Este livro contém três contos populares portugueses: (1) A História do Grão-de-Milho, sobre um menino do tamanho de um grão de milho que passa por diversas aventuras, (2) A Vendedora de Cebolas, sobre uma jovem que é ajudada por uma velha bruxa, e (3) A Lenda da Caninha Verde, sobre um nobre mouro cuja bengala mágica o leva ao amor.
4. História do Grão-de-Milho
ERA UMA VEZ uns casados e não tinham filhos. A mulher
tanto pediu a Nossa Senhora que lhe desse um filho, ainda
que fosse do tamanho de um greiro de milho, que ao fim
de nove meses ela pariu um filho, mas tão pequeno, tão
pequeno, que era mesmo do tamanho de um greiro de
milho. Foi-se passando tempo e o pequeno não crescia
nada, de sorte que ficou sempre do mesmo tamanho.
O pai era lavrador e, quando andava a trabalhar no campo,
era o Grão-de-Milho que lhe ia levar o jantar numa cesta;
mas, como era tão pequeno, ninguém o via o que fazia
correr aquela cesta pela rua abaixo. O pai recomendava-
lhe que não se chegasse para o pé dos bois, mas uma vez
que ele tinha ido levar o jantar ao pai, a brincar trepou
para cima de uma folha de milho e um dos bois, pensando
que era um greiro de milho, lambeu-o com a língua.
5. O pai quando quis voltar para casa, por mais que
o procurasse não deu com ele, mas tanto
chamou que por fim ouviu responder que o boi o
tinha comido e estava dentro da tripa. O pai
ficou muito aflito e matou logo ali o boi e
começou a procurá-lo nas tripas, mas por mais
que procurasse não o encontrou, até que deixou
ficar tripas e tudo. De noite um lobo, atraído
História do Grão-de-Milho
pelo cheiro da carne, veio e comeu as tripas do
boi, e deitou a fugir. O lobo teve umas grandes
dores de barriga e o Grão-de-Milho começou a
gritar-lhe: "C... aí, c... aí!" Mas o lobo, ouvindo
isto teve tanto medo que mais fugia e não podia
obrar. O Grão-de-Milho continuava a gritar: "C...
aí, c... aí!", até que o lobo tão atrapalhado se viu
que fez as suas necessidades.
6. O Grão-de-Milho logo que saiu para fora,
lavou-se muito bem lavado numa pocinha
que ali estava e foi por ali fora. No meio
História do
caminho encontrou uns almocreves que
levavam os machos carregados de dinheiro
e disse-lhes.
Grão-de-
De repente, saltam uns ladrões, matam os
almocreves e levam os machos com o Milho
dinheiro para uma casa que havia nuns
pinherais. O Grão-de-Milho, como ia
medito numa alforges, foi também sem ser
pescado. Os ladrões despejaram o dinheiro
em cima de uma grande mesa e
começaram a contá-lo. O Grão-de-Milho
pôs-se debaixo da mesa e começou a
gritar: "Quem dá dé-reis, quem dá dé-reis!"
Os ladrões, assim que ouviram isto, tiveram
tanto medo que deitaram a fugir. Então o
Grão-de-Milho ensacou o dinheiro, pô-lo
em cima dos machos e foi para casa.
Quando lá chegou, era ainda de noite e
bateu à porta. O pai perguntou: "Quem
está aí?" e ele respondeu: "Sou eu, meu
pai; abra depressa." O pai veio logo abrir a
porta e o Grão-de-Milho contou-lhe então
tudo, entregou-lhe os machos e o dinheiro
e o lavrador, que era pobre, ficou muito
rico.
8. A rapariga tinha sido mandada à feira pela
madrasta para vender um cesto de cebolas e
uma giga de ovos. Saíra de casa com o cesto à
cabeça ainda o sol não tinha nascido. Por
várias vezes, ao longo do caminho, os socos
derraparam nas pedras escorregadias pela
geada. Salvou-a da queda o bom equilíbrio
que sempre teve. Deixasse cair o cesto e era
certa a tareia da madrasta. Tanto mais que
não se vendem cebolas maçadas e ovos
muito menos e ela tinha de entregar em casa
o dinheiro certinho.
A Vendedora de Cebolas
9. A Vendedora de Cebolas
Chegou à feira já o sol ia alto. Quanto mais cedo se chegasse,
melhor negócio se fazia. Os preços começavam a baixar com o
arrastar da manhã e os mercadores acabavam por vender os
últimos produtos a menos de metade do preço, para não terem de
regressar a casa com eles.
Passou ao lado da tenda do mercador de caldeirões e corou
quando o viu a falar com uma velha que apontava para um
caldeirão. Ele era tão bonito, que a rapariga gostava de passar ali
só para o ver. O jovem mercador nem para ela olhava. E como
poderia ele olhar para uma rapariga tão feia e tão miseravelmente
vestida? Mas ela não se importava. A lembrança dele nos dias
duros de trabalho e nas noites frias aquecia-lhe o peito e isso
bastava-lhe.
10. Poisou o cesto – ninguém ali à volta se oferecera para a ajudar a descê-lo da
cabeça, nem mesmo as conhecidas de outros dias de feira que ao lado
apregoavam os produtos – e sentiu-se derreada.
No dia anterior, a madrasta tinha-a mandado retirar o estrume do curral,
trabalho que lhe ocupou grande parte do dia. Já na cozinha, quando tinha mais
vontade de comer e ir para a cama do que fazer o que quer que fosse, a
madrasta ainda a obrigou a fazer a ceia e a preparar o cesto para a feira.
Enquanto picava uma cebola para o refogado, chorou e o pai, que acabava de
chegar de uma lavrada, perguntou-lhe:
– Por que choras, minha filha?
E ela disse-lhe que por causa da cebola. O pai acreditou e sentou-se junto à
lareira a tirar as botas antes de pôr os pés ao fogo. A madrasta, ao lado, cosia
uns fundilhos e ali estiveram a fazer sala à espera que o manjar estivesse
pronto, enquanto os dois miúdos, seus meio-irmãos, por ali andavam a
arranhar-se com gritos e correrias.
A Vendedora de Cebolas
11. A Vendedora de Cebolas
Foi muito tarde que a rapariga se foi deitar no quarto das
traseiras, depois de ter lavado a loiça, preparar o avental,
a saia e a blusa que no dia seguinte vestiria para a feira.
Mesmo assim, aos olhos de quem passava, não parecia
mais do que uma mendiga, tão remendada estava a saia,
tão gasto o avental e tão puída a blusa.
Apesar de todas as desgraças, o negócio corria-lhe bem e
no final da manhã tinha vendido quase todos os ovos e
boa parte das cebolas. Estava com tanta fome que se
atreveu a pegar numa cebola, das mais pequenas.
12. Tirou-lhe as várias camadas de casca e começou a comê-la com um pedacito de pão duro
que guardara no bolso do avental. Estava ela de boca cheia, sentindo a acidez da cebola a
picar-lhe a língua, quando se aproximou a velha que ela tinha visto a conversar com o
jovem mercador. Trazia um caldeirão na mão, parou junto ao cesto e perguntou-lhe pelo
preço das cebolas. A rapariga disse-lhe que, como eram as últimas, lhas dava por metade
do preço. A velha apalpou uma e comentou:
– Não me parece que durem todo o Inverno. Têm a casca mole.
Piscou o olho direito e acrescentou:
– Se mas deres por metade do preço dessa metade que dizes, talvez as leve.
– Não posso, tiazinha – respondeu a rapariga. – A minha madrasta recomendou-me que
não descesse o preço mais do que o justo. Se não lhe entregar o dinheiro certo, ela
castiga-me.
A Vendedora de
Cebolas
13. – E como sabe ela qual é o dinheiro certo antes de a feira acabar? – perguntou a velha
piscando desta vez o olho esquerdo. – É por acaso bruxa?
A rapariga não sabia dizer. As bruxas são más, toda a gente sabe, e se assim fosse, a
madrasta era uma bruxa. Mas a rapariga também sabia que as bruxas eram velhas e
feias. E então a madrasta já não podia ser bruxa. Foi por ser nova e bonita que o pai,
quando ficou viúvo, casou com ela. Mas não sabia explicar como sabia a madrasta o
dinheiro que a rapariga lhe deveria entregar.
– Talvez – sugeriu a velha – ela não saiba, mas diz que sabe para tu ficares com medo e
não te deixares enganar pelos clientes ou não gastares o dinheiro mal gasto.
E pôs-se a matutar. Bem que as cebolas valiam o dinheiro que a rapariga pedia. Mas ela
não tinha moedas suficientes. Foi então que lhe surgiu uma ideia:
– Dás-me as cebolas pelo meu preço e não precisarás mais de te preocupar com a tua
madrasta, que deve ser uma mulher bem mais malvada do que eu.
A rapariga não percebeu bem a fala da velha do caldeirão. Mas porque lhe pareceu que a
velha era atrasadinha, coitada, deu-lhe as cebolas ao preço que ela estava disposta a
pagar. A velha meteu as cebolas no caldeirão e foi-se embora muito satisfeita depois de
ter dito como despedida:
Eu te fado bem fadada
Para que sejas bem casada.
A rapariga guardou as moedas no bolso do avental, acabou de comer
A Vendedora de Cebolas
14. Eu te fado bem fadada
Para que sejas bem casada
A rapariga guardou as moedas no bolso do avental, acabou de comer
a cebola e o pão, ajeitou o cesto na cabeça, agora bem mais leve e preparou-se para
abandonar a feira. Passou na tenda do mercador dos caldeirões e, como sempre fazia,
olhou para lá de relance. Estava estranhamente abandonada, com os caldeirões
brilhando ao sol sem ninguém que os guardasse. A rapariga aproximou-se, poisou o
cesto e pôs-se a observar a tenda. Ali perto havia um charco e ela ouviu um coaxar. Junto
à água estava um enorme sapo, tão grande como ela nunca vira. A maneira como o bicho
coaxava parecia dizer: Beija-me, beija-me, mas dito pelo nariz. Ela pôs-lhe a mão e
sentiu-lhe o dorso viscoso. Se fosse outra, sentiria nojo e fugiria dali a cuspir. Mas a
rapariga estava habituada a coisas bem mais nojentas que a madrasta a obrigava a fazer.
– Estás aqui sozinho? Coitadinho! – disse ela.
E o sapo coaxava: Beija-me, beija-me. Ela pegou nele em ambas as mãos, como se
pegasse numa flor, passou-lhe os lábios pela cabecita sem pescoço e, sem que ela
percebesse como, viu-se ao colo do jovem mercador de caldeirões. Ele sorriu e retribuiu-
lhe o beijo. Depois disse:
– És a rapariga mais bela deste reino. E porque me salvaste, farei de ti a rainha dos
caldeirões
A Vendedora de Cebolas
16. da
Em tempos que já lá vão, nos primeiros tempos da Reconquista, vivia num
palácio em Fataunços, perto de Vouzela, o nobre guerreiro El Haturra,
descendente do famoso chefe mouro Cid Alafum.
El Haturra era velho e feio e nunca era visto sem a sua bengala, uma velha cana
que vinha sendo transmitida na sua família, de geração em geração, entregue
ao seu novo possuidor com umas palavras misteriosas...
Ora, o facto de El Haturra se fazer acompanhar por aquela cana negra e
ressequida era objecto de troça de todos, a tal ponto que um seu amigo, o
jovem português Álvaro o aconselhou a desfazer-se dela. El Haturra
confidenciou-lhe então que a vara tinha magia e que se um dia chegasse a ficar
verde era o sinal sagrado do profético encontro de dois primos descendentes
de Cid Alafum.
17. Nesse dia esperado, as terras e os tesouros do antigo chefe mouro voltariam à
posse da família e as formosas mouras seriam desencantadas. Uma condição
essencial era que ambos os descendentes professassem a religião de Alá. Um
dia, passeavam El Haturra e o seu amigo Álvaro pelo campo quando viram uma
linda princesa acompanhada por uma formosa aia, de cabelo negro e olhos
azuis, que cavalgava um cavalo negro.
História do Grão-de-Milho
De repente, a vara começou a ficar verde e El Haturra começou a rejuvenescer,
tornando-se jovem e belo. Ao primeiro olhar, El Haturra tinha reconhecido na
aia a descendente de Cid Alafum e, juntamente com Álvaro, saiu atrás das duas
jovens que se dirigiam à corte do rei de Portugal.
Diz a lenda que El Haturra conseguiu convencer a jovem aia a casar-se com ele
e o rei de Portugal abençoou a união com uma condição: o baptismo de El
Haturra. De início o agora jovem El Haturra opôs-se veemente, mas por fim a
sua paixão foi mais forte e aceitou o desejo real.
18. O baptismo ficou marcado para o dia do
casamento e foi então que aconteceu algo de
extraordinário: no momento em que estava a ser
baptizado, El Haturra voltou a ser velho e feio
como dantes. A magia da caninha verde só seria
válida se ambos os nubentes professassem a
religião de Maomé.
A noiva desmaiou naquele mesmo momento e
nunca mais quis ouvir falar no seu noivo que
desapareceu para sempre, enquanto que a sua
cana verde foi guardada num sítio secreto.
Segundo a tradição, se alguém gritar "Viva o
fidalgo da caninha verde!" no mesmo local e à
mesma hora em que se deu o encontro entre os
dois descendentes de Cid Alafum, ouvirá
gargalhadas alegres das mouras encantadas que
pensam que chegou a hora da sua libertação.
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