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TOTALITARISMO E SOCIEDADE DE MASSAS: O ESPAÇO
                  PÚBLICO EM RISCO.1
                                                                                 Prof. Ms. Ricardo George2




Resumo
O presente texto tem por objetivo trazer à baila o debate em torno do Totalitarismo e sua relação com a
sociedade de massas. Busca-se aqui esclarecer os efeitos de uma sociedade despolitizada, marcada por
homens e mulheres atomizados e politicamente desengajados do espaço público. Pretendemos, pois, sem
querer esgotar o debate, pontuar os malefícios do totalitarismo, enquanto pretenso regime político que,
fazendo uso da violência e do terror, encontrou respaldo legal e apoio nas massas que por estarem
despossuídas de um significado político, passam a se “encantar” com as estratégias de um movimento que
visa apenas o domínio total, sem considerar os meios para alcançar seu objetivo.

Palavras chaves: Totalitarismo, Massas, Violência.




abstract
The present text aims to bring up the debate around the Totalitarianism and its relationship with the
society of masses. Its objective here is to explain the effects of a not political society, marked by men and
women atomized and politically not envolved in the public space. We do not intend, therefore, to end the
debate, but to point out the harms of the totalitarianism, that as an assumed political regime, making use
of violence and terror, found legal support in the masses that are not filled with a political meaning, they
were deceived by the strategies of a movement that just seeks the total domain, without considering the
means to reach its objective.

Key-Words: Totalitarianism, Masses, Violence.




1
  Este artigo é parte integrante da nossa Dissertação de Mestrado intitulada: Política e Liberdade em
Hannah Arendt, defendida em janeiro de 2006, no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal
do Ceará - UFC. Este trabalho foi realizado sob a orientação do Prof. Dr. Odílio Alves Aguiar, da UFC e
contou com uma bolsa de incentivo à pesquisa da Funcap.
2
  Prof. Assistente I da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).

                                                     1
O TOTALITARISMO COMO PRETENSO REGIME POLÍTICO E
SUA RELAÇÃO COM AS MASSAS

        Origens do totalitarismo entra no cenário editorial como um dos textos mais
marcantes do pensamento político contemporâneo. Ao tratar do tema ‘totalitarismo’,
Hannah Arendt se propõe esclarecer algo que para ela é novo, ou seja, algo que não tem
precedentes na história (ARENDT, p. 343). Essa novidade política traz no seu bojo a
pretensão de domínio total, o uso da violência e a negação da liberdade. O totalitarismo
surge, assim, como sistema negador da política. Apoiado nas massas, nelas encontra
terreno fértil para cultivar sua ideologia. No processo de “atomização da sociedade”,
fruto da falta de interesse comum das massas e desenraizamento político, o sistema
totalitário estrutura seu edifício de terror e domínio total. Nessa perspectiva,
encontramos as massas como constituindo a estrutura básica do totalitarismo3, isto é, os
governos totalitários edificam-se sobre bases que são as massas que eles organizaram
politicamente. Podemos perceber, então, que as massas ocupam lugar central no
contexto do totalitarismo e servem a esse regime em várias frentes, pois lhes são
solícitas quanto à implantação de uma ideologia, já carecem de enraizamento e
identidade política. Elas lhes são solícitas quanto ao contingente numérico que
fortalecem os partidos totalitários e os também os favorecem com a condução ao poder
pelas vias democráticas, como ocorreu com Hitler e o Nazismo na Alemanha do período
entre guerras, o que nos conduz à reflexão de que os movimentos totalitários colocaram,
à vista de todos, duas fragilidades dos regimes democráticos parlamentares (ARENDT,
p. 362), a saber:
             a) a crença de que povo, em sua maioria, participa ativamente do governo
                  e,
             b) de que as massas neutras e desarticuladas constituem apenas o “pano de
fundo silencioso” da vida política da nação.

             Nesse contexto de relações frágeis ou até inexistentes entre os homens é que
encontramos elementos para afirmar que as massas fornecem material para a construção




3
  Duarte (2000, p. 48) esclarece o quanto as massas são importantes na estrutura básica do sistema
totalitário. Assim diz ele: “As massas constituem o ingrediente ou a matéria básica da configuração dos
governos totalitários, pois eles se alimentam justamente da possibilidade da sua organização e
destruição.”

                                                  2
do que Arendt chamou de movimento totalitário.4 Cabe aqui a distinção entre
movimento e regime totalitários na medida em que Hannah Arendt põe abaixo a
máxima segundo a qual uma sociedade democrática não pode conviver com um
movimento totalitário. Segundo Newton Bignotto, o que se observou na Alemanha e o
que vemos nas sociedades atuais é que as democracias são passíveis de ser usadas pelos
movimentos extremistas exatamente porque não podem impedir a manifestação de
divergências. Nunca é demais lembrar que Hitler chegou ao poder por meios legais. No
entanto, as massas, dadas suas características, só se tornam ativas quando conduzidas
por um líder, que lhes empresta um rosto e confere sentido a suas ações.5
             O papel do líder para as massas funciona como o do pastor de ovelhas para
o rebanho de modo que, sem pastor, o rebanho fica sem rumo, e lhe falta à identidade. O
pastor é aquele que direciona e que fornece segurança a respeito do futuro: “Ele conhece
o caminho”. Essa metáfora nos ajuda a entender a importância do líder, daquele que
direciona e conhece o caminho. As massas, então, devotam a esse líder a esperança e
aquilo que lhes falta. Agora, fincam raízes sobre a ideologia que esse líder-pastor lhes
oferecer, sendo as palavras deste a verdade, e suas bandeiras, a glória. As massas
encontram identidade ainda que sob a forma de manobra. É a manobra a grande forma
de dominação e controle utilizada pelo movimento totalitário junto às massas, já que o
isolamento social é uma de suas grandes características, o que favoreceu a ação do
movimento totalitário. A respeito disso nos diz Arendt:

                           A verdade é que as massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada,
                           cuja estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram
                           controladas quando se pertencia a uma classe. A principal característica do
                           homem de massa não é a brutalidade nem rudeza, mas o isolamento e a sua
                           falta de relação. (ARENDT, p. 366-367).

             As massas, nesse contexto, apresentam-se como os habitantes de uma parte
destruída do espaço político, isto é, são aqueles para quem o espaço da ação e do
discurso não tem sentido, porque já não há nessas pessoas vínculo social ou motivação
política, sendo sua grande marca a apoliticidade. Assim, indicam, por sua presença, um
espaço público negado, onde ela mesma pode ser eliminada, justamente por não ocupar




4
  Cf. ARENDT, p. 373: “Movimentos totalitários são organizações maciças de indivíduos atomizados e
isolados, distinguem-se dos outros partidos e movimentos pela exigência de lealdade total, irrestrita e
incondicional e inalterável de cada membro individual.”
5
  Cf. BIGNOTTO, Newton. O totalitarismo hoje. In: AGUIAR et al., 2001, p. 39.

                                                  3
o espaço público, sendo esse vácuo de ação solo fértil para o controle das massas. É,
portanto, sua inércia diante da cena pública que a conduz a manipulações de toda sorte.6


              Hannah Arendt, em nota de rodapé da terceira parte de Origens do
Totalitarismo (p. 366-367), destaca quanto um líder pode fascinar. É evidente que esse
fascínio ocorre a partir de circunstâncias específicas e favoráveis. Ora, se levarmos em
conta esse “terreno desertificado” em que vivem as massas, que representa toda sua
indiferença com o que é da ordem do comum, temos aí as condições favoráveis para o
líder aparecer como esclarece Hannah Arendt:

                            O fascínio é um fenômeno social, e o fascínio que Hitler exercia sobre o seu
                            ambiente deve ser definido em termos daqueles que o rodeavam. A sociedade
                            tende a aceitar uma pessoa pelo que ela pretende ser, de sorte que um louco
                            que finja ser gênio sempre tem certa possibilidade de merecer crédito.
                            (ARENDT, p. 355).


        Esse crédito dado a qualquer desvairado só pode dar frutos onde ainda não há
frutos para colher, ou seja, só encontra onde fincar raízes onde o terreno for
desertificado, a partir do que constatamos serem as massas um grupo extremamente
propenso ao nascimento do movimento totalitário.
              As massas fascinadas dão todo suporte necessário para o totalitarismo
estabelecer sua ideologia, e os recursos utilizados para isso são a propaganda e a
violência, que se apresentam como as grandes estratégias de consolidação e manutenção
do movimento totalitário. Como público-alvo, ele tem as massas.
                            A propaganda promovida aparece como o momento antecedente da
                            instauração dos regimes totalitários, contudo vai adiante e o acompanha em
                            todo seu curso de abuso de poder, oferecendo-lhe uma imagem que possa ser
                            cultuada, ainda que à custa da mentira. (ARENDT, p. 357).

              A violência, por sua vez, apresenta-se como o marco definidor daquilo que
vai ser o regime totalitário, pois sua ação garante aos regimes totalitários o medo e o
“encanto” necessários para dar continuidade ao seu propósito de domínio total a partir
da descartabilidade de pessoas. O medo aparece para aqueles que, de uma forma ou de
outra, se mostram contrários aos métodos do totalitarismo enquanto, para a ralé, o
“encanto” representa um sinal de esperteza, apesar da violência dos crimes. Tal é o nível
de entrega das massas a essa proposta, que, mesmo quando o totalitarismo destrói os

6
 A reflexão dessa constatação de inércia política é fundamentada por Newton Bignotto como um “terreno
desertificado”, para ressaltar o desenraizamento político das massas e a influência que um líder pode ter
sobre a mesma (Cf. AGUIAR et al. 2001, p. 39).

                                                   4
seus, isso não os afeta, como se aniquilar os próprios companheiros fosse um “mal
necessário.” Consoante Hannah Arendt:

                           O que é desconcertante no sucesso do totalitarismo é o verdadeiro altruísmo
                           de seus adeptos. É compreensível que as convicções de um nazista ou
                           bolchevista não sejam abaladas por crimes cometidos contra os inimigos do
                           movimento, mas o fato espantoso é que ele não vacila quando o monstro
                           começa a devorar os próprios filhos, nem mesmo quando ele próprio se torna
                           vítima da opressão, quando é incriminado e condenado, quando é expulso do
                           partido e enviado para um campo de concentração ou de trabalhos forçados.
                           (ARENDT, p. 357).




Massas e Classes: uma diferença importante no contexto do
Totalitarismo



             Todo sustentáculo “político” do regime totalitário se deu sob apoio das
massas, levando em conta que por um motivo ou por outro, desenvolveram o gosto pela
organização política (ARENDT, p. 361) ainda que, como ressalta Arendt, desprovida de
toda e qualquer consciência de interesse comum, sendo as mesmas carentes de uma
articulação de classes.7 As massas são diretamente antagônicas às classes, justamente
por não apresentarem um ideal comum, um anseio comum que expresse objetivos
determinados. A pergunta que surge é sobre como poderíamos definir as massas, visto
entendermos que elas não se enquadram no conceito de classes tendo em vista que esta
admite, em sua definição, a caracterização de grupo que luta por interesse comum
politicamente articulado. Hannah Arendt define massas como: “Os grupos que,
potencialmente, existem em qualquer país e constituem a maioria de pessoas neutras
politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o
poder de voto.” (ARENDT, p.361).
             As massas são, portanto, o denso grupo de indivíduos que não conseguem
articular-se, sendo o individualismo e o isolamento suas grandes marcas. Em outras
palavras, as massas são um agregado numeroso de indivíduos atomizados, em função da


7
   As massas são diretamente antagônicas às classes, justamente por não oferecerem, em sua
caracterização, um ideal comum, um anseio coletivo. Ao contrário, seus ideais apresentam-se isolados
formando apenas aglomerados, o que indica estarem as massas potencialmente sujeitas a aceitar qualquer
interesse e qualquer ideologia, bastando que se usem meios capazes de aglutiná-los. O totalitarismo
aplicou esses meios (propaganda e violência) e instaurou uma ideologia onde nada havia no seio das
massas.

                                                  5
dissolução   das   relações   sociais   costumeiras.   Estes   indivíduos são   também
desenraizados, ou seja, destituídos de referências comuns, permanecendo alheios a
qualquer interesse, seja ele comum ou próprio. A perda radical do interesse do indivíduo
em si mesmo, isto é, o sentimento de ser dispensável (Cf. DUARTE, 2000) é um
fenômeno sem precedentes históricos que se tornou generalizado após a primeira guerra,
inclusive com assassinatos em grande escala.
             Para Hannah Arendt, os massacres humanos cometidos como uma
verdadeira “fabrica de cadáveres” pelos regimes totalitários de direita e de esquerda não
tiveram nenhuma “raison d’état no antigo sentido do termo”. Esse dado nos permite
compreender uma característica fundamental para a definição do caráter inédito do
totalitarismo como forma de dominação. O totalitarismo se diferencia de todas as
formas precedentes de ditaduras tirânicas pelo fato de não se contentar com a
eliminação de toda oposição interna possível, mas atinge o seu verdadeiro propósito
apenas quando toda resistência já foi aniquilada. Não basta para o terror totalitário
esvaziar a esfera política que lhe faça oposição, pois o mesmo visa o domínio sobre a
totalidade do tecido social, penetrando e destruindo aquilo que é da ordem das relações
privadas, do âmbito do íntimo negando o caráter autônomo de quaisquer atividades que
se dêem aí. A respeito dessa novidade que marca o totalitarismo, diz-nos Hannah
Arendt: “O que é importante em nosso contexto é que o governo totalitário é diferente
das tiranias e das ditaduras.” (ARENDT, p. 343). É preciso, portanto, esquivar-se de
comparações com formas políticas do passado na tentativa de fornecer ao totalitarismo
um “fundo histórico” do ponto de vista da origem, pois, para Hannah Arendt, ele se
apresenta como novo modelo de domínio, que lança seus tentáculos aos pontos mais
articulados do tecido social com a finalidade de anular toda e qualquer ação dos
indivíduos. É um fenômeno negador do espaço público e da ação. O espaço público
negado pelo regime totalitário tem suas bases fragilizadas desde o período em que a
burguesia assumiu o cenário público. A postura burguesa, individualista, e seus valores
pautados no lucro conduziram os indivíduos a uma indiferença com a coisa pública,
“cada um faça o seu” tornou-se o grande lema da burguesia. A burguesia como classe
mantinha interesses comuns, mas eram interesses que não se filiavam às ordens do
público, mas à ordem do privado, de tal modo que o modus vivendi da burguesia
possibilitou o desgaste da consciência política que privilegiava o comum em detrimento
do privado. A sociedade competitiva de consumo criada pela burguesia gerou apatia e
até mesmo hostilidade em relação à vida pública, não apenas entre as camadas sociais

                                            6
exploradas e excluídas da participação ativa no governo do país, mas, acima de tudo, no
interior de sua própria classe (ARENDT, p. 363). É evidente que o modelo burguês se
resguardou dos fundamentos do totalitarismo à medida que manteve em seu bojo a
característica do individualismo, postura essa que apesar da apatia pela coisa pública,
manteve firme a luta competitiva pela vida. Contudo, acabou minando o espaço público,
pois descaracterizou o individuo como ser de relações. Isso destruiu o tecido social e
deixou aparecer um grupo de pessoas adormecidas e sem representação para as quais a
coisa púbica, cada vez mais, deixava de ter sentido. Contudo, esse grupo, ao encontrar
quem lhes conferisse identidade, estaria disposto a uma violenta oposição, como nos diz
Hannah Arendt:

                       O colapso do sistema de classes significou automaticamente o colapso do
                       sistema partidário, porque os partidos, cuja função era representar interesses,
                       não mais podiam representá-los, uma vez que a sua fonte e origem eram as
                       classes. [...] Assim, o primeiro sintoma do colapso do sistema partidário
                       continental não foi a deserção dos antigos membros do partido, mas o
                       insucesso em recrutar membros dentre as gerações jovens e a perda do
                       consentimento e apoio silencioso das massas desorganizadas, que
                       subitamente deixaram de lado a apatia e marchavam para onde vissem
                       oportunidade de expressar a sua violenta oposição. (ARENDT, p. 365-366).


           É nesse contexto de colapso que emerge um novo tipo social: o homem-de-
massa. O homem-de-massa é um tipo desenraizado, mas, sobretudo, sem sentido.
Quando falamos “sem sentido”, referimo-nos aos diversos campos da vida social, pois
esse homem-de-massa carece de significado político, cultural, institucional e até
pessoal. A atmosfera de colapso social que atingiu as classes lançou esse tipo de
indivíduo em uma certeza acerca de si próprio, a de que tinha alcançado o fracasso, e
um fracasso individual, a ponto de nada mais fazer sentido. O isolamento era tamanho
que até o fracasso lhe pareceu solitário o que, para Hannah Arendt, representou um
claro enfraquecimento do instinto de autoconservação. Essa situação levou a uma
consciência mais comum na medida em que a desimportância e a dispensabilidade
deixavam de (ARENDT, p. 365-366) ser a expressão da frustração individual e se
tornavam fenômeno de massa. O isolamento e o descontentamento desse homem-de-
massa, como indivíduo sem raiz e sem vínculo social que o permitissem existir em um
grupo foram tamanhos que ele se desesperançou de si mesmo (ARENDT, p. 366),
apresentando uma perda radical do interesse por sua própria pessoa, o que conduziu ao
engrossamento do grupo dos chamados “não-alinhados”, isto é, dos indivíduos isolados
sem relações sociais normais, enfim, de indivíduos sem o menor interesse comum,


                                               7
totalmente sem noção do valor da coisa pública. O homem -de- massa, enquanto
indivíduo sem vínculo é potencialmente, para o movimento totalitário, o tipo ideal na
medida em que oferece todas as condições para consolidar compromissos com essa
ideologia e a ela prestar fidelidade total. Justamente por não haver lealdade a nenhuma
causa ou grupo, tal esvaziamento possibilita uma lealdade total (ARENDT, p. 373).
Assim nos fala Hannah Arendt:

                        Não se pode esperar lealdade a não ser de seres humanos completamente
                        isolados que, desprovidos de outros laços sociais de família, amizade,
                        camaradagem só adquirem o sentido de terem lugar neste mundo quando
                        participam de um movimento, pertencem ao partido. (ARENDT, p. 375).


            Observado isso, conclui-se que qualquer corpo de regras pode levar esse
indivíduo, mais cedo ou mais tarde, a voltar-se contra o movimento. Portanto, sua
lealdade, para ser total basta estar fundada no vínculo ao grupo, e isto, para o homem-
de-massa, que vivia isolado, já significa muito. Os líderes do movimento totalitário
entenderam bem essa questão. Não é à toa que Hitler, em seus discursos, declarava:
“Quando tomarmos o governo, o programa virá por si mesmo.” (ARENDT, p. 374).
Esse dado é confirmado na frase de Himmler para os homens da SS: “Minha honra é a
minha lealdade.” (ARENDT, p. 374), e isso sugere que a lealdade vivida nos regimes
totalitários é fruto de um sentido encontrado por indivíduos até então sem sentido, o que
dispensa programas e regras. Esse sentido encontrado é manifesto e corporificado em
um líder, como anteriormente falamos, ele confere identidade e rosto às massas.
Contudo, é preciso que se esclareça que tanto o líder confere sentido às massas, quanto
tem seu sentido a partir delas. Aí se desenvolve, portanto, uma relação de
interdependência em que um e outro se encontram para significar seus objetivos: o do
líder é instaurar o domínio total via terror, violência e assim por diante, e o das massas é
dar sentido a seu existir, rompendo com o isolamento, fazendo brotar um sentimento de
pertença a uma causa, a um grupo, ainda que isso signifique a negação de outros. O
líder totalitário funciona como um “funcionário” das massas que dirige, mas que
depende delas tanto quanto elas dele. A esse respeito escreve Hannah Arendt:
                        Essencialmente, o líder totalitário é nada mais e nada menos que o
                        funcionário da massa que dirige; não é um individuo sedento de poder
                        impondo aos seus governados uma vontade tirânica e arbitrária. Como
                        simples funcionário, pode ser substituído a qualquer momento e depende
                        tanto do “desejo” das massas que ele incorpora, como as massas dependem
                        dele. Sem ele, elas não teriam representação externa e não passariam de um
                        bando amorfo; sem as massas, o líder seria uma nulidade. Hitler, que
                        conhecia muito bem essa interdependência, exprimiu-a certa vez num


                                              8
discurso perante a SS: “tudo o que vocês são, o são através de mim; tudo o
                        que eu sou, sou somente através de vocês.” (ARENDT, p. 375).


            A partir desse contexto, Hannah Arendt lembra que, não havendo uma
finalidade política nos movimentos totalitários, a chegada ao poder em um Estado
especifico representa apenas uma etapa transitória, um momento-chave, mas não
estanque daquilo que é o movimento maior, ou seja, a articulação de pessoas, tendo
como fim prático moldar, à sua estrutura, o maior número possível de pessoas
(ARENDT, p. 376). Dessa maneira, tal relação de interdependência entre líder e massa é
que garante o sucesso do movimento totalitário. Portanto, enquanto existirem indivíduos
isolados que possam ser “encantados” pela ideologia do terror e do domínio total e esses
puderem oferecer lealdade como sustentáculo ao movimento totalitário, o movimento
avançará na sua pretensão de domínio precisamente naquilo que consiste: promover a
descartabilidade de pessoas pelo uso do terror e da violência.



Conclusão

       Sendo assim, Concluímos que o movimento totalitário não tem origem histórica
no passado de tiranias. Contudo, não nasceu do nada, mas, ao contrário, encontrou bases
para se fundamentar e, por mais discutível que possa ser essa questão, não podemos
perder de vista a relação entre as massas, enquanto grupo amorfo, atomizado e
despolitizado e a instauração do movimento totalitário.
       Considerando os eventos do período entre guerras tais como; invasões de
territórios; violação de direitos humanos; uso de violência; destruição em grande escala
de pessoas; campos de concentração; entre tantas outras arbitrariedades aliados ao
silêncio e a conivência de muitos, é que nos instiga a investigar e procurar entender
como uma população pôde conviver e, em muitos casos, aprovar tais situações. É
evidente que não é de nosso interesse esgotar o debate em torno de tal questão nem
pretendemos isso, queremos ser nesse contexto mais uma provocação no sentido de
refletir a ação humana enquanto ação constituidora da política e do espaço público, por
entendermos ser vital a preocupação com o comum, que garante os espaços de
convivência e protege a sociedade de oportunistas em busca do poder, pautado na
contrasenso da violência.



                                              9
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BIGNOTTO, Newton; JARDIM, Eduardo (Org.). Diálogos, reflexões e memórias. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2003.




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Totalitarismo e sociedade de massas o espaço público em risco

  • 1. TOTALITARISMO E SOCIEDADE DE MASSAS: O ESPAÇO PÚBLICO EM RISCO.1 Prof. Ms. Ricardo George2 Resumo O presente texto tem por objetivo trazer à baila o debate em torno do Totalitarismo e sua relação com a sociedade de massas. Busca-se aqui esclarecer os efeitos de uma sociedade despolitizada, marcada por homens e mulheres atomizados e politicamente desengajados do espaço público. Pretendemos, pois, sem querer esgotar o debate, pontuar os malefícios do totalitarismo, enquanto pretenso regime político que, fazendo uso da violência e do terror, encontrou respaldo legal e apoio nas massas que por estarem despossuídas de um significado político, passam a se “encantar” com as estratégias de um movimento que visa apenas o domínio total, sem considerar os meios para alcançar seu objetivo. Palavras chaves: Totalitarismo, Massas, Violência. abstract The present text aims to bring up the debate around the Totalitarianism and its relationship with the society of masses. Its objective here is to explain the effects of a not political society, marked by men and women atomized and politically not envolved in the public space. We do not intend, therefore, to end the debate, but to point out the harms of the totalitarianism, that as an assumed political regime, making use of violence and terror, found legal support in the masses that are not filled with a political meaning, they were deceived by the strategies of a movement that just seeks the total domain, without considering the means to reach its objective. Key-Words: Totalitarianism, Masses, Violence. 1 Este artigo é parte integrante da nossa Dissertação de Mestrado intitulada: Política e Liberdade em Hannah Arendt, defendida em janeiro de 2006, no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Ceará - UFC. Este trabalho foi realizado sob a orientação do Prof. Dr. Odílio Alves Aguiar, da UFC e contou com uma bolsa de incentivo à pesquisa da Funcap. 2 Prof. Assistente I da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). 1
  • 2. O TOTALITARISMO COMO PRETENSO REGIME POLÍTICO E SUA RELAÇÃO COM AS MASSAS Origens do totalitarismo entra no cenário editorial como um dos textos mais marcantes do pensamento político contemporâneo. Ao tratar do tema ‘totalitarismo’, Hannah Arendt se propõe esclarecer algo que para ela é novo, ou seja, algo que não tem precedentes na história (ARENDT, p. 343). Essa novidade política traz no seu bojo a pretensão de domínio total, o uso da violência e a negação da liberdade. O totalitarismo surge, assim, como sistema negador da política. Apoiado nas massas, nelas encontra terreno fértil para cultivar sua ideologia. No processo de “atomização da sociedade”, fruto da falta de interesse comum das massas e desenraizamento político, o sistema totalitário estrutura seu edifício de terror e domínio total. Nessa perspectiva, encontramos as massas como constituindo a estrutura básica do totalitarismo3, isto é, os governos totalitários edificam-se sobre bases que são as massas que eles organizaram politicamente. Podemos perceber, então, que as massas ocupam lugar central no contexto do totalitarismo e servem a esse regime em várias frentes, pois lhes são solícitas quanto à implantação de uma ideologia, já carecem de enraizamento e identidade política. Elas lhes são solícitas quanto ao contingente numérico que fortalecem os partidos totalitários e os também os favorecem com a condução ao poder pelas vias democráticas, como ocorreu com Hitler e o Nazismo na Alemanha do período entre guerras, o que nos conduz à reflexão de que os movimentos totalitários colocaram, à vista de todos, duas fragilidades dos regimes democráticos parlamentares (ARENDT, p. 362), a saber: a) a crença de que povo, em sua maioria, participa ativamente do governo e, b) de que as massas neutras e desarticuladas constituem apenas o “pano de fundo silencioso” da vida política da nação. Nesse contexto de relações frágeis ou até inexistentes entre os homens é que encontramos elementos para afirmar que as massas fornecem material para a construção 3 Duarte (2000, p. 48) esclarece o quanto as massas são importantes na estrutura básica do sistema totalitário. Assim diz ele: “As massas constituem o ingrediente ou a matéria básica da configuração dos governos totalitários, pois eles se alimentam justamente da possibilidade da sua organização e destruição.” 2
  • 3. do que Arendt chamou de movimento totalitário.4 Cabe aqui a distinção entre movimento e regime totalitários na medida em que Hannah Arendt põe abaixo a máxima segundo a qual uma sociedade democrática não pode conviver com um movimento totalitário. Segundo Newton Bignotto, o que se observou na Alemanha e o que vemos nas sociedades atuais é que as democracias são passíveis de ser usadas pelos movimentos extremistas exatamente porque não podem impedir a manifestação de divergências. Nunca é demais lembrar que Hitler chegou ao poder por meios legais. No entanto, as massas, dadas suas características, só se tornam ativas quando conduzidas por um líder, que lhes empresta um rosto e confere sentido a suas ações.5 O papel do líder para as massas funciona como o do pastor de ovelhas para o rebanho de modo que, sem pastor, o rebanho fica sem rumo, e lhe falta à identidade. O pastor é aquele que direciona e que fornece segurança a respeito do futuro: “Ele conhece o caminho”. Essa metáfora nos ajuda a entender a importância do líder, daquele que direciona e conhece o caminho. As massas, então, devotam a esse líder a esperança e aquilo que lhes falta. Agora, fincam raízes sobre a ideologia que esse líder-pastor lhes oferecer, sendo as palavras deste a verdade, e suas bandeiras, a glória. As massas encontram identidade ainda que sob a forma de manobra. É a manobra a grande forma de dominação e controle utilizada pelo movimento totalitário junto às massas, já que o isolamento social é uma de suas grandes características, o que favoreceu a ação do movimento totalitário. A respeito disso nos diz Arendt: A verdade é que as massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada, cuja estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram controladas quando se pertencia a uma classe. A principal característica do homem de massa não é a brutalidade nem rudeza, mas o isolamento e a sua falta de relação. (ARENDT, p. 366-367). As massas, nesse contexto, apresentam-se como os habitantes de uma parte destruída do espaço político, isto é, são aqueles para quem o espaço da ação e do discurso não tem sentido, porque já não há nessas pessoas vínculo social ou motivação política, sendo sua grande marca a apoliticidade. Assim, indicam, por sua presença, um espaço público negado, onde ela mesma pode ser eliminada, justamente por não ocupar 4 Cf. ARENDT, p. 373: “Movimentos totalitários são organizações maciças de indivíduos atomizados e isolados, distinguem-se dos outros partidos e movimentos pela exigência de lealdade total, irrestrita e incondicional e inalterável de cada membro individual.” 5 Cf. BIGNOTTO, Newton. O totalitarismo hoje. In: AGUIAR et al., 2001, p. 39. 3
  • 4. o espaço público, sendo esse vácuo de ação solo fértil para o controle das massas. É, portanto, sua inércia diante da cena pública que a conduz a manipulações de toda sorte.6 Hannah Arendt, em nota de rodapé da terceira parte de Origens do Totalitarismo (p. 366-367), destaca quanto um líder pode fascinar. É evidente que esse fascínio ocorre a partir de circunstâncias específicas e favoráveis. Ora, se levarmos em conta esse “terreno desertificado” em que vivem as massas, que representa toda sua indiferença com o que é da ordem do comum, temos aí as condições favoráveis para o líder aparecer como esclarece Hannah Arendt: O fascínio é um fenômeno social, e o fascínio que Hitler exercia sobre o seu ambiente deve ser definido em termos daqueles que o rodeavam. A sociedade tende a aceitar uma pessoa pelo que ela pretende ser, de sorte que um louco que finja ser gênio sempre tem certa possibilidade de merecer crédito. (ARENDT, p. 355). Esse crédito dado a qualquer desvairado só pode dar frutos onde ainda não há frutos para colher, ou seja, só encontra onde fincar raízes onde o terreno for desertificado, a partir do que constatamos serem as massas um grupo extremamente propenso ao nascimento do movimento totalitário. As massas fascinadas dão todo suporte necessário para o totalitarismo estabelecer sua ideologia, e os recursos utilizados para isso são a propaganda e a violência, que se apresentam como as grandes estratégias de consolidação e manutenção do movimento totalitário. Como público-alvo, ele tem as massas. A propaganda promovida aparece como o momento antecedente da instauração dos regimes totalitários, contudo vai adiante e o acompanha em todo seu curso de abuso de poder, oferecendo-lhe uma imagem que possa ser cultuada, ainda que à custa da mentira. (ARENDT, p. 357). A violência, por sua vez, apresenta-se como o marco definidor daquilo que vai ser o regime totalitário, pois sua ação garante aos regimes totalitários o medo e o “encanto” necessários para dar continuidade ao seu propósito de domínio total a partir da descartabilidade de pessoas. O medo aparece para aqueles que, de uma forma ou de outra, se mostram contrários aos métodos do totalitarismo enquanto, para a ralé, o “encanto” representa um sinal de esperteza, apesar da violência dos crimes. Tal é o nível de entrega das massas a essa proposta, que, mesmo quando o totalitarismo destrói os 6 A reflexão dessa constatação de inércia política é fundamentada por Newton Bignotto como um “terreno desertificado”, para ressaltar o desenraizamento político das massas e a influência que um líder pode ter sobre a mesma (Cf. AGUIAR et al. 2001, p. 39). 4
  • 5. seus, isso não os afeta, como se aniquilar os próprios companheiros fosse um “mal necessário.” Consoante Hannah Arendt: O que é desconcertante no sucesso do totalitarismo é o verdadeiro altruísmo de seus adeptos. É compreensível que as convicções de um nazista ou bolchevista não sejam abaladas por crimes cometidos contra os inimigos do movimento, mas o fato espantoso é que ele não vacila quando o monstro começa a devorar os próprios filhos, nem mesmo quando ele próprio se torna vítima da opressão, quando é incriminado e condenado, quando é expulso do partido e enviado para um campo de concentração ou de trabalhos forçados. (ARENDT, p. 357). Massas e Classes: uma diferença importante no contexto do Totalitarismo Todo sustentáculo “político” do regime totalitário se deu sob apoio das massas, levando em conta que por um motivo ou por outro, desenvolveram o gosto pela organização política (ARENDT, p. 361) ainda que, como ressalta Arendt, desprovida de toda e qualquer consciência de interesse comum, sendo as mesmas carentes de uma articulação de classes.7 As massas são diretamente antagônicas às classes, justamente por não apresentarem um ideal comum, um anseio comum que expresse objetivos determinados. A pergunta que surge é sobre como poderíamos definir as massas, visto entendermos que elas não se enquadram no conceito de classes tendo em vista que esta admite, em sua definição, a caracterização de grupo que luta por interesse comum politicamente articulado. Hannah Arendt define massas como: “Os grupos que, potencialmente, existem em qualquer país e constituem a maioria de pessoas neutras politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto.” (ARENDT, p.361). As massas são, portanto, o denso grupo de indivíduos que não conseguem articular-se, sendo o individualismo e o isolamento suas grandes marcas. Em outras palavras, as massas são um agregado numeroso de indivíduos atomizados, em função da 7 As massas são diretamente antagônicas às classes, justamente por não oferecerem, em sua caracterização, um ideal comum, um anseio coletivo. Ao contrário, seus ideais apresentam-se isolados formando apenas aglomerados, o que indica estarem as massas potencialmente sujeitas a aceitar qualquer interesse e qualquer ideologia, bastando que se usem meios capazes de aglutiná-los. O totalitarismo aplicou esses meios (propaganda e violência) e instaurou uma ideologia onde nada havia no seio das massas. 5
  • 6. dissolução das relações sociais costumeiras. Estes indivíduos são também desenraizados, ou seja, destituídos de referências comuns, permanecendo alheios a qualquer interesse, seja ele comum ou próprio. A perda radical do interesse do indivíduo em si mesmo, isto é, o sentimento de ser dispensável (Cf. DUARTE, 2000) é um fenômeno sem precedentes históricos que se tornou generalizado após a primeira guerra, inclusive com assassinatos em grande escala. Para Hannah Arendt, os massacres humanos cometidos como uma verdadeira “fabrica de cadáveres” pelos regimes totalitários de direita e de esquerda não tiveram nenhuma “raison d’état no antigo sentido do termo”. Esse dado nos permite compreender uma característica fundamental para a definição do caráter inédito do totalitarismo como forma de dominação. O totalitarismo se diferencia de todas as formas precedentes de ditaduras tirânicas pelo fato de não se contentar com a eliminação de toda oposição interna possível, mas atinge o seu verdadeiro propósito apenas quando toda resistência já foi aniquilada. Não basta para o terror totalitário esvaziar a esfera política que lhe faça oposição, pois o mesmo visa o domínio sobre a totalidade do tecido social, penetrando e destruindo aquilo que é da ordem das relações privadas, do âmbito do íntimo negando o caráter autônomo de quaisquer atividades que se dêem aí. A respeito dessa novidade que marca o totalitarismo, diz-nos Hannah Arendt: “O que é importante em nosso contexto é que o governo totalitário é diferente das tiranias e das ditaduras.” (ARENDT, p. 343). É preciso, portanto, esquivar-se de comparações com formas políticas do passado na tentativa de fornecer ao totalitarismo um “fundo histórico” do ponto de vista da origem, pois, para Hannah Arendt, ele se apresenta como novo modelo de domínio, que lança seus tentáculos aos pontos mais articulados do tecido social com a finalidade de anular toda e qualquer ação dos indivíduos. É um fenômeno negador do espaço público e da ação. O espaço público negado pelo regime totalitário tem suas bases fragilizadas desde o período em que a burguesia assumiu o cenário público. A postura burguesa, individualista, e seus valores pautados no lucro conduziram os indivíduos a uma indiferença com a coisa pública, “cada um faça o seu” tornou-se o grande lema da burguesia. A burguesia como classe mantinha interesses comuns, mas eram interesses que não se filiavam às ordens do público, mas à ordem do privado, de tal modo que o modus vivendi da burguesia possibilitou o desgaste da consciência política que privilegiava o comum em detrimento do privado. A sociedade competitiva de consumo criada pela burguesia gerou apatia e até mesmo hostilidade em relação à vida pública, não apenas entre as camadas sociais 6
  • 7. exploradas e excluídas da participação ativa no governo do país, mas, acima de tudo, no interior de sua própria classe (ARENDT, p. 363). É evidente que o modelo burguês se resguardou dos fundamentos do totalitarismo à medida que manteve em seu bojo a característica do individualismo, postura essa que apesar da apatia pela coisa pública, manteve firme a luta competitiva pela vida. Contudo, acabou minando o espaço público, pois descaracterizou o individuo como ser de relações. Isso destruiu o tecido social e deixou aparecer um grupo de pessoas adormecidas e sem representação para as quais a coisa púbica, cada vez mais, deixava de ter sentido. Contudo, esse grupo, ao encontrar quem lhes conferisse identidade, estaria disposto a uma violenta oposição, como nos diz Hannah Arendt: O colapso do sistema de classes significou automaticamente o colapso do sistema partidário, porque os partidos, cuja função era representar interesses, não mais podiam representá-los, uma vez que a sua fonte e origem eram as classes. [...] Assim, o primeiro sintoma do colapso do sistema partidário continental não foi a deserção dos antigos membros do partido, mas o insucesso em recrutar membros dentre as gerações jovens e a perda do consentimento e apoio silencioso das massas desorganizadas, que subitamente deixaram de lado a apatia e marchavam para onde vissem oportunidade de expressar a sua violenta oposição. (ARENDT, p. 365-366). É nesse contexto de colapso que emerge um novo tipo social: o homem-de- massa. O homem-de-massa é um tipo desenraizado, mas, sobretudo, sem sentido. Quando falamos “sem sentido”, referimo-nos aos diversos campos da vida social, pois esse homem-de-massa carece de significado político, cultural, institucional e até pessoal. A atmosfera de colapso social que atingiu as classes lançou esse tipo de indivíduo em uma certeza acerca de si próprio, a de que tinha alcançado o fracasso, e um fracasso individual, a ponto de nada mais fazer sentido. O isolamento era tamanho que até o fracasso lhe pareceu solitário o que, para Hannah Arendt, representou um claro enfraquecimento do instinto de autoconservação. Essa situação levou a uma consciência mais comum na medida em que a desimportância e a dispensabilidade deixavam de (ARENDT, p. 365-366) ser a expressão da frustração individual e se tornavam fenômeno de massa. O isolamento e o descontentamento desse homem-de- massa, como indivíduo sem raiz e sem vínculo social que o permitissem existir em um grupo foram tamanhos que ele se desesperançou de si mesmo (ARENDT, p. 366), apresentando uma perda radical do interesse por sua própria pessoa, o que conduziu ao engrossamento do grupo dos chamados “não-alinhados”, isto é, dos indivíduos isolados sem relações sociais normais, enfim, de indivíduos sem o menor interesse comum, 7
  • 8. totalmente sem noção do valor da coisa pública. O homem -de- massa, enquanto indivíduo sem vínculo é potencialmente, para o movimento totalitário, o tipo ideal na medida em que oferece todas as condições para consolidar compromissos com essa ideologia e a ela prestar fidelidade total. Justamente por não haver lealdade a nenhuma causa ou grupo, tal esvaziamento possibilita uma lealdade total (ARENDT, p. 373). Assim nos fala Hannah Arendt: Não se pode esperar lealdade a não ser de seres humanos completamente isolados que, desprovidos de outros laços sociais de família, amizade, camaradagem só adquirem o sentido de terem lugar neste mundo quando participam de um movimento, pertencem ao partido. (ARENDT, p. 375). Observado isso, conclui-se que qualquer corpo de regras pode levar esse indivíduo, mais cedo ou mais tarde, a voltar-se contra o movimento. Portanto, sua lealdade, para ser total basta estar fundada no vínculo ao grupo, e isto, para o homem- de-massa, que vivia isolado, já significa muito. Os líderes do movimento totalitário entenderam bem essa questão. Não é à toa que Hitler, em seus discursos, declarava: “Quando tomarmos o governo, o programa virá por si mesmo.” (ARENDT, p. 374). Esse dado é confirmado na frase de Himmler para os homens da SS: “Minha honra é a minha lealdade.” (ARENDT, p. 374), e isso sugere que a lealdade vivida nos regimes totalitários é fruto de um sentido encontrado por indivíduos até então sem sentido, o que dispensa programas e regras. Esse sentido encontrado é manifesto e corporificado em um líder, como anteriormente falamos, ele confere identidade e rosto às massas. Contudo, é preciso que se esclareça que tanto o líder confere sentido às massas, quanto tem seu sentido a partir delas. Aí se desenvolve, portanto, uma relação de interdependência em que um e outro se encontram para significar seus objetivos: o do líder é instaurar o domínio total via terror, violência e assim por diante, e o das massas é dar sentido a seu existir, rompendo com o isolamento, fazendo brotar um sentimento de pertença a uma causa, a um grupo, ainda que isso signifique a negação de outros. O líder totalitário funciona como um “funcionário” das massas que dirige, mas que depende delas tanto quanto elas dele. A esse respeito escreve Hannah Arendt: Essencialmente, o líder totalitário é nada mais e nada menos que o funcionário da massa que dirige; não é um individuo sedento de poder impondo aos seus governados uma vontade tirânica e arbitrária. Como simples funcionário, pode ser substituído a qualquer momento e depende tanto do “desejo” das massas que ele incorpora, como as massas dependem dele. Sem ele, elas não teriam representação externa e não passariam de um bando amorfo; sem as massas, o líder seria uma nulidade. Hitler, que conhecia muito bem essa interdependência, exprimiu-a certa vez num 8
  • 9. discurso perante a SS: “tudo o que vocês são, o são através de mim; tudo o que eu sou, sou somente através de vocês.” (ARENDT, p. 375). A partir desse contexto, Hannah Arendt lembra que, não havendo uma finalidade política nos movimentos totalitários, a chegada ao poder em um Estado especifico representa apenas uma etapa transitória, um momento-chave, mas não estanque daquilo que é o movimento maior, ou seja, a articulação de pessoas, tendo como fim prático moldar, à sua estrutura, o maior número possível de pessoas (ARENDT, p. 376). Dessa maneira, tal relação de interdependência entre líder e massa é que garante o sucesso do movimento totalitário. Portanto, enquanto existirem indivíduos isolados que possam ser “encantados” pela ideologia do terror e do domínio total e esses puderem oferecer lealdade como sustentáculo ao movimento totalitário, o movimento avançará na sua pretensão de domínio precisamente naquilo que consiste: promover a descartabilidade de pessoas pelo uso do terror e da violência. Conclusão Sendo assim, Concluímos que o movimento totalitário não tem origem histórica no passado de tiranias. Contudo, não nasceu do nada, mas, ao contrário, encontrou bases para se fundamentar e, por mais discutível que possa ser essa questão, não podemos perder de vista a relação entre as massas, enquanto grupo amorfo, atomizado e despolitizado e a instauração do movimento totalitário. Considerando os eventos do período entre guerras tais como; invasões de territórios; violação de direitos humanos; uso de violência; destruição em grande escala de pessoas; campos de concentração; entre tantas outras arbitrariedades aliados ao silêncio e a conivência de muitos, é que nos instiga a investigar e procurar entender como uma população pôde conviver e, em muitos casos, aprovar tais situações. É evidente que não é de nosso interesse esgotar o debate em torno de tal questão nem pretendemos isso, queremos ser nesse contexto mais uma provocação no sentido de refletir a ação humana enquanto ação constituidora da política e do espaço público, por entendermos ser vital a preocupação com o comum, que garante os espaços de convivência e protege a sociedade de oportunistas em busca do poder, pautado na contrasenso da violência. 9
  • 10. Referências Bibliográficas ADEODATO, João M. L. O Problema da legitimidade: no rastro do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. AGUIAR, Odílio Alves. Filosofia e política no pensamento de Hannah Arendt. Fortaleza: Edições UFC, 2001. _____ et al. Origens do totalitarismo: 50 anos depois. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2001. ARENDT, Hannah. A Condição humana. 10. ed. Tradução Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. _____. Lições sobre a filosofia política de Kant. Tradução André Duarte. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993b. _____. O que é política.Tradução de Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. _____. Origens do totalitarismo. 8. ed. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1998. _____. Homens em tempos sombrios. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. _____. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. _____. A dignidade da política: ensaios e conferências. 2. ed. Tradução de Helena Martins et al. Rio de Janeiro: Relume- Dumará, 1993a. BIGNOTTO, Newton; JARDIM, Eduardo (Org.). Diálogos, reflexões e memórias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. 10