite Buarque é um grande referencial tanto O escritor afirma que muitos tabus
E a minha mão mais atrevida” para as músicas políticas, quanto feminis- permaneceram. “Demorou muito para se
Faour acredita que o maior tabu tas e femininas. Retratou desde a mulher falar de fantasias sexuais e de coisas mais
quebrado na década de 70 foi o da mu- “decidida a se modernizar” (“Essa Moça tá vulgares.” Ele afirma que somente o funk
lher submissa, culpada pelo fracasso dos Diferente” - 1969), até a que faz questão carioca de hoje conseguiu romper vários
relacionamentos, que não sentia pra- de dizer que “passa bem demais” sem seu preconceitos. “Foi uma mudança para o
zer no ato sexual e era moralmente con- amante (“Olhos nos Olhos” - 1976). bem e para o mal. Muitas letras são ma-
denada ao se separar. Vários cantores Surgiram também muitas mulhe- chistas, assim como outras são feministas,
- como Chico Buarque, Caetano Veloso, res que gritaram sua libertação sexual e pois mostram uma mulher que não mais
Gilberto Gil, Milton Nascimento, Gonza- comportamental, como Joyce, Rita Lee e releva uma baixa sexual do homem ou que
guinha e João Bosco - retrataram uma Vanusa, que, em 1986, criou a partir de não se preocupa com a fidelidade.”
nova mulher em suas músicas: sensual um de seus poemas a canção “Mudan- A MPB contemporânea é “uma careti-
e que sabia o que queria. A canção de Gon- ças”: ce sem fim” na visão de Faour. Ele afirma
“Tranqüila e pacificadora
zaguinha “Ser, Fazer e Acontecer” (1982) que permanece no cancioneiro nacional o
Mas ao mesmo tempo irreverente e
expressa bem as mudanças do momento: “amor idealizado” que se tornou oficial na
“Uma perna de calça revolucionária década de 40. Nos anos 70, ocorreram im-
Não dá mais direito a ninguém Feliz e infeliz, realista e sonhadora, portantes transformações na sociedade e
De transar o que seja viver Submissa por condição, mas na música brasileiras, que ainda hoje se
E por isso eu prossigo e quero independente por opinião processam. “Mas os letristas não estão
E grito no ouvido dessa tal de dona moral Porque sou mulher com todas as acompanhando”, desabafa. “Até que ponto
Que uma mulher pode nunca é deixar incoerências que fazem de nós somos mais caretas que nossos pais?” ;
De ser e fazer e acontecer” O forte sexo frágil”
11. a
11
A vida toda. Eu faria você tão feliz que nunca maisti iria
g
[ l i teratura]
re
net
me largar.Parou de brincar e me olhou, muito séria To e um
b
go
dri
o
rR
tanto depreciativa: - Que ingênuo, que bobo você é – disse,
é
r
po
oO
separando as sílabas e me desafian-
m
amor é um dos temas mais recorrentes
a
do com os olhos. – Você não me con-
da literatura. Apesar disso, o escritor
peruano Mario Vargas Llosa nunca
havia se dedicado a ele, até o romance
hece. Eu só ficaria para sempre com
O
Travessuras da menina má. Llosa não chega
a ser original ao tratar a questão, mas
um homem que fosse muito rico, não
seu livro apresenta bom ritmo narrativo e
Travessuras da
consegue ser divertido ao explorar o lado
menina má
brega do amor. Afinal, há coisa mais piegas
mas muito rico e poderoso. visãovocê
E nova sobre
traz nenhuma que um homem apaixonado?
A história é escrita em primeira pessoa, a
o relacionamento
nunca será, infelizmente. mas
partir do relato de Ricardo Somocurcio. Ainda
amoroso, jovem, ele se apaixona “feito um bezerro” –
forma mais romântica de se apaixonar, de
garante horas
– E se o dinheiro não trouxerprazerosas de
felici- acordo com a juventude miraflorense – por
Lily, uma “chilenita” que de chilena não
leitura
dade, menina má?
tinha nada e que arrebatou não só o coração
de Ricardito, mas de todos os meninos de
Miraflores – bairro de Lima, capital do Peru –
– Felicidade, eu não sei nem me in- durante o verão de 1950. Era o primeiro dos
muitos disfarces que a menina má assumiria
teressa saber o que é, Ricardito. Mas
em sua vida.
Morar em Paris sempre foi o maior sonho
da vida de Ricardo, e é na cidade luz que ele
tenho certeza que não é essa coisa reencontra Lily, agora “camarada” Arlete, dez
anos depois do verão em que foi tomado pela
romântica e brega que você imag-
paixão arrebatadora. Depois do reencontro,
Arlete vai parar em Cuba; tinha conseguido
ina. O dinheiro dá segurança, pro-
12. 12
302 páginas
uma bolsa do governo cubano para receber
Autor: Mario Vargas Llosa
treinamento guerrilheiro e Paris era apenas
Tradução: Ari Roitman e
uma escala na viagem – foi o jeito que a
Paulina Wacht
menina má encontrou para deixar o Peru.
Editora: Alfaguara
A partir de então a história se repete,
Preço: R$ 39,90
são vários encontros e desencontros durante
o livro, sempre numa cidade diferente. Assim,
em segundo plano, Vargas Llosa traça um breve
panorama da segunda metade do século 20:
descreve a Paris revolucionária da década de
1960, o clima de psicodelismo e liberdade sexual
da Londres hippie dos anos 1970, a Tóquio
dos grandes mafiosos dos anos 1980 e Madri
“
Trecho do livro (página 63):
na transição política dos anos 1990. Em cada
reencontro, a menina má se apresenta com nome
.......– Se daquela vez, em vez de
e marido diferentes, e Ricardito sempre encarna
me despachar para Cuba, você
o papel de bom menino, que não aprende com
me tivesse deixado ficar ao seu
as travessuras da menina má: cada vez que ela
lado, aqui em Paris, quanto tem-
passa pela vida do peruano, causa muito estrago
po duraríamos juntos, Ricardito?
ao seu coração; mas ele não desiste do seu amor,
– A vida toda. Eu faria você tão feliz que nunca
não consegue.
mais iria me largar.
Segundo o escritor, Travessuras da me-
Parou de brincar e me olhou, muito séria e um tan-
nina má apresenta uma visão contemporânea
to depreciativa:
do amor, mais real do que geralmente aparece
– Que ingênuo, que bobo você é – disse, separan-
na literatura. Talvez. Há momentos em que
do as sílabas e me desafiando com os olhos. – Você
realmente a história se mostra menos ideali-
não me conhece. Eu só ficaria para sempre com um
zada do que convencionalmente se costuma
homem que fosse muito rico, mas muito rico e pode-
escrever, mas ainda há as tramas próprias
roso. E você nunca será, infelizmente.
da ficção que são difíceis (não impossíveis)
– E se o dinheiro não trouxer felicidade, menina má?
de associar com a realidade. E o final, apesar
– Felicidade, eu não sei nem me interessa saber o
de um pouco previsível, convence: termina-
que é, Ricardito. Mas tenho certeza que não é essa
se o livro acreditando no amor e com vontade
coisa romântica e brega que você imagina. O dinhei-
de dizer umas breguices para alguém. ;
ro dá segurança, proteção, pemite aproveitar a vida
sem se preocupar com o amanhã. É a única felicida-
de que se pode apalpar.
13. 13
´ 100 anos
Alerta ha
por Adriana Seguro
Prometo pela minha honra fazer o melhor possível para: cumprir meus deveres para
com Deus e a minha Pátria, ajudar o próximo em toda e qualquer ocasião e obedecer à
Lei Escoteira
foto: Adriana Seguro; arte: Juliana Sakae
14. 14
O
“Priii... Priii... Priii!” No dia 1º de agosto de 2007, o movimento escoteiro
chefe “Fred” apita três vezes na sede do Grupo Escoteiro comemora o seu centenário. Ao alvorecer do dia, jovens de todo
(GE) do Ar Jayme Janeiro Rodrigues, no bairro o mundo se reúnem em suas cidades para renovar a Promessa
Coloninha, em Florianópolis. É tarde de domingo. Escoteira, no chamado “Amanhecer do Escotismo” – um evento
Lobinhos, escoteiros e sêniores se organizam. Fazem fila com organizado pela Organização Mundial do Movimento Escoteiro
seus colegas de patrulha, com um braço de distância de cada (OMME).
um. Em seguida, levam os três dedos do meio da mão direita Mais de 28 milhões de pessoas hoje estão ligadas à Orga-
à testa. Fila após fila, correm em círculo até formarem uma nização Mundial do Movimento Escoteiro (OMME) e mais de 41
grande roda. Hastear a bandeira do Brasil, fazer uma oração, mil brasileiros à União dos Escoteiros do Brasil (UEB). O esco-
cantar uma ou outra música, dar os gritos de tropas e patrulhas, tismo surgiu em 1907 e chegou ao Brasil em 1910. A pedido do
tudo isso forma o ritual de abertura de uma atividade escoteira. seu fundador Baden-Powell, foi criada a UEB, em 1924. É um
“Sempre alerta” – o lema escoteiro - é o grito em coro. órgão consolidado no país, responsável por estabelecer regras,
“Fazer um tripé de bambu que suporte o meu peso”: é em sugerir e organizar a prática escoteira brasileira. Porém, em
tom de brincadeira que Frederico – o chefe escoteiro “Fred” - passa março de 2007, surgiu uma instituição dissidente. A Associação
a primeira tarefa do dia para os representantes da Tropa Sênior Escoteira Baden Powell (AEBP) – representante da Federação
presentes. Os sêniores são provocados com desafios, os escoteiros Mundial de Escoteiros Independentes (WFIS, na sigla em inglês)
fazem exercícios agitados para se desenvolverem, e as atividades no Brasil – que pretende dar maior autonomia às associações
dos lobinhos são mais leves e repletas de mística. Os mais velhos, locais, competindo com a
Lei Escoteira
os pioneiros - ausentes na atividade do dia - estão mais UEB na filiação de grupos
próximos da comunidade, realizando ações sociais. escoteiros.
I. O Escoteiro tem uma só palavra;
e´ quem
Quem no sua honra vale mais do que a própria
vida.
Grupo Escoteiro? II. O Escoteiro é leal.
III. O Escoteiro está sempre alerta
Os jovens são agrupados
para ajudar o próximo e pratica
em ramos, de acordo
diariamente uma boa ação.
com as faixas de de-
IV. O Escoteiro é amigo de todos e
senvolvimento do ser
irmão dos demais Escoteiros.
humano:
V. O Escoteiro é cortês.
Alcatéia: lobinhos (7
VI. O Escoteiro é bom para os animais
a 10 anos)
e as plantas.
Tropa Escoteira: escoteiros foto: A VII. O Escoteiro é obediente e
driana
(11 a 14 anos) Segur
disciplinado.
o
o
Segur Tropa Sênior: sêniores (15 a 17 anos)
driana VIII. O Escoteiro é alegre e sorri nas
foto: A Clã Pioneiro: pioneiros (18 a 21 anos)
dificuldades.
Cada ramo é divido em grupos. Os lobi-
IX. O Escoteiro é econômico e respeita
nhos se separam em matilhas e os outros ra-
o bem alheio.
mos em patrulhas, cada uma com um nome
X. O Escoteiro é limpo de corpo e
e um grito. Essas divisões auxiliam o trabalho
alma.
em equipe e a competição entre patrulhas.
15. 15
O Projeto Educativo da UEB prevê que o jovem assuma como ferramenta para a aprendizagem, e não como finalidade.”
o desenvolvimento de seu caráter e de suas potencialidades Calça jeans, camisa de tecido, lenço, chapéu e diversos
físicas, intelectuais, sociais, afetivas e espirituais. Os chefes emblemas costurados nas camisas. Os escoteiros exibem em
escoteiros afirmam que por trás de um simples jogo de bolinhas seus trajes os distintivos das especialidades acumuladas em
ou de lições sobre acampamentos, há sempre um objetivo cada ramo (como cozinheiro, primeiros socorros, informática),
maior – como trabalhar a responsabilidade, a consciência dos encontros e atividades especiais das quais participou. Nos
social, a coordenação motora, a imaginação, a desinibição. “É acampamentos, os escoteiros são responsáveis por montar as
o aprender fazendo. Os ensinamentos sobre sobrevivência na barracas, tripés e tudo o que for preciso para a permanência
selva, por exemplo, ajudam cada um a conhecer seus limites no local, como cozinhar. A modalidade básica do escotismo -
para então partir para a atividade com o próximo e saber de uniforme caqui - incentiva os esportes terrestres e o contato
conviver em equipe”, diz Maireli Dittrich, chefe do ramo sênior com a natureza. Existem grupos que trabalham com áreas
do Grupo Escoteiro Desterro, em Florianópolis. adicionais: os escoteiros do ar – de uniforme azul - trabalham
O movimento escoteiro é uma ONG que fala de Deus, técnicas e a história da aeronáutica; o escotismo do mar – que
mas não é religioso, e sim espiritualista. “Há um incentivo ao usa branco – ensina noções marinheiras.
desenvolvimento da espiritualidade de cada um, mas não temos Por ter sido criado por um general, o escotismo apresenta
uma religião comum”, explica Frederico Pinto Junior, chefe semelhanças com o militarismo, à primeira vista. Ao soar de
escoteiro e presidente do GE do Ar Jayme Janeiro Rodrigues, três apitos, os jovens formam-se em filas; e só um pede silêncio
de Florianópolis. e atenção de todos: “alerta aqui!”. “É apenas uma maneira
Os grupos escoteiros costumam se reunir uma vez por de manter a ordem de forma fácil e diferente, sair da rotina
semana – aos sábados ou domingos - em suas sedes, além de das escolas”, explica Maireli. “Nós tentamos nos desvincular
realizarem acampamentos, encontros e atividades sociais. Os completamente do paramilitarismo”, completa
jovens participantes pagam uma mensalidade em torno de 15 Frederico. O clima entre
reais. Os jogos – sugeridos por livros ou criados pelos próprios adultos e jovens é de
descontração e respeito. ;
chefes escoteiros - trabalham com a competição. Para Frederico,
ela é muito importante na fase juvenil. “A competição é trabalhada
O verdadeiro amanhecer do escotismo
Impulsionado pelo sucesso do livro, Baden-Powell
promoveu um acampamento experimental na Ilha de
O militar inglês Robert Stephenson Smyth Baden-
Brownsea, na Inglaterra. Com 21 crianças de 11 a 12
Powell foi o fundador do escotismo. Robert nasceu a
anos e seu sobrinho de nove, deu início à experiência
22 de fevereiro de 1857, em Londres. Ele e seus seis
no dia 1º de agosto de 1907. Esse é considerado o
irmãos tiveram uma infância ao ar livre, em excursões
marco inaugural do escotismo no mundo. Após os oito
e acampamentos pela Inglaterra. Seguro
foto: Adriana
dias de acampamento, o militar seguiu passos para a
Baden-Powell entrou para a carreira militar aos 19
criação e o desenvolvimento do movimento no mun-
anos. Em 1901, o então general ficou conhecido na
do. Os princípios de seu livro Escotismo para rapazes,
Inglaterra pela sua coragem em expedições na África.
publicado em 1908 em seis fascículos, é utilizado até
O seu livro escrito para militares - Ajudas ao Escoteiro
hoje como manual pelos grupos escoteiros.
- ficou famoso também entre a população civil.
16. 16
“Uma vez Flamengo,
Flamengo até morrer”
A Casa do Seu Machado: futebol, carnaval e religião
por Marina Almeida
foto: Adriana Seguro
17. 17
R
uas estreitas, de pedra. Pessoas dor, cadeira, etc. A parte externa da casa é grande urso de pelúcia, que está logo ao
caminhando lentamente, conver- decorada com mais objetos, algumas fotos, lado da entrada da casa, e foi doado por
sando no portão. Pequenas mer- vinis, canecas e CDs colados nas paredes. uma menina que visitou a casa. Para o
cearias, padarias; a associação de mo- “Quando o sol bate, os CDs refletem e dá dono, “a casa nunca está pronta, sempre
radores, o barracão de escola de samba pra ver lá de longe”, diz seu Machado. O falta alguma coisa”.
- lembranças de uma vida pacata de uma telhado é todo coberto com lâmpadas, que A re-significação dos objetos é o
cidade de interior. Encontra-se o mesmo fazem o papel dos CDs e do sol durante a ponto forte da Casa do Flamengo. Cada
cenário no bairro Caieira do Saco dos noite. objeto tem história, valor e utilidade. En-
Limões, em Florianópolis. E no centro Como tudo começou? “Quando eu fui tretanto, ao serem expostos juntos, como
dele, a construção mais peculiar do bair- pra Curitiba e vi um muro cheio de pedras decoração, passam a ter um novo valor e
ro: a Casa do Flamengo, ou simplesmente de cachoeira”. Seu Machado achou boni- utilidade. Esse conceito fica claro ao nos
a casa de Seu Machado. to, mas como não encontrou as pedras em depararmos com uma chaleira e uma ca-
A casa é um reflexo do dono. Alcides Florianópolis, resolveu construir somente deira penduradas, ao lado de canecas em
Machado tem 68 anos e sempre viveu em para decorar o muro do seu jeito. Antes só galhos de árvores.
Florianópolis. O policial aposentado tem havia uma cerca separando a casa da rua. Na excessiva decoração, chama a
três paixões: o Flamengo, time de futebol; Ao longo dos 20 anos que se seguiram, a atenção uma pequena capela, dedicada a
a Consulado, escola de samba da capital casa se transformou de forma significa- Nossa Senhora Aparecida. Isolada em um
catarinense; e o catolicismo. tiva. canto da varanda, com bancos em frente,
Essas paixões estão representadas Todas as manhãs, Seu Machado foi construída por Seu Machado com a
na casa. Objetos vermelhos e pretos (cores caminha pelo bairro à procura de novas ajuda de um pedreiro. Todos os anos, no
do Flamengo) se misturam com santos, peças de decoração, são objetos considera- dia 12 de outubro (dia dedicado a Nossa
anjos e restos de fantasias carnavalescas. dos lixo pelas outras pessoas. Ele compra Senhora Aparecida), membros da comu-
Ao avistar a casa de longe, não se recon- algumas peças pensando na decoração da nidade vão à capela de Seu Machado para
hece nada além das cores. Ao chegar mais casa. Mas não é só através das caminha- rezar. Também nesta parte da casa que
perto, percebe-se a miscelânea de elemen- das do dono que a lugar se transforma. está a bandeira do Brasil, um dos poucos
tos: troféus do time, imagens religiosas, Muitos vizinhos e visitantes doam obje- elementos que não é preto e vermelho.
bolas de isopor, telefone, parte de ventila- tos que dizem combinar. É o caso de um A religião é importante para o dono
fotos: Adriana Seguro
Tour
Casa do Flamengo
Telefone no portão Camisetas do Flamengo Caixa do correio
com anjo em cima
Ele afirma que até tem outras
Todos os dias uma vizinha
camisetas, mas sempre é visto “O anjo é pra chegar só
vem trazer o almoço de Seu
com camisetas do time. Diz que boas notícias pelo correio”
Machado, “o telefone é pra
tem cerca de cinco do Flamengo,
comida chegar mais rápido”.
mas só comprou duas.
18. 18
foto: Iana Lua
da Casa do Flamengo. Além de ir à mis- Dentro da casa, está um objeto que
sa, todo domingo distribui doces para as cumpre exatamente a função para a qual
crianças da comunidade nos natais. Du- foi feita: a TV. É nela que Seu Machado as-
rante o ano, Seu Machado recolhe lati- siste a todos os jogos do rubro-negro. Na
nhas de metal vazias, juntando-as em um sala, única da casa, também está a ban-
carrinho de supermercado que fica na va- deira do Flamengo, hasteada todo dia. A
randa. Em dezembro, vende todas e, com cozinha é um dos poucos lugares em que
o dinheiro, compra os doces. Na noite de não há muitos objetos remetendo ao time,
Natal, veste-se de Papai Noel e sai pelo porém é só ligar o aparelho de som que o
bairro. “Os mais velhos já sabem que sou hino do Flamengo começa a tocar.
eu, mas eu nunca confirmo”, se diverte. Mesmo sem sistemas de segurança,
Ele se orgulha: uma foto vestido de Papai Seu Machado garante que ninguém que-
Noel ao lado das crianças ocupa lugar de bra nem rouba nada. “Só uma vez que
destaque na parede externa da casa. duas vizinhas mexeram. Mas conversei
Outro objeto que se destaca, pela di- com os pais delas, eles pediram desculpa
ferença de cor, é uma cabeça de leão que e isso nunca mais se repetiu”.
está pregada na parede de fora da casa. É E assim os objetos de Seu Macha-
parte de uma fantasia da Consulado. Todo do seguem intactos. Pra quem pensa que
o ano Seu Machado desfila pela escola do ele só quer aparecer, ele confirma: “não
bairro. Ele garante que dá sorte, a Consu- adianta eu ver, os outros têm que ver tam-
bém”. ;
lado ganhou os carnavais de 2005, 2006
e 2007.
fotos: Adriana Seguro
Barquinho Mastro e chapéu da Consulado Tatuagens
Localizado na parte de trás da casa, o barco Todos os dias, por volta das 17h, Seu Machado A paixão de Seu Machado pelo
é um dos objetos preferidos. Foi trazido hasteia a bandeira do Flamengo, em um mastro Flamengo é tanta que ele não se
do Rio de Janeiro há 15 anos, quando localizado perto do muro da casa. Em cima contenta em demonstrá-la apenas
Seu Machado foi assistir o Flamengo no desse mastro existe um chapéu, parte de uma com a casa ou com as camisetas
Maracanã. Até esse dia, Seu Machado tinha fantasia carnavalesca. Pode parecer estranho que veste regularmente: fez duas
um cabelo estilo black power, mas, para para quem olha, mas Seu Machado explica: “foi tatuagens no peito, com o brasão do
ganhar as passagens pro Rio de um amigo, o chapéu que desfilei ano passado. Quando a time. Pra quê? “Pra quando eu for na
cortou. Consulado foi campeã do carnaval e o Flamengo praia as pessoas saberem que sou
ganhou a Copa do Brasil”. flamenguista.”
19. 19
Lar do Chico TT
Lar do Chico
udo começou no ano ano 1974, nana praia
udo começou no de de 1974, praia
da Joaquina, Florianópolis. “Não, na ver-
da Joaquina, Florianópolis. “Não, na
dade verdade começadocomeçado antes”,
já havia já havia antes”, corrige-
se Cantídio dosCantídio dos Santos. O manezin-
corrige-se Santos. O manezinho, mais
ho, mais conhecido como Chico, trabalhava
conhecido como Chico, trabalhava no bar da
A história, a rotina e os personagens de um dos faculdade deda faculdade da Bioquímica daFe-
no bar Bioquímica de Universidade Uni-
A história, a rotina e os personagens de um dos
mais tradicionais restaurantes de Florianópolis deral. versidade Federal. Os trêsverão eram férias
Os três meses de férias de meses de um
problema. Só curtir era uma opção,Só curtir era
de verão eram um problema. mas como
mais tradicionais restaurantes de Florianópolis precisava do dinheiro, ocomo precisava do din-
uma opção, mas conselho empreende-
dor do irmãoocaçula veioempreendedor do irmão
heiro, conselho a calhar.
por Luisa Frey caçula veio a calhar.
Chico Chico decidiu deixar de ser empre-
decidiu deixar de ser empregado
e, com alvará com alvará temporário da prefeit-
gado e, temporário da prefeitura, abriu
uma barraca nauma barraca na praia. O origi-
ura, abriu praia. O irmão, dono irmão,
nal do apelido “Chico” apelido “Chico” (e o nome
dono original do (e o nome dele não era
Francisco, não era Francisco, mas Jaci!), era seu
dele mas Jaci!), era seu sócio. A barraca
não tinha nome, mas escutava-se nome, mas es-
sócio. A barraca não tinha o tempo todo
“Chico pra lá, Chico pratodo “Chico pra lá, Chico
cutava-se o tempo cá”. Quando este dei-
pra cá”. Quando este deixou a sociedade,
xou a sociedade, Cantídio acabou incorporando
Cantídio acabou incorporando o apelido.
o apelido.
“Naquela época, a praia praia da Joaquina
“Naquela época, a da Joaquina só
só tinha os surfistas e suas ‘cocotinhas’”,
tinha os surfistas e suas ‘cocotinhas’”, lembra
Chico.lembraesse público essealiado a fiel aliado
Com Chico. Com fiel público uma fi-
a uma filosofia de nunca se acomodar, o
losofia de nunca se acomodar, o jovem praia no
jovem transformou a barraca de trans-
formou a barraca de o Rei da Caipirinha”. A Flo-
“Bar do Chico, praia no “Bar do Chico, o
Rei darianópolis dos anos 70 era carente de bares
Caipirinha”. A Florianópolis dos anos 70
era carente de estabelecimentoestabelecimento
e o novo bares e o novo “chegou para ar-
“chegou para arrebentar”. pessoaamais humilde,
rebentar”. Desde a Desde pessoa mais
humilde, até celebridades como o governador,
até celebridades como o governador, todo
todo mundo freqüentava o bar. “O que acontecia
mundo freqüentava o bar. aconte-
cia nono verão, acontecia no Chico.”
verão, acontecia no Chico.”
O sucesso foi ainda maior com com o lan-
O sucesso foi ainda maior o lança-
mentoçamento do famoso torpedo tempos de
do famoso torpedo de siri. Os de siri. Os
tempos de serviço à Marinha o inspiraram
serviço à Marinha o inspiraram a criar - em
conjunto com aem conjunto com a- esposa Nor-
a criar - esposa Normeci o bolinho
meci - o bolinho em formato da máquina
em formato da máquina de guerra submarina.
de guerra submarina. Normeci ficou com
Normeci ficou com medo de que o nome viras-
medo de que o nome virasse gozação em
se gozação de surfistas. surfistas. Pelo contrá-
terra em terra de Pelo contrário, logo pe-
rio, logo pegou e era comum se escutar brin-
gou e era comum se escutar brincadeiras
cadeiras do tipo “cuidado, um torpedo de siri
do tipo “cuidado, um torpedo de siri vai
vai te te atingir!”. O aperitivo virou tradição e é
atingir!”. O aperitivo virou tradição e é
servido hoje em muitos restaurantes da
servido hoje em muitos restaurantes da ilha.
fonte: www.casadochico.com
20. 20
fotos: Luisa Frey
Chico Valdeci Adenildo Getulio
Bigode, um pouco O gerente da Casa - óculos, cabelos Manezinho, com cara de menino, Adenildo Funcionário há 14 anos,
careca, camisa esporti- grisalhos, jeito sério - é a con- Florindo é cozinheiro do restaurante há 11 um dos dois garçons mais
va. Aos 30, Cantídio dos tradição em pessoa. Diz não gostar anos. Começou em um barco pesqueiro, antigos, Getúlio Pinheiro é
Santos descobriu ser um de trabalhar nem de lidar com o onde aprendeu a fazer comida caseira. Ade- gaúcho, mas já se conside-
ano mais velho. Culpa público. Considera o ser humano, nildo conta que o que mais lhe encanta no ra “cataúcho”. Com 38 anos
do pai, que o registrou ignorante e grosso, a pior espécie trabalho é quando alguém pergunta quem de profissão, fez curso no
atrasado. Hoje, Chico dá da face da terra. Mesmo assim, é fez o prato e o elogia. Para ele, a pior coisa é Senac e chegou a trabalhar
a idade da certidão: 63 dedicado, simpático e querido pelos receber crítica. Na ausência do chef, Adenil- no refinado Terraço Itália,
anos. funcionários. do é o encarregado pela cozinha. em São Paulo.
Em 1986, o ex-marinheiro vendeu - cozinheiro da Casa há 11 anos - descasca a saída dos pratos e outra para a entrada
o Bar do Chico e abriu o Chico’s Bar na mandioca. Ao todo, são quatro ajudantes e de louça suja. A máquina de lavar louça,
Avenida Beira-Mar Norte. Mais um bom dois cozinheiros. assim como a de copos, esteriliza tudo com
negócio. Em 1988, o proprietário recebeu No centro, um enorme fogão indus- água a 100°C. Quem lida com os copos e
uma oferta irrecusável e vendeu o ponto na trial com cerca de dez panelões a cozinhar. prepara as bebidas são os dois copeiros.
Beira-Mar. Mas Cantídio não tem do que Duas grandes geladeiras, também indus- Está tudo pronto. Às 11h30, as portas
reclamar. A Casa do Chico, hoje de frente triais, armazenam o que já está semipronto se abrem e agora é aguardar os fregueses.
para a Lagoa da Conceição, é tradição na tanto para o dia, quanto para a noite. Ade- Meio-dia chegam os primeiros, dois casais.
ilha e visita obrigatória para os turistas. Ao nildo agora esquenta a chapa, que deve ter Escolhem uma mesa na janela, onde têm o
lado do restaurante, fica o Chico’s Music dois metros por um, e limpa-a com óleo e privilégio de contemplar o magnífico espe-
Bar, uma mistura de bar e danceteria. sal, raspando com uma espátula. lho d’água, ainda mais bonito em um dia
O garçom Getúlio prepara as mesas, de sol como este. Em seguida, uma grande
A Rotina arrumando pratos, talheres, galheteiros. mesa se enche com uma família numerosa,
Sábado, 9h30 da manhã. Valdeci, um Durante a semana, a Casa conta com qua- provavelmente freqüentadora assídua do
dos 29 irmãos de Chico e gerente da Casa, re- tro garçons por turno. Sábado são cinco; restaurante. Antes das 13h, já são seis as
cebe as mercadorias nos fundos. Tudo chega domingo, seis. Getúlio diz que o prato mais mesas ocupadas.
in natura e é preparado no próprio restaurante. pedido é a seqüência de camarão e, quando É mesmo impossível o restauran-
O turno do dia começa cedo, às 8h, é época, a tainha também faz sucesso. te ficar vazio. Ambiente agradável, gente
e vai até ás 18h. Na cozinha, o chef Nes- - E a caipirinha? simples e de boa vontade, sempre com um
tor Larossa Moreno - negro, de meia-idade - Não é mais tão pedida quanto na sorriso no rosto. A Casa do Chico lembra
e “encorpado” - circula pra lá e pra cá. Uma época do Rei, mas ainda sai bem. mais um lar, aconchegante e acolhedor.
das ajudantes lava dezenas de pés de alfa- Da cozinha, despontam duas bo-
ce, outro pica legumes, enquanto Adenildo quetas (uma espécie de janela): uma para
21. 21
Receita
fonte: www.brasilsabor.com.br
Simples e refinado ao mesmo tempo, criado pelo próprio
Chico, o prato representa o restaurante na edição 2007 do
festival gastronômico Brasil Sabor. O linguado é um peixe
leve, se desfaz na boca e a camada crocante de corn flakes que
o envolve lhe dá um toque a mais. É interessante também a
inusitada combinação entre peixe e bacon. Além das cenouras,
o arroz com passas, cerejas e licor Cointreau dão um sabor
adocicado à receita. Não podia faltar o tradicional molho tártaro
que acompanha os pratos da casa e - estando em Florianópolis
- o camarão, é claro.
Ingredientes
•2 filés de linguado (150-200 g)
•8 tiras de bacon (pré-frito)
•50 g de flocos de milho (corn flakes)
•4 camarões médios
•150 g de arroz
•2 colheres de sopa de uvas passas
•4 cerejas em conserva (3 para o arroz e 1 para decorar)
Linguado crocante
•50 ml de licor Cointreau
•4 ramos de brócolis
`a
a mod do Chef
•50 g de cenoura baby
•50 g de batata baby
modo de preparo
Tempere os filés com sal, limão e pimenta branca e deixe
absorver os temperos por 10 minutos. Enrole cada filé com
4 tiras de bacon e prenda-os com palitos. Em seguida polvi-
lhe com trigo, passe no ovo e empane com corn flakes bem
moído, de maneira uniforme. Repita o processo para empa-
nar os camarões. Frite-os no óleo em uma temperatura mé-
dia de 150°C, por aproximadamente 10 minutos para o filé
de peixe e 5 minutos para os camarões. Deixe as passas e
3 cerejas picadas de molho no licor por cerca de 5 minutos,
enquanto os legumes cozinham. Em uma frigideira, coloque Casa do Chico
o arroz já cozido, adicione as passas e as cerejas e mistu- Av. das Rendeiras, 1620
re bem em fogo brando por 2 minutos. Decore o arroz com Lagoa da Conceição, Florianópolis
a cereja inteira, hortelã e salsinha a gosto. Acomode os filés Fone: (48) 3232-5132
no centro da travessa e os camarões e legumes em volta. ; Terça a domingo das 11h30 às 0h30
22. 22
[e ntrevist a ]
Ive Luna
A cantora vai além da sonoridade das
palavras, e brinca com a linguagem.
Uma música que encanta.
por Thiago Bora
Cheiro de chuva
I
ve Luna cresceu ouvindo na vitrola o disco
de vinil teimoso e velho. Ainda novinha,
decidiu estudar piano. Depois, fez aulas
de violão, canto, teatro. Graduou-se em
música pela Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC), participou do Grupo
Cupuaçu de Pesquisa e Danças Populares
(entre 1991 e 1992) e do grupo Teatro Jabuti
(de 1992 a 2003), com atuação na direção
musical, pesquisa e composição de trilhas
sonoras. Hoje, é vocalista da banda Cravo-
da-Terra.
Solta no braço da poltrona rosa – pessoa
literalmente em prosa -, Ive fala à ponto-e-
vírgula sobre sua vida, trabalho, estudos e,
claro, música.
fonte: www.soldaterra.com.br
23. 23
Ponto-e-vírgula - Quando começou seu interesse pela ; - O teatro ajuda na interpretação das músicas na hora
música? de cantar no palco?
Ive Luna - Minha família sempre foi muito festiva. Tenho Ive - Ter estudado teatro ajuda principalmente na minha
lembranças muito musicais de minha infância, tanto na concentração e no meu equilíbrio. Ajuda também a encontrar
casa de meus pais quanto na de meus avós. Em casa, meu espaço no palco e a viver a relação que construí com
meu pai tocava violão, bandolim e cantava. Minha mãe esse espaço durante a minha trajetória. O palco hoje é,
tocava piano, triângulo e cantava também. Tocavam baião, para mim, o lugar onde revivo as festas de minha infância,
valsa, músicas latinas, seresta. Na casa de meus avós, no onde posso compartilhar com meus colegas de trabalho e
subúrbio do Rio de Janeiro, meu bisavô tocava violão e com o público aquilo que é mais verdadeiro em mim e o que
todos cantavam. A música pra mim sempre simbolizou a escolhi fazer de minha vida. É para interpretar as músicas
festa onde se partilha do pão. Comecei a estudar piano aos que hoje subimos no palco. E se estivermos inteiros, elas
nove anos, violão aos 13 e canto aos 18. Desde muito cedo a vêm puras e aparecem como são. É claro que, para tanto,
música me alimentava, me acalmava, me ninava e me punha muitas horas de estudo foram despendidas.
de pé. No entanto, nunca pensei que fosse possível viver de
; - E quantas horas por dia você dedica à música, além
música. A decisão de tê-la como profissão veio bem tarde.
dos ensaios com a banda?
Aos 14 anos comecei a estudar teatro, pensando em ser
Ive - Isso depende muito. Quando estou menos atarefada,
professora ou coisa assim. Porém, na maioria das vezes que
eu era chamada para algum espetáculo, me encarregavam consigo estudar umas duas horas, ou compor, ou terminar
de tocar e cantar. Decidi, então, estudar música para tocar um arranjo. Como trabalho com outros músicos, tenho
e compor para o teatro. Aos 24 anos comecei a estudar ensaios quase todos os dias. É fundamental, portanto, ter
flauta para tocar no Teatro Jabuti. Hoje não trabalho mais pelo menos essas duas horas por dia para dar uma olhada
com teatro, embora continue pesquisando e fazendo trilhas, em tudo, mas nem sempre consigo.
o que me deixa mais tranqüila. fonte: www.soldaterra.com.br
“O palco
; - Ter participado do grupo Teatro Jabuti, na direção
hoje é,
musical, pesquisa e composição de trilhas sonoras,
para mim,
ajuda na hora de compor para o Cravo-da-Terra?
Ive - Ajuda muito. Para compor uma trilha é preciso certo
o lugar
compromisso com a linguagem desenvolvida no espetá-
onde revivo
culo. É preciso atentar para a unidade e para o tempo de
cada cena. Embora eu não tenha o mesmo compromisso
as festas
quando componho simplesmente, a experiência de com-
por trilhas me tornou consciente dos elementos que uso.
de minha
Componho com liberdade, mas sempre dou uma olhadi-
infância”
nha no que fiz.
24. 24
“Trago flauta transversa e flauta de bambu, por exemplo. Quais
os cuidados que você tem com a voz e o corpo?
em mim Ive - Eu tento sempre me poupar. Durmo bem, me alimento
o cheiro com consciência e pratico exercícios. Evito ingerir bebidas
geladas. Mas gosto de uma cervejinha, quando não vou
da chuva cantar naquela semana.
e do sal,
; - De todos os instrumentos que você toca, qual acha o
nos dias mais complicado? Por quê?
de matar Ive - Acho complicado tocar flauta transversa, porque
preciso tocá-la no palco e não sou instrumentista. Com os
aulas” outros que toco não tenho nenhum compromisso. Divirto-
me à vontade.
fonte: www.soldaterra.com.br
; - Você disse, em um show que fizeram na Universidade
; - Como você divide seu tempo, entre ensaios e estudos? Federal de Santa Catarina (UFSC), que o maior público
Ive - É muito maluco esse negócio de tempo. Todos de vocês são as pessoas daqui de Florianópolis. Como é
a sua relação com esses fãs?
devemos estudar em casa para aproveitar melhor o ensaio.
Ive - Florianópolis é o lugar onde eu cresci, engordei, fiquei
No entanto, temos outros trabalhos. Vivemos correndo
atrás das rédeas do tempo, mas não a alcançamos ainda. bem forte. Andei muito descalça por essa ilha, quando nela
Sou dona de casa. Preciso fazer almoço. Meus ensaios são ainda havia muita terra. Trago em mim o cheiro da chuva e
sempre à tarde. Portanto, tenho de estudar pela manhã, entre
do sal, nos dias de matar aulas. Lembro as cenas dos filmes
cafés e almoços. À noite prefiro compor e escrever projetos.
proibidos no cinema da UFSC, das caminhadas noturnas,
dos banhos de lagoa para despertar. O público daqui, pra
; - Nas horas livres você gosta de fazer o quê? mim, tem esse mesmo cheiro e humor jovial. É um público
Ive - Eu gosto de dormir. Acho que dormiria muito mais, colorido e desencanado. É por esse público que tenho mais
se pudesse. Gosto de ler um bom livro. Adoro umas respeito.
caminhadas longas na praia, umas corridas no asfalto e
umas braçadas na piscina. Cinema é sempre uma ótima ; - Você já se apresentou em vários lugares, qual foi o
pedida. Uma mesa com boa comida e muitos amigos. mais inusitado?
Jogar conversa fora com minha filha adolescente é incrível Ive - Aconteceu um fato muito engraçado com o Cravo-
e pega-pega com a filha menor é também muito divertido. da-Terra: era férias de verão e nós estávamos fazendo uma
Namorar é bom também! pequena turnê pelo litoral de Santa Catarina. Em São
Francisco do Sul havia uma tenda em uma pequena praça,
; - Você canta e toca vários instrumentos de sopro – onde se realizavam as missas diárias. No dia de nossa...
25. 25
apresentação a prefeitura do município não avisou aos fiéis que vivencio. De histórias que me contam. De sensações,
que no lugar da missa haveria nosso show na tenda. O padre de frio, de aperreio. Às vezes imagino cenas com cores e
estava presente. Nós já havíamos passado o som. Estava movimentos, e aí elas já têm um som, uma música tocando.
tudo pronto. Os fieis foram chegando e se acomodando Outras vezes penso numa história toda inteira, com um
nas cadeiras de plástico. Quando a tenda estava lotada, o personagem. Mas acho que componho, principalmente,
padre anunciou que haveria um show muito cultural com partindo de coisas que gostaria de compreender melhor.
a orquestra Cravo-da-Terra. Os fiéis ficaram desconfiados e
; - A vitrola ainda te chama pra dançar?
nós também. Demos boa noite a todos e começamos a tocar.
Ive - Bastante. E eu sempre vou, é claro! ;
O público começou a ir embora. Sobraram umas cinqüenta
pessoas curiosas. Foi bem difícil e muito engraçado.
Tocamos na missa e não agradamos muito.
“Tenho
; - E o quê você procura fazer, então, quando vê que a
platéia não está gostando muito?
muita crença
Ive - Continuo firme e forte. Tenho muita crença na arte
na arte que
que fazemos com verdade. Sempre busco entender o que
pode estar acontecendo para tentar mudar o quadro. Mas,
fazemos com
na maioria das vezes, infelizmente, não há o que fazer se
não tentar mostrar que o que temos pra oferecer é tudo
verdade”
o que temos, e podemos compartilhar com quem estiver
disposto.
; - Sente um nervosismo antes de pisar no palco?
Ive - Sempre. E é muito importante, a meu ver. Ficar um
pouco nervosa me deixa atenta e me obriga a usar técnica
“Demos boa
e concentração. São duas coisas importantes para começar
noite a todos
uma apresentação, até que ela esquente.
e começamos
; - Quanto tempo de trabalho para produzir o primeiro CD?
Ive - O primeiro CD foi resultado de dois anos de pesquisa
a tocar.
e composição. Fizemos duas turnês pelo estado com o show
O público
e só depois gravamos.
começou a ir
; - De onde vêm as inspirações para compor?
embora”
Ive - De quase tudo. De coisas que observo, que sonho,
26. 26
[e s por te]
A primeira vez
ninguém esquece
Cada detalhe, cada momento, tudo fica em nossa memória.
Nas páginas a seguir, Luisa Frey e Lucas Sarmanho
compartilham suas experiências com os leitores.
A propósito, você já foi ao estádio ver um jogo de futebol?
foto: Pedro Santos arte: Maurício Tussi