1) O documento discute a dialética do senhor e do escravo no contexto da consciência de si e do mundo do trabalho segundo Hegel e Marx.
2) A consciência de si passa por quatro momentos: desejo, vida, outro eu e reconhecimento. Na parábola do senhor e do escravo, um domina enquanto o outro é dominado através do trabalho.
3) Marx critica a alienação do trabalho onde o escravo está submetido ao senhor e não tem controle sobre si ou a natureza, enquanto o senhor só goza dos fr
A dialética do senhor e do escravo no contexto da consciência de si e o mundo do trabalho análise da alienação
1. A dialética do Senhor e do Escravo
no contexto da Consciência de si e o mundo do Trabalho.
Ricardo George de Araújo Silva1
1. A consciência-de-si: uma breve compreensão.
O presente texto se propõe a ser uma provocação em direção à figura da
consciência de si, exposta na fenomenologia do Espírito de Hegel, tendo como enfoque
central a dialética do senhor e do escravo, e suas implicações possíveis com o mundo do
trabalho. Nesse último momento, o da implicação com o mundo do trabalho, iremos
considerá-lo ancorados na crítica de Marx à tal passagem. Nessa oportunidade,
discutiremos o conceito de alienação.
Posto isto cabe esclarecer que se faz necessário, num primeiro momento,
entender esta figura da consciência, para, depois, considerar outros aspectos. Sendo
assim, iremos partir do pressuposto que a consciência de si, enquanto figura do espírito
que se desenvolve, chega-nos através de Hegel, com quatro momentos que merecem
consideração, a saber:
- O desejo
- A vida
- O outro eu
- O reconhecimento
É preciso considerar ainda que, nesse momento do desenvolvimento da
consciência, o seu objeto muda em relação às figuras anteriores, haja vista que já não
está em foco o dado da certeza sensível, a coisa da percepção, e nem a força do
entendimento, pois a consciência de si tem agora como objeto sua própria certeza, ou
seja, o que é sua verdade é sua pesquisa ou objeto de sua pesquisa. Dito isto, podemos,
agora, investigar a primeira dimensão da consciência de si. A saber, o desejo.
Enquanto desejo, a consciência de si se expressa como movimento. É, portanto,
dinâmica na busca de seu objeto, que encontra ao se debruçar sobre si mesma. Assim
sendo, a consciência é movimento de retorno, a partir do ser percebido e sentido sobre si
mesmo. Como movimento, a consciência busca outra que enquanto outro, é o diferente
a ser suprassumido. Contudo, ao fazer isso, suprassume-se também como consciência.
1
Mestre em Filosofia pela UFC (Financiamento FUNCAP). Professor da Universidade Federal Rural de
Pernambuco- UFRPE. (ricardogeo11@yahoo.com.br)
(85)8705-0122
1
2. Todo esse movimento de desejo é, de alguma forma, um movimento de busca da
consciência. Mas em que consiste essa busca da consciência? Na busca do outro, que
emerge como aquele que precisa ser superado, destruído. Para a consciência, pode ser
dissolvido esse outro, em sua própria identidade: Ocorre então uma catarse da
consciência, na qual ela se “purifica” do outro, ao produzir sua identidade. Isto ocorre
de tal modo, que a consciência de si se apresenta como a consciência da inquietude
tendo em vista que determinadas situações já não a satisfazem enquanto busca, por
exemplo como fazia o universal na certeza sensível. Assim, um momento chave da
consciência de si é o desejo, que, por natureza, impulsiona o movimento de retorno,
nesse contexto um movimento de retorno da consciência sobre si, no qual se opera o
confronto do Eu com o Eu, na tentativa de afirmar identidade pela diferença negada.
Contudo, esse movimento de desejo é desejo por algo, que, na consciência de si, emerge
como desejo pela vida.
Assim, a vida é o desejo da consciência de si. Isto é, trata-se do semelhante, pois
tem estrutura homóloga que precisa fazer a experiência da independência.
Independência essa que se efetiva em relação ao seu objeto, que se apresenta em sua
essência de infinito como ser suprassumido de todas as suas diferenças. Portanto, como
puro movimento. Essa vida, que se caracteriza por sua infinitude, encontra sua
expressão máxima na diversidade dos seres, e, assim, na singularidade de cada um
deles, reconstitui sua unidade do todo. Tudo ocorre de modo que negada a negação da
diversidade, efetiva-se a volta à unidade.
Essa unidade, agora alcançada, coloca-nos dentro do terceiro momento,
anteriormente anunciado, a saber: o outro eu, haja vista que, precisamente aqui, parte-se
de uma unidade, não qualquer unidade, mas uma unidade refletida, isto é, unidade
enquanto retorno e movimento que só foi possível de se efetivar pela dialética até então
desenvolvida. O que nos leva a compreender que esta unidade é resultado de uma
suprassunção de todos os momentos anteriores, e, agora, emerge como unidade reflexa
de si.
É preciso tornar claro que, neste momento da experiência da consciência, seu
objeto é abstrato, ou seja, um puro Eu, simples essência, o que significa que seu
movimento é ainda necessário para poder enriquecer-se de várias e possíveis
determinações, pois não está completo e precisa continuar o percurso dialético até
atingir o máximo de determinação do processo da vida. Isto será possível da seguinte
maneira: a consciência que se soube enquanto consciência, isto é, que adquiriu sua
2
3. certeza através da suprassunção do outro, que emergia como independente, entra em
cena, como desejo, ou seja, a destruição do outro surge como uma necessidade da
consciência de si. Portanto, como algo objetivo a ser realizado. Contudo, é preciso
observar que, para o outro ser suprassumido, tem que necessariamente existir como
independente. Buscando perceber esse existir independente, vai suprassumir esse outro
enquanto consciência, através da sua relação negativa com ele. Assim sendo, temos a
consciência, reproduzindo-o como outro, e se reproduzindo como desejo incansável.
Podemos concluir que ao realizar esse movimento de negação e desejo do outro,
a consciência-de-si se apresenta para outra consciência-de-si, e, só assim, é possível
uma plena realização, pois, nesse contexto, encontra uma efetiva unidade do seu si com
o seu outro.
Ao chegarmos nesse ponto, o da relação do si com o ser outro, entramos na seara
do reconhecimento. Reconhecimento que, por exigência lógica, só pode ser em uma
relação, portanto, com outro ou outra consciência. Assim, para que a consciência-de-si
seja, há outra consciência-de-si que emerge como vindo de fora. Ocorre aqui o
reconhecimento da alteridade, a partir de um caráter de dupla suprassunção, haja vista
que é suprassumida a alteridade essente, e, ela própria, enquanto dupla reflexão ou
duplo retorno à igualdade consigo mesma.
Por fim, temos esse movimento do reconhecimento estabelecido como operação
de uma das consciências. Contudo, não é de forma unilateral que isto ocorre, pois essa
operação é tanto de uma consciência quanto da outra, ou seja, trata-se de uma operação
comum. Aqui ocorre a superação do desejo, na qual o objeto encontra-se estático diante
da consciência, agora o movimento é, unicamente, o duplo movimento de duas
consciências, em que uma vê a outra realizar a mesma coisa que ela realiza, executar o
que a outra exige, fazer o que faz enquanto a outra faz também.
Dito isto, cabe agora observar o desdobramento desse movimento como efetiva
relação. É a experiência que a consciência-de-si faz do reconhecimento. Processo
iniciado a partir da desigualdade de duas consciências-de-si: uma que só reconhece e
outra que só é reconhecida. Entramos aqui na parábola do senhor e do escravo.
2. Parábola do Senhor e do Escravo: ou a contenda da
consciência-de-si.
Na contenda do senhor e do escravo temos posto uma luta de vida e de morte,
haja vista que a consciência-de-si tem agora que relacionar-se com outra consciência-
3
4. de-si. Contudo, esse outro é, para ela, sempre negativo, desprovido de significado. Na
medida em que, ela toma o outro como inessencial. Esse relacionamento de duas
consciêcia-de-si, que ainda não se conhecem, só pode proporcionar um não
reconhecimento, pois se enfrentam como simples indivíduos, que ainda não se
apresentaram um ao outro como consciência-de-si. Fica claro, neste momento inicial,
que cada uma tem consciência de si, mas não tem do outro. Portanto, não possui a
verdade na sua certeza. Como nos diz Hegel:
“Para a consciência-de-si há uma outra consciência-de-si[ou seja]: ela
veio para fora de si. Isso tem dupla significação: primeiro, ela se
perdeu a si mesma, pois se acha numa outra essência. Segundo, com
isso ela suprassumiu o Outro, pois não vê o Outro como essência, mas
é a si mesmo que vê no Outro. A consciência-de-si tem de
suprassumir esse seu –ser-outro(Hegel: 1997 p.126.)
Assim sendo, percebe-se que a elaboração do reconhecimento não constitui
tarefa fácil, contudo se configura nesse contexto como condição sine qua non para uma
consciência que se quer saber em si e para si. De tal modo que o outro emerge com
importância e significado destacado. Cabe, contudo, esclarecer que reconhecer não é
perder a identidade, mas passa, sem dúvida, pelo risco da vida ao se confrontar com o
outro. Assim, temos que pela mediação do outro é que se efetiva o reconhecimento que
pode ser expresso da seguinte forma: A não é A, mas A é A porque não é B, ou seja,
não se trata de uma simples tautologia, mas é sobretudo um reconhecimento a partir do
outro, que significa meu sentido de ser.
Esse reconhecimento se dá pelo risco da morte, ou seja, é preciso lançar-se na
disputa para alcançar o reconhecimento, pois esse não vem sem o arriscar-se, e pode até
vir, mas um indivíduo que não arriscou a vida, terá um reconhecimento sem ter
alcançado a verdade desse reconhecimento, enquanto reconhecimento de uma
consciência-de-si independente. O que nos mostra que todo relacionar-se intersubjetivo
é um relacionar-se no perigo que o outro representa, não há, portanto, segurança posta
ao ir de encontro a esse enfrentamento, contudo não há ganhos ficando inerte. A vida é,
portanto, o arriscar-se em direção a outra consciência que aponta a liberdade e o
reconhecimento completo. Para Hegel:
“Devem travar essa luta, porque precisam elevar à verdade, no Outro
e nelas mesmas, sua certeza de ser-para-si. Só mediante o pôr a vida
em risco, a liberdade [se conquista]; e se prova que a essência da
consciência-de-si não é o ser, nem o imediato como ela surge, nem o
seu submergir-se na expansão da vida; mas que nada há na
consciência-de-si que não seja para ela momento evanescente; que ela
é somente pura ser-para-si. O indivíduo que não arriscou a vida pode
bem ser reconhecido como pessoa; mas não alcançou a verdade desse
4
5. reconhecimento como uma consciência-de-si independente” (Hegel:
1997 p.128 e 129)
Assim, como em qualquer enfrentamento, quando se tem o foco da vida, se tem
o foco da morte do outro, de tem que ser suprassumido em alteridade. tem, portanto que
pôr a vida do outro em risco. Nesse enfrentamento, a consciência se encontra com a
pureza do seu-para-si como negação absoluta, ao deixar de ser consciência perdida. Esse
relacionamento que se pauta no risco da vida e na possibilidade da morte, põe em relevo
a consciência dos lutadores que se enfrentam. A morte é a negação natural da
consciência, enquanto a negação dialética, que caracteriza a consciência, suprime o que
conserva e retém o que suprime: suprassume, como dizemos. Nesta experiência, a
consciência-de-si fica ciente de que a vida lhe é tão essencial quanto a pura consciência-
de-si. Assim, nos esclarece Hegel:
“ Mediante a morte, sem dúvida, veio-a-ser a certeza de que ambos
arriscavam sua vida e a desprezavam cada um em si e no Outro; mas
essa[certeza] não é para os que travam essa luta. Suprassumem sua
consciência posta nesta essencialidade alheia, que é o ser aí natural,
ou [seja], suprassumem a si mesmos, e vêm-a-ser suprassumidos
como os extremos que querem ser para si. Desvanece porém com isso
igualmente o momento essencial nesse jogo de trocas. (Hegel:1997
p. 129)
Nesse confronto de duas consciências emergem dois personagens centrais: o
senhor e o escravo. Nesse contexto, surge uma dimensão a se destacar: a dimensão da
dominação. Cabe esclarecer que, nessa perspectiva da dominação, é importante destacar
que sua relação consigo se estabelece através de outra consciência, a qual se define
como ser independente, ao nível das coisas, objeto de desejo. Assim sendo, o escravo
cumpre o papel mediador da relação do senhor com a coisa -o desejo- isto é, o escravo
garante o gozo do senhor, assim o escravo lida com a independência do ser pelo
trabalho. Ao senhor, nada mais resta, e faz sentido, a não ser usufruir. O senhor, então,
apenas goza. Nesse movimento relacional e intersubjetivo, o senhor alcança o
reconhecimento e o escravo se revela como inessencial, por não ter como dominar o ser,
nem chegar à negação absoluta. Em outras palavras, ao escravo resta o trabalho, e,
através deste, o domínio da natureza por sua negação, enquanto o senhor goza da sua
astuta estratégia de colocar entre ele e a natureza -coisa- escravo emerge como a
consciência que o reconhece. Nesta relação, o senhor aparece como o prisma de homem
do escravo. Sendo assim, o que o escravo faz é justamente o agir do senhor, para a qual
somente é o ser-para-si, a essência: ele emerge como pura potência negativa para a qual
5
6. a coisa é nada. O agir do escravo não é um agir puro, mas um agir inessencial. Como
nos esclarece Hegel:
“O senhor também se relaciona mediatamente por meio do escravo
com a coisa; o escravo, enquanto consciência-de-si em geral, se
relaciona também negativamente com a coisa, e a suprassume. Porém,
ao mesmo tempo, a coisa é independente para ele, que não pode
portanto, através o seu negar, acabar com ela até a aniquilação; ou
seja, o escravo somente a trabalha. Ao contrário, para o senhor,
através dessa mediação, a relação imediata vem com pura negação da
coisa, ou como gozo.”(Hegel: 1997 p. 130-131)
Contudo, é precisamente nesse momento da negação do escravo, que emerge na
consciência escrava o caminho em direção ao reconhecimento, haja vista que o escravo
faz em si o que o senhor realiza nele, ou seja, vem à tona o momento em se suprassume
como ser para si, além do movimento da operação comum das duas consciências, isto é,
o que escravo faz é obra do senhor, que o é para si, só fica faltando o momento da
consciência plena de si do escravo.
Essa tomada de consciência do escravo se dá, segundo Hegel, pela formação que
o trabalho vai lhe proporcionar, conduzindo o escravo a um processo de auto-
consciência formativa. É, portanto, nesse momento formador, que o escravo desperta
para o reconhecimento de si, sendo na formação, que o para si se torna seu próprio ser
para ele, alcançando agora a consciência-de-si em si e para si.
Portanto, é no trabalho, instância que parecia externa a si, que vai se descobrir e
atingir sua verdade para si. O trabalho emerge como fonte de formação e libertação da
consciência escrava. Assim, de início, toma o senhor por sua verdade; porém, ao fazer a
experiência da pura negatividade do ser-para-si, já tem a verdade em si mesma.
Contudo, para alcançar essa verdade em si, o escravo não tem como prescindir de dois
momentos centrais, a saber: o medo e a atividade formadora. Haja vista que para
alcançar o objetivo do reconhecimento careceu da disciplina do medo e obediência,
além da atividade formadora. Como afirma Hegel:
“Entretanto, esse movimento universal puro, o fluidificar-se
absoluto de todo o subsistir, é a essência simples da consciência-de-si,
a negatividade absoluta, o puro ser-para-si, que assim é nessa
consciência. É também para ela esse momento do puro ser-para-si,
pois é seu objeto no senhor, Aliás, aquela consciência não é só essa
universal dissolução em geral, mas ela se implementa efetivamente no
servir. Servindo, suprassume em todos os momentos sua aderência ao
ser-aí natural;e,trabalhando-o, o elimina. Mas o sentimento da
potência absoluta em geral, e em particular o do serviço, é apenas a
dissolução em; embora o temor do senhor seja, sem dúvida, o inicio
da sabedoria a consciência ai é para ela mesma, mas não é o ser-para-
si; porém encontra-se a si mesma por meio do trabalho.(...) O trabalho
6
7. é desejo refreado, um desvanecer contido, ou seja, o trabalho
forma”.(Hegel: 1997 p. 132)
Por conseguinte, cabe indagar qual sentido queremos destacar dessa passagem a
que nos propomos esclarecer, qual seu significado? Entendemos que Hegel tem uma
visão otimista do processo aqui tratado em relação ao conceito de alienação e da função
do trabalho, neste contexto, ao entendê-lo como liberdade recuperada. Afirmamos isto
porque tendo diante dos olhos o contexto da parábola, encontramos a seguinte situação,
que agora sintetizaremos de maneira mais didática: “Dois indivíduos lutam entre si e um
deles sai vencedor, podendo matar o vencido; este, no entanto, prefere se submeter, não
ousando sacrificar a própria vida. A fim de ser reconhecido como senhor, o vencedor
“conserva” o outro como “servo”. Depois disso, é o servo submetido que tudo faz para o
senhor, mas, com o tempo, o senhor descobre que não sabe fazer mais nada, porque
entre ele e o mundo, colocou o escravo, que domina a natureza. O ser do senhor se
descobre como dependente do ser do servo e, em compensação, o servo aprendendo a
vencer a natureza, recupera de certa forma a liberdade. O trabalho surge, então, como
expressão da liberdade recuperada.
Esta exposição sintética da parábola do senhor e do escravo tem por objetivo
demonstrar a visão otimista de Hegel em que o trabalho seria essa expressão dos
desiguais que se reconheceriam mutuamente. “Eles se reconhecem como se
reconhecendo reciprocamente” (Hegel: 1997 p.127), ao que parece aquela alienação
inicial do escravo, que abdica da liberdade em troca pela vida, é recuperada via
trabalho, que seria o momento de formação e purificação.
Esta visão foi retomada por Marx como uma crítica a de que não há essa
recuperação da liberdade perdida. É bom tornar claro que Marx, ao afirmar que não há
como recuperar a liberdade perdida, está considerando o contexto da sociedade
capitalista, portanto, sua leitura da parábola do senhor e do escravo centra-se, nesse
contexto, como uma crítica à visão idealista de Hegel, que não considerou as situações
concretas de existência dos indivíduos, mas centrou-se em uma exposição conceitual.
Sendo assim, Marx toma como foco aquele localizado nesse específico modelo
econômico de organização, ou seja, o capitalismo. Marx Entende que essa estratégia de
exposição hegeliana ficou por demais no conceito puramente especulativo, ou seja, para
Marx só tem sentido investigar a categoria de alienação no contexto do mundo do
7
8. trabalho, ou estaríamos apenas na especulação ideal do espírito, como fez Hegel. Assim
analisa Marx:
“Todo movimento vai assim terminar no saber absoluto. Trata-se
precisamente do pensamento abstrato do qual os objetos se encontram
alienados e que eles confrontam com sua pretensa realidade. (...) toda
a história da alienação e toda a retração da alienação. Se reduz,
portanto, à história da produção do pensamento abstrato, isto é, do
pensamento absoluto, lógico, especulativo” (Marx: 1993 p. 243)
Assim, observamos que, segundo Marx, o interesse de Hegel está no conceito na
especulação do espírito, e não alcança a materialidade, a vida escapa-lhe, dessa forma,
as questões pertinentes ao mundo do trabalho que inviabilizam a recuperação de uma
liberdade perdida como queria Hegel.
Marx retoma esse conceito, puramente especulativo, de Hegel, a saber: a
alienação, nos textos de sua produção juvenil, e, então, o desenvolve, considerando a
situação do trabalhador no sistema capitalista. Marx aponta que o equívoco de Hegel
reside no fato dele confundir objetivação, que é o processo pelo qual o homem se
coisifica, com a alienação que é, por sua vez, o processo pelo qual o homem se torna
alheio a si, a ponto de não se reconhecer. A alienação emerge, nesse contexto, como
prejuízo maior da sociedade capitalista. Neste âmbito, é oportuno destacar que a
propriedade privada exerce um papel de destaque ao funcionar como lócus da alienação
do operário, haja vista que é ela que realiza a cisão entre o operário e o produto de seu
trabalho (que pertence ao capitalista), tanto quanto a situação do trabalhador que
continua fora da “órbita” do trabalho. O trabalho permanece exterior ao operário, não
pertence a sua personalidade. Assim, no trabalho, o operário não se reconhece, não se
afirma, nem se realiza. Encontrando-se consigo mesmo apenas fora da esfera da
produção do trabalho. Assim sendo, o trabalho não recupera a liberdade perdida como
queria Hegel, ao contrário, ele aumenta o hiato entre as relações estabelecidas, e o
processo de reconhecimento não se efetiva. O que ocorre é que a alienação se agudiza,
pois, metaforicamente falando, ela se alimenta da humanidade do operário,
coisificando-o, e sugando, do mesmo, sua essência de homem. A alienação se agudiza
porque o trabalho aparece como antagônico ao operário, que nele se sente infeliz, fora
dele e estranho a ele. O operário não se reconhece no trabalho. Como diz Marx:
“A alienação do trabalhador no seu produto significa não só que o
trabalho se transforma em objeto, assume uma existência externa,
mas que existe independentemente, fora dele e a ele estranho, e se
torna um poder autônomo em oposição com ele; que a vida que deu
8
9. ao objeto se torna uma força hostil e antagônica. (...) Em primeiro
lugar, o trabalho é exterior ao trabalhador, quer dizer, não pertence à
sua natureza; portanto, ele não se afirma no trabalho, mas nega-se a si
mesmo, não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve livremente as
energias físicas e mentais, mas esgota-se fisicamente e arruína o
espírito. (...) Assim, o seu trabalho não é voluntário, mas imposto, é
trabalho forçado. Não constitui a satisfação de uma necessidade, mas
apenas um meio de satisfazer outras necessidades. (...) (Marx 1993
p.1160 e 162)
Tendo observado esse panorama, podemos definir que a situação do trabalhador
na sociedade capitalista é semelhante a do servo que não alcança a realização e o
reconhecimento do senhor (patrão), ao contrário a única relação possível é do
enfrentamento, pois a do reconhecimento só se efetiva unilateralmente, se possível for.
O que se pode constatar é que, na sociedade capitalista, quanto maior for o consumo,
maior ainda será o distanciamento do operário em relação ao que consumiu, ou seja,
menos acesso terá à riqueza por ele produzida. Assim, o trabalhador aparece como o
indivíduo capaz de produzir riquezas para outrem em detrimento de sua dignidade,
ficando apenas com o aumento de sua miséria, proporcional ao aumento da satisfação
material do capitalista, dono dos meios de produção. Poderíamos, ironicamente, afirmar
que o trabalhador, na lógica do capital, é um “altruísta,” capaz de esquecer-se de si,
enquanto classe oprimida, e favorecer ao reduzido número dos dominadores. É evidente
que isto só pode ser afirmado enquanto ironia, haja vista que, na realidade, temos uma
relação de estranhamento do operário com seu produto, e com a riqueza que produz. Já
que não tem acesso a mesma, ficando ele, o operário idiotizado nessa relação que só o
nega, enquanto seu trabalho afirma o de outros, como nos esclarece Marx.
“A alienação do trabalhador exprime-se assim nas leis da economia
política: quanto mais o trabalhador produz, tanto menos tem de
consumir; quanto mais valores cria, tanto mais sem valor e mais
indigno se torna; quanto mais refinado o seu produto, tanto mais
deformado o trabalhador;quanto mais civilizado o produto tanto mais
bárbaro o trabalho; quanto mais poderoso o trabalho, tanto mais
impotente se torna o trabalhador; quanto mais brilhante e pleno de
inteligência o trabalho, tanto mais o trabalhador diminue em
inteligência e se torna servo da natureza”(Marx: 1993 p.161)
Em outras palaavras:
“Claro, o trabalho produz maravilhas para os ricos, mas produz a
privação para o trabalhador. Produz palácios, mas casebres para o
trabalhador. Produz beleza, mas deformidade para o trabalhador.
Substitui o trabalho por máquinas, mas lança uma parte dos
trabalhadores para um trabalho bárbaro e transforma os outros em
máquinas.” (Marx: 1993 p. 161).
9
10. Visto como ocorre a alienação no sistema capitalista, e entendido que o trabalho,
nesse sistema, exerce uma função alienadora, colocamos em destaque, de forma mais
direcionada, os sentidos da categoria alienação, descortinando, assim, suas faces.
3. Os significados do conceito de Alienação e sua relação histórica.
O conceito de alienação em Marx deve ser entendido pelo menos em quatro
dimensões, a saber:
I. O homem está alienado da natureza;
II. Está alienado de si mesmo (de sua própria atividade);
III. De seu “ser genérico” (de seu ser como membro da espécie humana);
IV. O homem está alienado do homem (dos outros homens) 2
O primeiro desses aspectos, que já foi por nós destacado em momentos
anteriores, é a característica que se expressa na relação do trabalhador com seu
produto, que na visão de Marx é a relação com o mundo sensível exterior com os
objetos da natureza. A outra característica subseqüente é a expressão de trabalho,
como o ato de produção no interior do processo deste trabalho, isto é, a relação do
trabalho com sua própria atividade como alheia, que não oferece satisfação em si e
por si mesma. Mas, apenas para atender o ato de vendê-la a outra pessoa. Assim,
observamos que a sua satisfação encontra-se diluída na satisfação de quem consome o
que produziu, isto é, a atividade do trabalho não lhe proporciona realização, tendo em
vista que isto se cumpre apenas como uma propriedade abstrata dela: a possibilidade
de vendê-la em certas condições. Marx também nomeia a primeira característica
“estranhamento da coisa” e a segunda “ auto-estranhamento.” 3
A terceira característica diz respeito à alienação do homem com seu ser
genérico. Este aspecto esta diretamente ligado, à idéia segundo a qual o objeto de
trabalho é a objetivação da vida da espécie humana. Haja vista que o homem se
duplica tanto enquanto consciência intelectual, como também enquanto efetivação.
Completando-se, por isso, a si mesmo, num mundo criado por ele. Contudo, o
trabalho alienado realiza no ser genérico do homem, um estranhamento, colocando-o
perdido enquanto ser, sem sentido, maculando seu relacionamento interior e exterior.
2
Mészáros.István. A teoria da Alienação em Marx. Trad.Isa Tavares. São Paulo. ED. Boitempo. 2006. p.
20
3
Idem. p.20
10
11. Esta é, portanto, a alienação do homem com a humanidade em geral, ou seja, ocorre
aqui a alienação da “condição humana,” por meio do ato de produzir do capitalismo
que conduz o homem ao rebaixamento, coisificando-o. Na quarta característica o que
está considerando-se é a relação do homem com outros homens. Como nos diz Marx:
“Uma conseqüência imediata da relação do homem a respeito do
produto do seu trabalho, da sua vida genérica, é a alienação do
homem relativamente homem. (...) De modo geral, a afirmação de
que o homem se encontra alienado de sua vida genérica significa que
o um homem está alienado dos outros, e que cada um dos outros se
encontra igualmente alienado da vida humana. (Marx. 1993 p. 166)
Entender esse processo pelo qual a alienação entra na história e manifesta o
homem coisificado, é, de alguma forma, passar pela história da dominação que
demonstrou o quanto a esfera do trabalho é negadora da realização do homem, sendo,
portanto, seu principal aspecto de desumanização ao longo da história o que nos leva a
observar que a questão da alienação está diretamente relacionada à questão do produto
excedente e da mais-valia; e às várias fases no desenvolvimento da economia política,
que são características para Marx de acordo com a posição, com respeito à origem e à
natureza da mais- valia. Eis uma tabela comparativa para ilustrar suas inter-relações e
desenvolvimento4.
Forma dominante de Forma dominante de Estágio correspondente Sua esfera de referência
propriedade trabalho de economia política e sua visão da mais-valia
Propriedade agrária Servidão Sistema monetário Circulação; sem visão
que atingiu um grau definida da mais-valia
relativamente elevado de
acumulação de riqueza
Propriedade agrária Trabalho feudal, servil, Sistema mercantil Circulação; a mais-valia é
com interesses comerciais dando os primeiros passos identificada com o
e em expansão colonial - para emancipação polltica excedente monetário,
portanto, nacionalmente o superávit da balança
consciente comercial
Propriedade agrária Trabalho agricola ainda Fisiocracia Produção agricola;
modernizada e sujeito a determinações a mais-valia é vista como
profundamente afetada políticas produto do trabalho
pelas realizações do agricola, posto em
sistema de manufatura e operação pela propriedade
pelo progresso do capital que produz rendimentos
Capital industrial Trabalho industrial Economia politica liberal Produção em geral; a mais-
livre de todas as politicamente emancipado valia é definida como
determinações (diarista, trabalho produzida pelo trabalho em
políticas e naturais assalariado) geral, posto em operação
pelo capital
Ao observarmos a tabela, podemos verificar que o desenvolvimento da
economia política liberal corresponde ao desenvolvimento histórico da propriedade
agrária feudal até o capital, e da total dependência política do trabalho (servidão) até o
4
Idem. p. 130.
11
12. trabalho industrial politicamente emancipado.5 Este panorama nos esclarece que não há
como pensar a questão da alienação desligada da questão da produção e das relações de
produção, nem do aspecto excedente da produção. Assim, nesse contexto, a economia
política liberal representa o ápice desse processo de desenvolvimento. Essa
superioridade da economia política liberal que exacerba o excedente (mais-valia) é
reconhecida por Marx nas seguintes questões.
1. Define o capital como trabalho armazenado.
2. Mostra que a acumulação do capital aumenta com divisão do trabalho e que a
divisão do trabalho aumenta com a acumulação do capital.
3. Descreve de modo agudo e consistente embora unilateralmente a idéia de que o
trabalho é a única essência da riqueza.
4. Acaba o misticismo da renda da terra.
5. Prova que o poder governante da sociedade moderna não é político mas
econômico; o poder de comprar do capital, e finalmente;
6. Estabelece-se como única política e única universalidade tornando evidente seu
próprio caráter cosmopolita.
3. Conclusão
Tendo por base as questões acima, trabalhadas chegamos à conclusão a respeito
do conceito de alienação como negação do homem enquanto homem, e, sobretudo,
negação do seu fazer, haja vista que é no mundo do trabalho que deveria existir a
consolidação e realização do ser, na medida em que é dessa esfera, o trabalho, que
provém o existir humano. Contudo, na sociedade capital, o trabalho emerge como
antagônico ao ser do homem, tornando-se, assim, estranho a ele, e, a sua condição de
produtor (homo faber), pois quanto mais produz, menos tem acesso ao que produziu,
isto é, nada mais estranho ao trabalhador do que seu produto, que aparece, em benefício
de outrem, como riqueza produzida, e, em detrimento do operário, como miséria
estabelecida. Portanto, seguindo a compreensão de Marx, não podemos definir no
contexto da sociedade capitalista o trabalho como liberdade recuperada, pelo contrário,
só podemos entendê-lo como fonte de alienação permanente, na medida em que se
organiza como estranho à realização do operário, e negador de sua realização como tal.
A alienação encontra, portanto, no mundo do trabalho, a salvaguarda necessária para
perpetua sua lógica de exclusão e negação do outro (operário), que nessa sociedade não
alcança o reconhecimento.
5
Idem. p. 130
12
13. Referência Bibliográfica
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Scritta Editorial.1991
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